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A “Operação mata-mendigos” (Rio de Janeiro, 1962-1963) às margens de alguns livros

La “Operación mata-mendigos” (Rio de Janeiro, 1962-1963) em los márgenes de algunos libros

The “Operation killer of beggars” (Rio de Janeiro, 1962-1963) on the margins of some books

Mariana Dias Antonio
UFPR, Brasil

A “Operação mata-mendigos” (Rio de Janeiro, 1962-1963) às margens de alguns livros

Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 7, núm. 2, pp. 163-180, 2020

Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo: A “ Operação mata-mendigos ” consistiu no extermínio de moradores de rua pela polícia carioca no início da década de 1960. O episódio foi inicialmente denunciado pelo jornal Ultima Hora e se tornou um grande fenômeno político e midiático, mas que ainda carece de centralidade na literatura, usualmente apresentado de forma periférica, como um simples desdobramento de outras narrativas maiores e outros temas centrais. Buscamos oferecer uma revisão bibliográfica sobre o caso a partir de dezesseis livros, apresentando suas similaridades, diferenças, complementaridades e lacunas existentes, de forma a subsidiar futuras pesquisas sobre o caso.

Palavras-chave: Operação Mata-Mendigos, Revisão Bibliográfica, Violência, Rio de Janeiro.

Resumen: La “Operación mata-mendigos” consistió en el exterminio de indigentes por la policía de la ciudad de Rio de Janeiro en Brasil a principios de la década de 1960. El episodio fue inicialmente denunciado por el diario Ultima Hora y se convirtió en un gran fenómeno político y mediático, pero que todavía carece de centralidad en la literatura, usualmente presentado de forma periférica, como simplemente el desdoblamiento de otras narrativas mayores y otros temas centrales. Buscamos ofrecer una revisión bibliográfica sobre el caso a partir de dieciséis libros, presentando sus semejanzas, diferencias, complementariedades y brechas existentes, de forma que puedan ayudar en futuras investigaciones sobre el caso.

Palabras clave: Operación Mata-Mendigos, Revisión Bibliográfica, Violencia, Rio de Janeiro.

Abstract: The “Operation killer of beggars” consisted in the extermination of homeless people by the Rio de Janeiro's police in the early 1960s. The episode was first denounced by the newspaper Ultima Hora and became a major political and media phenomenon. Nevertheless, the theme still lacks centrality in the literature, usually presented in a peripheral way, as a simple unfolding of other major narratives and other central themes. We aim to offer a literary review of the case from sixteen books, presenting their similarities, differences, complementarities and existing gaps, in order to support future researches on the theme.

Keywords: Operation Killer of Beggars, Literary Review, Violence, Rio de Janeiro.

Introdução

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Em linhas gerais, a "Operação mata-mendigos" consistiu no extermínio de várias pessoas em situação de rua pelo Serviço de Repressão à Mendicância (SRM) do estado da Guanabara no início da década de 1960, durante a gestão de Carlos Frederico Werneck de Lacerda. O caso veio à tona através do jornal Ultima Hora, quando uma moradora de rua conseguiu escapar com vida e denunciar seus algozes, criando uma crise nas instâncias policiais, administrativas e políticas da Guanabara e culminando na instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Ao longo da polêmica e das investigações, diversos corpos foram encontrados nos rios Guandu e da Guarda com sinais de tortura, e o episódio marcou tanto a história do Rio de Janeiro quanto as trajetórias do Ultima Hora, de Carlos Lacerda e das demais figuras que ocuparam cargos públicos na Guanabara à época.

Apesar de uma ampla repercussão nos jornais, tanto em âmbito nacional quanto internacional, o evento não conseguiu lugar de destaque na bibliografia de não ficção, aparecendo esporadicamente em poucos livros e nunca ocupando mais que poucas páginas. Não obstante, sua importância midiática e impacto junto ao público da época podem ser atestados pela forma como escritores e romancistas se apropriaram do evento, ao exemplo de Jamil Almansur Haddad, de Félix Augusto de Athayde e do dramaturgo chileno Jorge Díaz.

O romance O Mata-Mendigo, de Félix Augusto de Athayde, figuraria entre as narrativas cronologicamente mais próximas do evento, mas é possível nunca tenha sido publicado. Segundo a edição de 11 de fevereiro de 1963 do Ultima Hora uma blitz policial comandada por Cecil Borer teria forçado os funcionários da gráfica Leal, “(...) sob ameaça de metralhadoras, a derreter a composição que já se encontrava no prelo” (Ultima Hora, 1963b). Em conversa informal com João Augusto de Athayde, filho do autor, foi apontada a dificuldade em se recuperar eventuais manuscritos ou rascunhos da obra, já que o ano de 1963 estaria numa espécie de lacuna documental do autor, que se estende até 1969.

A peça de teatro Topografía de un Desnudo. Esquema para una indagación inútil. Obra en los actos de caridad, de Jorge Díaz, foi escrita em julho de 1965 e apresentada pela primeira vez em 1966 durante um festival em La Habana (Cuba), sob a direção de Eugenio Gúzman. A peça foi publicada como livro em 1968, pela Editora Santiago (Chile). A Revista Mundus Artium, da Ohio University (Estados Unidos), foi a responsável pela sua tradução para a língua inglesa em 1972, e o Fondo de Cultura Económica y Ministerio de Cultura de España fez com que a obra atravessasse o Atlântico a partir do ano de 1992 (Diaz; Del Rio, 2000).

Fundamentada em fontes de imprensa, a peça de Díaz segue os moldes do teatro épico brechtiano e trata da matança de um grupo de moradores de rua que habitava um aterro de uma cidade latino-americana. A história se constrói a partir dos relatos de diversos personagens que explicam as causas da morte de Rufo, protagonista e narrador da peça. Cada personagem representa uma posição social, ao exemplo do governador, do cabo, da prostituta, da jornalista, do dono do jornal, entre outros. Dividida em dois atos, a peça estrutura-se em quadros, de forma assincrônica desde seu início, quando os topógrafos encontram o corpo de Rufo no depósito de lixo. Igualmente no começo da peça, mostra-se uma projeção de textos, filmagens e fotografias, a fim de informar o espectador e quebrar a ilusão da história, apresentando elementos reais (Pellettieri, 2007). Segundo o autor, “(...) os fatos poderiam ocorrer em qualquer país onde se encontre injustiça, repressão e violência” (Diaz apud Pellettieri, 2007: 127, tradução nossa). A apresentação genérica da localidade, do evento e das posições sociais constrói a peça como uma situação típico-ideal baseada na “Operação mata-mendigos”, mas não necessariamente como o ocorrido. Esta peça de teatro viria a inspirar sua apresentação no Brasil pelo grupo Rotunda (Aguiar, 1992) e pelo longa-metragem brasileiro Topografia de um Desnudo, ambos sob a direção de Teresa Aguiar.

Romance do Rio da Guarda ou O Governador e os Mendigos, de Jamil Almansur Haddad, foi publicado em junho de 1963 pela editora Fulgor como nono volume da coleção Universidade do Povo. A publicação, como outras da mesma coleção, propunha “[d]ifundir informações exatas e dar ao povo brasileiro bases culturais que o capacitam para o exercício, plenamente esclarecidos, dos seus direitos e dos seus deveres” (Haddad, 1963, contracapa). O romance apresenta um tom nitidamente panfletário e revolucionário, trazendo em seus versos acusações diretas ao governador Carlos Lacerda, eventualmente alcunhado como “corvo”, “führer”, “hidrofóbico” e “hematófago”. Outros aspectos marcantes da obra são o antiamericanismo, a exaltação das guerrilhas revolucionárias e dos movimentos classistas, e as diversas referências culturais e religiosas. O vocabulário é rebuscado e cria certa incoerência frente à proposta de “esclarecer o povo”, de modo que as últimas páginas trazem mais de cem verbetes explicando os termos mais incomuns. Deve-se salientar que os diversos ruídos estéticos e políticos dificultam a compreensão do evento através desta obra, que talvez seja mais útil para a compreensão do ideário político de um grupo particular em um momento específico.

Entre abordagens panfletárias, situações típico-ideais e a impossibilidade de recuperação de textos, os romances foram excluídos da preocupação central deste trabalho, que busca aqueles fragmentos de memória - ainda que mínimos - contidos em obras cujos leitores depositam maior crença na veracidade. Desta forma, obedecendo-se a ordem de publicação, os livros aqui analisados são: [1] Assim Marcha a Família (Louzeiro, 1965); [2] Depoimento (Lacerda, 1978); [3] Do Esquadrão ao Mão Branca (Barbosa; Monteiro, 1980); [4] Minha Razão de Viver (Wainer, 1988); [5] Botando os pingos nos is (Souza, 1989); [6] Carlos Lacerda, o sonhador pragmático (Magalhães, 1993); [7] Carlos Lacerda: a vida de um lutador, volume 2 (Dulles, 2000); [8] Getúlio e o mar de lama (Borges, 2001); [9] Rio de Janeiro: de cidade-capital a estado da Guanabara (Motta, 2001); [10] O demolidor de presidentes (Mendonça, 2002); [11] Capítulos da memória do urbanismo carioca (Freire; Oliveira, 2002); [12] Política carioca em quatro tempos (Motta et al., 2004); [13] Samuel: duas vozes de Wainer (Rouchou, 2004); [14] Lacerda na Guanabara (Perez, 2007); [15] The Unpast (Rose, 2010); e [16] A Ultima Hora (como ela era) (Pinheiro Junior, 2011).

Breve apresentação das obras

Organizado pelo jornalista e roteirista José Louzeiro, Assim Marcha a Família traz uma coletânea de 11 reportagens denunciativas sobre uma face oculta do Rio de Janeiro, assinadas por diversos jornalistas da época. Publicado em 1965, ano de comemoração do quarto centenário da cidade, o livro busca trazer à tona a realidade dos sem-teto, de indigentes, da prostituição, de menores abandonados e de ex-combatentes das Forças Armadas. A matança dos moradores de rua é abordada no capítulo Chacina do Rio da Guarda, assinado por José Louzeiro. O autor trabalhou em diversos periódicos, dentre eles, O imparcial, A Revista da Semana, O Jornal, Diário Carioca, Ultima Hora, Correio da Manhã, Diário do Grande ABC e a revista Manchete, sendo também conhecido pelos romances-reportagem Lúcio Flávio - O passageiro da agonia e Aracelli meu amor.

Depoimento, do jornalista e político Carlos Lacerda, é uma narrativa dos 40 anos de sua trajetória política no Brasil, resultado de 34 horas de gravações feitas ao longo de quatro finais de semana entre os meses de março e abril de 1977, pouco antes de sua morte. O material contido no livro foi organizado e selecionado por seu sobrinho, Cláudio Lacerda Paiva.

Escrito pelos jornalistas Adriano Barbosa e José Monteiro em 1980, Do Esquadrão ao Mão Branca é composto por uma série de pequenas narrativas biográficas sobre policiais e agentes da segurança pública cariocas a partir dos casos e crimes que marcaram época entre os anos de 1950 e 1980. Cada capítulo tem como título o nome de um agente policial, e a "Operação mata-mendigos" é abordada no capítulo sobre o delegado Ariosto Fontana. Adriano Barbosa foi chefe de reportagem dos jornais O Globo, O Dia e Jornal dos Sports e escreveu outros livros como Esquadrão da Morte. Um mal necessário? e Sacopã - Bandeira / Herzog/Delane. No túmulo da cidadania. José Monteiro também é autor de Alguns casos de polícia.

Minha Razão de Viver é um relato autobiográfico da vida profissional e pessoal do jornalista Samuel Wainer. Assim como Depoimento, o livro resulta de 53 fitas gravadas ao longo de três etapas: a primeira entre os meses de janeiro e fevereiro de 1980, sob a coordenação de Sérgio de Souza; a segunda em junho de 1980, também sob a coordenação de Sérgio de Souza; e a terceira e última, coordenada por Marta Góes entre julho e agosto de 1980. Publicado pela primeira vez em 1987 pela Editora Record, a organização e edição da obra foi realizada pelo jornalista Augusto Nunes. Para o presente trabalho utilizamos uma edição de 1988, também publicada pela editora Record.

Dois anos depois, pela mesma editora, o jornalista Rivadavia de Souza publica Botando os pingos nos is: as inverdades nas memórias de Samuel Wainer, em resposta à autobiografia de Wainer, contrapondo alguns episódios apresentados em Minha Razão de Viver. Rivadavia foi assessor de imprensa do segundo governo de Getúlio Vargas (19511954), além de amigo do ex-presidente.

A obra Carlos Lacerda, o sonhador pragmático, escrita pelo ex-deputado estadual Mauro Magalhães e publicada em 1993, ressalta alguns acontecimentos que marcaram a gestão de Carlos Lacerda enquanto governador da Guanabara. No prólogo do livro, o autor salienta que sua preocupação central é recordar alguns acontecimentos usualmente mal estudados ou mal interpretados na história do Brasil, dentre os quais estaria a "Operação mata-mendigos".

Escrita pelo historiador norte-americano John Watson Foster Dulles, Carlos Lacerda: a vida de um lutador, volume 2: 1960-1977 compõe o segundo volume da biografia política de Carlos Lacerda, traçando os principais acontecimentos de sua carreira até o seu falecimento, em maio de 1977.

Em Getúlio e o mar de lama: a verdade sobre 1954, Gustavo Borges narra os desdobramentos políticos do episódio que ficou conhecido como "Atentado da rua Toneleiros", que resultou na morte do major Rubem Vaz e deixou Carlos Lacerda ferido. Gustavo Borges foi Secretário de Segurança Pública do Estado da Guanabara durante o governo de Lacerda, após uma longa carreira militar.

Rio de Janeiro: de cidade-capital a estado da Guanabara é resultado da tese de doutoramento da historiadora Marly Silva da Motta, defendida em 1997, em que se analisa a trajetória da cidade do Rio de Janeiro desde sua configuração como capital do Império Português até o fim do primeiro governo estadual da Guanabara, em 1965.

O demolidor de presidentes também provém de uma tese de doutorado, da historiadora Marina Gusmão de Mendonça, defendida em 1997, a qual narra a trajetória política de Carlos Lacerda a partir de seu perfil combativo e explosivo, tendo como foco o período compreendido entre os anos de 1930 e 1968.

Organizado pelo historiador Américo Freire e pela socióloga Lúcia Lippi Oliveira, o livro Capítulos da memória do urbanismo carioca foi publicado em 2002 e reúne o depoimento de vários profissionais que estiveram envolvidos em diferentes projetos urbanos da cidade do Rio de Janeiro, dentre eles, arquitetos, engenheiros, pedagogos, sociólogos e administradores.

Política carioca em quatro tempos, dos historiadores Marly Silva da Motta, Américo Freire e Carlos Eduardo Sarmento, reúne uma seleção de artigos sobre a política no Rio de Janeiro, dispostos em quatro eixos: o campo político; a cultura política; as eleições; e a administração e política.

Fruto da dissertação de mestrado defendida em 1996 pela jornalista e comunicóloga Joelle Rouchou, Samuel duas vozes de Wainer capta Samuel Wainer a partir de suas duas identidades e de seu duplo pertencimento, como jornalista e como judeu. A autora utiliza-se do relato autobiográfico contido em Minha Razão de Viver e de cerca de 1300 páginas datilografadas, resultantes da transcrição de seu depoimento gravado ao longo de janeiro e julho de 1980.

Lacerda na Guanabara: a reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960 derivou da tese de doutorado em História, defendida em 2005 por Maurício Dominguez Perez, a qual aborda a história administrativa do governo estadual de Carlos Lacerda na Guanabara entre 1960 e 1965.

The Unpast: a violência das elites e o controle social no Brasil de 1954-2000 compõe o último volume de uma trilogia do sociólogo norte-americano Robert Sterling Rose. O livro busca traçar uma história do controle social e da violência institucional no Brasil, a partir de diversas fontes. A trilogia conta também com as obras Beyond the pale of pity: key episodes of elite violence in Brazil to 1930 (ainda sem tradução para o português) e Uma das coisas esquecidas: Getúlio Vargas e controle social no Brasil - 1930-1954.

Em A Ultima Hora (como ela era), o jornalista José Alves Pinheiro Júnior compila suas memórias acerca da história do jornal Ultima Hora, durante os 17 anos em que trabalhou com Samuel Wainer. Além de ter atuado no periódico, Pinheiro Júnior passou por vários outros órgãos de imprensa e também é coautor de Esquadrão da Morte (junto ao repórter Amado Ribeiro).

A partir desta breve apresentação, alguns blocos podem ser construídos. Poderíamos apontar livros que trazem memórias de jornalistas ou figuras públicas que de alguma forma viveram o evento (Barbosa; Monteiro, 1980; Borges, 2001; Freire; Oliveira, 2002; Lacerda, 1978; Magalhães, 1993; Pinheiro Junior, 2011; Souza, 1989; Wainer, 1987), livros que resultam de pesquisas acadêmicas (Dulles, 2000; Mendonça, 2002; Motta, 2001; Motta et al., 2004; Rouchou, 2004; Perez, 2007; Rose, 2010), relatos de pessoas vinculadas à administração de Carlos Lacerda (Lacerda, 1978; Magalhães, 1993; Borges, 2001) ou de pessoas vinculadas ao Última Hora (Pinheiro Junior, 2011; Wainer, 1987), e mesmo livros que são de difícil enquadramento dadas suas particularidades, ao exemplo do único contemporâneo ao evento entre os escolhidos, Assim Marcha a Família (Louzeiro, 1965).

As diversas narrativas sobre a “Operação mata-mendigos”

Apesar de numerosas, as referências são breves e lacunares. A “Operação mata-mendigos” é tratada como um tema periférico ou acessório em todas as 16 obras. Como se não bastasse a escassez de informações, o leitor comumente encontrará redundâncias e/ou inconsistências entre uma produção e outra.

Excertos que ser referem à “Operação mata-mendigos” tendem a ser consonantes quanto ao modo de execução dos moradores de rua: estes seriam inicialmente recolhidos pelo SRM e posteriormente transportados em carros fechados até os rios Guandu ou da Guarda, onde seriam violentados e arremessados de alguma ponte. Alguns dos corpos encontrados apresentavam marcas de tortura, manietamento das mãos ou dos pés, bem como pedras amarradas ao pescoço para que não conseguissem retornar à superfície do rio (Barbosa; Monteiro, 1980; Borges, 2001; Dulles, 2000; Lacerda, 1978; Louzeiro, 1965; Magalhães, 1993; Mendonça, 2002; Motta, 2001; Perez, 2007; Rose, 2010; Wainer, 1988). No entanto, a forma de violência pode variar, e alguns dos livros supracitados evocam a presença de ferimentos de bala (Barbosa; Monteiro, 1980; Dulles, 2000; Lacerda, 1978; Mendonça, 2002), outros se referem a pancadas na cabeça (Borges, 2001; Wainer, 1988), pauladas (Rose, 2010), socos, pontapés, e até mesmo coronhadas no rosto (Louzeiro, 1965). Poucas referências tratam do episódio sem mencionar a forma de execução ou a condição dos cadáveres encontrados (Freire; Oliveira, 2002; Motta et al., 2004; Pinheiro Junior, 2011; Rouchou, 2004; Souza, 1989).

Apenas seis livros mencionam a existência de uma CPI para investigar o caso (Dulles, 2000; Freire; Oliveira, 2002; Louzeiro, 1965; Motta, 2001; Motta et al., 2004; Perez, 2007), e dentre eles, poucos se adensam apresentando componentes, desdobramentos e eventuais interrogados durante o inquérito parlamentar (Dulles, 2000; Freire; Oliveira, 2002; Motta, 2001; Perez, 2007). Dessas obras, apenas as de John W. F. Dulles e de Marly Silva da Motta sinalizam o início da CPI, com certa divergência: a primeira menciona que “[a] CPI começou a funcionar em 6 de fevereiro (...)” (Dulles, 2000: 135) e a segunda que a CPI foi instalada no dia 12 de fevereiro de 1963 (Motta, 2001). Os autos consultados junto à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) confirmam a data apontada por Marly Silva da Motta, 12 de fevereiro de 1963, mas apenas no tocante à instalação da CPI e à autuação do processo. A comissão foi criada em 8 de fevereiro de 1963, data de publicação da resolução n.° 34 de 7 de fevereiro de 1963. Outras obras utilizam o termo “inquérito” com referência a medidas administrativas ou policiais, e não necessariamente parlamentares (Borges, 2001; Lacerda, 1978; Magalhães, 1993).

O livro de Adriano Barbosa e José Monteiro enfoca Ariosto Fontana, delegado responsável pela investigação do caso, além de apontar como responsáveis pelos crimes o inspetor Alcino Pinto Nunes (chefe do SRM), o ex-guarda civil José Mota, e os funcionários Nilton Gonçalves, Marino Teixeira (erroneamente grafado), Anísio Magalhães da Costa e Pedro Saturnino dos Santos, mais conhecido como “Tranca-Ruas” [sic] (Barbosa; Monteiro, 1980). John Dulles (2000) cita apenas os nomes de Alcino Pinto Nunes e José Mota. As obras de Carlos Lacerda (1978) e Mauro Magalhães (1993) mencionam apenas “Tranca-Rua” (Pedro Saturnino dos Santos) como o mandatário dos crimes e chefe da “Operação mata-mendigos”. Marly Silva da Motta (2001) apresenta Pedro Saturnino dos Santos, José Mota, Nilton Gonçalves da Silva, José Prata e Mário Teixeira, como envolvidos, e Alcino Pinto Nunes, como mandatário dos crimes. Maurício Dominguez Perez relata apenas que o “(...) governo prendeu rapidamente alguns envolvidos e, após um mês, o próprio chefe do SRM, Alcindo [sic] Pinto Nunes” (Perez, 2007: 196). José Louzeiro (1965) menciona como elemento-chave do crime o guarda civil José Mota, seguido dos nomes: Pedro Saturnino dos Santos, Mário Teixeira, Anísio Magalhães da Costa, Mariano José Gracindo (erroneamente grafado) e Nilton Gonçalves da Silva. Por sua vez, Robert Sterling Rose aponta que “(...) sete policiais, inclusive o chefe da Delegacia de Mendicância, foram processados (sacrificados?). Seis foram declarados culpados e sentenciados à prisão” (Rose, 2010: 302). As demais obras não apresentam nomes de eventuais envolvidos no caso.

Apenas dois livros relatam as preparações para a visita da Rainha Elizabeth II ao Rio de Janeiro como motivo para o extermínio de pessoas em situação de rua (Barbosa; Monteiro, 1980; Rose, 2010). Adriano Barbosa e José Monteiro alegam, com base no noticiário da época, que tudo nascera de uma ordem expressa do promotor Newton Cruz, Secretário de Segurança, por determinação do governador, para que a cidade ficasse “limpa” de moradores de rua em razão da visita da rainha britânica. O promotor teria ordenado também o “(...) disfarce colorido das favelas, gerando uma epidemia de out-doors, tapumes com anúncios, para encobrir a pobreza, deprimente para os que, no governo, não lhe davam solução, mas se envergonhavam dela” (Barbosa; Monteiro, 1980: 78, grifos dos autores). Deve-se apontar um equívoco ao trazer Newton Marques Cruz como Secretário de Segurança, pois ele seria, na verdade, chefe de polícia. John Dulles (2010) cita Gustavo Borges como responsável pela Secretaria de Segurança Pública da Guanabara na época, algo reafirmado por Carlos Lacerda (1978) e pelo próprio Gustavo Borges (2001). Robert Sterling Rose trata ainda de uma hipótese segundo a qual “(...) Newton 'Nini' Cruz, o promotor trabalhando para a Secretaria da Segurança Pública, e não Sandra Cavalcanti, dera a autorização para limpar as ruas (...)” do Rio de Janeiro (Rose, 2010: 302).

Outra inconsistência entre as obras diz respeito às origens do caso. Capítulos da memória do urbanismo carioca sinaliza o início de 1962 (Freire; Oliveira, 2002); Rio de Janeiro: de cidade-capital a Estado da Guanabara e The Unpast referem-se a agosto de 1962 (Motta, 2001; Rose, 2010); Carlos Lacerda. A vida de um lutador retrata dezembro de 1962 (Dulles, 2000); Política carioca em quatro tempos cita o ano de 1962 sem referência ao mês (Motta et al., 2004); Do Esquadrão ao Mão Branca, O demolidor de presidentes e Lacerda na Guanabara atribuem o ano de 1963, igualmente sem especificação do mês (Barbosa; Monteiro, 1980; Mendonça, 2002; Perez, 2007) e Getúlio e o mar de lama aponta o início de 1963 (Borges, 2001). Um número significativo de livros não apresenta datas (Lacerda, 1978; Louzeiro, 1965; Magalhães, 1993; Pinheiro Junior, 2011; Rouchou, 2004; Souza, 1989; Wainer, 1987).

Menções à moradora de rua Olindina Alves Jupiaçu, que escapou com vida e denunciou o caso, estão presentes em cinco livros (Barbosa; Monteiro, 1980; Dulles, 2000; Magalhães, 1993; Perez, 2007; Wainer, 1987). Com base em Do Esquadrão ao Mão Branca, o caso veio à tona em 1963, quando Olindina escapou com vida e denunciou seus carrascos. Por parecer muito exagerado, seu relato teria chamado pouca ou nenhuma atenção, exceto pelo delegado Ariosto Fontana, que ficou responsável pelas investigações e confirmou os autores do crime, todos do SRM (Barbosa; Monteiro, 1980). Os relatos contidos em Carlos Lacerda, o sonhador pragmático e Minha Razão de Viver não citam o nome de Olindina, mas referem-se a uma "mendiga" que conseguiu escapar com vida e expôs os abusos policiais cometidos pelo SRM (Magalhães, 1993; Wainer, 1987). John Dulles (2000) alega que o jornal Ultima Hora entrevistou a moradora de rua e publicou seu relato na edição de 23 de janeiro de 1963, causando enorme reação. A partir disto, buscas nos rios da Guarda e do Guandu revelaram vários corpos, fazendo com que a Secretaria de Segurança prendesse preventivamente os acusados e que uma investigação fosse aberta. Maurício Dominguez Perez (2007), assim como Dulles, aborda o caso a partir de janeiro de 1963, quando Olindina Jupiaçu sobreviveu a uma tentativa de afogamento no rio da Guarda, próximo de Itaguaí, mas outras cinco pessoas em situação de rua não tiveram a mesma sorte. O periódico Ultima Hora teria investigado o caso e denunciado, em suas reportagens, que o SRM vinha praticando durante meses o extermínio de moradores de rua. Segundo o autor, o SRM, que era subordinado à Secretaria de Segurança, foi criado para enviar os indigentes às suas cidades de origem, arcando com o transporte (Perez, 2007). Assim Marcha a Família cita outro morador de rua que também teria escapado com vida, além de Olindina, o indigente Angenor Gonçalves Pinheiro (Louzeiro, 1965). É interessante apontar que Marly Silva da Motta (2001) e Robert Sterling Rose (2010) apresentam investigações do Ultima Hora sobre mortes de moradores de rua em agosto de 1962, algo improcedente ao verificarmos o acervo do jornal na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, uma vez que o periódico teria denunciado apenas deportações de indigentes no referido período.

O relato de Samuel Wainer (1988) é o único a mencionar que a Organização das Nações Unidas (ONU) cogitou enviar uma comissão para averiguar as arbitrariedades contra as pessoas em situação de rua. Rivadavia de Souza (1989) enfatiza o termo “cogitou”, para evitar que leitores incautos de Wainer suponham uma efetiva intervenção da ONU. Outra dissonância entre relatos de jornalistas ou atuantes do Ultima Hora diz respeito à alcunha de “Mata-mendigo” com referência a Carlos Lacerda: segundo Samuel Wainer (1988), Diretor-Presidente do jornal na época, o apelido teria sido dado por Paulo Francis ao passo que o jornalista Pinheiro Júnior (2011) atribui a autoria do apelido ao repórter Amado Ribeiro. Um breve levantamento na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional confirma a versão de Wainer (Francis, 1963), replicada por Rivadavia de Souza (1989). No entanto, o equívoco de Pinheiro Júnior provavelmente se deve ao fato de que Amado Ribeiro foi pioneiro nas denúncias do que viria a se tornar a “Operação mata-mendigos” (Ribeiro, 1962).

Dentre os livros analisados, quatro apresentam menções breves ao evento, sem muito desenvolvimento textual (Freire; Oliveira, 2002; Motta et al., 2004; Pinheiro Junior, 2011;

Rouchou, 2004). Destes, Capítulos da memória do urbanismo carioca (Freire; Oliveira, 2002) e Política carioca em quatro tempos (Motta et al., 2004) estabelecem relação direta entre a memória do evento e as eleições de 1982 para o governo do estado do Rio de Janeiro. Durante um debate televisionado em 29 de agosto de 1982, o candidato Miro Teixeira, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) acusou Sandra Cavalcanti, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de ser responsável pela matança dos moradores de rua durante o governo Carlos Lacerda, quando a candidata era Secretária de Serviço Social. A Ação Penal n° 278-6/RJ, disponível para consulta no sítio do Supremo Tribunal Federal, julgada em 12 de dezembro de 1984, condenaria Miro Teixeira por difamação com base no episódio (Supremo Tribunal Federal, 1984).

A ausência de nomes dos policiais envolvidos no excerto que Gustavo Borges apresenta sobre o caso pode ser explicada pela proximidade do autor com o episódio e eventuais implicados. Então Secretário de Segurança Pública da Guanabara, Borges (2001) afirma que, assim que tomou conhecimento do caso, alertou o governador Carlos Lacerda, quem prontamente exigiu a prisão, investigação e demissão dos funcionários do SRM. Entretanto, o relato de Carlos Lacerda contradiz Gustavo Borges, ao narrar que Lacerda tomou ciência do acontecimento através do jornal Ultima Hora e então questionou o Secretário de Segurança Pública. Questionado sobre o caso, Borges demorou a abrir um inquérito, provavelmente pela ingenuidade em acreditar demasiadamente na versão dos policiais. Lacerda também comenta sobre a ilegalidade na demissão dos envolvidos segundo o código do funcionalismo público vigente, mas que a demissão seria uma espécie de obrigação moral para com o público (Lacerda, 1978). Mauro Magalhães (1993), na época líder da bancada da União Democrática Nacional (UDN) junto à Assembleia Legislativa da Guanabara, apresenta uma terceira versão: o autor se queixa da pouca preocupação de Carlos Lacerda para com as denúncias do Ultima Hora, cometendo um erro tático que viria a marcar sua carreira política. As versões do ex-secretário, do ex-governador e do ex-deputado trazem para si os méritos de prontamente intervir ou alertar sobre o caso, talvez como uma prestação de contas por episódios anteriores que tanto pesaram em suas trajetórias profissionais, possivelmente como uma forma de heroicizar suas próprias memórias.

Os subcapítulos destinados à “Operação mata-mendigos” em Motta (2001) e Dulles (2000) tratam da chacina como um dos fatores de descrédito a Carlos Lacerda, que almejava concorrer à presidência em 1965. Assim, o evento perde sua centralidade na pauta dos autores e se soma a outros elementos em um macrotópico sobre problemas do governo Lacerda. Barbosa e Monteiro (1980) apresentam o evento como um dos crimes investigados pelo

delegado Ariosto Fontana ao longo de sua carreira, novamente trazendo a "Operação mata-mendigos" como elemento acessório. Na obra de Robert Steling Rose (2010), o subcapítulo intitulado "Mata-Mendigo" compõe o capítulo “Urbanicídio”, e se apresenta como um dos vários episódios de crimes e atos violentos que ocorreram no eixo Rio-São Paulo. Em Assim Marcha a Família (Louzeiro, 1968), a reportagem "Chacina do Rio da Guarda" é reproduzida num capítulo homônimo, evidenciando uma maior centralidade na obra, mas disputando espaço com outras reportagens que visam a construção de um macrotópico sobre as mazelas cariocas na década de 1960. Em nenhuma das outras produções constam capítulos ou subcapítulos destinados ao caso, o que enfatiza a presença do evento como algo meramente acessório (Borges, 2001; Dulles, 2000; Freire; Oliveira, 2002; Lacerda, 1978; Magalhães, 1993; Mendonça, 2002; Motta et al., 2004; Perez, 2007; Pinheiro Junior, 2011; Rouchou, 2004; Souza, 1989; Wainer, 1987). A periferização do assunto merece especial atenção na obra de Mauro Magalhães (1993), uma vez que o autor apresenta em seu prólogo “[o] chamado caso mata-mendigo” como um exemplo marcante de eventos mal interpretados ao longo da história brasileira, mas dedica pouco desenvolvimento textual ao assunto, em fragmentos dispersos ao longo da obra (páginas 11, 72, 123, 158 e 296).

A apresentação de Carlos Lacerda como mandatário e responsável pelas execuções se faz presente apenas em Wainer (1988) e Barbosa & Monteiro (1980), havendo uma incoerência entre os relatos. Wainer menciona que Gustavo Borges teria articulado as execuções após o consentimento do governador (Wainer, 1988). Já em Do Esquadrão ao Mão Branca, Lacerda teria ordenado ao Secretário de Segurança Pública que a cidade “(...) fosse limpa de mendigos, (...) para que uma face diferente do Rio fosse vista pela Rainha Elizabeth (...)” (Barbosa; Monteiro, 1980: 77).

As demais obras que relatam algum envolvimento de Lacerda podem ser divididas em dois grupos, de acordo com suas respectivas motivações, sendo: i) tentativas da oposição política em incriminar Lacerda e pedir a cassação de seu mandato (impeachment) (Dulles, 2000; Perez, 2007); e ii) campanha mobilizada pelo Ultima Hora para desmoralizar e atacar Carlos Lacerda (Borges, 2001; Motta, 2001; Rose, 2010; Souza, 1989). Na obra de Mendonça (2002), o aspecto de campanha desmoralizante se mantém, mas como um fenômeno difuso através da imprensa.

Cecil de Macedo Borer também foi acusado de envolvimento no crime, conforme se observa nos livros de John Dulles (2000), Marly Silva da Motta (2001), Robert Sterling Rose (2010) e Samuel Wainer (1988). Segundo Dulles (2000), o inspetor Alcino Pinto Nunes, em depoimento à CPI, declarou ter sido designado para seu atual cargo pelo chefe do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Cecil Borer. Já o guarda civil José Mota teria acusado a participação de Borer nos crimes. Ao final do inquérito parlamentar, a sugestão do deputado Hércules Correa em demitir Borer teria sido acatada pelos membros da CPI. Lacerda, em entrevista a diversos jornais, alegaria não ter autoridade para executar tal pedido, fazendo com que os membros petebistas da comissão solicitassem seu impeachment, que foi negado pelo presidente da CPI, José Bonifácio Diniz de Andrada, após concluir que não havia fundamentação legal para o pedido.

O relato de Samuel Wainer (1988) não menciona as investigações ocorridas em âmbito parlamentar, mas aponta que o Ultima Hora teria investigado por conta própria o envolvimento de Carlos Lacerda “(...) com o esquadrão da morte montado por Cecil Bohrer [sic] (...)" (WAINER, 1988: 237). Rose (2010) não apresenta os antecedentes e os desdobramentos do caso, mencionando apenas que houve pedidos para que Lacerda demitisse Borer, e que a recusa do governador acarretaria no início do seu processo de impeachment. Rose, em oposição a Dulles, não menciona a negativa do presidente da CPI.

Marly Silva da Motta (2001) relata, com base em uma reportagem do Ultima Hora, que a prática de deportar moradores de rua para outros estados foi inspirada por Cecil Borer, então chefe da Delegacia de Vigilância e Captura, órgão que compreendia o SRM. Uma aparente imprecisão sobre os cargos ocupados por Borer se deve ao fato de que, em fins de 1962, ele abandonaria a Delegacia de Vigilância e seria designado ao DOPS guanabarino, de modo que um evento que se desdobra majoritariamente entre 1962 e 1963 pode trazer cargos distintos num curto espaço de tempo.

Uma listagem mais ampla de perpetradores e vítimas pode ser encontrada em José Louzeiro (1965), que traz como implicados diretos: Pedro Saturnino (“Tranca-Rua”), Mário Teixeira, Anísio Magalhães da Costa ("Caçador"), Mariano José Gracindo ("Gordinho") e Nilton Gonçalves da Silva. Estes teriam assassinado os moradores de rua Ary Loiola Barata, José Vital da Silva, Vanderlan Fraga Nascimento (morto por espancamento nas dependências do SRM), Osvaldo Marenes, Guilherme de Almeida, Francisco Carmo Silva, Venâncio Lutero Carneiro, Antônio Silva, e mais outros anônimos, cuja soma totalizaria 19 mortes, havendo também os sobreviventes Olindina Alves Jupiaçu e Agenor Gonçalves Pinheiro. Apesar da maior amplitude, Assim Marcha a Família não deixa de apresentar equívocos, como o nome de "Gordinho" (na verdade, Martinho José Graciano). A listagem e a soma de vítimas não correspondem àquelas trazidas por edições do Ultima Hora (1963a; 1963c; 1963d), coincidindo apenas os nomes de Olindina Alves Jupiaçu, José Vital da Silva, Ary Loiola Barata (grafado Ari de Loiola Barata no jornal, mas também Ari de Barros) e Agenor Gonçalves Pinheiro (grafado Agenor José Gonçalves no jornal).

Por fim, não podemos perder de vista a maneira como estas obras se apropriam umas das outras na reconstrução do evento. Entre incorporações e retificações das narrativas sobre a "Operação mata-mendigos", as notas, índices onomásticos e referências bibliográficas permitem a construção do grafo abaixo. Os círculos indicam a obra receptora.

Referências encontradas entre os livros analisados


MENDONÇA, 2002)

(ROUCHOU, 2004)

(MOTTAetaL, 2004)

(MAGALHÃES, 1993)

(LACERDA, 1978)

(DULLES, 2000)

(LOUZEIRO, 1965)

(BORGES, 2001)

■(WAINER, 1988)

A

(SOUZA, 1989)

(BARBOSA; MONTEIRO, 1980)

(FREIRE; OLIVEIRA, 2002)

(PINHEIRO JÜNIOR, 2011)

Considerações finais

Ao compararmos os relatos, notam-se imprecisões e inconsistências acerca de diversos tópicos: um eventual processo de impeachment contra Carlos Lacerda (Dulles, 2000; Rose, 2010), o real cargo ocupado por Cecil Borer na época do acontecimento (Dulles, 2000; Motta, 2001), os desdobramentos do evento (Rose, 2010, Wainer, 1988), os principais implicados (Barbosa; Monteiro, 1980; Dulles, 2000; Lacerda, 1978; Louzeiro, 1965; Magalhães, 1993; Motta, 2001; Perez, 2007), etc. A simplificação de um evento complexo a ser tratado perifericamente, subordinando-se a narrativas mais amplas, impede a extração de conclusões detalhadas acerca da "Operação mata-mendigos" apenas com base nos livros. Lacunas podem ser apontadas quanto às diversas amplitudes de tais arbitrariedades (número de vítimas, número de envolvidos, duração das práticas), seus desdobramentos em âmbito criminal (penas julgadas e penas efetivamente cumpridas) e eventuais políticas públicas resultantes, direta ou indiretamente, do estigma deixado pelo episódio nas esferas político-administrativas.

Entretanto, a análise cruzada destas fontes permite a compreensão da "Operação mata-mendigos" como a ação violenta de policiais do SRM, subordinado à Delegacia de Vigilância do Departamento Estadual de Segurança Pública, contra pessoas em situação de rua recolhidas no estado Guanabara entre os anos de 1962 e 1963. As primeiras irregularidades no órgão foram apontadas pelo Ultima Hora em agosto de 1962, que acusava o SRM de deportar moradores de rua da Guanabara para outras cidades fluminenses (Ribeiro, 1962). A progressão do caso atingiria seu maior grau em janeiro de 1963, após o relato de uma moradora de rua que escapou de seus algozes. De acordo com a sobrevivente Olindina Alves Jupiaçu, ela e outros indigentes foram apanhados e conduzidos por policiais até o rio da Guarda, sendo posteriormente violentados e atirados em suas águas (Barbosa; Monteiro, 1980; Dulles, 2000; Magalhães, 1993; Perez, 2007; Wainer, 1987). Com a confissão da sobrevivente, inquéritos de ordem administrativa e policial foram abertos, revelando inicialmente os nomes de José Mota, Pedro Saturnino dos Santos e Nilton Gonçalves da Silva como implicados diretos dos crimes, e o chefe do SRM, Alcino Pinto Nunes. Não tardaram acusações a Gustavo Borges (Secretário de Segurança Pública da Guanabara), Cecil de Macedo Borer (inicialmente à frente da Delegacia de Vigilância, posteriormente no comando do DOPS) e ao governador da Guanabara, Carlos Lacerda, alcunhado inicialmente pelo Ultima Hora como “Mata-mendigo”. A repercussão do caso chegou até as instâncias políticas, culminando na criação de uma CPI, instalada em 12 de fevereiro de 1963 (Motta, 2001), tendo como membros os deputados José Bonifácio Diniz de Andrada (Partido Social Democrático - PSD), Ib Teixeira (Partido Trabalhista Brasileiro - PTB), respectivamente como presidente e vice-presidente da CPI, Paulo Duque (Partido Republicano - PR), como relator, e demais membros: Célio Borja (UDN), Everardo Magalhães de Castro (Partido Democrata Cristão - PDC), Rubem Cardoso (Partido Social Progressista - PSP), Nelson José Salim (PSD), Nina Ribeiro (UDN) e Synval Sampaio (PTB) (Motta, 2001). A CPI absolveu Lacerda, acatando a orientação de Hércules Correia em sugerir a demissão do chefe do SRM. Posteriormente, os culpados teriam sido julgados e presos (Perez, 2007).

A memória sobre um caso que atinge com tanta facilidade as esferas políticas não deixa de carregar diversos ruídos: confundem-se acusados e culpados; a perda de saliência midiática ou constatação de inocência levam autores a supor um esquecimento ou arquivamento; e um evento que se constrói a partir das narrativas diárias de jornais inevitavelmente apresenta imprecisões e contradições a cada edição, de modo que um levantamento lacunar das fontes pode condicionar os resultados. Tais observações não devem ser interpretadas como acusações a estes autores, que gravaram suas memórias sobre o episódio ou buscaram reconstruí-la, ainda que brevemente; mas como um lembrete de que a memória é um processo construtivo nas diversas esferas que a polissemia do termo permite algum significado.

De maneira geral, o desenvolvimento textual acerca da "Operação mata-mendigos" nas obras analisadas oscila entre meia e sete páginas, sempre de uma forma periférica ou acessória em textos que tratam de outros assuntos principais, geralmente com recortes temáticos muito mais amplos. A negligência da "Operação mata-mendigos" enquanto tema central de um estudo específico e as lacunas supracitadas apontam para a necessidade de futuros trabalhos que se debrucem na ampla variedade de documentos sincrônicos ao evento, a exemplo dos diversos jornais presentes na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e nos autos da CPI disponíveis no arquivo da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Tal empreendimento atenuaria a dificuldade de condensar uma narrativa sobre este evento, usualmente abordado de maneira breve e lacunar.

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