Resumo: Neste trabalho, o interesse é analisar a trajetória intelectual de Abílio César Borges, pensando-a em sua relação com o contexto educacional brasileiro do Segundo Reinado. Ora associado ao vaidoso diretor Aristarco de Raul Pompeia em O Ateneu, ora elevado a grande inovador incompreendido por estudiosos, a figura de Borges vem sendo destacada do movimento de debates políticos e intelectuais de sua época. Aqui, ao apresentar as relações construídas por Borges, realça-se sua presença em uma discussão comum. As inovações por ele propostas teriam um mesmo referencial, aqui chamado de ‘repertório pedagógico’. Espera-se, com isso, ressaltar seus lances na esfera pedagógica como parte de um jogo político que tinha seu centro na educação.
Palavras-chave: Abílio César BorgesAbílio César Borges,Segundo ReinadoSegundo Reinado,políticapolítica.
Abstract: The analysis of Abílio César Borges trajectory proposed here intends to relate his intellectual trajectory to educational context at the time of Dom Pedro II’s reign in Brazil. Sometimes associated with the uppish figure of Aristarco by Raul Pompeia on his novel O Ateneu, sometimes thought as a misunderstood innovator, Borges has been studied as a participant of the intellectual and political debates running that time. The main intention of this paper, underlining Borges relationships with different actors, is to allocate his presence on a common political debate. The innovations proposed and operated by him were built, we argue, based on a pedagogical referential here called as ‘pedagogical repertoire’, whose results were also political.
Keywordss: Abílio César Borges, Brazilian Second Reign, politics.
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo analizar la trayectoria intelectual de Abílio César Borges, relacionándola al contexto educacional brasileño del Segundo Reinado. Ora asociado al vanidoso director Aristarco de Raul Pompeia n’ O Ateneu, ora elevado a gran innovador incomprendido por estudiosos, la figura de Borges viene siendo destacada del movimiento de debates políticos e intelectuales de su época. Aquí, al presentar las relaciones construidas por Borges, se destaca su presencia en una discusión común. Las innovaciones propuestas por él partirían, pues, de un mismo referencial, aquí llamado de ‘repertorio pedagógico’. Se espera, por tanto, resaltar sus movimientos en la esfera pedagógica como parte de un juego político que tenía su centro en la educación.
Palabras clave: Abílio César Borges, Segundo Reinado, política.
ARTIGOS
A educação como horizonte político no Segundo Reinado: notas sobre a trajetória e a atuação de Abílio César Borges
Education as a political horizon in the Second Reign: notes on the trajectory and the performance of Abílio César Borges
La educación como horizonte político en el Segundo Reinado: notas sobre la trayectoria y la actuación de Abílio César Borges
Recepção: 24 Fevereiro 2016
Aprovação: 07 Março 2017
Monarquista, liberal, abolicionista, educador: vários foram os adjetivos conferidos a Abílio César Borges, o barão de Macaúbas, tanto em vida quanto depois de sua morte em 1891. Nascido em 1824 no interior da província da Bahia, Borges fez-se doutor em medicina pela faculdade do Rio de Janeiro, mas teve sua trajetória marcada pela atuação no campo da educação. No Rio, fundou seu prestigiado Colégio Abílio em 1871 e outro em 1882, em Barbacena. Antes, porém, fez carreira em sua província natal: foi diretor geral dos estudos entre 1856 e 1857, além de fundador e diretor, em 1858, do também afamado Ginásio Baiano, cuja alcunha ‘ninho de águias’ foi-lhe imputada porque nele se formaram grandes oradores, como Rui Barbosa, e poetas, como Antonio de Castro Alves.
Ainda que textos de biógrafos1 e mesmo de sua própria autoria2 realcem seu distanciamento da máquina burocrática imperial - que, no campo da educação, das artes e das coisas do espírito, tinha no ‘bolsinho do imperador’ uma enorme fonte de incentivo material e simbólico -, o diretor de tão famosos colégios teceu com cuidado relações com nomes de prestígio do Segundo Reinado desde os tempos de estudante. Ainda na Faculdade de Medicina da Bahia, onde iniciou seus estudos em 1841, fundou em 1845 o Instituto Literário da Bahia, responsável pelo jornal O Crepúsculo, onde ensaiava textos na área de letras, de educação moral da juventude e inclusive esboços históricos. Teria sido justamente um texto seu sobre a mineração na região sul da chapada Diamantina, região onde nasceu, que lhe teria valido o ingresso, como sócio, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, em 1847.
Seu regresso à província, depois de finalizar o curso de medicina na capital do Império, teria coroado seu acesso a tais redes prestigiosas em razão de seu ingresso, via matrimônio, na família Wanderley. Borges casou-se no ano de 1850 com Francisca Antônia Wanderley, uma sobrinha de João Maurício Wanderley, na vila de Barra, interior da província. Lá, iniciou carreira na política e na educação, além de ter atuado brevemente como médico. João Maurício, à época deputado geral, seria feito senador do Império em 1856 e, em seguida, no ano de 1860, barão (com grandeza) de Cotegipe3. Vê-se, portanto, que Borges não estava tão isolado no que se refere ao seu ingresso em redes políticas de prestígio (Souza, 2015). Há de se destacar que, mesmo que ele privilegiasse sua ação na esfera da educação desde 1856, quando assumiu a direção da pasta de instrução pública da Bahia, no Brasil imperial, a sobreposição entre os campos intelectual - incluindo a educação - e político era regra (Alonso, 2002; Carvalho, 2007). Como bem chamou atenção Maria Alice Carvalho (2007, p. 19, grifo do autor), “[...] a monarquia brasileira ‘conferiu dimensão política à atividade intelectual’”.
O pressuposto neste trabalho é de que a atuação na esfera educacional ou ‘pedagógica’ era, também, uma forma de atuação intelectual e política no Segundo Reinado. Não se pretende, com isso, generalizar toda e qualquer atuação nesse campo à esfera de ação intelectual. No entanto, é preciso marcar, na trajetória de Borges, alguns lances que, por meio de sua intervenção pedagógica, tinham efeitos tanto na esfera intelectual quanto na política. Assim, a própria fundação de instituições privadas de ensino secundário, como as de Borges, as quais manejavam um ‘repertório pedagógico’4 comum, mas que sobre ele avançavam, ao propor inovações nos métodos de ensino, no currículo e na formação moral e física dos alunos, é um ponto a se destacar.
Borges foi autor de compêndios didáticos, cujo maior diferencial era que sua organização estava voltada para as crianças, sendo escritos em uma linguagem que lhes fosse acessível. Seus livros de leitura - cinco, no total, sem contar outras obras de tradução e adaptação de contos, de outras obras literárias e de manuais didáticos de matérias como geometria e geografia, além de compêndios para o ensino de leitura a trabalhadores e analfabetos - eram não só organizados e usados em seus colégios como também distribuídos gratuitamente pelo país. Acredita-se que em torno de quatrocentos mil exemplares das obras de Borges tenham circulado entre o final do século XIX e o início do XX no Brasil (Alves, 1936). A poetisa Cora Coralina, por exemplo, era só elogios aos livros de leitura do barão de Macaúbas, os quais lhe pareciam uma das partes boas de suas aulas primárias nos anos 1890 (Valdez, 2006); já Graciliano Ramos, estranhava-os um bocado, posto que a linguagem adotada pelo barão em seus livros parecia muito pouco compreensível a uma criança, como relata em capítulo específico sobre o ‘Barão de Macaúbas’ no livro Infância (Ramos, 1981).
Ainda em seus colégios e também fora deles, sua atuação contra o uso da palmatória e de outros castigos físicos era marcante. Em 1880, Borges chegou a publicar um livro em que compilava seus textos contrários a tais castigos: “A férula, em vez de auxílio, é antes um obstáculo ao seu [da criança] desenvolvimento [intelectual]” (Borges, 1880 p. 6). Perguntava ele: “E que pode ser esperado de alunos que detestam os mestres e têm horror à escola?” (apud Alves, 1936, p. 63). Da mesma forma, sua atuação pedagógica tinha como uma de suas esferas o ativismo político: os saraus cívicos em homenagem às datas pátrias do 7 de setembro e do 2 de julho - independência do Brasil e da Bahia, respectivamente - serviam também como oportunidade de divulgação de textos dos alunos, como Castro Alves, que ali ensaiava escritos críticos à escravidão. Segundo Alonso (2015), Borges fazia desses momentos uma importante plataforma política pela campanha abolicionista, da qual ele fez parte como pioneiro ainda nos anos 1850.
O texto será desenvolvido em três momentos. No primeiro, explora-se a formação intelectual de Borges, articulando-a à construção de suas redes e sua futura inserção em meios políticos de destaque no Segundo Reinado. No segundo, explora-se como as relações da Bahia à Corte imperial foram construídas, tendo em vista a centralidade de sua atuação no campo da educação naquele momento. Por fim, mostram-se, na trajetória de Borges, importantes lances políticos em sua atuação educacional, os quais sugerem que é acertado pensá-lo não apenas como um ‘pensador’ da educação, mas também como um intelectual de destaque no período.
Ainda que pouco se saiba sobre os pais de Borges, acredita-se que a família tinha posses, já que o levou à escola primária em sua cidade natal, Rio de Contas, e financiou seus estudos preparatórios no Colégio Conceição, localizado em Salvador, em 1838 (Valdez, 2006). Aprovado para ingresso na faculdade de Medicina da Bahia em 1840, ele optou por iniciar seus estudos no ano seguinte. Uma vez aluno da faculdade, não apenas fez parte de associações literárias e políticas, como também auxiliou na criação de algumas.
Como redator do jornal O Crepúsculo, resultado dessa participação para além da sala de aula, Borges divulgava suas ideias sobre literatura: em uma das edições, imprimiu a resposta de Almeida Garret a uma carta sua, na qual o poeta português se mostrava contente por Borges ter-se lembrado dele no jornal. Já no Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1846 a fim de encerrar seus estudos de medicina, atuou, juntamente com o primeiro Visconde de Caravellas5 e Manoel de Araújo Porto Alegre6, da ‘Sociedade Philomática’ (Alves, 1924), na qual ocupou o posto de primeiro secretário. Foi ainda autor de textos de ciências e letras divulgados em jornais da Corte, como o Jornal do Commércio, Archivo Médico Brasileiro e Auxiliador da Indústria Nacional. Depois de ingressar no IHGB em dezembro de 1847, por conta de seu texto Memória sobre a mineração na Província da Bahia, também se filiou à ‘Imperial Sociedade Amante da Instrução’ e ao ‘Conservatório Dramático Brasileiro’7 (Alves, 1936, p. 18-19). De volta à Bahia, participou, desde 1860, como sócio correspondente da associação abolicionista internacional Anti-Slavery de Londres e também da ‘Sociedade Libertadora Sete de Setembro’, atuando como um de seus fundadores. Além disso, foi responsável por um jornal chamado O Abolicionista (Alonso, 2015).
Tais informações realçam a presença de Borges nos grupos de elite, local e nacional, os quais atuavam não apenas na província, mas também na capital do Império. Sua rede de relações era típica dos membros da chamada ‘boa sociedade’ imperial. Sua presença nas associações citadas sugere que tinha afinidade com as ideias, tão caras à monarquia, de civilização nos trópicos, do imaginário nacional unitário e da formação hierarquizada dos cidadãos, pontos basilares da narrativa proposta em espaços como o IHGB. É nesse sentido que o campo da educação ganha centralidade, uma vez que, no período, educar e instruir apareciam como sinônimos: buscava-se formar as crianças para que reconhecessem na língua comum, em símbolos compartilhados e na particular geografia do Império uma identidade que também era delas. Tal seria a função do ensino primário. O ensino secundário complementaria a formação dos jovens filhos das elites, os quais seriam socializados por meio de um repertório civilizado baseado na história, em línguas estrangeiras, na oratória e na retórica (Mattos, 1987). A finalidade era o ingresso na burocracia imperial como coroamento da formação nas faculdades imperiais (Carvalho, 2003). Formatada pelo estado, a atividade intelectual nos anos da monarquia tinha como fundamento uma concepção marcadamente política, destaca Carvalho (2007).
É nesse diapasão que se questiona a excepcionalidade da figura de Borges no campo da educação: tivera ele sorte? Apesar das adversidades e do desprestígio da atuação educacional nos anos do Império, ele conseguiu fazer de si um grande educador, um pedagogo de destaque como nenhum outro à época, como aponta seu biógrafo Isaías Alves (1924, 1936). Os dados a respeito de sua rede intelectual e política parecem sugerir, pelo contrário, que ele conhecia o papel central das discussões sobre educação no período. Reconhecendo a relevância desse repertório, soube manejá-lo bem, usando-o a seu favor quando atuou como fundador e diretor de colégios e também como autor de livros didáticos no Segundo Reinado.
Em 1856, ao ocupar o cargo de diretor da pasta de instrução provincial, Borges viu ser coroada a trajetória que vinha construindo entre grandes nomes da política. O próprio Isaias Alves reconhece que tais relações, cujo ápice político decorrera do matrimônio com a sobrinha de João Maurício Wanderley, teriam facilitado a construção de seu trabalho e de parte de sua fama como educador. O convite para assumir a pasta de instrução teria sido feito diretamente pelo futuro barão de Cotegipe em nome de Álvaro Tibério de Moncorvo e Lima, presidente da província em 1856 e que também fora vice de Wanderley em seus tempos de presidente da Bahia entre 1852 e 1855. Um mês e dois dias depois de assumir a direção da pasta, Borges apresentou um relatório bastante amplo sobre a situação da instrução na Bahia. Além de elencar problemas que identificara, ele apresentava suas ideias para a melhoria daquela conjuntura (Alves, 1924)8.
Teriam sido justamente as posições listadas naquele relatório que lhe teriam valido um grande número de reclamações, já que ele se colocara contrariamente a alguns métodos de ensino e às formas de educação da mocidade praticadas por alguns docentes. Ele sugeria punições para aqueles que não cumpriam os afazeres do cargo, como, por exemplo, dormir enquanto os alunos ficavam sob supervisão de outros, já que a sala de aula costumava ser localizada na própria casa do professor. Por isso, propôs que fossem construídos prédios exclusivos para as instituições de ensino. Como sua boa organização dependeria da moralidade e do pulso do responsável, sugeriu que se fizesse uma avaliação moral dos candidatos ao cargo e também a reavaliação daqueles que já ocupavam o magistério. Além disso, sugeriu uma fiscalização mais detida das atividades docentes, de forma a se evitar abusos na formação dos meninos e desvios dos responsáveis pela função (Alves, 1924)9. Em diversos momentos, propôs soluções que incluíam melhor remuneração ao professorado e divulgação gratuita aos docentes de livros considerados relevantes para o ensino.
Ainda assim, como diretor da inspetoria de instrução da Bahia10, resultado de seu ‘espírito renovador’, foi criticado por suas ‘práticas liberais’. Em 1858, fundara seu segundo colégio11, o Ginásio Baiano, em parte como resultado da tensão criada em sua atuação na burocracia provincial. Desde então e segundo ele próprio, sua predileção foi a esfera da educação na iniciativa privada. Sua tomada explícita de posição quando diretor da instrução entre 1856 e 1857 criara diversos complicadores para sua atuação institucional. A subida dos liberais ao poder em 1857 - Borges construíra relações com grupos ligados ao partido conservador -, somada a um desentendimento com um professor do Liceu provincial e à desautorização da medida pelo presidente da província, teria feito Borges solicitar sua exoneração do cargo. A atuação ‘política’ na área de educação causaria desconfortos e críticas mais acirradas àqueles que se colocassem à frente de empreendimentos nessa área, como destacou Bomeny (2001) em estudo sobre educadores nos anos 1910-1920 no Brasil.
Em 1858, uma vez fundado o Ginásio Baiano, situado em chácara fora da cidade, na região do Barbalho, Borges pôde pôr em prática suas ideias. Mudado no ano seguinte para um novo prédio com amplas janelas e boa ventilação na região do Barris, que começava a ser ocupada por membros das camadas dominantes da sociedade soteropolitana, seu colégio logo recebeu vários alunos: foram mais de trezentos, originários de diversas partes da província, incluindo sua região natal (Teixeira, 2000b). Um ponto interessante pode ser levantado: qual a aposta dos familiares, todos, aliás, membros das camadas superiores da sociedade da época12, ao deixar, nos anos finais da década de 1850 na Bahia, a formação de seus filhos sob a supervisão de Borges, abolicionista já nos idos de 1858?
Sugere Alonso (2002), em seu estudo sobre a geração de 1870 no Brasil, que, nas relações entre professores e alunos, pode ter havido mediações importantes no que se refere ao potencial de mobilização política dos mais jovens. A autora desenvolve seu argumento com base na atuação de Borges, por ela considerado um broker da mobilização abolicionista nacional por fazer das festas cívicas nas datas magnas comemoradas no Ginásio Baiano uma plataforma de divulgação da causa entre a boa sociedade baiana. “A grandiloquência romântica, Borges intuiu, tinha poder mobilizador. Alocou professores e estudantes do Ginásio Baiano neste serviço”, argumenta Alonso (2015, p. 41)13. De fato, o ginásio contava com alguns docentes afinados com a causa abolicionista, como Luiz Álvares dos Santos. Também alunos aderiram à causa: além dos famosos Rui Barbosa e Castro Alves; Sátiro de Oliveira Dias, depois ele próprio docente do ginásio e presidente do Ceará quando da abolição da escravidão naquela província em 1884; Antônio Alves Carvalhal, poeta amigo de Castro Alves; Guilherme Studart, fundador do ‘Centro Abolicionista 25 de Dezembro’ no Ceará em 1883; Manoel José Menezes Prado, presidente do Piauí em 1886; Martinho de Freitas Vieira de Melo, deputado geral em 1870; dentre outros (Souza, 2015) que também se fizeram abolicionistas14.
O que se quer aqui, pois, é relativizar o peso normativo que a categoria ‘socialização’ traz à análise de formações do tipo escolar em prol de outra que tome como aspecto central as experiências dos alunos diante das situações em que se inseriam. Por um lado, a categoria ‘geração’ de Mannheim (1993) parece interessante porque permite pensar, por exemplo, que os grupos intelectuais - como o de Abílio Borges e de outros personagens que atuaram na área da educação15 - formariam uma camada, cujos representantes poderiam ter origens diversas, surgir de diferentes classes ou camadas sociais, uma vez que a experiência geracional comum ganharia maior relevância na argumentação. Aspectos de renovação social ganhariam força, portanto, pela chave geracional. Ainda que a renovação de pessoas não signifique automaticamente a renovação das ideias, alguns aspectos da mudança social poderiam ser ilustrados pela relação entre gerações, como no caso da atuação abolicionista nos saraus e outeiros em instituições como o Ginásio Baiano. Essas mudanças, ou ‘fraturas sociais’, efetivariam a geração, já que a perspectiva de mundo da ‘nova’ geração seria diversa daquela a precedeu - no caso, a de seus pais e de outros membros das elites baianas.
Centrais neste argumento são as experiências comuns vivenciadas no mesmo espaço escolar: como também aponta Mannheim, aspectos de renovação ou de tradição não são necessariamente sinônimos de gerações jovens e velhas. Daí uma ênfase menor na consideração de que a juventude teria potencial de renovação, pois isto dependeria das perspectivas, dos horizontes de expectativas dos grupos sobre sua posição social. A questão geracional se tornaria relevante e apareceria como tal para seus membros a partir do momento em que estes percebessem enfrentamentos contra si por parte daqueles grupos ‘mais velhos’ (ou já estabelecidos). Portanto, a ênfase incide menos na passagem histórica do tempo e mais em uma experiência compartilhada (Mannheim, 1993). Os anos 1870, assim, seriam o auge daquela geração que, ademais, se reconhecera como tal16. Portadora de uma diversidade de símbolos identificados à modernidade, dentre eles a ideia de república, a geração de 1870 brasileira, confrontada com a tradição imperial, fez uso dela e incorporou, seletivamente, algumas perspectivas intelectuais tanto dessa tradição quanto de outras ‘mais modernas’ em voga na Europa, dotando-as de novos significados (Alonso, 2002). A atuação liberal de Borges no campo da educação17, por exemplo, mesmo estando ele institucionalmente mais próximo do lado conservador da política oficial, serve de exemplo.
O compartilhamento da mesma experiência e a adesão a símbolos comuns por parte de alguns dos alunos de Borges que, como ele, aderiam ao movimento abolicionista, tornam possível que se destaque, como argumento deste trabalho, a cultura como prática cotidiana - os saraus e outeiros poéticos seriam exemplo de sua confirmação18. Toda uma bibliografia disponível há algumas décadas no campo das ciências sociais já reconhece a relevância dessa observação19. Falta, porém, enfatizar tais matizes no campo dos estudos em educação, ainda centralizados nos debates sobre socialização com uma chave normalizadora e integracionista.
Assim, quer se enfatizar aqui que também a ação pedagógica de Borges sugeria leituras dissonantes do repertório imperial tradicional. Em seu Terceiro livro de leitura para uso da infância brasileira, publicado em 187020 e composto por temas diversos, desde gramática, geometria, geografia e pequenas historietas morais, ele também apresentava perfis de personagens históricos de destaque para a construção da história da nação brasileira. Dentre eles, estavam Gonçalves Dias, crítico da escravidão; José Bonifácio de Andrada e Silva (o velho), patriarca da independência e autor de projetos para o fim do tráfico de escravos; José da Silva Lisboa, o Visconde de Cayru, crítico da escravidão por motivos econômicos; Casemiro de Abreu, que denunciava em seus poemas a crueldade da escravidão, e Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, que era a favor do fim do tráfico, ainda que não necessariamente da escravidão (Borges, 1870). Em todos era realçado o papel patriótico em prol da unidade da nação brasileira, mas a eleição desses personagens (e ‘apenas’ desses) e não de outros é algo a se pensar21.
Se o ensino de história pátria foi peça fundamental no processo de construção identitária nacional (Guimarães, 1988; Mattos, 2000), cabe destacar que Borges promoveu adaptações importantes em seu conteúdo. Pensando a educação como forma de ação, ele oferecia símbolos e propunha estratégias didáticas que faziam daquele repertório comum um componente central das novas ações, e não um fim em si (Swidler, 1986). Lembre-se a crítica de Alonso: “[...] o repertório político-intelectual europeu funcionou como um conjunto de recursos intelectuais mobilizados conforme as necessidades dos agentes na luta política [...]”, uma vez que os membros daquela geração se pensavam como e se faziam atores políticos, ainda que por meios não institucionais (Alonso, 2002, p. 44).
No caso de Borges, envolto nas discussões de seu tempo e tendo como forma de ação o campo da educação, ele fazia um uso diferente do ‘repertório pedagógico’ comum, lançado pela monarquia no oficial Colégio Pedro II, e promovia inovações importantes sobre ele, apontando para uma dinâmica que não costuma ser observada em análises sobre o século XIX brasileiro nas áreas da instrução pública e privada (Souza, 2015). O conceito de repertório pedagógico toma de Ann Swidler a dinâmica da cultura como recurso dos agentes e seu sentido aparece no contexto em que estes se mobilizam. A ênfase ao aspecto pedagógico expressa o reconhecimento de que, no Segundo Reinado, havia uma discussão bastante ampla entre meios intelectualizados e elite quanto à organização do ensino secundário. A atuação governamental por meio do Colégio Pedro II e as variações locais, como a do Ginásio Baiano, sugerem dinamismo e usos variados de temas levantados para fins didáticos. Assim, “Borges, com todo seu jeitão de aristocrata-clássico promovendo saraus e outeiros literários, valorizava em seus alunos não só o gosto pela cultura ‘oficial’ mas potencializava, neles, via versos e poemas, temas em ascensão no debate público [...]”, a escravidão inclusive (Souza, 2015, p. 164, grifo do autor)22.
A análise da trajetória intelectual de Borges permite situá-lo, assim, em uma série de polêmicas com forte tom político.
“O povo brasileiro gosta muito de discursos […]”, atestava Silva Jardim, articulista político e propagandista da república que costumava atrair multidões para suas conferências (Mello, 2007, p. 52). O espaço público - as praças, os teatros, as ruas - ganhava cada vez mais amplitude política nos anos de crise da monarquia brasileira. O tal do gosto pelos discursos, notado por Silva Jardim, e o ‘dom’ da oratória entre políticos e grupos de letrados - que se organizavam em grupos, as ‘igrejinhas’ - ampliaram o alcance das ideias e das novas questões colocadas em pauta especialmente dos anos 1870 em diante. Nesse sentido, houve, pelo menos na Corte, uma politização de parte da sociedade, uma vez que os temas candentes se faziam públicos com maior facilidade23.
A educação, por sua vez, foi peça-chave dessa politização, servindo aos grupos em disputa como saída para os problemas por eles identificados no país. Tavares Bastos, arauto do liberalismo no Segundo Reinado, já dizia que “[...] emancipar e instruir é a forma dupla do mesmo pensamento político [...]”, associando a centralidade da discussão sobre a educação do povo à necessidade de manumissão escrava (Tavares Bastos, 1937, p. 240). Barros (1986), em seu estudo sobre ‘a ilustração brasileira’ naqueles anos 1870, faz referência frequente ao uso que os grupos em disputa na época faziam da educação: era comum a todos a crença de que somente uma reforma profunda no ensino, desde o curso de primeiras letras até o superior, geraria uma nova mentalidade capaz de elevar o país ao nível das novas ideias do século. A liberdade de pensamento, fomentadora de consciências críticas, viria com a frequência livre às aulas e com reformas profundas no sistema de ensino.
A pretensão aqui não é enquadrar Abílio César Borges como membro dessa geração de 1870, mas convém realçar a importância que as experiências geracionais, bem como o choque entre elas, tiveram naquele momento. Nesse sentido, obsevar que alguns dos egressos do Ginásio Baiano, que funcionou até o ano de 1870 em Salvador, tiveram atuação política abolicionista naqueles anos de ebulição das esferas intelectuais e políticas no Brasil parece ser um ponto relevante para a análise. Entende-se que a educação também era uma pauta central nas discussões daquele momento de crise e abertura institucional. Assim, este trabalho contrapõe-se ao que vem sendo realçado por uma parte da historiografia que toma, de forma um tanto apressada, das falas dos membros daquela geração a ideia de que a educação era apenas instrumento de um fazer que lhe seria precedente, o fazer político, e, por isso, seria apenas o resultado de um diagnóstico de problemas e crises.
Borges, nesse sentido, aproxima-se da representação do que seria um intelectual, que, segundo Said (2005) e Bobbio (1997), seria caracterizado pelo exercício de uma função pública, uma representação marcada pela articulação de mensagens, de pontos de vista e opiniões. Reconhecendo, como destaca Carvalho (2007, p. 18-19), a animação de “[...] uma incipiente opinião crítica [...]” entre os letrados, intelectuais que tinham em espaços institucionais financiados e incentivados pelo governo da monarquia uma de suas bases de legitimação, propõe-se uma abordagem de Borges que visa retirar da prática pedagógica a mera ‘instrumentalização’ de um fazer que lhe seria anterior - e também superior - ‘porque’ político. Pretende-se mostrar que, pelo contrário, as esferas se sobrepunham. Assim, os recursos pedagógicos ‘e’ intelectuais manejados por Borges em seus livros para a educação da infância brasileira ofereciam às crianças leituras que não necessariamente casavam com as dos livros que passavam pelo crivo do IHGB, como o Lições de história do Brasil de Joaquim Manoel de Macedo (Mattos, 2000). As ‘ideias em revoada’, pois, faziam-se práticas cotidianas e ganhavam sentidos plurais naquele mesmo contexto de transição política.
Nesse sentido, o ensino, como o de história proposto por Borges, cujos perfis biográficos eram, ao mesmo tempo, personagens centrais da monarquia e críticos do regime escravocrata, não seria fruto do acaso. A ampla divulgação de seu material pedagógico, por sua vez, fazia de sua proposta inovadora de ensino um repertório comum a outros personagens que não apenas os professores e alunos de seus colégios. Avesso à linguagem, segundo ele, excessivamente formal e abstrata dos materiais oferecidos ao ensino da mocidade brasileira, Borges recortava, de temas científicos, literários e históricos, questões que poderiam - e deveriam - ser ‘disciplinarizadas’, tornadas próprias ao ensino escolar: ele criava um ‘saber escolar’ apropriado à linguagem da infância, cuja especificidade de desenvolvimento enquanto ser humano era, aliás, recorrentemente destacada por ele.
Em seu livro A lei nova do ensino infantil, de 1883, Borges resumia suas ideias mais amadurecidas sobre a educação da mocidade. Logo no começo do livro, o recém-feito barão de Macaúbas24 realçava que as questões ali elencadas eram todas resultantes de suas experiências no ensino. Argumentava que o clima pesado existente na escola, onde predominava a violência física da palmatória e o distanciamento entre professores e alunos, em nada auxiliava as crianças a se instruir. Os livros, por sua vez, promoviam a mera memorização de temas, por sua vez incentivada pelo medo causado pela férula e pela imagem carrancuda do professor. Daí sua proposta em Lei nova. Não se deveria perder mais tempo com a busca de controle excessivo e com a cópia/repetição de temas que eram estranhos, ou mesmo áridos, à curiosidade infantil. Em vez disso, propunha que se recorresse às experiências das crianças, ao desenho como base para ensino de caligrafia e da escrita; ao ensino seriado, que percebia na infância um estágio particular de desenvolvimento humano; à educação corporal como estímulo ao exercício da mente; à observação das experiências cotidianas como mote de aprendizagem; ao professor como mediador, não como centro da experiência didática. Somente assim é que a escola primária poderia “[...] realizar a reforma gradual, posto que lenta, dos costumes; e preparar a mocidade de ambos os sexos, não só para desempenhar os deveres da vida pública e as tarefas da vida econômica se não também para saber desempenhar os deveres e a tarefa de pais e mães de família” (Borges, 1883, p. 29).
Novos meninos ‘e meninas’ para a mesma sociedade, como se depreende da leitura do trecho acima. As mudanças elencadas por Borges quanto ao método de ensino, porém, em muito pouco se comparavam a outras que ganhavam espaço na cena pública nos anos 187025. Em todas, a educação era alçada como campo de destaque na proposição de novos olhares, responsáveis por uma renovação intelectual, nos anos finais da monarquia.
Gondra argumenta que Borges foi ‘um dos intelectuais da pedagogia’ do Império do Brasil. Seu múltiplo pertencimento, enquanto médico, literato, autor, tradutor e adaptador de compêndios didáticos, reforçaria sua posição de intelectual, que seria um de seus atributos. Ao lembrar a emergência do termo ‘intelectual’ no caso Dreyfus, na França26, Gondra (2007) frisa que, desde então, seu sentido dá à atividade intelectual um prestígio adquirido em certo campo de ação como mote para intervenção no debate público. Assim, as relações construídas por Borges com os médicos com os quais se formara, com políticos de prestígio na província da Bahia e na Corte, com literatos nacionais e estrangeiros, com quem organizou ou participou de associações diversas e também com a rede abolicionista internacional, servindo, no Brasil, como pioneiro27 de formas de mobilização que já vinham se desenvolvendo no exterior, teriam lhe fornecido um repertório suficientemente vasto para, com sua posição de educador e, por isso mesmo, de intelectual, ativar tal variedade de temas no campo da educação - que foi sua área de atuação preferencial.
Como autor de compêndios didáticos, em uma linguagem que julgava mais próxima das crianças, sua atuação sugere versatilidade no manejo dos temas caros à ‘cultura escolar’28 do período: quem deveria frequentar as escolas; quais temas deveriam ser ensinados, especialmente no caso de língua portuguesa, história pátria e geografia do Império29 e também qual era o papel dos professores na educação da mocidade. Borges fez de tais conteúdos tópicos centrais em sua discussão pedagógica, usando como referenciais debates promovidos na esfera da política. Desse modo, dotava a discussão de forte sentido político, já que reconhecia tal campo como um espaço de disputas30. As redes nas quais ele se inseria, somadas à legitimidade que sua experiência didática parecia lhe oferecer, gabaritavam-no a promover, em conferências e exposições pedagógica31, novos olhares não apenas sobre a educação da mocidade, mas também sobre o próprio imaginário da monarquia brasileira.
Sobre a frequência às escolas, não apostava na obrigatoriedade do ensino. De sua perspectiva, faltaria esclarecer, no sentido de iluminar, educar, o que ele chamava de ‘opinião pública’ para apenas depois estender a educação a todos. Da mesma forma, o ensino secundário não deveria ser de livre acesso:
[...] compete pois à autoridade superior vedar, quando puder, que indivíduos que se devem naturalmente contentar com a instrução primária alcancem a média, e que os que com esta avancem à secundária, a qual principalmente deve ser o mais dificultada àqueles que, já pela classe a que pertencem, já por lhe falecerem talentos, não podem seguir as carreiras liberais e científicas (Borges, 1856, p. 28).
Ainda que concebesse, como Tavares Bastos, que o ‘batismo da instrução’ (nas palavras deste) poderia, em breve, levar à superação das desigualdades, Borges compartilhava do mesmo ideário que percebia e reconhecia posições sociais distintas na sociedade do Segundo Reinado.
Quanto ao conteúdo das matérias de ensino escolar, ele partia de um pressuposto básico: prática e teoria eram dois lados da mesma moeda. Se “[...] o magno problema [de Borges] é, pois, educar a infância [...]”, como apontara Alves (1936, p. 38), cabia reconhecer que os métodos de ensino utilizados até então eram inadequados, pois ineficientes em seu diálogo com a curiosidade infantil, distantes de sua experiência cotidiana porque excessivamente abstratos, conforme o próprio Borges destacara em sua A lei nova (Borges, 1883). Por um lado, a inovação por ele proposta se efetivaria com base em uma lógica, mas, por outro, seria compartilhada com a elite imperial: sua defesa de um sistema nacional de ensino partia do pressuposto de que, apenas assim, seria possível “[...] nacionalizar a Nação Brasileira, trazer-lhe essa unidade intelectual e moral que é a primeira condição de força e de grandeza, destruir essas mesquinhas rivalidades de mesquinho provincialismo, que tanto afrouxam os vínculos que devem ligar os brasileiros” (Borges, 1856, p. 11).
Já os docentes, deveriam possuir qualidades morais inabaláveis, além de sentimentos religiosos que lhes forneceriam moderação e humildade (Borges, 1856). Nesse quesito, Borges entrava em um vespeiro, pois esperava dos professores uma atividade menos autoritária e temerária, mas isso parecia a alguns contemporâneos uma desmoralização do docente diante dos alunos, o que inviabilizaria o trabalho pedagógico. De sua perspectiva, porém, a moderação presumida para alguém no cargo tinha como fundamento principal o reconhecimento das experiências dos alunos como mote para o processo de aprendizagem. Assim, ainda que seguindo estudos regulares, as indagações feitas pelos alunos é que deveriam guiar o modo como se trabalharia o conteúdo pelo docente responsável pela turma. Borges era ainda contrário à vitaliciedade no cargo, uma vez que mesmo o mais entusiasta do magistério encontraria percalços no caminho que o desanimariam. Limitada a vinte anos de atuação, três suspensões deveriam ser suficientes para a exoneração do docente (Borges, 1856).
Mello chama atenção para as vozes na rua nos anos 1880 no Rio de Janeiro. Ainda que tais vozes lhe pareçam múltiplas, algumas ecoavam mais do que outras; a composição dos grandiloquentes discursos fortemente retóricos típicos dos políticos e letrados brasileiros era, afinal, em grande medida, decorrente de uma formação educacional formal que incluía matérias como oratória e retórica desde o ensino secundário, complementando-se, na maioria dos casos, nas faculdades de direito. A conjuntura de crise política iniciada nos anos 1870 e a ampliação na formação de bacharéis por tais faculdades na mesma época, embora com menos chances de inserção socioprofissional após formados32, colocavam ‘nas ruas’ grupos intelectualizados que faziam de sua única arma disponível - a formação letrada - um instrumento de intervenção política. Tais grupos mostravam ser nada homogêneos: a seleção de ideias e o desenvolvimento de lógicas de intervenção política ‘com’ e ‘a partir’ delas atestavam tanto a variedade de origens dos grupos em disputa - formados pelas tradicionais academias de direito e medicina ou pelas ‘novas’ e mais abertas Academia Militar e Escola Politécnica no âmbito da Corte, sem contar as origens geográficas também plurais dos integrantes desses grupos - quanto sua pressão na dilatação de novas formas de expressão naquele momento de crítica e transição (Alonso, 2002). A educação, argumenta-se aqui, tornou-se uma dessas formas privilegiadas de expressão e intervenção pública.
O ‘amigo dos meninos’, como também era conhecido Borges desde seus tempos de diretor da instrução na Bahia, mostrava-se avesso aos métodos de ensino praticados em sala de aula. Era comum, até por sugestão governamental, o uso do método Lancaster de ensino, também conhecido como ensino mútuo. Nele, um único professor poderia ser responsável por um número grande de alunos uma vez que seria auxiliado por ‘monitores’, eles próprios selecionados entre os alunos pelos docentes para ajudá-los na tarefa educativa. Segundo Borges, isso dispersava as crianças, uma vez que a ênfase do método estava mais no controle sobre os meninos, separados em grupos e sempre vigiados por um monitor, do que em um interesse por sua aprendizagem. Por isso, Borges aderiu ao método intuitivo, com especial ênfase a um de seus aspectos, conhecido como ‘lição de coisas’. Seu mote era a valorização das experiências dos alunos, método que, segundo ele, partindo da curiosidade da criança, incentivaria a busca dos próprios alunos por novos conhecimentos. Na Lei nova, sua experiência e seu sucesso eram atestados, aparecendo também como sugestão de prática pedagógica. Como resumiu Alves (1936, p. 50), a Lei nova consistiria “[...] na exclusão absoluta dos castigos físicos, dos prêmios escolares, das lições teóricas de moral [...]” em prol do desenvolvimento do “[...] espírito de observação da criança [...]”.
Um corolário da aplicação do método intuitivo era alçar o aluno ao centro do processo educativo. Ainda segundo Alves (1936, p. 50), com sua metodologia de ensino, ele “[...] procura desenvolver o espírito de observação da criança [...]”; o autor cita Borges: “[...] não impõe aos meninos a obrigação de aprender: excita-lhes sim o amor à escola, tornando-a convidativa pela variedade, amenidade e utilidade do ensino”. Por isso, o ensino de ciências naturais, de desenho e de geografia era incentivado. Ao mesmo tempo, Borges promovia inovações curriculares, valorizando o ensino de disciplinas que não necessariamente eram tidas como fundamentais para a formação dos futuros membros da elite nacional, especialmente ciências naturais e desenho. Em suas palavras, em carta ao também professor do Ginásio Baiano Ernesto Carneiro de Brito: “Na revolução nova que projeto fazer no ensino da mocidade brasileira [...], há de caber muita parte ao cultivo das ciências naturais, dando-se a possível extensão do ensino dos fenômenos mais comuns da natureza, explicáveis pela física e pela química” (apud Alves, 1936, p. 52). Já o desenho valorizaria a ‘aptidão’ das crianças por criar formas que, adequadamente orientadas, poderiam levar à boa aprendizagem da escrita ‘pela imitação’, cria Borges.
O ensino de geografia merece atenção especial, pois Borges lhe direcionou também um olhar mais detido. A sessão de geografia do IHGB era basilar no instituto, junto com as de história e de etnologia. Em 1866, em sua primeira viagem para a Europa, o diretor do Ginásio Baiano teria voltado do velho continente com materiais para a montagem de um gabinete de física e de geografia. Em seu Terceiro livro de leitura, ele valoriza, logo nas primeiras páginas, o ensino de noções de geografia geral e do Brasil, destacando, neste caso, sua divisão política e eclesiástica (Borges, 1870). Também no Plano de estudos do Colégio Abílio da Corte para o ano de 1871, no programa para as aulas de geografia do primeiro ano, sugeria-se o ensino de “Noções muito gerais, dadas oralmente, ‘à vista da esfera terrestre’”, as quais, no ano seguinte, seriam complementadas pela observação de “cartas murais” (apud Valdez, 2006, p. 134-136). No terceiro ano, em tal observação, seriam privilegiados os estudos sobre a divisão política e eclesial do Brasil (apud Valdez, 2006, p. 135-136) - tal qual consta, aliás, em seu Livro de leitura de 1870.
Nesse sentido, como marcou Valdez (2006), a adoção do método intuitivo teria desenvolvido em Borges a percepção de que a criança precisa de atenção especial no processo de ensino porque aprende de forma diversa da dos adultos. Enquanto o padrão era tratar o menino como um pequeno adulto, forçando-o a práticas e responsabilidades análogas às dos mais velhos, Borges supunha, pautado tanto em suas experiências escolares quanto em leituras nos campos da pedagogia, da biologia e da psicologia estrangeiros33, que à criança caberia ofertar um ensino dosado, apropriado à sua idade e sua linguagem. O barão temia que um excesso de matérias gerasse desânimo e sobrecarga nas crianças, levando-as à exaustão mental e física34 - por isso, também, suas proposições por um ensino que valorizava os exercícios ginásticos.
Dessa forma, ele se mostrava atento à formação dos cidadãos do Império, ao mesmo tempo em que oferecia novas possibilidades de educá-los. Ao fazer da educação sua esfera privilegiada de ação, o barão de Macaúbas não só dinamizava uma série de debates educacionais nos anos finais do Segundo Reinado (Saviani, 2000), como também punha em cena, a partir deles, questões que eram fortemente políticas. Sua forma de ensinar geografia casava com aquela proposta pela monarquia, mas suas metodologias eram distintas. Seu olhar sobre a história também compartilhava da narrativa exemplar de figuras de destaque, mas os personagens por ele selecionados também eram ativistas de outras causas além da nação, como a questão da manumissão escrava. Os livros por ele escritos eram direcionados a públicos diferentes, mas com a finalidade comum de mostrar a importância da difusão da educação como um aspecto de renovação do conceito de cidadania. Logo, atuar no campo da educação parece ter feito de Borges muito mais que um educador.
Abílio César Borges foi uma figura que gerou opiniões controversas, especialmente após ser associado por Raul Pompéia ao vaidoso diretor Aristarco de O Ateneu. Ainda que Pompéia, ele próprio ex-aluno de Borges em seu Colégio Abílio do Rio entre 1873 e 1879, tenha escrito um texto post-mortem reconhecendo o papel pedagógico de Borges na formação da juventude de sua época35, a pecha de charlatão ainda lhe foi associada por longo tempo (Alves, 1936). Por sua vez, a retomada dos estudos sobre Borges, promovida por ocasião de seu centenário em 1924 pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, tendeu a sobrevalorizá-lo como alguém ‘incompreendido’. A ênfase na diferenciação de suas ações pedagógicas em contexto de pouca discussão sobre educação teria feito de suas propostas inovadoras apostas que tiveram pouca repercussão, pois restritas à esfera dos colégios por ele fundados.
Os textos de Gondra e Saviani valorizam, inversamente, a relação de Borges com o contexto em que se inseria. Promovido a ‘intelectual da educação’ e grande pedagogo, respectivamente, Borges tem nesses trabalhos suas ações pedagógicas reconhecidas. Gasparello e Villela, de maneira análoga, compreendem a atuação pedagógica de docentes-autores como um aspecto da formação identitária de uma categoria profissional específica naqueles últimos anos do século XIX: os professores. Compartilha-se neste trabalho que tudo isso - intelectual, pedagogo, professor -, Borges o foi. A proposta, porém, foi avançar sobre tal olhar, uma vez que os lances do barão tiveram claros efeitos políticos nos diversos momentos em que atuara no campo da educação, desde seus tempos como diretor de estudos até a fundação de seus colégios privados.
Neste trabalho, entendida a sobreposição das esferas intelectual e política no Império e tendo em vista os usos e as inovações pensadas por Borges a partir de um ‘repertório pedagógico’ comum, buscou-se destacar que os lances na esfera educacional tinham repercussões políticas. Assim, a escrita de livros didáticos, a renovação dos métodos de ensino, a ampliação dos conteúdos de matérias como história, tudo isso contribuía para a formação de um saber escolar e, ao mesmo tempo, gerava efeitos entre os alunos. Como se sugeriu, a relação intergeracional de professores e alunos pode ter tornado o espaço escolar uma esfera central de renovação intelectual.
O Dr. Abílio, portanto, pode ser tomado como um dos vários letrados que agitaram a cena pública do Segundo Reinado. “Não foi somente erudito [...]”, avaliava Alves (1936, p. 112). Talvez por ele ter atuado preferencialmente no campo da educação, tenham sido deixados de lado os aspectos políticos das discussões por ele promovidas. Tal qual um ‘intelectual’, ao participar de debates a partir do campo da educação, dinamizando-os, Borges exerceu funções públicas. Por tê-lo feito, o barão do interior da Bahia coloca, hoje, novas indagações às pesquisas sobre a dinâmica ‘política’ das ideias ‘pedagógicas’ no Segundo Reinado no Brasil.