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“Eu Não Virei, Eu Nasci”: discutindo a Afeminofobia a partir da figura do gay e do menino afeminado
“No vine, nací”: discutiendo la Afeminofobia a partir de la figura del niño gay y afeminado
“I Didn't Come, I Was Born”: discussing Afeminophobia from the figure of gay and effeminate boy
“Eu Não Virei, Eu Nasci”: discutindo a Afeminofobia a partir da figura do gay e do menino afeminado
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 7, núm. 2, pp. 242-262, 2020
Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo: O presente artigo buscou investigar como a afeminofobia se manifesta no discurso gay e qual sua relação com o menino afeminado. Por meio da pesquisa verificou-se que o menino afeminado enfrenta desde pequeno uma “guerra”, que a ele é instituída só por conta de sua feminilidade. Infere-se que essa guerra contra a feminilidade se estende até sua vida adulta, uma vez que muitos gays tentam negar o feminino em seus corpos, pois ser feminino vai contra as características da masculinidade hegemônica. As crianças devem obedecer a lógica heteromasculina, sendo proibido ao menino possuir características femininas, sendo o corpo da criança um corpo controlado pelos pais, uma vez que são esses os responsáveis por inserir a masculinidade ou a feminilidade no corpo da criança.
Palavras-chave: s: Afeminofobia, Gay, Menino afeminado, Criança.
Resumen: El presente artículo buscó investigar cómo se manifiesta la afeminofobia en el discurso gay y cuál es su relación con el niño afeminado. A través de la investigación, se descubrió que el niño afeminado enfrenta desde pequeño una “guerra”, que se le instituye solo por su feminidad. Se infiere que esta guerra contra la feminidad se extiende hasta la edad adulta, ya que muchos hombres homosexuales intentan negar lo femenino en sus cuerpos, ya que ser femenino va en contra de las características de la masculinidad hegemónica. Los niños deben obedecer la lógica de la heteromasculina, prohibiéndole al niño poseer características femeninas, siendo el cuerpo del niño un cuerpo controlado por los padres, siendo los responsables de insertar la masculinidad o la feminidad en el cuerpo del niño.
Palabras clave: Afeminofobia, Gay Niño afeminado, Niño.
Abstract:
The present article sought to investigate how afeminophobia is manifested in gay discourse and what is its relationship with the effeminate boy. Through research it was found that the effeminate boy faces since very young age a “war”, which is instituted to him only because of his femininity. It is inferred that this war against femininity extends into adulthood, as many gay men keep trying to deny the feminine in their bodies, once being feminine goes against the characteristics of hegemonic masculinity. Children must obey the heteromasculine logic, being prohibited to the boy to possess feminine characteristics, being the body of the child a body controlled by the parents, as those responsible for inserting masculinity or femininity in the body of the child. 262
Keywords: Afeminophobia, Gay, Effeminate Boy, Children.
1. Introdução
Todo indivíduo adulto passa obrigatoriamente pela infância, fase essa em que meninos são treinados para serem homens e as meninas para serem mulheres. Nessa fase o menino é ensinado que ser homem é diferente de ser mulher e que deve desejá-la, porém deve negar e se desvincular de qualquer modelo feminino, logo, deve rejeitar a feminilidade em seu corpo, para que seja distinguido das “mulherezinhas” e dos “veados”, ou seja, aqueles que socialmente são considerados “não-homens” (Santos, 2008). No entanto, essa não é a realidade de todos os meninos em sua infância, pois existem aqueles que adotam comportamentos “femininos”, sendo denominados de meninos afeminados (Moura; Nascimento; Barros, 2017).
Tem-se em vista que o menino afeminado, no discurso do gay adulto, representa mais do que uma lacuna teórica prejudicial, representando também um nó de aniquilação homofóbico, ginecofóbico e pedofóbico de ódio internalizado contra uma afirmativa gay (Sedgwick, 1991). Considera-se que o menino é sempre tido como um ser heterossexual e a ele é só pensada a heterossexualidade como alternativa (Cornejo, 2011b). Ressalta-se que a figura do filho afeminado cria um tropo discursivo, ou seja, uma associação de ideias, que faz com que seja impossível dissociar a transgeneralidade da homossexualidade (Cornejo, 2011a).
Os meninos afeminados são encarados como proto-gays e para esses meninos exigir que se identifiquem com a masculinidade pode acarretar a sua não identificação e o seu apagamento, tendo em vista que sofrem a afeminofobia, ou seja, do preconceito contra o feminino no corpo masculino (Sedgwick, 1991). Desse modo os meninos afeminados compartilham do mesmo preconceito que os gays afeminados, o preconceito referente ao feminino (Moura; Nascimento; Barros, 2017). Mas o que define um gay como afeminado? A fim de responder essa pergunta partiremos do princípio de que os gays são considerados o maior exemplo de homens “femininos” (Forth, 2013). Socialmente, esses são sujeitos chamados de afetados, “pintosas”, “viadinhos”, pois “possuem uma performance corporal mais feminina e são reconhecidos como desviantes” (Reis, 2012: 80). Nessa linha de pensamento, outras características são atribuídas ao gay afeminado, sendo essas tidas socialmente como pertencentes às feminilidades, tais como a gentileza, a compaixão e a delicadeza (Almeida, 2012; Moura; Nascimento; Barros, 2017).
O gay afeminado é aquele que é oposto ao ser discreto, ou seja, que ostenta traços femininos, o que lhe fazem experimentar um “decréscimo de gênero, uma inferiorização, uma perda, uma depreciação do valor de sua masculinidade em relação aos demais” (Zago;
Seffner, 2008: 12). Antunes, observa que “para o homem se sentir confortável com a sua efeminização, deverá aspirar a posições (sociais ou não) que sejam tradicionais à mulher. Claro que isto não se traduz somente na roupa, mas a ideia de que os seus simbolismos demonstram a personalidade do homem feminino e a sua colocação na sociedade” (2011: 52).
Dentro desse contexto, de traços femininos em homens gays e meninos afeminados, evidencia-se a sissyfobia, termo utilizado para designar o pavor a um menino ou homem que não possui comportamentos que se enquadrem no "padrão masculino" de gênero (Bergling, 2001). Algum desses comportamentos implicam em falta de coragem, força, capacidade atlética, virilidade etc. A ausência destes comportamentos em meninos e homens os faz serem conhecidos também como “maricas”. Nesse campo da feminilidade homens que possuem interesse em passatempos e profissões tidas como femininas e todos aqueles que “quebram a mão”, ou até mesmo “classificados” como gays afeminados (Bergling, 2001). Percebe-se que desde a infância os meninos são educados e treinados para serem machos e viris e diversas instituições participam e contribuem para a construção da virilidade e da masculinidade hegemônica (Beauvoir, 1970). Porém, nem todas as crianças adotam os comportamentos associados à masculinidade, mas sim aqueles associados à feminilidade. Os comportamentos femininos não são transitórios, e continuam a serem repetidos na vida adulta, e tais sujeitos passam então a serem classificados como homens afeminados, e a representação máxima de tais sujeitos são os gays (Baubérot, 2013). Estudar questões referentes à afeminofobia, por meio do menino afeminado, torna-se importante até mesmo para a área de Estudos Organizacionais uma vez que o preconceito contra o feminino se inicia na infância, estendendo-se por toda a vida adulta do indivíduo, criando comportamentos que são reproduzidos também nas organizações (Moura; Nascimento; Barros, 2017). Posto isso, questiona-se: Como sujeitos gays compreendem à feminilidade em si e como esses sujeitos se relacionam com a figura do menino afeminado?
Mediante a pergunta de pesquisa proposta o presente artigo buscou investigar como a afeminofobia se manifesta no discurso gay e qual sua relação com o menino afeminado. Esse trabalho é relevante por ser uma forma de pôr em xeque ideologias dominantes como o conservadorismo e o colonialismo epistêmico (Machado, 2014), ou seja, trata-se de desobediência epistêmica, considerando que não está enraizado em questões heterossexuais e patriarcais (Mignolo, 2008) sendo ele um combate ao racismo epistêmico que visa privilegiar aqueles que estão no sistema mundo capitalista, patriarcal, moderno e colonial (Grosfoguel, 2007). Desta forma, o potencial presente nos trejeitos de meninos afeminados os afasta do que muitos chamam de infância universal, e talvez por isso suas existências não mereçam a devida atenção nos estudos sobre crianças (Ramirez; Marín-Díaz, 2007).
O caminho metodológico adotado nesse artigo foi orientado por uma perspectiva qualitativa. O método de produção do corpus da pesquisa consistiu na realização de entrevistas semiestruturadas em profundidade, onde foram entrevistados nove (9) sujeitos gays masculinos e que se consideravam afeminados. O acesso aos entrevistados ocorreu por meio da técnica da bola de neve, ou seja, um sujeito indicava outro para ser entrevistado. Já para a análise do corpus optou-se pelo método de análise de conteúdo.
2. O Menino Afeminado
Desde a invenção da Modernidade o corpo infantil sempre foi pensado sob a ótica da atemporalidade, dependência e ingenuidade (Ariès, 1981), o que culminou na naturalização dessas significações atribuídas aos infantes, de modo que mães, pais, educadores e educadoras foram impedidos de pensar e problematizar os discursos que se originam à partir dessas significações (Dornelles, 2005: 11). Esse processo de naturalização faz com que antes mesmo do nascimento, as crianças tenham seus corpos imbricados em um sistema de normatização e normalização (Jesus; Martinelli, 2017; Louro, 2016) uma vez que ao saber o sexo do bebê os pais já passam a definir cores de roupa, quarto, tipos de brinquedos, ou seja, constroem um ambiente definindo, a partir do que consideram pertencente ao sexo da criança socialmente, em um contexto de sociedade de gênero binário (Jesus; Martinelli, 2017). Sejam heterossexuais ou homossexuais, todos os indivíduos estão sujeitos a “normalizações” e a sofrer preconceito, por conta de se comportar ou viver, de forma diferente do que a sociedade espera. Nesse contexto, até mesmo os homossexuais acabam por ajudar a estigmatizar e propagar uma concepção negativa daqueles que não se encaixam nos padrões sociais heteronormativos (Miskolci, 2016).
Vale destacar que o próprio ato de nomear um corpo infantil acontece dentro de uma lógica que estabelece o sexo como um fato que é anterior à cultura, atribuindo ao corpo um caráter imutável, implicando assim na determinação do gênero e induzindo a uma única forma de desejo (Louro, 2016). As infâncias recorrentemente são classificadas e enquadradas “à conceitos que a determinam como uma infância normal ou anormal. Disso advém uma contradição, ou seja, esta naturalização tem a norma como medida comum e que deverá ser seguida por todos” (Dorneles, 2010: 9).
Dentro desse contexto os “padrões de normalidade” possuem como modelo a “infância universal” (Dorneles, 2010), ou seja, aquela que serve de modelo para todas as outras, tendo como características fundamentais questões de raça e gênero, como por exemplo, ser branco, heterossexual cisgênero, magro, sem problemas de saúde mental e física e pertencente à classe média, e à medida que se afasta desse modelo a criança passa por um processo em que é vista como representante de uma “infância perigosa” por ameaçar e colocar as infâncias universais em risco (Ramirez; Marín-Díaz, 2007).
O corpo infantil é um corpo sem autonomia, ou seja, a criança não tem autonomia sobre si, pois, “é sempre um corpo ao qual não se reconhece o direito de governar” (Preciado, 2002), mas uma criança “é ensinada a governar os corpos dos gayzinhos afeminados, dos viadinhos e das bichinhas” (Oliveira, 2018: 176). Logo, um menino afeminado é visto como uma ameaça ao projeto de futuro, pois é visto como um “empreendimento” que está fadado ao fracasso, pois, o futuro que importa, anunciado por uma criança, só pode ser aceitável se esta corresponder às normas cisgêneras (Oliveira, 2018). Sendo assim os meninos afeminados são instruídos, nos grupos sociais, a se manterem de acordo com as normas heterossexuais, que os orientam a buscar referências masculinas e a cumprir os rituais estabelecidos pela masculinidade hegemônica, como por exemplo, desejar mulheres (Takara, 2017).
Nessa mesma linha de pensamento, Sedgwick (1991) afirma que os meninos são marcados pela obrigação de produzir performances de gênero que correspondam com a expectativa cultural, política, estética, e, principalmente, social do que é representado pela masculinidade hegemônica. Ao menino é ensinado que ser homem é diferente de ser mulher e que ele deve deseja-la, porém deve negar e se desvincular de qualquer modelo feminino, logo, deve rejeitar a feminilidade em seu corpo, para que seja distinguido das “mulherezinhas” e dos “veados”, ou seja, aqueles que socialmente são considerados “não-homens” (Santos, 2008). Por essa perspectiva a feminilidade nos homens, bem como nos meninos, é normalmente considerada negativa por ir contra os papéis tradicionais do que é ser homem (Serano, 2016).
3. Percurso metodológico
A pesquisa proposta no presente artigo é de caráter qualitativo, tal escolha está ancorada no fato dessa metodologia incorporar uma visão da realidade social como uma propriedade emergente e que se encontra em constante mudança na criação dos indivíduos (Bryman; Bell, 2015). A pesquisa qualitativa “proporciona uma lente geral de orientação para questões sobre os estudos de gênero, classe e etnia (ou outras questões de grupos marginalizados” (Creswell, 2010: 91).
O método utilizado para a produção do corpus da pesquisa consistiu na realização de entrevistas individuais em profundidade. A escolha desse método se deu em função da possibilidade desse permitir a reformulação de perguntas em busca de maiores entendimentos sobre o corpus produzido e que não são encontrados em fontes bibliográficas (Dresch, 2015). No que tange ao instrumento utilizado para a produção do corpus da pesquisa, optou-se por um roteiro de entrevista semiestruturado que tinha como objetivo compreender questões sobre o feminino e o menino afeminado pela ótica de sujeitos gays, esse tipo de instrumento tem “como vantagem a sua elasticidade quanto à duração, permitindo uma cobertura mais profunda sobre determinados assuntos” (Boni; Quaresma, 2005: 75).
O corpus foi produzido a partir da transcrição de nove (9) entrevistas com sujeitos gays masculinos que se consideravam afeminados ou que possuíam algum traço de feminilidade. A idade dos entrevistados variava entre 21 a 46 anos e no que se refere a localidade todos eram residentes no Estado do Rio de Janeiro, alguns moradores de uma cidade do interior, Barra do Piraí e outros da Capital, Rio de Janeiro.
O acesso aos sujeitos ocorreu mediante a utilização da técnica de bola de neve, ou seja, utilizou-se de uma cadeia de referência, sendo essa técnica útil para estudar grupos e/ou sujeitos difíceis de serem acessados ou estudados (Bernard, 2005). De modo geral, essa técnica mostra-se como um processo para a condução do corpus da pesquisa permanente, procurando tirar proveito das redes sociais dos sujeitos entrevistados com o intuito de fornecer ao pesquisador um conjunto, cada vez maior, de potenciais sujeitos para entrevista, sendo esse processo finalizado somente a partir da saturação do corpus da pesquisa (Vinuto, 2014).
A análise metodológica escolhida no presente artigo consistiu na Análise de Conteúdo proposta por Bardin. A escolha de tal método deve-se ao fato de que esse, cada vez mais, vem ganhando legitimidade em pesquisas de orientação qualitativa na Administração (Mozzato; Grzybovski, 2011). Observa-se que “a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise de comunicações, que tem como objetivo ultrapassar as incertezas e enriquecer a leitura dos dados coletados” (Mozzato; Grzybovski, 2011: 734) que possui como “compreender criticamente o sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou ocultas” (Chizzotti, 2006: 98).
Nesse contexto, Bardin (2006: 43) afirma que “a análise de conteúdo toma em consideração as significações (conteúdo), eventualmente a sua forma e a distribuição destes conteúdos e formas (índices formais e análise de coocorrência)”. Para que a análise fosse feita seguiu-se as três fases de Bardin (2006), sendo elas: 1) pré-análise, 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
A pré-análise consistiu na transcrição e leitura do corpus da pesquisa e da seleção dos fragmentos para análise. A segunda fase consistiu na categorização dos trechos das falas, onde emergiram as categorias: organizações e patriarcado, estigma, feminilidades e gay afeminado. E, por fim, foi realizado o tratamento e interpretação do corpus da pesquisa.
4. Apresentação e discussão do corpus da pesquisa
Uma das categorias emergentes que surgiu na análise do corpus produzido nos discursos tratava-se da afeminofobia, ou seja, a rejeição ao feminino. Nesse sentido, essa seção tem o objetivo de discutir essa categoria por meio de outras categorias analíticas, expressas em forma de temas, conforme descrito a seguir.
4.1. Tema: A negação do feminino em si
Nessa temática serão evidenciados fragmentos discursivos relacionados à negação do feminino no corpo masculino. Quando alguns sujeitos de pesquisa eram questionados se si consideravam femininos ou afeminados, muitos, de início, negavam possuir qualquer traço associado socialmente a feminilidade, porém no decorrer da entrevista os mesmos relatavam que possuíam características femininas, mostrando assim uma grande contradição no seu discurso. Infere-se assim que existe um preconceito ou receio de ser considerado feminino para não ser alvo de rejeição, posto que a afirmação da feminilidade só ocorria durante o decorrer da entrevista, quando os entrevistados se sentiam mais à vontade para falar. Em alguns casos, essa afirmação de possuir feminilidade era acompanhada do choro, o que revela que tais sujeitos experimentam um grande sofrimento associado à sua condição de homens afeminados.
De acordo com o sujeito E9, muitos gays “sentem a necessidade de mostrar que são homens, (estes) não são caras bem resolvidos, são pessoas que talvez precisem se resolver mais”. Pelo que se pode depreender do fragmento discursivo do sujeito E9, alguns gays acabam aceitando os discursos hegemônicos de que não são homens, e para isso sentem a necessidade de provar sua masculinidade. Esse fragmento permite compreender também que essa atitude é praticada por aqueles que não aceitaram a sua sexualidade, podendo haver uma negação do feminino, uma vez que o homossexual é considerado um sujeito feminino, não uma mulher, mas sim um homem feminino.
O sujeito E4, deixa claro que nega o feminino no seu corpo: “Então, eu nunca quis, tentei ser afeminado, nunca gostei, não sei porque. Mas era algo que me deixava um pouco incomodado, porque talvez tenha a visão ocidental, de que menino é menino e menina é menina” (E4). Esse sujeito deixa claro que traços associados ao feminino e ao masculino são socialmente e culturalmente construídos, e que negar o feminino no próprio corpo não é uma questão relacionada à sua sexualidade, mas sim na sua construção como uma figura masculina dentro de uma sociedade heteronormativa.
O sujeito E7, quando perguntado se o preconceito era contra o gay ou contra o que é tido como feminino, proferiu o seguinte relato:
Eu acho que é contra o gay, o preconceito, acho que é homofobia mesmo. Porque na verdade, o gay quando se assume, ele precisa realmente se assumir. Esses gays que estão nessa vibe de hipertrofiar, de se transformar em um halterofilista barbado, esse culto ao bear que tem agora, né, homem peludo, essa preferência pelo peludo e essa negação ao feminino. Eu acho que não está relacionado a uma rejeição a mulher, acho que está relacionado a uma rejeição ao gay que se comporta, se assemelha a mulher, entende? Eu acho que o preconceito é aí, é um pouco de homofobia (E7, grifo dos autores).
O fragmento discursivo anterior está alinhado com os fragmentos anteriores, pois na visão desse sujeito os próprios gays passaram a valorizar as características vinculadas a heteromasculinidade e negam o feminino, visto que negar o feminino é uma forma de ser aceito pela sociedade e não alvo de práticas homofóbicas. Pode-se interpretar, à partir da visão do entrevistado, que a sociedade, orientada por uma lógica heteronormativa, que rejeita tudo o que remete ao feminino, encara o gay afeminado como um sujeito que quer ser mulher. No entanto, podemos compreender que a questão está relacionada não ao fato de ser visto como uma mulher, mas sim porque esses sujeitos possuem comportamentos e características que “não correspondem” ao que a sociedade espera que seja um homem. Deve-se ressaltar, à partir desta interpretação, que o corpo do homem gay também é alvo e objeto de controle, tornando-o socialmente inaceitável quando apresenta características femininas. Esse fragmento revela ainda que o próprio entrevistado não consegue enxergar que esse preconceito é uma questão afeminofóbica, e não homofóbica tal como ele afirma, ainda que ele reconheça que o preconceito se dirige contra os comportamentos de uma população gay específica (os gays afeminados).
4.2. Tema: O Menino Afeminado: um corpo controladoImportar lista
Após os sujeitos terem sidos perguntados sobre as questões femininas no sujeito gay esses foram indagados sobre quem era o menino afeminado. Ao ser questionado sobre o que é ser um menino afeminado, o sujeito E1 relata algumas características ou comportamentos que esses meninos possuem e produziu o seguinte discurso:
Cara, a criança afeminada, ela não tem.... Ela não pode ser afeminada assim. Como
que eu vou dizer. Até mesmo porque não é ela que controla isso, é o pai e a mãe que controla isso, mas tem um jeitinho de andar mais reboloso, a voz macia, quer brincar de boneca, não quer brincar de bola. Apesar de que, eu não brincava, até mesmo porque minha infância foi mais controlada. Não senti falta de nada, mas não brinquei muito disso não, porém, era mais nas ações. O jeito, o jeito afeminado né, não é nem na aparência, é nas atitudes (E1, grifo dos autores).
O sujeito E1 deixa claro que até mesmo as crianças devem obedecer a lógica heteromasculina, sendo proibido ao menino possuir características femininas, podendo inferir que o corpo da criança não é um corpo autônomo, mas sim um corpo “controlado” pelos pais, ou seja, os pais, segundo esse entrevistado, são os responsáveis por inserir a masculinidade ou feminilidade no corpo da criança funcionando como agentes de controle. Nesse contexto, a partir desse fragmento pode-se entender que na visão do entrevistado o corpo do menino afeminado é um corpo sexualizado e sensual, à partir usou de expressões que remetem ao corpo da mulher adulta (como “andar mais reboloso”), atribuindo ao menino poucos comportamentos que estão relacionados à infância. Além disso, no caso do menino afeminado, por vezes o próprio ato de brincar é visto como feminino, como o ato de “brincar de boneca”. Neste sentido, problema da brincadeira não reside no fato de brincar com bonecos, considerando que existem bonecos masculinos, mas sim no fato do menino manejar uma figura feminina. Esse fragmento deixa claro que não é apenas o corpo infantil que é controlado, mas também a imaginação que está envolvida no ato de brincar.
Isso também vem muito da criação, tá, criança que nasce e que é criada naquela redoma de vidro, aprende a ser assim. Eu acredito também que isso seja um pouco de.... Isso, por outro lado, é falta do carinho paterno, porque, tem aquele todo
cuidado com a criança, mas não dá aquela afeição. Então ela começa a ter que procurar afeição em outros lugares (E6, grifo dos autores).
O fragmento anterior do sujeito E6 deixa evidente que os traços femininos em uma criança são socialmente aprendidos e que ele é afeminado por falta da presença do pai. Essa afirmação permite compreender que o menino só é afeminado porque se identifica com as características da mãe, embora o sujeito diga que essas características se dão por relações de afeto, seu discurso mostra que não é uma relação de afeto, mas sim uma questão de identificação com as mães. Pode-se verificar, ainda, que o entrevistado adota uma narrativa, que é socialmente disseminada, de culpabilização da mãe pelo comportamento afeminado do filho, o que pode representar também, em última instância, o reflexo de uma rejeição a tudo que tem origem no feminino.
Nessa perspectiva do sujeito E3 o menino afeminado não existe por conta da relação de afeto e que não se aprende ser gay, considerando que a sexualidade já é definida no nascimento.
Eu era uma criança diferente, o rebolado era diferente, a dança era diferente, as brincadeiras, os gestos eram diferentes, não foi tipo assim: "ah, ele cresceu sem pai, então ele virou gay. Ah, a avó dele era de salão, ele fica dentro do salão, ele virou gay." Não, quem é já nasce feito. Ninguém muda ninguém, porque se fosse assim, eu poderia colocar um homem dentro da minha casa, hetero, e ele iria me mudar por um homem, se eu fosse mutável, entendeu... Eu não virei, eu nasci e graças a Deus que nasci, porque se tivesse que escolher 1 milhão de vezes, eu escolheria nascer gay (E3, grifo dos autores)
O entrevistado E3 profere um discurso que estabelece a existência de uma normalidade, ao passo que ele se reconhece como uma criança que era “diferente”, e utiliza o mesmo discurso do entrevistado anterior, discurso esse que sexualiza o corpo do menino associando o ato de andar da criança com o ato de “rebolar”. Segundo esse entrevistado, as relações que os meninos tem na infância com seus familiares não são fatores determinantes da sua sexualidade. Contudo, ser um menino afeminado consiste em um ato de aprendizagem, como ele relata no seguinte trecho “(...) botava música, Rouge, Kelly Key, aquelas coisas da minha época, porque eu sou velho. Então aí, era tipo assim, apresentação da escola, Rouge, só podia dançar meninas. Só que eu era aquele menino, que ficava olhando o ensaio das meninas, no cantinho, fazendo igual” (E1). Por meio desse fragmento fica claro que o comportamento feminino que esse sujeito tinha na infância foi adquirido por meio de uma aprendizagem e pela interação com o universo feminino, e que este se estabeleceu devido à sua admiração pelo feminino.
Já o sujeito E9 acrescentou que sempre teve atitudes afeminadas, como evidencia no fragmento discursivo a seguir:
Porque na verdade eu sempre tive trejeitos de gay mesmo. Nessa sociedade machista que a gente vive hoje, né, dentro no nosso ambiente infantil tem, você vê crianças com trejeitos gays e eu sempre tive trejeitos gays. Eu nunca fui de jogar futebol, nunca fui de brincar com bola de gude, jogava, mas eu preferia brincar de coisa simples, casinha, eu gostava de brincar de bonecas com as minhas amigas, eu jogava bola, queimado, mas não fui de brincar muito no universo masculino, sempre fui muito no feminino, apesar de ter tido uma atração muito forte por mulher também (E9, grifo dos autores).
A relato do sujeito E9 é um exemplo de que ser um menino afeminado e interagir com o mundo feminino não definiu sua sexualidade, pois o mesmo afirma ter sentido, também, atrações por pessoas do gênero oposto, ou seja, possuía tendência à bissexualidade e esta não estava atrelada aos seus comportamentos e gostos. Outro ponto importante está no fato de que esse entrevistado transitava tanto nas brincadeiras tidas como masculinas, como naquelas consideradas femininas, porém interagia mais com as questões que envolvia o universo feminino.
4.3. Tema: O preconceito contra o menino afeminadoImportar lista
Uma das categorias de análise do corpus de pesquisa consistiu no preconceito contra o menino afeminado. Os entrevistados foram questionados sobre o que eles pensavam do feminino e como pensavam sobre o ser afeminado na infância.
Eu já fui "aquela bichinha" boba, que os outros pisavam, que os outros xingavam, eu, quando estudei no Castelinho, é... no ônibus eu era chacota , tipo assim, tanto que eu não pagava passagem, eu tinha o passe que o Governo dá, só que eu vinha de ônibus, micro ônibus, eu pagava todos os dias R$ 2 e pouco, a ida eu até ia, porque eu ia mais cedo fica lá esperando, tipo assim, ia muito mais cedo, tipo uma hora antes, ficava na porta da escola, ou então ia mais tarde para chegar atrasado, e na volta, eu voltava de micro pagando, porque eu não queria, ou era tapa na cabeça, ou era zoação, ou porque era o 'viadinho' da turma (E3, grifo dos autores).
Por meio do fragmento anterior é possível compreender que o menino afeminado, além de sofrer preconceito por ser feminino pode sofrer também por ser gay, gerando um enorme sofrimento no entrevistado, a ponto de que para evitar ser alvo de xingamentos e agressões ele adotava como estratégia chegar mais cedo na escola e pagar a passagem de ônibus de retorno, ou seja, com medo de sofrer o entrevistado E3 abdicava algumas horas do seu tempo bem como da possibilidade de andar gratuitamente de ônibus. A agressão por parte dos colegas pode ser vista como uma forma de punição, por ser o menino afeminado um sujeito que está “fora” dos padrões heteromasculinos. Nesse contexto os próprios colegas de escola passam a agir como agentes de normatização. Porém, o relato a seguir, do entrevistado E2 mostra que existem outros agentes que disseminam o preconceito que tem o menino afeminado como alvo.
A professora percebia que eu dançava melhor do que todas as meninas, e botava eu como uma exceção no meio, você tá entendendo...?! Então tipo assim, os meninos me pegavam para Cristo. Educação física, nunca fiz educação física com os meninos, sempre com as meninas, se eu não pudesse fazer com as meninas, eu não fazia. Entendeu? Então eu inventava qualquer coisa, e não fazia, não fazia. Por que? Eu gostava de queimada, handball, vôlei, gostava de coisas...[...] Então os meninos me pegavam pra Cristo. E até professores também. Muitos professores são despreparados, não sabem lidar com isso, entendeu... Com o diferente, o diferente causa estranheza. Entendeu... E eu como uma criança, eu não conseguia ter essa força que estou falando, entendeu... E tipo, ficava recluso, às vezes me afastava, isso que estou falando, dessa situação (E2, grifo dos autores).
O fragmento discursivo anterior evidencia dois pólos, o primeiro, mostra que existem professores que não funcionam como agentes de normalização e são capazes de compreender as características do menino afeminado. Estes professores, por entenderem que determinados ambientes regidos pela heteronormatividade podem trazer sofrimento e exclusão, permitem que esses meninos façam parte do ambiente feminino. O sujeito E2, mostra que quando não era possível fazer parte do universo feminino no ambiente escolar ele adotava medidas que lhe permitissem fugir de um ambiente tipicamente masculinizado, pois ele sabia que ali ele poderia ser alvo de afeminofobia. No entanto, o outro pólo desvela que há professores que são agentes normalizadores, porém o sujeito entrevistado não consegue perceber isso, uma vez que na sua visão são professores “despreparados”. Tal fato ocorre porque ele se vê como alguém fora das normas e que por isso não é igual aos demais e quando não lhe sobra nenhuma alternativa para conviver no universo feminino esse prefere excluir-se a ter que participar do universo masculino. Em todos os casos, no convívio escolar, resta ao menino afeminado apenas a punição: seja pela agressão física e/ou xingamentos, quando ele busca se inserir nos grupos masculinos, seja pela exclusão, quando ele se afasta destes grupos para se proteger.
Não foi apenas o sujeito E2 o único a produzir um discurso que aborda a convivência do menino afeminado e gay na escola, pois o sujeito E8 relatou: “Eu era bichinha. Eu era bichinha mesmo. Ah... viadinho. Sempre fui escrotizado na escola. Tinha essa coisa de bulliyng que falam hoje, era o que a gente sofria na época. Era assim, você é um viadinho, chamavam isso”. Os fragmentos discursivos dos sujeitos E2 e E8, e mesmo os relatos dos demais sujeitos entrevistados, explicitam que a escola é um espaço organizacional que se encarrega de “ensinar” ao menino, por meio do convívio com outras crianças ou mesmo pelo do discurso dos professores, a adquirir comportamentos associados à masculinidade. Por meio dos fragmentos discursivos expostos, evidencia-se que o primeiro contato do menino afeminado com as organizações, por meio da escola, já o insere num ambiente de preconceito e rejeição.
Eu ignorava... Não falavam diretamente para mim, falavam para outras pessoas. Aqueles comentariozinhos, palhaços e homofóbicos, " aquele ali é, não é?". Dava vontade de falar "Seu pai também". Mas tudo bem, a gente ficava quieto. Mas não falavam diretamente para mim cochichavam... Aquele negócio que dá para ouvir. Eu ignorava (E5).
O fragmento discursivo do entrevistado E5 incialmente evidencia que ele não se importava quando era xingado quando criança, contudo no decorrer do relato ele adjetiva negativamente os comentários que eram proferidos, mostrando assim que ele, de fato, se importava.
Eu tinha trejeitos gays e como minha mãe... eu sou o terceiro, minha mãe tem 6 filhos e eu sou o terceiro mais velho, depois da minha irmã tem o meu irmão e depois vem eu, depois meus irmãos saíram pra morar com o meu pai e eu morei com a minha mãe. Minha mãe teve mais 3 filhos abaixo de mim, e eu tive que cuidar dos 3 filhos da minha mãe, dos meus irmãos pra ela trabalhar, então, era eu que arrumava a casa, era eu lavava a roupa, era eu que fazia a comida, então eu novo, com 13 anos de idade já tinha o universo feminino dentro de mim porque eu já fazia tudo aquilo. Mas a partir do momento que eu fui pro quartel aquilo mudou, mas eu já sabia fazer muita coisa (E8).
O entrevistado E8 não trata especificamente do preconceito contra o menino afeminado, mas sim da forma como o menino gay e afeminado é visto pelos pais. Esse sujeito revela que ele faz parte de uma família de 6 irmãos, contudo ele era o responsável por fazer as tarefas domésticas e cuidar dos irmãos mais novos, tarefa que não eram delegadas aos irmãos mais velhos, tarefas essas que são socialmente consideradas como pertencentes ao universo feminino.
Nos fragmentos discursivos apresentados percebe-se que o menino afeminado sofre preconceito por ter características ou comportamentos associados à feminilidade. Esses sujeitos são estigmatizados por diversas instituições tais como família e escola. Essas instituições procuram inserir nos meninos atitudes viris e masculinas, por exemplo, o que é ensinado nas aulas de educação física para os meninos é diferente do que é ensinado para as meninas. Aos meninos são ensinados esportes como o futebol e futsal, já para as meninas a dança, o handebol ou voleibol. Aqueles meninos que não se encaixam nessas atividades não são estigmatizados apenas pelos colegas de escola, mas também por alguns professores.
5. Análise do corpus da pesquisa
Um dos sujeitos entrevistados produziu um discurso onde é possível perceber que a exclusão do gay afeminado está atrelada ao poder da dominação masculina, pois segundo esse entrevistado excluir o gay afeminado do ambiente de trabalho é uma forma do homem manter seu poder na sociedade. Infere-se, a partir desta constatação, que o gay afeminado pode representar uma ameaça à heteronormatividade no espaço organizacional, ou seja, ele pode significar uma diminuição do poder do “macho”. Percebe-se, assim, um preconceito contra a mulher e contra o gay afeminado, o que pode nos remeter ao preconceito contra o feminino, ou até mesmo contra a feminilidade. Esse preconceito começa na infância, período onde se inicia uma “guerra contra o menino afeminado”, tal como define Cornejo (2011b). Constatase que esse preconceito se estende da infância até a vida adulta, expandindo-se também para o ambiente organizacional.
Um dos sujeitos relata que era chamado de “bichinha” entre os colegas e, por possuir traços e comportamentos afeminados, era alvo de humilhação e agressão, e para fugir dessas situações humilhantes esse sujeito adotava estratégias de “sobrevivência”. Tais situações podem ser compreendidas como a forma encontrada pelos colegas para normalizar esse corpo “desviante”, uma vez que é identificado como à margem da heteronormatividade. Neste sentido, Miskolci (2016) afirma que todos os sujeitos que fogem das normas heterossexuais estão sujeitos a serem alvos de preconceito, uma vez que “diferem” do que a sociedade espera. Outro ponto importante é que essas crianças, ao serem chamadas de “bichinhas” ou de “veadinhos” pelos colegas, são marginalizadas enquanto sujeitos pertencentes ao universo masculino, pois segundo Santos (2008) chamar os indivíduos de bicha, veadinho ou mulherzinha é não os reconhecer como homens.
Observa-se ainda que humilhar os meninos afeminados é uma forma de outras crianças controlarem o corpo alheio. Nesse contexto, o controle do corpo do outro ocorre por meio da estigmatização e da agressão, como já relatado anteriormente. Frente a essa situação, Oliveira (2018) aponta que as crianças são ensinadas desde cedo a governarem e controlarem os corpos dos gayzinhos, veadinhos e bichinhas, atuando como mais um agente de normalização social.
Com relação à afeminofobia, percebe-se que a aversão se dirige desde à criança afeminada à negação do feminino em si pelos homens. Através do corpus de pesquisa produzido sobre essa categoria, verificou-se que muitos sujeitos, que quando crianças possuíam traços femininos, eram estigmatizados. É possível observar, neste contexto, que meninos afeminados e gays afeminados compartilham do mesmo preconceito, pois como aponta Moura, Nascimento e Barros (2017) sujeitos afeminados, gays ou crianças, são alvos de preconceito por conta de serem femininos.
Muitos indivíduos negam o feminino no próprio corpo. Um dos motivos dessa negação está atrelada ao fato do que é entendido como “ser homem”, pois os relatos obtidos revelam que ter traços associados ao feminino contraria a imagem de masculinidade daqueles que os possuem. Alguns dos entrevistados afirmam não desejarem contrariar aquilo que é socialmente considerado como padrão de masculinidade, logo para serem reconhecidos como “homens” negam o feminino, como já evidenciado por Serano (2016) ao expor que a feminilidade nos sujeitos masculinos é vista socialmente como algo negativo, uma vez que não dialoga com a construção social do que é ser homem.
Outros sujeitos relatam que ter traços femininos não significa ser feminino. Contudo, tais sujeitos reconhecem que possuem características que socialmente são consideradas como femininas, embora afirmem que seus comportamentos se encaixam nos padrões da heteronormatividade. Tal afirmação revela que existe uma afeminofobia, ou seja, uma rejeição do feminino, mesmo por parte daqueles entrevistados que se reconhecem em traços de feminilidade, mas que ainda assim repudiam a associação com o feminino. Essa situação demonstra que por mais que possuam traços femininos, há uma rejeição ao feminino como um todo, conforme é ressaltado por Bergling (2001) e Sedgwick (1991), que relatam sobre o pavor que os homens têm em possuir traços femininos, mesmo entre os homossexuais.
Observou-se que esses sujeitos, quando crianças, eram considerados crianças afeminadas e que ser um menino afeminado é sinônimo de ser gay, ainda que não tivessem consciência de sua sexualidade. Como define Cornejo (2011a), os meninos afeminados são vistos como proto-gays. Por meio do corpus produzido, percebeu-se que os meninos afeminados são perseguidos por diversas instituições, dentre as quais destacam-se a escola e a família. Estes relatos se alinham com o que é verificado por Sedgwick (1991), na descrição de que sempre “está aberta a temporada de caça às crianças afeminadas e gays” e Cornejo (2011a) em sua interpretação da perseguição ao menino afeminado. Considera-se também que há a atribuição de culpa à mãe (a mulher), conforme já mencionado, pelas características femininas de seu filho, sendo este mais um exemplo do preconceito contra o feminino.
Por meio da fala de um dos sujeitos é possível compreender como o corpo infantil obedece à lógica dos sexos biológicos, pois segundo esse sujeito o menino afeminado não pode possuir características femininas. Ou ainda, como relata outro sujeito, ser afeminado é ser diferente. Além desses relatos reforçarem a ideia de que os corpos seguem uma lógica biológica, é possível também afirmar que essa ordem está enraizada em uma lógica que compreende o sexo como algo que antecede até mesmo a cultura, ou seja, ao corpo é atribuída uma característica de imutabilidade, o que determina, antes mesmo do nascimento, o gênero da criança. Nesse sentido, Louro (2016) observa que o gênero é instituído na criança antes mesmo de seu nascimento, induzindo-a a ter um modo de agir e de desejar de acordo com suas características biológicas.
Um dos sujeitos entrevistados produziu um discurso onde é possível perceber que a exclusão do gay afeminado está atrelada ao poder da dominação masculina, pois segundo esse entrevistado, excluir o gay afeminado do ambiente de trabalho é uma forma do homem manter seu poder na sociedade. Infere-se, a partir desta constatação, que o gay afeminado pode representar uma ameaça à heteronormatividade no espaço organizacional, ou seja, ele representa uma diminuição do poder do “macho”. Percebe-se, assim, um preconceito contra a mulher e contra o gay afeminado, o que pode nos remeter ao preconceito contra o feminino, ou até mesmo contra a feminilidade. Esse preconceito começa na infância, período onde se inicia uma “guerra contra o menino afeminado”, tal como define Cornejo (2011a). Constatase que esse preconceito se estende da infância até a vida adulta, expandindo-se também para o ambiente organizacional. Como aponta Baubérot (2013) os comportamentos femininos no homem não são efêmeros ou passageiros, mas se repetem em diversos contextos da vida desses sujeitos e quanto mais esses sujeitos são afeminados, mais serão considerados como gay pela sociedade.
Por meio do corpus da pesquisa foi possível compreender que o corpo da criança, em especial dos meninos, é alvo de controle em relação à sua masculinidade. Dorneles (2010) e Oliveira (2018) apontam que as crianças não podem sair dos comportamentos socialmente atrelados aos homens cisgêneros, pois enquanto um corpo infantil, esse corpo não tem autonomia de si (Preciato, 2012).
6. Considerações finais
Retoma-se nessa seção a pergunta e o objetivo que deu origem a essa pesquisa, com o objetivo de resgatar o pensamento do leitor. Desta forma, a pergunta inicialmente proposta foi: Como sujeitos gays compreendem a feminilidade em si e como esses sujeitos se relacionam com a figura do menino afeminado? Já o objetivo final buscou investigar como a afeminofobia se manifesta no discurso gay e qual a sua relação com o menino afeminado.
Alguns sujeitos relataram que desde muito cedo negam a feminilidade em seus corpos e outros, desde o nascimento, possuem seus corpos controlados ou domesticados, à partir do aprendizado de que o feminino não pode habitar em um corpo masculino. Desse modo, pode-se relatar que quando esses meninos chegam à vida adulta tendem a reproduzir a afeminofobia, considerando que em seu processo de socialização experimentam o feminino como algo que deve ser repudiado em um corpo masculino. A ambiguidade existente entre o reconhecimento da sua feminilidade e o medo da rejeição (em função desta feminilidade), levam muitos desses meninos à um conflito de papeis que se estende até a vida adulta. Não por acaso, alguns entrevistados expõem o sofrimento decorrente da sua feminilidade por meio do choro, durante à entrevista. A experiência de rejeição social, por vezes ocorrida na própria família, faz com que para estes indivíduos a feminilidade seja encarada como algo a ser evitado, escondido ou mesmo invisibilizado em seus corpos e em seu comportamento.
No que se refere ao menino afeminado, este enfrenta desde muito cedo uma “guerra” (Cornejo, 2011b), que a ele é instituída só por conta de sua feminilidade. Infere-se que essa guerra contra a feminilidade se estende até sua vida adulta, uma vez que muitos gays tentam negar o feminino em seus corpos, e por mais que tenham características femininas (reconhecida por eles próprios), eles não se consideram seres femininos, pois isso vai contra as características da masculinidade hegemônica. Outro ponto importante é a identificação de que ser um menino afeminado não tem relação com a orientação sexual ou com a identidade de gênero desses sujeitos. Isso significa que um menino feminino, quando chegar à vida adulta, não necessariamente será um adulto gay, embora ao mesmo tempo se identifique como masculino ou feminino.
Considera-se que para a sociedade os meninos afeminados, que não se identificam com o universo heteromasculino, não estão em conformidade com o que se espera da identidade de gênero porque não correspondem ao papel estereotipado de gênero masculino. Sugere-se, em termos de estudos futuros, pesquisas que buscam evidenciar como a afeminofobia ocorre em diversas instituições, como por exemplo, a família, a escola e o ambiente de trabalho. Outra sugestão consiste em criar um diálogo mais profundo entre a afeminofobia praticada pela própria população LGBTQ+ com os seus pares e quais seus possíveis impactos sociais e psicológicos na vida de gays e meninos afeminados.
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