Artigos livres

Resumo: O exercício de reflexão aqui proposto consiste em analisar, no âmbito dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP) - sistema previdenciário para determinadas categorias “reconhecidas” pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio do governo Vargas -, a “conjugação” das gramáticas do corporativismo (O'DONNEL, 1976) com o insulamento burocrático (NUNES, 2003), resultando na formulação de uma gramática do universalismo de procedimentos exclusiva para os trabalhadores vinculados a esses institutos. Ao universalizar a concessão de crédito para a aquisição da casa própria, tal gramática acaba por deixar à margem do processo milhões de outros brasileiros, o que, de certa forma, contribuiu para o déficit habitacional no Brasil.
Palavras-chave: Corporativismo, Insulamento Burocrático, Universalismo de Procedimentos. Política Habitacional.
Resumen: El ejercicio de reflexión aquí propuesto consiste en analizar, en el ámbito de los Institutos de Jubilación y Pensión (IAP) - sistema previsional para determinadas categorías “reconocidas” por el Ministerio de Trabajo, Industria y Comercio del gobierno Vargas -, la “conjugación” de la gramática del corporativismo (O'DONNEL, 1976) con la del aislamiento burocrático (NUNES, 2003), resultando en la formulación de una gramática del universalismo de procedimientos exclusiva para los trabajadores vinculados a estos institutos. Al universalizar la concesión de crédito a sus previsionales para la adquisición de la casa propia, la gramática dejó a margen del proceso a millones de otros brasileños, lo que, de cierta forma, contribuyó al déficit habitacional en el país.
Palabras clave: Corporativismo, Aislamiento Burocrático, Universalismo de Procedimientos. Política Habitacional.
Abstract:
The Institutes of Retirement and Pension (IAP) were a social security system for certain categories “recognized” by the Ministry of Labor, Industry and Commerce of the Vargas government. The reflection proposed here is to analyze the “conjugation” of the corporatism' grammars (O'DONNEL, 1976) with the bureaucratic insulation (NUNES, 2003), resulting in the formulation of a universalism of procedures'grammar exclusive to the workers linked to these institutes. By universalizing the granting of credit to them for the acquisition of the own house, it leaves millions of other Brazilians on the edge of the process, contributing, in a way, to the housing deficit in Brazil.
162
Keywords: Corporatism, Bureaucratic Inscription, Universalism of Procedures, Housing Policy.
Introdução
Criados na era Vargas para atuarem enquanto um sistema previdenciário para determinadas categorias “reconhecidas” pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP) consistiam, dentre as diversas funções atribuídas, na concessão de crédito aos seus trabalhadores para a aquisição da casa própria.
Tendo em vista este contexto histórico, o exercício de reflexão aqui proposto consiste em analisar diante do desenho institucional dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP), a “conjugação” das gramáticas do corporativismo, aqui representado pelo seu modelo bifronte e suas diretrizes estatizantes e privatistas (O'Donnel, 1976), com o insulamento burocrático (Nunes, 2003). Como resultado de tal conjugação, entende-se que ocorreu o que aqui se atribui a uma gramática do universalismo de procedimentos exclusiva para aquelas pessoas vinculadas com esses institutos. No caso do corporativismo, supõe-se que o seu modelo bifronte e suas características tenham sido os subsídios para a composição das diretrizes corporativas dos IAP. No caso do insulamento burocrático, supõe-se que, pelo fato de ser uma agência que administrou por alguns anos um sistema privado para determinadas categorias trabalhistas, os IAP “insularam” no âmbito nacional, ou seja, administraram as demandas dos Institutos e operacionalizaram os métodos de planejar e gerir programas habitacionais a partir de um sistema de financiamento próprio a cada instituto. A nosso ver, esse contexto apresentou um problema de ordem político-institucional mediante o fato de ter sido um modelo de administração de um bem universal, a habitação, para uma respectiva categoria trabalhista, em face, principalmente, de ter ocorrido em um período em que se iniciava o crescimento urbano no Brasil. Assim, enxerga-se aqui que os IAP tornaram-se agências que “insularam” o planejamento habitacional em torno de uma política privada de concessão de crédito e construção de moradias que universalizou a casa própria apenas para os trabalhadores vinculados a estes institutos.
Por isso, entende-se que a “conjugação” dessas gramáticas no âmbito dos IAP tenha criado um modelo de universalismo de procedimentos que excluiu boa parte da população de baixa renda do país em detrimento de uma pequena parcela de beneficiados. Quer-se dizer com isso que, o universalismo, advindo da palavra universal, ou seja, algo para todos, dividido para todos, restringiu-se a uma respectiva categoria. Isto, na concepção aqui dirigida, liga-se a duas variáveis que podem ter sido o resultado desse processo: a primeira refere-se àquela que Arretche (1996: 112) muito bem ilustrou enquanto relações do Estado no que “concerne tanto a sua capacidade de manter os níveis [...] de financiamento à promoção pública de habitações, quanto à formulação e à execução de uma política capaz de reorganizar a produção habitacional no país”. Já a segunda variável, refere-se ao seu resultado mais latente, o atual déficit habitacional do país.
A política habitacional no contexto histórico da década de 30: uma pequena reflexão cronológica
Para falar de uma conjugação de gramáticas políticas do Brasil, é necessário compreender que, historicamente, essa dinâmica se deu à luz do tardio processo de industrialização brasileiro - motivo esse que foi um dos principais aliados na derrubada da República Velha e de seu arcabouço sociopolítico pela Revolução de 30, sob o discurso de um Brasil industrializado e moderno. Mediante os constantes escândalos que assolavam a ética política desde os tempos do Império e que também se fizeram presentes durante a República Velha, e beneficiada pelo crash da bolsa de Nova York em 1929, o golpe dado em 1930 reuniu sob a tutela de uma elite política e econômica, corporações formadas por técnicos burocratas, intelectuais, capitalistas e sindicatos, que estavam à frente de um plano que consistia em casar o processo de “modernização” do país com a industrialização. Essa “(r)evolução industrial” resultou numa mudança de postura e orientação ideológica no campo da administração pública, ajudando a constituir uma nova sociedade civil na qual a esfera dos interesses privados estava associada a uma vida política conduzida pelas leis do Estado contra o absolutismo em qualquer instância de governo (Prates, 2007).
Da mesma forma que este novo cenário traria benefícios econômicos, políticos e comerciais, o processo de industrialização no Brasil trouxe também uma mudança na configuração espacial do país. A partir da década de 30, com o incentivo à indústria, os centros urbanos receberam cada vez mais pessoas que abandonaram suas vidas no ambiente rural e vieram compor o que hoje conhecemos como o meio urbano, que, naquele período, já era sinônimo de avanço e modernidade. Entretanto, as cidades brasileiras não possuíam infraestrutura suficiente para abrigar a nova população que não parava de chegar. Assim como a Lei Áurea de 1888 fez aumentar o contingente populacional nos grandes centros urbanos (Weid, 2004), o processo de industrialização, principalmente com a concentração das primeiras indústrias nos centros das cidades, corroborou para o aumento da dinâmica demográfica que, por sua vez, ia ao sentido contrário à capacidade do poder público em atender esse contingente de forma adequada.
De acordo com Granemann (2001), antes mesmo do boom demográfico ocorrido a partir de 1930, a taxa de crescimento populacional de São Paulo, em 1886, chegou a ser de 10% aa., atingindo a marca de 12,5% a.a. em 1900. Esse efeito que mescla vários fatores proliferou os cortiços enquanto principal modelo habitacional para essas pessoas e famílias de baixa renda, sendo que a principal consequência e agravamento dessas instalações referiam-se às condições sanitárias que as mesmas não proporcionavam. Tal situação, antes mesmo do século XX, fez resultar na primeira intervenção de caráter urbanístico do Brasil, o Código de Posturas de São Paulo, de 1886, que proibia tais edificações (Granemann, 2001; Bonduki, 2004). Essa legislação, por sua vez, não se traduziu em um plano de erradicação das moradias e habitações inadequadas, isso porque, ao ser expulsa de cortiços em terrenos particulares, a população logo migrou para os morros, encostas e terrenos públicos, nascendo assim as favelas como alternativa de moradia para a população de baixa renda e, de certa forma, como produtos de uma legislação excludente e da falta de uma ação política concreta por parte do poder executivo (Fernandes, 2001).
Com a aceleração do processo de favelização, iniciaram-se as primeiras tentativas no escopo institucional para solucionar esse mal que afligia às cidades. Em 1937, sete anos após o início de um período que se pautou na legislação trabalhista e na ênfase dos direitos sociais, Getúlio Vargas criou as Carteiras Prediais, o primeiro programa para trabalhadores urbanos devidamente vinculados aos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP), com o intuito de financiar moradias em conjuntos habitacionais construídos pelo próprio instituto com recursos dos seus previdenciários. É de suma importância entender que
(...) a intervenção direta do Estado no setor habitacional, em 1937, com a criação das Carteiras Prediais, deve ser compreendida no contexto do desenvolvimento econômico e político da época, quando se dava o agravamento das condições habitacionais do meio urbano pelo impacto das crescentes taxas de urbanização em decorrência do redimensionamento econômico do setor agrário para o industrial (Silva e Silva, 1989: 39).
Os Institutos de Aposentadoria e Pensão foram agências criadas a partir de 1933 com o objetivo de se tornarem institutos de previdência social para determinadas categorias trabalhistas, como o IAPB dos bancários, o IAPC dos comerciários e o IAPE dos marítimos, primeiros institutos criados (Nunes, 2003; Nunes; Ribeiro; Peixoto, 2007). Dotados de mecanismos que supriam algumas necessidades básicas aos seus contribuintes, sob um modelo de exclusividade no atendimento que transladava o sistema previdenciário aos empréstimos financeiros, dentre as inúmeras funções estabelecidas pelos IAPS nos interessou analisar as formas de concessão de crédito para a construção e o financiamento de moradias para os contribuintes desses institutos, através das Carteiras Prediais. Conquanto, nos ateremos a assuntos e relações mais gerais a respeito dessa dinâmica nos IAP, não nos concentrando diretamente na burocracia particular de cada Instituto.
Essas carteiras possibilitaram aos IAP atuarem como financiadores de moradia para seus contribuintes, pois o principal critério para o financiamento desse programa era estar empregado e registrado num setor da economia com baixa vulnerabilidade empregatícia (Bonduki, 2004). Tais exigências, que se iniciaram naquele período, seriam uma das principais características em que se pauta o histórico das políticas e programas de financiamento para habitações populares no Brasil: o fato de que os meios institucionais só concederiam crédito financeiro para aqueles que pudessem garantir o seu ressarcimento (Azevedo, 1996), resultando em um descompasso político-institucional entre os métodos de focalização e os critérios de elegibilidade (Cassiano de Araújo, 2009).
Sem compreender a dimensão necessária para resolver os problemas da população em geral devido a sua limitada abrangência de atendimento aos trabalhadores sindicalizados nos institutos - os quais se concentravam nas principais cidades do país, excluindo diretamente a população rural -, essa política tratou a habitação “oferecida” pelo Estado como um dos símbolos de sua ideologia política de aproximação popular. Esse forte apelo social, dado como uma dádiva a tais categorias (Mauss, 2013), entretanto, não se traduziu em sua totalidade, já que restringiu quem fazia parte do seu quadro de reservas, os trabalhadores e trabalhadoras desempregados(as) ou empregados(as) em nosso antigo sistema de subempregos. Essa faixa de renda, que necessariamente deveria fazer parte dos programas de financiamento habitacional, não participou ou mesmo conseguiu o acesso a qualquer tipo de financiamento para a aquisição da casa própria.
Tal situação demonstrou, assim, que a habitação própria era um componente da vida social para poucos, e que esses poucos deveriam a ela se inscrever caso entrassem no sistema patrocinado pelo Estado. É primordial que fique claro que as condições de mercado - e isso inclui a influência internacional - e as relações políticas e de poder foram o carro-chefe das históricas decisões acerca de quanto e como investir na política habitacional. O problema é que estas decisões foram uma pauta que sempre ficou em segundo plano, o que pode ser um dos motivos pelo qual o déficit habitacional brasileiro nunca tenha sido sanado.
Como saldo do primeiro meio século de políticas habitacionais, dois pontos de vista se destacam: o primeiro diz respeito à intensa centralização da política habitacional,
(...) contemplada quase tão somente pelo planejamento governamental, executado pelo então Conselho Federal de Habitação, que considerou a necessidade de coordenação de recursos e atividades desenvolvidas pelos órgãos encarregados pela habitação, como as Caixas de Aposentadorias e Pensões e Carteiras Imobiliárias dos Institutos (Granemann, 2001: 60).
E a segunda, aos números dessa primeira metade do século XX:
(...) basta dizer que, de 1937 a 1964, os órgãos governamentais e paraestaduais da área habitacional chegam a produzir 20 mil moradias em todo o país, o que permite reafirmar que os governos populistas dispensaram pouca atenção ao programa habitacional (Silva e Silva, 1989: 47).
Gramáticas políticas do/no Brasil: enfatizando o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos
Na história brasileira, inúmeros foram os fatores que, articulados política, social e culturalmente, resultaram na formação de um Estado “moderno” e de sua base político-administrativa, ou seja, dos grupos políticos que compunham o Estado e dos grupos econômicos e sociais que o influenciavam em outras arenas. Entre as muitas teses que objetivam pesquisar e dar conta de um nexo explicativo coerente acerca de como e em que medida tal processo configurou o atual panorama brasileiro, optou-se aqui procurar a compreensão das variáveis que compõem o espectro institucional do país à luz dos estudos de Edson Nunes (2003) sobre a coexistência e o imbricamento do que ele chamou de “gramáticas políticas do Brasil”.
Baseado nesse panorama histórico e político, Edson Nunes cunhou o termo “gramáticas políticas” enquanto um conjunto de relações sociopolíticas que representou a articulação/agregação do sistema político e das organizações que dele emergiam para a configuração de laços de sociabilidade em torno de uma governabilidade sobre as instituições que dão o respaldo a um determinado sistema vigente (Nunes, 2003). Mas o que isso quer dizer? De acordo com as perspectivas do autor, as gramáticas políticas são a conjugação de fatores políticos (teóricos e práticos) que, dinamizados socialmente, isto é, num conjunto de formas de se fazer política que envolve a sociedade e suas instituições (sindicatos, ONGs etc.), articula um modelo de governabilidade e governança que respaldam o sistema político em voga. Assim, dentre as inúmeras variáveis que poderiam constituir este arcabouço, Nunes (2003) enfatiza quatro modelos históricos de governabilidade: o clientelismo (que não abordaremos com tanto afinco), o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos. O primeiro constitui uma forte herança do passado colonial e das suas relações calcadas no mandonismo e no coronelismo (Carvalho, 1999), pois, como o próprio nome indica, transformou-se num modelo onde o sujeito torna-se cliente de outro mediante sua inserção em um
(...) sistema de controle do fluxo de recursos materiais e de intermediação de interesses, no qual não há número fixo ou organizado de unidades constitutivas. As unidades constitutivas do clientelismo são agrupamentos, pirâmides ou redes baseados em relações pessoais que repousam em troca generalizada (Nunes, 2003: 40).
Já o corporativismo, refere-se a um modelo de sistema onde a intermediação de interesses privados é organizada no âmbito institucional através de corporações trabalhistas ou empresariais, hierarquicamente organizadas. Essas corporações constituem ainda, categorias específicas que deliberam o monopólio da representação (Schmitter, 1971 apud Nunes, 2003) com o reconhecimento do Estado acerca de sua importância, estimulando, assim, o funcionamento diferenciado entre as corporações a partir da sua junção no âmbito institucional para a formação de um escopo político-administrativo que, ao empregar comandos universais, organiza “[...] horizontalmente várias instâncias sociais” (Nunes, 2003: 122). Enraizado no arcabouço institucional brasileiro e se constituindo igualmente na história da América Latina, pode-se dizer que o corporativismo foi o resultado da inter-relação entre Estado e sociedade - mais precisamente entre suas elites - na formulação de um plano político-administrativo para controlar as diretrizes políticas e econômicas de um país contemplando os interesses daqueles que o formularam. A respeito desse plano e de sua organização, a citação abaixo identifica bem essa dinâmica, conceituando o corporativismo enquanto
(...) estruturas com base nas quais se exerce oficialmente a representação de interesses ‘privados' frente ao Estado, por parte de organizações funcionais (não territoriais) sujeitas pelo menos formalmente, em sua existência e em seu direito de representação, à autorização ou aceitação por parte do Estado, e em que este direito fica reservado à cúpula das organizações, com exclusão de outros canais legitimados de acesso ao Estado por parte do conjunto de seus membros (O'Donnell, 1976: 4).
Como sabemos, no Brasil, essa estrutura organizacional se fez presente em várias instâncias do poder público, salvaguardando as peculiaridades cabíveis a cada um. De acordo com a literatura corrente (Diniz; Boschi, 1991; Nunes, 2003; O'Donnell, 1976), o corporativismo é um fenômeno que, no Brasil, floresceu com a Revolução de 30 em face ao modelo sociopolítico estabelecido desde a sua colonização à República Velha. A aurora do “moderno” corporativismo brasileiro deu-se nesse período principalmente no transladar da matriz econômica brasileira, isto é, quando esta deixa o modelo agroexportador e torna-se uma matriz industrial. Nesse momento, as elites agrárias, ao perceberem a necessidade dessa mudança na estrutura produtiva e econômica do país, investem o seu capital nas indústrias e transformam-se nessa elite industrial. Dessa forma, tal mudança se caracteriza principalmente pelo processo de industrialização que renova as relações de poder no país, transformando-o na estrutura estatal em um Estado Burocrático-autoritário (O'Donnell, 1976), ou seja, um Estado “intimamente relacionado com os padrões de crescimento [...] de um tipo de capitalismo tardio, dependente e desequilibrado, mas também já extensamente industrializado” (O'Donnell, 1976: 3).
Este tipo de corporativismo, entendido pelo autor enquanto estruturas vinculativas dos interesses privados no âmbito do Estado, se caracterizou principalmente por um elemento conceituado como “profundização”, isto é, as mudanças no sistema econômico que contam com um alto grau de integração vertical e que concentraram as indústrias na estrutura produtiva do país, beneficiando as organizações que as administravam (O'Donnell, 1976). O Estado BA emerge então de uma estrutura racional cuja tecnocracia representava a eficiência administrativa, e onde a formalização de suas ações se baseava na penetração e subordinação aos interesses privados no âmbito institucional. O autor reforça seu ponto de vista quando ele descreve o Estado BA como um
(...) Estado mais abrangente (quanto à gama de atividades que controla ou que torna diretamente a seu cargo), dinâmico (em suas taxas de crescimento relacionadas às do conjunto da sociedade), penetrante (mediante a subordinação a que se submete as diversas áreas ‘privadas' da sociedade civil), repressivo (na virtualidade e realidade da coerção que aplica), burocratizado (na formalização e diferenciação de suas próprias estruturas), tecnocrático (na emergência e crescente peso relativo de núcleos capacitados na aplicação de técnicas ‘eficientes' de racionalidade formal) e estreitamente vinculado (...) ao capital internacional (O'Donnell, 1976: 11).
O resultado desse contexto foi a criação de um corporativismo incipiente no Brasil, que está ligado à concepção de corporativismo bifronte, formulada também por Guillermo O'Donnell (1976). O corporativismo bifronte é entendido como um modelo que, se desenvolvendo em um Estado BA, “contém simultaneamente dois componentes que são necessários distinguir com cuidado” (O'Donnell, 1976: 3). O primeiro é o elemento estatizante, que “(...) consiste na ‘conquista' por parte do Estado, e consequente subordinação a este, de organizações da sociedade civil” (ibid.: 3). O segundo seria o elemento privatista, que “(...) consiste, pelo contrário, na abertura de áreas institucionais do próprio Estado à representação de interesses organizados da sociedade civil” (ibid.: 3).
Conectado a esse contexto, Nunes (2003) chama de insulamento burocrático a “forma de evitar o controle e o escrutínio públicos sobre as atividades do Estado”, ou seja, “uma forma de perseguir a eficiência econômica, o desenvolvimento e a privatização seletiva das benesses que provêm do controle de parcelas substanciais do aparelho produtivo do Estado” (Nunes, 2003: 122). O insulamento burocrático refere-se à forma dos dirigentes de administrar as primícias e os procedimentos a serem utilizados no que tange ao centralismo em torno das demandas das corporações, agências e das formas de operacionalizá-las.
Por fim, o universalismo de procedimentos é entendido pelo autor como “uma aura de modernidade e de legalidade pública ao sistema político e às instituições formais” que iriam conferir “[...] legitimidade a vários movimentos sociais de classe média” (Nunes, 2003: 122). O universalismo de procedimentos seria, por assim dizer, o indicador democrático de um Estado, pois quanto maior a articulação dessa gramática no interior institucional de um país, mais próxima ela estará de uma efetiva ação democrática na distribuição e concessão de direitos.
Desenvolvimento: algumas hipóteses acerca da conjugação das gramáticas no âmbito dos IAP
A “evolução industrial” que deu ênfase a essa conjugação de gramáticas, e os elementos por ela invocados, ao invés de emanciparem as estruturas burocráticas do país dos seus “velhos fantasmas”, acabaram se aliando às estruturas que compunham historicamente as relações políticas e sociais brasileiras. Dessa forma, a conjugação das gramáticas a partir da década de 30 acabou dando continuidade às relações estabelecidas na República Velha, caracterizando esse novo Estado um híbrido weberiano, no qual a tradição conseguiria cadeira cativa na modernidade. O principal elemento que configurou tal cenário foi a incorporação das velhas oligarquias rurais nesse modernizante espectro institucional.
De acordo com Nunes (2003), e fazendo alusão ao significado etimológico da palavra “gramática” e do(s) significado(s) de política, ambas podem ser conjugadas ao mesmo tempo; da mesma forma que ambas podem se sobrepor de acordo com o momento e a situação econômica e política de um Estado. No Brasil, o autor aponta o momento em que ambas as gramáticas se encontraram e foram conjugadas com maior eficiência: no período de 1930-45, com Getúlio Vargas, e na era JK, 1956-61. Por isso, escolheu-se o primeiro período devido ao fato de ter sido o início desse processo, e também, porque foi nesse período que as gramáticas mediadas por diversas situações começaram a sua conjugação e imbricamento na formação da grande dicotomia que envolve esse processo: a reestruturação das bases institucionais da República Velha na conjugação com as gramáticas que ali se revigoravam e se modernizavam junto com o arcabouço institucional brasileiro.
O resultado desse imbricamento soergueu sob a tutela de um Estado centralizador, um arcabouço institucional representado por agências e autarquias que direcionavam as diretrizes político-administrativas sem maiores intervenções exógenas (insulamento), através das mãos de técnicos, políticos e intelectuais ligados ao interesse privado (corporativismo), gerando, assim, a formação de um modelo ao mesmo tempo integrador e controlador de universalismo de procedimentos (Nunes; Ribeiro; Peixoto, 2007). Pensando na dinâmica dos IAP, e apoiando-se nas ideias de Nunes (2003), observa-se que o corporativismo e o insulamento burocrático foram as gramáticas mais bem articuladas naquele período. O sistema corporativo implantado a partir da década de 30 conjugou consigo um leve “toque” de clientelismo como forma de “loteamento” de cargos e funções no aparelho estatal para fazer barganha entre aqueles que apoiaram e/ou aderiram à situação; e mais fortemente, com o insulamento burocrático, para controlar os procedimentos que estavam sendo colocados em prática na administração pública.
Imaginando os IAP enquanto instituições representantes dessa filosofia política, dois outros elementos nos ajudarão a analisar com maior precisão conceitual a hipótese da coexistência das gramáticas no seu âmbito. Primeiramente, analisar-se-á aqueles referentes ao corporativismo e, posteriormente, ao insulamento burocrático, para então fecharmos este exercício com a hipótese sobre o universalismo de procedimentos proveniente da conjugação entre ambas.
Quanto ao corporativismo, a hipótese aqui apresentada é corroborada mediante dois fatos: aquele em que a literatura demonstra que naquele período o Estado BA se fazia presente no Brasil, e o outro, que relata a constituição de um Estado BA no país e que resultou também para a sua manutenção no corporativismo bifronte, contendo a simultaneidade dos componentes estatizantes e privatistas. O elemento estatizante diz respeito à legalização dos IAP enquanto instrumentos de manipulação do Estado sobre as entidades de classe, pois, ao “estratificar” as organizações da sociedade civil na medida em que elas se subordinavam aos desígnios do Estado, essa característica autoritária ajuda a compor o quadro do Estado BA e fazer-nos entender esse elemento estatizante presente nos IAP. Quer-se dizer com isso, que os IAP eram mais uma organização da sociedade civil sob a tutela do Estado, e dessa forma, interpreta-se que essa característica estatizante do modelo de corporativismo bifronte encontrava-se presente no âmbito dos IAP devido ao fato de que os institutos e as categorias por eles representados “ganharam” do governo a autorização para funcionar, mas não receberam na mesma “leva”, a sua autonomia frente ao Estado, o que, por sua vez, volta a demonstrar o controle do mesmo frente ao setor popular, instituindo a sua postura autoritária e centralizadora. Já a característica privatista amarra-se por esse viés mediante o fato de que a abertura institucional dos IAP, mesmo que sob a tutela do Estado, representa os interesses das organizações da sociedade civil que se pautam na exclusividade de atendimento ao seu público. Esses são, a nosso ver, elementos que confirmam o imbricamento dessas duas características, estatizante e privatista, no âmbito institucional dos IAP.
O insulamento burocrático é analisado na obra de Nunes (2003) numa escala macro, tal como o autor se refere à gramática.
Na linguagem da teoria organizacional contemporânea, o insulamento burocrático é o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias. Ao núcleo técnico é atribuída a realização de objetivos específicos. O insulamento burocrático significa a redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel. Esta redução da arena é efetivada pela retirada de organizações cruciais do conjunto da burocracia tradicional e do espaço político governado pelo Congresso e pelos partidos políticos, resguardando estas organizações contra tradicionais demandas burocráticas ou redistributivas (Nunes, 2003: 34).
No que se refere a essa gramática no âmbito dos IAP, ou seja, numa análise em escala micro, o fato de esses institutos terem criado um sistema próprio de consignação de crédito para a aquisição da casa própria, além da sua funcionalidade enquanto sistema de previdência social demonstra claramente o insulamento de questões sociais abrangentes no âmbito corporativo. Internamente, a cada instituto, era gerada uma filosofia institucional empiricamente validada por seus mecanismos que operacionalizavam demandas largamente pretendidas por todos os brasileiros num sistema que atendia com exclusividade a uma parcela destes. Esse sistema “privado” de atendimento de demandas sociais, tais como a habitação, era controlado pelo núcleo administrativo sob a tutela de uma legislação trabalhista-corporativista que coordenava e designava os checks and balances desses programas. Dessa forma, o sistema de prestação de contas dos IAP, ou seja, o seu accountability era uma exclusividade desse núcleo, assim como seus possíveis prejuízos, que eram divididos entre os previdenciários.
A nosso ver, o insulamento burocrático marcou a gestão dos IAP mais pelas dúvidas que ficaram acerca do resultado dos seus procedimentos, e que permanecem gerando questionamentos como: até que ponto não se pode confirmar que essas agências, IAP, não mantiveram exclusividade sobre o planejamento habitacional do Brasil naquele período? Em que medida o insulamento habitacional no âmbito dos IAP impediu a universalização da casa própria não permitindo o acesso de demais cidadãos em seu âmbito assistencial, se tornando um dos elementos que começara a constituir naqueles anos o presente déficit habitacional brasileiro? Quais as similitudes, relações, coexistências e imbricamentos de uma legislação trabalhista-corporativista na universalização da casa própria durante os primeiros momentos do Estado Novo? Qual teria sido no âmbito da administração pública, a influência institucional desse processo, que se deu a partir do primeiro programa de financiamento habitacional da história do Brasil, no atual arcabouço institucional de provisão e financiamento de moradias populares? Esse fator de análise, assim como as perguntas que o rodeiam, pode se tornar base para análises posteriores.
Assim, o que constitui o ponto de vista principal aqui defendido é o fato que também o insulamento burocrático, gerido em um Estado BA, sob a égide de um modelo de corporações como os IAP, teve o seu caráter estatizante para o seu funcionamento, mas estabeleceu os interesses privatistas das corporações em prover bens para seus contribuintes, reforçando a formulação de uma gramática específica, isto é, de um universalismo de procedimentos para uma pequena parcela da sociedade.
Considerações finais: longe de finalizar as considerações
O imbricamento e a coexistência desse conjunto de gramáticas no espectro institucional brasileiro e os resultados oriundos dessas relações a partir das direções tomadas pelos IAP, a nosso ver, têm no peso das articulações políticas em torno dessa agência burocrática na década de 30 o seu grande elemento de análise. Através do corporativismo bifronte: estatizante e privatizante (O'Donnell, 1976), o desenvolvimento de um insulamento burocrático dentro dos IAP criou mecanismos de crédito que serviram como controle e modelo regulatório administrativo (Nunes; Ribeiro; Peixoto, 2007). Por isso, os IAP se constituíram num campo de manobra política que, através das organizações funcionais descritas por O'Donnell (1976), atribuíram a si mesmas o controle burocrático das demandas que giravam em torno delas próprias e as administraram sem quaisquer outras intervenções -senão àquelas que partissem do seu núcleo ou mesmo de uma escala superior, como o próprio governo federal, por exemplo.
Portanto, entende-se que a fundação dos IAP foi nitidamente a fundação de uma corporação particular com interesses gerais, que, gerida por seu núcleo administrativo, serviu aos seus previdenciários os recursos e procedimentos necessários para o seu benefício, apresentando, assim, um mix entre as características do corporativismo, do insulamento burocrático e do universalismo de procedimentos. Por esses e outros motivos, é que a facilidade com que os previdenciários dos IAPS conseguiram seus empréstimos e financiamentos, a nosso ver, os tornou “clientes” dos serviços dessas agências que incorporava e englobava uma categoria trabalhista, universalizando somente para seus membros os mecanismos para a sua inserção no sistema de crédito e em uma política habitacional própria de cada instituto, deixando à margem desse universo, uma grande parte da população brasileira.
Contudo, as perspectivas aqui trabalhadas, necessitam de maior investimento teórico e maior investigação empírica. Não obstante, se analisadas sob a ótica do eixo centralização-descentralização de políticas sociais, as considerações finais remetem a dois pareceres. O primeiro traz como elemento de identificação, uma “(...) fragilidade institucional e financeira incapaz de atender satisfatoriamente a população de baixa renda” (Ribeiro, 2001: 32) naquele período. Isto, aqui, corrobora em tese que o não atendimento de uma gama considerável da população brasileira por qualquer agência na década de 30, pode ser apontado como um importante elemento de análise da ciência política no campo dos estudos urbanos. Pois, partindo da premissa da coexistência entre as três gramáticas abordadas no âmbito dos IAP, formulou-se internamente a essa agência, métodos e formas de instituir um universalismo de procedimentos nada abrangente que ajudou a conjugar “a segregação sócio-espacial das camadas populares nas extensas e precárias periferias das médias e grandes cidades,” concomitante à “indução de um processo de urbanização com baixo grau de regulamentação pública” (Ribeiro, 2001: 33-4).
O segundo parecer diz respeito ao resultado desse cenário, isto é, o alto índice de irregularidades no espaço urbano brasileiro, que podem ter agrupado dentro de seus números a população inicialmente não atendida pelos IAP, o que resultou na ocupação de áreas irregulares, terrenos públicos e privados, iniciando naquele tempo um processo que hoje se acredita ser quase impossível solucionar ou mesmo contornar.
Bibliografia
ARRETCHE, Marta T. S. (1996), “Mitos da descentralização: mais democracia e eficiência nas políticas públicas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 11, n.31, pp. 44-66.
AZEVEDO, Sérgio de (1996), “A crise política habitacional: dilemas e perspectivas para o final dos anos 90”, in L. C. Ribeiro; S. Azevedo (Orgs.), A crise da moradia nas grandes cidades: da questão da habitação à reforma urbana. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, pp. 73-101.
BONDUKI, Nabil (2004), Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo, Estação Liberdade/FAPESP.
CASSIANO DE ARAÚJO, Cristiano (2009), O Programa Crédito Solidário: os métodos de focalização e os critérios de elegibilidade como estruturas normativas de uma “trajetória dependente”. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). PPGCS, PUC Minas, Belo Horizonte, 236 pp.
CARVALHO, José Murilo de (1996), “Cidadania: tipos e percursos”. Estudos Históricos, v. 9, n. 18, pp. 1-21.
DINIZ, Eli; BOSCHI, Renato R. (1991), “O corporativismo na construção do espaço público”, in R. R. Boschi (Org.), Corporativismo e desigualdade: construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro, Rio Fundo Editora, pp. 11-29.
FERNANDES, E. (2001), “Direito Urbanístico e política urbana no Brasil: uma introdução”, in E. Fernandes (Org.), Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte, Del Rey, pp. 1152.
GRANEMANN, Roney de O. (2001), Inadimplência na área de habitação da Caixa Econômica Federal, no âmbito do escritório de negócios institucional de Florianópolis: um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção). PPEP, CT-UFSC, Florianópolis, 165 p.
MAUSS, Marcel (2013), Ensaio sobre a dádiva. São Paulo, Cosac Naify.
NUNES, Edson (2003), A gramática política do Brasil. Clientelismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
NUNES, E.; RIBEIRO, L. M.; PEIXOTO, V. (2007), “Agências reguladoras no Brasil”, in L. Avelar; A. O. Cintra (Orgs.), Sistema Político Brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro, Konrad-Adenauer-Stiftung, pp. 183-206.
O'DONNELL, G. (1976), “Sobre o corporativismo e a questão do Estado”. Cadernos DCP, v. 3, n. 151, pp, 1-54.
PRATES, Antônio A. P. (2007), “Administração pública e burocracia”, In: L. Avelar; A. O. Cintra (Orgs.), Sistema Político Brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro, Konrad-Adenauer-Stiftung, pp.117-129.
RIBEIRO, Frank de P. (2001), Cidadania possível ou neoclientelismo urbano? Cultura e política no Orçamento Participativo da Habitação em Belo Horizonte (1995-2000). Belo Horizonte, MG. Dissertação (Mestrado em Administração Pública). PPGAP, Escola de Governo da Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 176 p.
SILVA E SILVA, Maria O. (1989), Política Habitacional Brasileira: verso e reverso. São Paulo, Editora Cortez.
WEID, Elisabeth von. D. (2004), “O Bota - Abaixo”. Revista História Viva, v. 4, pp. 78-83.