Conto
Esse seu olhar quando encontra o meu

Interessante como temos essa estranha capacidade de considerarmos que esse ou aquele alguém pensa ou pensou isso ou aquilo a respeito de nós. Devia ser assim que se dava com ela em relação a ele, e vice-versa. Ela estava pensando justamente nisso naquele exato momento. E portanto evitava encontrar o seu olhar com o dele. E sabia que ele também fazia o mesmo. E havia uma grande dificuldade em tal evitação ocorrer, devido ao ângulo formando os seus olhares se ambos se concentrassem em um ponto equidistante entre si, o qual era nada mais nada menos do que a professora que andava de um lado para o outro da sala em uma linha longitudinal que ultrapassava ambos os limites de seus olhares, tanto à esquerda quanto à direita. Em suma, não havia como evitar que seus olhares - a não ser contrariando a física - se encontrassem vez ou outra.
Para não darem o braço a torcer, ambos buscavam, com imenso e inútil esforço, no momento em que o movimento pendular da mestra os obrigava fixar tão-somente nela os seus respectivos olhares congruentes. Era um mal-estar para lá de civilizatório, coisa psíquica mesmo. Cansava a vista e muito mais a mente. Para disfarçarem e também descansarem da incômoda situação, vez ou outra, um ou outro buscava, a pretexto, da forma mais injustificada e frágil possível, através de um comentário destituído de qualquer procedência lógica, distrair a atenção com algum colega da frente, da retaguarda ou dos flancos. Fazer isso uma vez ou duas pode ser algo de somenos importância, mas imagine fazê-lo no decorrer de três horas durante três vezes semanais em quatro meses. E o pior é que não podiam mudar o ângulo entre seus olhares, a não ser, como vimos, pela circunstância de acompanharem os
movimentos quase que praticamente retilíneos da trajetória da mestra. Por outro lado, não podiam modificar esse ângulo, não porque alguma lei física ou mesmo social a isso determinasse, não, mas pelo simples fato de que os lugares eram cativos durante todo um período letivo. Assim, para que houvesse mudanças de ângulos de olhares de uns para outros alunos, somente com a mudança do período letivo.
No semestre passado, por exemplo, não houve a menor possibilidade de que seus olhares se encontrassem, isso porque formavam um ângulo de 180 graus e, ademais, na distância entre eles se encontravam vários outros alunos. O máximo que conseguiam era ver os pés um do outro, quando um não confundia - e houve disso - os pés do outro com os do vizinho ou da vizinha. Naquele período, encontros seus de olhares dentro daquele pequeno retângulo, que era a sala de aula, somente se um ou outro fosse chamado pela professora a expor algo na frente ou quando da entrada em sala de aula - nunca na saída, pois nesta, um, sempre ela, ficava de costas para o outro. Como a professora daquele período, que era outra, uma que dificilmente se movimentava e tinha o indefectível vezo de ficar sentada em seu devido lugar quase que do início até o fim da aula, nunca chamou nem ele nem ela para irem à frente, tendo chamado uns poucos outros alunos apenas, não mais que cinco, num grupo de 26 ou 27 iniciais, que, com o decorrer do período, aumentava ou diminuía, de modo que seus olhares nunca se encontraram durante todos aqueles quatro meses do período do semestre anterior. Nesse semestre se dava justamente o contrário, não havia como eles não se encontrarem em seus olhares, a não ser que um ou outro faltasse, por um motivo qualquer, doença, morte ou coisa que o valha. Faltar qualquer aula era sinônimo de querer ser reprovado, dado ao conteúdo que se perdia, o qual seria praticamente impossível de ser recuperado. Havia também a acirrada competição que obrigatoriamente se dava entre alunos, motivada pelo fato de que somente, e apenas somente, dois dali sobreviveriam, ou seja, seriam aprovados para o concurso que ali buscavam ter sucesso ao cabo dos próximos meses.
E se por uma dessas não raras coincidências e artimanhas do destino fossem justamente eles dois? Era desejo de ambos, em suas respectivas introspecções, que destino de tão feliz coincidência, pelo desígnio de a ambos aprovar, não mais os colocasse no inusitado ângulo de 180 graus do período passado, também não os colocasse no não menos inusitado ângulo de 45 graus desse período. Com essa professora, que se movimentava e falava sem parar, não havia como descansar seus respectivos olhares, a não ser que ela descrevesse movimentos fora do plano horizontal ou os alunos estivessem em um plano inclinado. Para tanto seria necessário que a professora estivesse numa rampa e os alunos em um plano linear ou vice-versa. Isso era muita maluquice, mas foi o cúmulo a que chegou o pensamento de um dos dois como uma tentativa de fuga àquela intransigência do destino sobre os seus olhares. Na hora da saída, ao contrário do período passado, era então mais inevitável e constrangedor ainda, impossível mesmo, não haver a troca indisfarçável de olhares. Somente lá fora, no turbilhão da multidão ignara, estavam a salvo, porque mesmo dentro do elevador, que todos eram obrigados a tomar, já que nenhum dos dois - e ninguém de modo geral - queria a si passar recibo de irracional por descer 86 andares a pé, a troca de olhares era ainda mais inevitável, a não ser que um ou outro retardasse em muito a sua chegada ao elevador, o que nenhum dos dois fazia porque, como já dissemos, um não queria dar ao outro o braço a torcer.
Entrar na sala de aula com aquele par de tapadores de visão, semelhante aos colocados nos burros e outros animais de carga para não se desviarem de sua trajetória obrigada por seus respectivos possuidores, isso seria uma solução e ao mesmo tempo um problema, já que resolveria a aflitiva situação de ambos, mesmo que um só a utilizasse, mas seria o cúmulo do bizarro; o que iria pensar o restante das pessoas? A professora pernóstica e indiscreta, iria iniludivelmente perguntar o porquê daquilo. Por muitos menos ela se metia na intimidade de um ou outro de seus alunos, não sendo para tanto mister um fato tão exótico que ativasse a sua curiosidade para lá de feminina. A não ser que um ou outro simulasse um acidente consigo e solicitasse - junto a um médico, enfermeiro ou alguma outra pessoa que soubesse fazer isso com certa perícia - a colocação de uma espécie de enfaixamento que se costumam providenciar em pessoas que levam alguma pancada na cabeça, sobretudo tratando-se de traumatismo craniano.
Nesse caso, tal enfaixamento - nem sei se é esse mesmo o termo médico - deveria ter uma tala tal que isolasse, que tornasse opaco, dizendo mais claro, que se interpusesse entre os dois olhares, como uma parede que se coloca para separar os cômodos. No entanto, para não chamar por demais a atenção (não mais que o estritamente necessário, senão não compensaria o sacrifício) - é claro que no primeiro dia isso seria alvo de todos os comentários, maliciosos ou não - , essa situação não poderia durar mais que um certo tempo, o suficiente para ser crível a todos que um ou outro foi vítima de uma não tão grave contusão - porque se o fosse nem mesmo se poderia justificar ali a sua presença, seu lugar mais apropriado seria numa dessas UTIs da vida, ou mesmo, o que não sabemos se pior ou melhor, em uma autópsia craniana, encefálica, sei lá -, justificada por uma premeditada e coerente explicação que teria que ter uma sólida base na medicina, o que seria preciso deixar por um instante os seus estudos filosóficos e aprender alguns ensinamentos neurológicos com o escopo de aplicar tal explicação segundo parâmetros científicos.
Seria por demais pouco convincente um ou outro dizer para os colegas e à mestra que por causa de uma dessas insuportáveis dores de cabeça, de motivo ainda desconhecido à medicina, que trata de descobrir o porquê dela, teve que colocar todo aquele aparato, semelhante àqueles a que advêm a alguém que no candomblé ou na umbanda - não sei bem -está em rito de passagem para tornar-se filho de santo. Também não seria de bom senso inventar doenças graves, como câncer no cérebro, AIDS etc.; isso só serviria para agravar ainda mais o problema, despertaria piedade, retraimento preconceitos, etc. por parte das pessoas. E depois, como justificar que o câncer ou a AIDS teve cura ao fim do período letivo? Inventando a desculpa que foi graças a um desses centros milagreiros que algumas seitas dispõem para fazer mais e mais clientes, quero dizer, mais e mais fiéis? E não pararia a dificuldade por aí. Como é que um ou outro justificaria perante todos o uso da tala que justamente serviria para, entre outras funções não justificáveis coerentemente, isolar, como se faz em casos de eletricidade para evitar curtos-circuitos, a troca de olhares entre ambos? O que não se utilizasse de toda uma artificial forma de proteger o seu olhar logo iria pensar em relação ao outro que este pretenderia, simplesmente, com toda essa parafernália, evitar o seu olhar. Não obstante, ficaria em sua indefectível discrição referente aos demais, ou seja, somente ele saberia o motivo real e isso morreria consigo. Essa tentativa vã de um proteger-se dos olhares do outro foi uma das muitas tentativas a que os dois chegaram após muito monologarem consigo mesmo, mormente no acolhimento de seus respectivos lares. As outras, por serem nimiamente estapafúrdias, nem vale a pena aqui serem mencionadas, mesmo porque haveria quem nelas não acreditasse e gastaria ainda mais papel e tinta do que o até aqui gasto; seria por demais inútil, botemos nisso uma pedra. O jeito foi mesmo encarar a situação de frente, quero dizer, evitar artifícios inócuos e deixar os olhares fluírem da maneira que o destino assim estabelecera que deveria ser.