ARTIGOS
O ensino de Química nos Ginásios de São Paulo - 1896/1909
The Teaching of Chemistry in the Gymnasiums of São Paulo - 1896/1909
La enseñanza de Química en las Escuelas Secundaria de São Paulo - 1896/1909
O ensino de Química nos Ginásios de São Paulo - 1896/1909
Revista Brasileira de História da Educação, vol. 17, núm. 2, pp. 83-106, 2017
Sociedade Brasileira de História da Educação
Recepção: 02 Fevereiro 2016
Aprovação: 24 Outubro 2016
Resumo: No final do século XIX, a disciplina Physica/Chimica foi incorporada ao currículo do ensino secundário das escolas paulistas em um processo marcado pela discussão sobre sua finalidade: a formação erudita ou a formação para a prática.Neste texto, será abordado o processo de organização dessa disciplina, com base na análise da legislação e dos manuais de ensino da época, bem como das escolhas realizadas no Ginásio de Campinas entre 1896 e 1909 a respeito do processo de construção dos laboratórios de ensino, da aquisição dos objetos de educação em Química e dos indícios das práticas pedagógicas presentes nas avaliações escolares. Demonstra-se que, no período considerado, predominou um ensino de Química teórico e enciclopédico. Inserindo-se no campo da História da Educação, espera-se que o texto seja uma contribuição para a compreensão das práticas escolares, especialmente na área de Ciências.
Palavras-chave: ensino de química, história do currículo, cultura material escolar.
Abstract: In the late nineteenth century, Physica/Chimica subject was incorporated into the secondary school curriculum of São Paulo schools in a process marked by discussion on its purpose: the classical training or the training to practice. This is a study on the process of organizing this subject from the analysis of legislation and textbooks. We also analyze the choices made in the Gymnasium of Campinas between 1896 and 1909, considering the process of construction of teaching laboratories, acquisition of objects for education in chemistry and the evidence of the practices present in the school assessments. With this text on the history of science education, we expect to contribute to the understanding of school practices and demonstrate that during this period prevailed a teaching of theoretical and encyclopaedic chemistry.
Keywords: chemistry teaching, curriculum history, school material culture.
Resumen: A finales del siglo XIX, la disciplina Physica/Chimica se incorporó en el currículo de la enseñanza secundaria de las escuelas de São Paulo, Brasil, en un proceso marcado por la discusión sobre su finalidad: la formación erudita o la formación a la práctica. En este texto será presentado un estudio sobre el proceso de organización de esta asignatura a partir del análisis de la legislación y de los manuales de enseñanza de la época. También se analizarán las decisiones tomadas en la Secundaria de Campinas, Brasil, entre 1896 y 1909, teniendo en cuenta el proceso de construcción de laboratorios de enseñanza, la adquisición de objetos de educación en Química y las evidencias de las prácticas pedagógicas presentes en las evaluaciones escolares. Insertado en el campo de la historia de la educación en ciencias, se espera, con este texto, contribuir con la comprensión de las prácticas escolares y demostrar que, en este período, predominó una enseñanza de Química teórica y enciclopédica.
Palabras clave: enseñanza de química, historia del currículo, cultura material escolar.
Introdução
Entre o final do século XIX e o início do século XX, os ginásios da Capital e de Campinas, no Estado de São Paulo, reorganizaram seus currículos e suas estruturas físicas com a finalidade de equiparação com o Ginásio Nacional do Rio de Janeiro. Nesse período, foi incorporada a disciplina de Physica/Chimica no ensino secundário paulista em um processo marcado por discussões sobre as finalidades da educação em ciências e pela escolha das práticas pedagógicas.
Neste artigo, o processo é analisado por meio de uma aproximação tanto com a cultura que prevalecia na sociedade quanto com as práticas que se desenvolveram na escola. Para tanto, considera-seque “[...] a disciplina escolar comporta não somente as práticas docentes, mas também as grandes finalidades que presidiram sua constituição”. Além disso, assume-se, por um lado,que a disciplina escolar é uma das formas de “[...] penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global” (Chervel, 1990, p. 184) e, por outro lado, que ela é parte da cultura escolar, sendo, portanto,constituída por
[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (Julia, 2001, p. 10).
Para o estudo da disciplina Physica/Chimica, foram investigados programas de ensino, materiais pedagógicos e indícios das práticas escolares, tendo como referência as dimensões que constituem a cultura escolar: as ideias dos especialistas, a legislação e a normatização da disciplina e as práticas cotidianas desenvolvidas nas instituições escolares (Escolano Benito, 2000).
A análise das ideias e da investigação da legislação sobre a educação foi realizada por meio da leitura crítica e do cruzamento das informações contidas em documentos em papel, tais como: a legislação, as avaliações e os livros de registro da escola.
Para o estudo dos espaços de educação em Química, foram utilizados como fontes os registros da construção dos espaços, os objetos de ensino (Meloni, 2011), os manuais de ensino e avaliações realizadas no período.
O estudo abrange desde a incorporação dessa disciplina aos currículos do ensino secundário das escolas paulistas até sua estruturação nas instituições escolares. Em correspondência, considerou-se o período entre meados da década de noventa do século XIX e a primeira década do século XX.
Escolheu-se como marco inicial o ano de 1896, quando ocorreram a equiparação do Ginásio de São Paulo e a criação do segundo ginásio do Estado de São Paulo - o Ginásio de Campinas - a partir do antigo Colégio Culto à Ciência.
Datam desse momento as primeiras iniciativas para organizar as disciplinas de Ciências da Natureza, a exemplo da incorporação de Physica/Chimica nos currículos, da construção dos espaços para o ensino prático e da aquisição de objetos pedagógicos específicos para essa área do conhecimento.
No Ginásio de Campinas, o processo se desenvolveu por aproximadamente cinco anos até sua equiparação com o Ginásio Nacional (Brasil, 1901b). Para essa análise, tomou-se como base a legislação e os livros de registros da escola.
O marco temporal final deste estudo é 1909. A justificativa é a disponibilidade de documentos, como manuais de ensino indicados na escola, objetos do seu acervo e avaliações escolares. Com base neles, foi possível uma aproximação com as práticas escolares de ensino de Química em um período próximo à organização da disciplina.
Os Ginásios de São Paulo
No final do século XIX, a ciência exercia um papel cada vez mais ativo na vida cotidiana das pessoas. Dentre as maravilhas proporcionadas pela eletricidade e pelas máquinas movidas com a queima do carvão estavam o conforto e as opções de entretenimento até então inimagináveis. Além de oferecer bens materiais identificados com maior qualidade de vida, a ciência estava associada à utopia da construção de um mundo mais civilizado, já que continha expressivos significados decorrentes de sua lógica de abordagem das questões relativas ao domínio da natureza e à compreensão da sociedade.
Dessa forma, a ciência se impunha de uma maneira quase irresistível. Grupos diferentes iam se moldando à nova fé: positivistas, liberais ou católicos reivindicavam a ciência para justificar suas ideias. Considerava-se que o homem culto e civilizado deveria ter uma formação científica para ser moderno e, assim, valorizava-se cada vez mais o conhecimento científico.
Nesse contexto, a necessidade de incorporação desse conhecimento ao currículo escolar desde a educação básica foi reconhecida de maneira quase unânime. Quase, porque a educação clássico-humanista tinha tradição na formação dos jovens e porque seus defensores não estavam dispostos a ceder o espaço sem resistência. Além disso, aqueles que defendiam o ensino das Ciências da Natureza não tinham acordo quanto aos objetivos a ser alcançados com essa formação.
O debate ocorria também em outras sociedades, mas, no Brasil, envolvia questões mais complexas, como a política educacional centralizadora promovida pelo sistema de equiparação ao Ginásio Nacional.
Tal política determinava que somente os egressos dos ginásios equiparados poderiam ingressar nas academias sem prestar exames suplementares. Para que os ginásios pudessem conseguir a equiparação, era necessário que as instituições organizassem os currículos e a estrutura física tal como na instituição da capital federal (Brasil, 1901a).
Isso tornava a discussão sobre a organização do currículo da educação secundária das escolas paulistas ainda mais complexa, pois, além de divergências entre concepções de formação distintas (Nadai, 1975), havia a limitação provocada pela legislação centralizadora. É nesse contexto que a disciplina Physica/Chimica foi incorporada e organizada no ensino secundário em São Paulo.
Os programas de ensino
Em 1898, o Ginásio Nacional indicou um programa de ensino que deveria ser provisório, mas permaneceu sem modificações até pelo menos 1912. Nesse programa, a cadeira de Physica/Chimica era oferecida no quinto e no sexto ano e incorporava um vasto conjunto de temas (Vechia & Lorenz, 1998).
No programa, as duas áreas das ciências eram tratadas de forma independente. O programa de Química estava dividido em 31 lições para o quinto ano e 11 lições para o sexto. No quinto, as oito primeiras lições tratavam de temas distantes da vida cotidiana. Com exceção da 5ª lição, que tinha como tema “[...] reacções chimicas - leis de Berthollet e de Malagutti - theoremas de Berthelot” (Vechia & Lorenz, 1998, p. 173) -, o estudo das transformações da matéria que envolve, por exemplo, os tipos de reações, a relação entre reações e energia e a estequiometria das reações, entre outros, foi quase totalmente ignorado.
Nessas primeiras lições, foram tratados temas como: definições de química, combinação e mistura, teoria atômica, notação química, classificação dos elementos e fórmulas, além de duas lições sobre os sais. Após essas oito lições iniciais. o programa prescrevia vinte e três lições de “[...] estudo chimico, analytico e descriptivo” (Vechia & Lorenz, 1998, p. 173-174),nas quais se ensinavam as composições e as propriedades dos elementos e das substâncias.
Embora, no programa, se propusessem muitas lições de Química descritiva, dava-se grande importância para as aulas práticas. As orientações para o desenvolvimento do programa indicavam que:
As lições de Physica e Chimica serão alternadas, terminando o estudo da Thermologia. As lições de chimica descritiva serão acompanhadas de trabalhos práticos de laboratório, ensaios systematisados de analyse por via humida e pyrognostica (Vechia & Lorenz, 1998, p. 177).
No sexto ano, o curso foi dedicado às substâncias orgânicas. Eram previstas onze lições, das quais dez se referiam ao tema “Estudo geral da [...]” , o que sugeria uma abordagem teórica e descritiva das substâncias. Por exemplo, a 3ª lição tratava do “[...] estudo geral dos alcools e dos seus derivados. Glycoses e seus derivados” (Vechia & Lorenz, 1998, p. 177). Apesar de se valorizar a educação pela prática, alição sobre os álcoois não continha qualquer referência às práticas de produção dessa substância já muito comuns em nosso meio e mantinha essencialmente umaabordagem teórica.
A última lição do programa do sexto ano apresentava a possibilidade de alguma mudança nessa forma de tratar o conhecimento científico. O título “Da analyse immediata e elementar dos processos de syntese. Noções succintas sobre os productos organicos de integração e desintegração funccional dos tecidos vivos” (Vechia & Lorenz, 1998, p. 177) sugeria tanto uma abordagem prática quanto um tratamento mais teórico do tema.
Em uma análise geral, verifica-se que os programas de ensino indicavam a presença de duas finalidades para a educação em Química. De um lado, a grande quantidade de conteúdos conceituais correspondia à tentativa de oferecer uma formação erudita, por meio de um programa enciclopédico formado por temas distanciados da vida cotidiana. De outro, havia uma orientação no sentido de uma formação pela observação, já que, além da transmissão da teoria, observa-se o estímulo ao uso de recursos como demonstrações e experiências sobre os fenômenos da natureza.
Ainda não se sabe se o que estava previsto nas propostas foi realizado nas escolas, mas percebe-se que os programas apresentavam objetivos ousados para o ensino das ciências, os quais somente seriam possíveis se as condições físicas e de pessoal fossem próprias para a educação nesse nível.
Os Regulamentos dos ginásios
Entre a segunda metade da década de noventa do século XIX e o início do século XX, foram elaborados quatro regulamentos para os ginásios do Estado de São Paulo (RGESP) nos anos de 1895, 1897, 1900 e 1901. Esses documentos não tratavam dos programas de ensino, mas faziam referências à forma como deveriam ser desenvolvidas as aulas.
No artigo 9° dos regulamentos de 1895 e de 1897, consta que as aulas de Química e Física deveriam ser ministradas por meio de “[...] repetidas experiências em gabinetes e laboratórios, acompanhando a exposição e explicação methódica das respectivas teorias” (São Paulo, 1895, 1897). Nos regulamentos de 1900 e 1901, tal artigo foi suprimido, mas a menção ao ensino prático das ciências se manteve em outros.
No artigo 13°dos regulamentos, consta que os ginásios deveriam ter a estrutura física necessária para a execução de aulas práticas.
Para base dos trabalhos práticos, auxiliares do ensino nos gymnasios, cada um deles será provido de gabinete de Physica, laboratório de Chimica, colleções de História Natural, bibliotheca e todos os materiais que forem julgados necessários pela congregação para tal fim (São Paulo, 1895, 1897, 1900, 1901).
Nesses termos, os ginásios deveriam ser equipados com uma estrutura adequada ao desenvolvimento de atividades práticas, com gabinetes para o ensino da Física, museus de História Natural e laboratórios para as aulas práticas de Química, objetos específicos para cada área e um preparador de laboratório.
O cargo de ‘preparador’ também estava previsto nos regulamentos dos ginásios, como se pode verificar nos artigos que apareceram com pequenas modificações em todos os regulamentos. Nos textos de 1895 e 1897, a redação era a seguinte: “[...] cada gymnasio terá um preparador de physica e chimica, o qual será nomeado pelo Governo, mediante proposta do diretor [...]” (São Paulo, 1895, art. 75; São Paulo,1897, art. 72). Definia-se também que o preparador deveria “[...] executar as experiencias que forem determinadas, dispondo os apparelhos e os recursos necessarios, com a precisa antecedência” (São Paulo, 1895, art. 76; São Paulo, 1897, art. 73). Os regulamentos posteriores modificaram essas funções para [...] dispôr com a precisa antecedencia os apparelhos e o mais que for necessario às experiencias, demonstrações e investigações do cathedrático, ou de quem suas vezes fizer (São Paulo, 1900, art. 84; São Paulo, 1901, art. 84).
A leitura dos artigos sobre as funções do preparador oferece algumas pistas da forma como se davam as práticas pedagógicas nos laboratórios. Observa-se que, nos dois documentos, o preparador tinha como função organizar o material para a realização de experiências; no entanto, observa-se também que a execução das práticas nunca era realizada pelos alunos. Nos primeiros regulamentos, era função do próprio preparador executar as experiências e, nos posteriores, essa atividade passou a ser do catedrático.
Nos dois casos, os regulamentos indicavam que eram previstas atividades práticas, mas estas nunca eram realizadas pelos estudantes. Assim, deduz-se que a prática laboratorial tinha a função de demonstrar a teoria e promover a observação dos fenômenos, mas não a de desenvolver qualquer habilidade prática.
Outro ponto que merece destaque é que, enquanto nos regulamentos de 1895 e 1897, a função do preparador era realizar experiências, nos regulamentos de 1900 e 1901, tal função passou a ser a de organizar o material para as experiências, as demonstrações e as investigações. É possível que tal mudança não tenha sido consciente e seja devida à pouca experiência ou familiarização de um redator com o ambiente de laboratório; no entanto, não se pode descartar a hipótese de que tal redação seja o reflexo de uma prática que já se desenvolvia nas escolas, isto é, a execuçãode práticas demonstrativasapenas pelo professor.
De qualquer forma, embora tenham ocorrido alterações nas atribuições do preparador, esse profissional foi mantido por muitos anos nas escolas colaborando para a realização de metodologias mais ativas para o ensino das ciências. No Ginásio de Campinas, por exemplo, o preparador Eugênio Bulcão desenvolveu essa função por mais de trinta anos.
Em resumo, os regulamentos dos ginásios também demostram que a educação em ciências e, especificamente em Química, estava envolvida por um ambiente no qual se contrapunha uma concepção de ensino que promovia a observação, a investigação e a atividade prática e outra que privilegiava o ensino demonstrativo, o conteúdo enciclopédico e os métodos passivos.
O Ginásio de Campinas: os espaços da educação em ciências
O Ginásio de Campinas tem suas raízes no movimento que via na educação um dos instrumentos para a transformação do país. Fizeram parte desse processo, por exemplo,as discussões sobre a concepção de educação que deveria prevalecer no ensino secundário (Nadai, 1975) e a fundação de algumas instituições destinadas a desenvolver métodos ativos e a valorização dos conhecimentos de Ciências Naturais. Dentre elas, têm-se o Colégio Florence, o Colégio Internacional e o Colégio Culto à Ciência, todas fundadas no interior de São Paulo nos últimos vinte e cinco anos do século XIX (Hilsdorf, 2006).
O Colégio Culto à Ciência foi fundado em 1873 e, até 1892, foi administrado por um grupo ligado à maçonaria (Moraes, 2006), cujas ideias eram republicanas e positivistas. Entre 1892 e 1896, a escola não funcionou e, em 1896, passou a ser de responsabilidade do poder público com o nome de Ginásio de Campinas. Nesse momento, foi reorganizada com o objetivo de obter a equiparação ao Ginásio Nacional, o que aconteceu em 1901 (Brasil, 1901b).
Os primeiros movimentos para a incorporação da disciplina de Physica/Chimica surgiram em 1898, quando o diretor interino, Henrique Barcellos, nomeou o preparador de laboratório e começou a providenciar a compra de mobília “[...] indispensável para as primeiras instalações do gabinete de Phisica, laboratório de Chimica e museu de Historia Natural neste Gymnasio” (Ginásio de Campinas, 1898, n. 7).
O ensino secundário nessa escola começou a funcionar em 1897 e, como a disciplina de Physica/Chimica só era oferecida no quinto ano, houve algum tempo para organizar a estrutura física necessária para a educação prática. A sequência dos fatos, resultante da análise dos documentos do arquivo da escola, indica o ritmo desse processo.
No final de 1898, o diretor enviou o seguinte ofício ao Secretário do Interior:
Nos termos da autorização constante de vosso officio [...] mandei fazer a instalacção do laboratório de chimica deste Gymnásio, de cuja despeza, na importancia de quatrocentos e oitenta mil reis, vos remeto a respectiva conta [...] (Ginásio de Campinas, 1898, n. 39).
O resultado foi a organização de um espaço institucional destinado exclusivamente ao ensino de Ciências da Natureza, pois, no início de 1901, o delegado fiscal do governo Antônio Álvares Lobo comunicou:
Em espaço [...] se acham instaladas as aulas especiaes de Chimica e Physica, Historia Natural e Antropologia.
Nelle se vêem perfeita e utilmente dispostos o laboratório de chimica com os precisos aprestos, retortas, etc, o gabinete de physica que possue machina pneumática e elétrica, bem como instrumentos para o ensino de elementos desta sciência, o museu de historia natural, do naturalista Emilio Deyrolle, compreendende colleção de mineraes, do mesmo professor, devidamente classificados (Relatórios..., 1901a).
Pelo cruzamento da documentação escrita com as imagens da escola à época, deduz-se que o prédio destinado ao ensino de ciências foi construído junto ao prédio principal. Um afresco sem assinatura (pertencente ao acervo da escola)mostra que o prédio anexo ao edifício principal ainda mantém as características existentes antes de 1911 (Figura 1). O prédio à direita (no qual aparecem três janelas) existe até os dias de hoje e tem as dimensões de 15m x 6m e um pé direito muito alto. As janelas, de aproximadamente 2,5m de altura,são muito mais altas do que as do prédio principal, sugerindo que esse espaço foi construído provavelmente para práticas que necessitavam de ventilação, como as que envolviam aquecimento e produção de gases.

Fonte: Reprodução de afresco pertencente à EE Culto à Ciência por Reginaldo Alberto Meloni.
Além da preocupação com a organização de uma estrutura para as aulas de ciências, os documentos apontam que havia a preocupação com o aprimoramento das condições para a realização das práticas e com o uso efetivo desse espaço. Tal esforço dos gestores no sentido do aprimoramento dos espaços para o ensino prático de ciências é observável no teor do ofício enviado ao Secretário do Interior, com o seguinte argumento:
[...] o Exmo. Sr. Ministro do Interior [havia] dirigido circular aos senhores delegados fiscais dos Institutos de ensino equiparados ao Gymnasio nacional na qual recomenda mais desenvolvimento às disciplinas de Chimica e Physica e mais importância às lições experimentaes em gabinetes laboratoriais providos de apparelhos e instrumentos precisos, [...] (Ginásio de Campinas, 1901, n. 2).
Nesse sentido, o diretor fez as seguintes sugestões:
[...] rogo a V. Exa. autorizar-me a despender a quantia precisa para a construção d’um tabique dentro do próprio salão em que funcionam aquelas aulas, de modo que, nesse compartimento se possa isolar o lente de Physica para respectivas experimentações e, ao mesmo tempo, sem turbar a aula de Historia Natural, quando cós as desta coincidam as funções daquela da Physica e Chimica. Indico a factura do tabique, unicamente por economia, pois é claro que trarão o inconveniente de acanhar as comodidades do salão [...] (Ginásio de Campinas, 1901, n. 2).
[...] isto solicitei já porque como esta o único salão, em plena comunhão [as aulas de química e física] com as aulas de Historia Natural mutuamente de perto ham esta com apparelhos, já ainda porque de outra maneira não é possível ter em observância o que particularmente recomenda o Sr. Ministro [...] (Ginásio de Campinas, 1901, n. 35).
As obras se desenvolveram rapidamente e, em abril do ano seguinte, a nova instalação foi entregue para a escola:
Comunico a V. Exa. que nesta data me foram entregues pelo Sr. Dr. Aureliano Botelho engenheiro do governo as chaves do pavilhão destinado aos trabalhos de Physica, Chimica e Historia Natural recentemente construído (Ginásio de Campinas, 1902a, n. 4).
Com as instalações prontas, durante o ano de 1902, foi organizado o laboratório. Em ofício de julho desse mesmo ano, o diretor do colégio comunicou ao Secretário de Estado dos Negócios do Interior: [...] só agora depois de aquisição de armários próprios para o respectivo acondicionamento é que ordenei a abertura dos caixões contendo apparelhos de physica e chimica destinados a este estabelecimento (Ginásio de Campinas, 1902b).
Finalmente, em outubro, Antônio Álvares Lobo informou:
Já se acha instalado em novo edifício annexo ao Gymnasio o gabinete de Physica, assim como o laboratório de Chimica. Com essa nova construção os alunos recebem de fato ensino pratico quer de chimica, quer de physica ou história natural (Relatório do delegado fiscal do Governo Antonio Alvares Lobo, 1902).
Assim, percebe-se como, na virada do século XIX para o XX, houve um grande empenho para que as aulas de ciências ganhassem um espaço próprio e adequado para as atividades práticas. O fato sugere que, nesse período, no Ginásio de Campinas, tenha ocorrido um processo de valorização do ensino das ciências, o que implicou a estruturação de espaços próprios com objetos específicos, os quais viabilizavam o desenvolvimento de métodos ativos e alternativos à exclusividade da sala de aula, da lousa e dos manuais.
Os objetos de educação em Química
Com o objetivo de equipar os laboratórios, a direção do ginásio solicitou de outras instituições a doação de materiais. Nos livros de ofícios há registros de materiais doados pelo Grupo Escolar Jorge Tibiriça (Ginásio de Campinas, 1898), da Escola Normal da Capital e da Escola de Minas de Ouro Preto (Ginásio de Campinas, 1898-1903).
Além das contribuições dessas instituições, a proximidade física e a existência de interesses em comum com o Instituto Agronômico de Campinas promoveram uma relação de apoio e de colaboração entre as duas instituições com sucessivos pedidos de material por parte da escola (Ginásio de Campinas, 1898-1903).
Tais iniciativas representam a preocupação dos dirigentes do ginásiode prover a instituição de material necessário para as aulas de ciências. No entanto, o movimento não se restringiu às ações dos gestores da escola; era reflexo de uma política pública que visava a valorização desses saberes e que resultou na destinação de verba especial para a organização destes espaços escolares. Em 1899, a direção da escola apresentou oficio para a Secretaria do Interior no sentido de que houvesse
verba destinada à installação dos encanamentos para o laboratório de Chimica na importancia de 480:000,00 [...] material para ensino de Physica, Chimica e Zoologia e inicio das materiais do 4° ano do curso 5:903,000, mobilia para as aulas de Physica 1:960,000 (Ginásio de Campinas, 1899).
Desde abril de 1898, o antigo pesquisador do Instituto Agronômico e lente da cadeira de Physica/Chimica do Ginásio de Campinas, José Pinto de Moura, já tinha preparado um orçamento dos materiais necessários ao ensino das ciências naturais. Esse processo resultou na aquisição, em 1899, de materiais para o laboratório de Química e para o gabinete de Física, dentre os quais, uma coleção de quadros destinados ao ensino (Ginásio de Campinas, 1899). Em 1901, foram importados livros para a biblioteca e “[...] utensilios chimicos para o respectivo laboratorio deste Gymnasio” (Ginásio de Campinas, 1901).
Aos olhos dos observadores da época, todo esse empenho financeiro resultou em uma instituição bem montada. No entanto, os esforços para melhorar as instalações e proporcionar as melhores condições ao ensino prático das ciências continuaram, como se pode observar no seguinte oficio:
Officio por Sr. Dr. Fiscal do Governo Federal [...] declarando que, conquanto repute sufficiente para o ensino os gabinetes e laboratórios de physica e chimica e sciencias naturaes deste Gymnasio conforme os programas actuaes, todavia entende que ‘não são completos ou melhor podem ser ainda dotados de novos aparelhos’[...] (Ginásio de Campinas, 1901, grifo do autor).
Segundo os inventários, o gabinete de Física possuía 57 intrumentos em 1899 e 185 em 1902; o laboratório de Química continha 46 objetos em 1899 e 102 em 1902 (Ginásio de Campinas, s.n.).
Muitos instrumentos específicos do ensino de Física que ainda hoje compõem o acervo da escola têm a identificação do fornecedor francês Les Fils d’Emille Deyrolle; algumas vidrarias comuns ao ensino da Química apresentam a marca E. Adnet. Além dessas marcas encontradas diretamente nos objetos, os inventários contêm alguns vestígios que contribuem para entender a procedência desses materiais. Muitos objetos relacionados como ‘Apparelhos de Chimica’ foram descritos com nomes que aparecem em catálogos de fabricantes de instrumentos alemães.
Pelos inventários, constata-se que havia grande quantidade de material na escola. Até o final da primeira década do século XX, o maior númerode matriculas foi dezessete, registrado no ano letivo de 1903. Considerando apenas os objetos com mais de 10 unidades, foram registrados nesse período: 32 balões, 22 funis, 18 provetas, 12 cápsulas de porcelana, 15 copos de experiência, 51 vidros de 250cc, 10 cadinhos de porcelana, 10 pinças e 500 tubos de ensaio. Além dos objetos, também foram inventariados cento e vinte e sete amostras de produtos químicos (Ginásio de Campinas, s.n.).
Quanto ao conjunto de objetos, tanto em sua qualidade quanto em sua quantidade, percebe-se que o laboratório de Química estava estruturado para as experiências ou demonstrações próprias de uma escola de ensino secundário.Outra constatação possível pela leitura dos inventários é que havia alguma atividade prática nesses espaços, pois, no inventário de 1913, foi relatado o seguinte:
Aos vinte e um dias do mês de setembro de mil novecentos e cinco no compartimento de Physica e Chimica e Historia Natural deste Gymnásio, compareceram os Srs. [...] e procederam ao arrolamento dos moveis e demais axcessorios da aula e (acharam?) tudo em ordem, sem haver falta, apenas com alguns objetos estragados pelo uso... (Ginásio de Campinas, s.n.).
Apesar dessa afirmação, não foram encontrados registros do caráter dessas atividades, ou seja, seo ‘uso’ relatado no documento era referente a outras atividades ou às de educação em ciências.
Os manuais de ensino de Química
O programa oficial de ensino de Química elaborado pela congregação do Ginásio Nacional indicava o manual de ensino ‘Chimica, de Engel’ (Vechia & Lorenz, 1998, p. 177). No Ginásio de Campinas, em 1901, o professor Manoel Agostinho Lourenço propôs o manual ‘Traité Elementaire de Chimie’ de R. Engel. No entanto, analisando-se o Catálogo Geral das Obras da Biblioteca da escola, verificou-se que, até 1909, não havia esse manual e sim outros. Em 1898,no catálogo, foram registrados dois livros de Química: Chimica de Langlebert e Chimica Inorganica de Grimaux; em 1902, dois outros títulos: Chimica Orgânica de Grimaux e Chimica de Joly; em 1907, o título Chimica Biologica de R. Engel (Ginásio de Campinas, 1902b).
O manual Chimie de Langlebert foi editado na França em 1900 e tinha como objetivo a preparação para as universidades francesas. A análise de seu conteúdo mostra que os três primeiros capítulos apresentam noções introdutórias de Química, como, por exemplo, cristalização, nomenclatura e teoria atômica, e que, após essa introdução; vinte e cinco capítulos são destinados à descrição de elementos e substâncias químicas inorgânicas (Langlebert, 1900).
Nesse manual, havia aproximadamente trinta e quatro experimentos, que, em sua maioria, correspondiam ao objetivo de demonstrar as propriedades que eram descritas ou de explicar os procedimentos de preparo das substâncias. No entanto, poucos deles poderiam ser realizados pelos alunos, seja pela exigência de técnica para o manuseio dos materiais seja pela exiguidade de tempo para a preparação.
Em 1901, estavam previstas quatro aulas no quinto ano e três aulas no sexto ano para que fossem desenvolvidos todos os pontos do programa da disciplina Physica/Chimica (São Paulo, 1901), o que dificultava o preparo e a análise dos experimentos.
Na segunda parte da obra, estão descritas as características e as propriedades das substâncias orgânicas, com pouquíssimas propostas de uso do recurso de experiências
No final da obra, em uma seção que ocupa menos de dez por cento do total do livro, são tratadas as noções de análise química qualitativa, o que sugere a importância que se dava ao método de ensino pautado no recurso da observação direta de objetos e da investigação dos fenômenos. Verifica-se que, mesmo que a última parte do livro ofereça alguma possibilidade de realização de experimentos investigativos, é a proposta enciclopédica que predomina na maior parte do conteúdo e de forma descritiva, indicando que o quemais se exigia do aluno era o uso da memória.
O outro livro de química constante no catálogo é Elements de chimie de A. Joly (1900). A estrutura desse manual é muito semelhante à da obra de Langlebert. O método empregado para a apresentação dos temas era o descritivo, com práticas demonstrativas dificilmente realizáveis por alunos. As práticas, de forma geral, tinham como objetivo demonstrar a composição e as propriedades dos materiais. O conteúdo também privilegiava a descrição das propriedades e a ocorrência dos elementos químicos na natureza, mas praticamente não tratava dos conceitos relacionados com a transformação da matéria.
Em resumo, percebe-se que os manuais tinham uma proposta semelhante: desenvolviam um programa extenso, mas não privilegiavam a prática científica. Comparando as propostas apresentadas nos manuais de ensino com a estrutura montada pela escola para a realização de atividades práticas, conclui-se novamente que havia um conflito de finalidades.
Se o professor seguisse rigorosamente o programa proposto pelos manuais, não seria possível utilizar plenamente os laboratórios de ensino. No entanto, se resolvesse explorar as potencialidades materiais que o laboratório possibilitava, não cumpriria os programas propostos, tanto os dos manuais de ensino como o programa oficial definido pela congregação do Ginásio Nacional.
Os exames escritos e orais de Chimica
No Ginásio de Campinas, as avaliações eram realizadas nas formas escrita e oral, na presença de bancas compostas por três professores e pelo delegado fiscal do governo. Não foi encontrada nenhuma referência à realização de avaliações com trabalhos práticos em laboratório.
Em 1902, os pontos da prova oral de Chimica para o 5° ano eram os seguintes: ‘Potássio; Sódio; Ammonio; Chloro; Oxigênio; Enxofre; Água; Phosforo; Anhydrido arsênico; Iodo’. Para a prova escrita, eram:
[...] notação e nomenclatura da chimica;acidos, bases e sais suas definições e propriedades geraes;Carbono, suas variedades crystallisadas e amorfas, carvões naturaes e artificiaes;Oxigênio e Asone; Natureza chimica da água, caracteres d’uma água potável;Ar atmosférico, sua composição a superfície do solo e a superfície do mar (Ginásio de Campinas, 1902c).
Verifica-se, portanto, que os pontos das avaliações eram abertos, o que permitia abordagens muito diferenciadas. Por exemplo, poder-se-ia optar por questões teóricas relativas à estrutura atômica e suas classificações ou por questões mais práticas, como a preparação, a ocorrência na natureza e os usos desses materiais no cotidiano.
Os temas abordados nas provas estavam de acordo com o que se propunha nos programas e nos manuais de ensino. A diferença é que, nos manuais, frequentemente os temas eram expostos antes e, depois, seguidos de uma experiência demonstrativa do conteúdo trabalhado; já, na avaliação, não é feita referência a qualquer demonstração prática.
A análise das avaliações realizadas em 1902 mostra que não havia qualquer preocupação com a formação para o uso de técnicas ou de outras habilidades voltadas à produção científica, como a observação ou a elaboração de hipóteses explicativas dos fenômenos da natureza. O mais provável é que a avaliação escolar se destinava a verificar apenas a quantidade de informações que o estudante conseguia memorizar, o que indica que o objetivo do curso nesse ano era que o aluno compreendesse os conteúdos conceituais, mas apenas do ponto de vista teórico.
Em 1903, a prova escrita poderia abordar os seguintes temas: “[...] iodo - reconhecimento de um iodato; Ácido Sulfúrico - reconhecimento de um sulfato; Anhydrido Arsênico - reações diferenciais dos [...]” (Ginásio de Campinas, 1903). O registro desse ano não tem referência à prova oral, mas a avaliação escrita indica uma alteração nos objetivos do curso, já que testou alguns aspectos das práticas laboratoriais de análise e das transformações de substâncias.
Não foram encontrados os registros das avaliações de 1904, 1905 e 1906, mas, nos de 1907, fica evidente que os pontos dos exames escrito e oral reforçaram a tendência inicial de priorização de temas mais teóricos. Os pontos das avaliações desses anos foram “[...] notação e nomenclatura; Cloro e Ácido clorídrico; Enxofre e Ácido Sulphydrico; Azoto e Ácido Azotico; Hidrogênio; Ácidos Bases e Saes; Bromo e Iodo; Oxiênio e Ozone; Potássio e Sódio; Ácido Sulfúrico” (Ginásio de Campinas, 1907).
Em 1909, houve uma troca de professor na cadeira de Physica/Chimica por motivo do falecimento do professor Manoel Agostinho Lourenço. Em seu lugar, tomou posse o professor Aníbal Freitas, que se tornaria um dos principais personagens dessa escola por cerca de quarenta anos, ocupando os cargos de professor e de diretor.
Para o ano letivo de 1909, foram encontrados registros dos pontos dos exames do 5° e do 6° ano. Na prova escrita do 5° ano, foram avaliados os seguintes: ‘Hidrogênio; Cloro e seus compostos;Ácidos, bases e Saes; Nomenclatura dos compostos binários; Hypothese atômica e molecular. Afinidade, causas que a modificam’; na prova oral, foram avaliados:
Nomenclatura dos anhydridos ácidos, dos ácidos, dos oxydos e hidratos básicos; Determinação dos suppostos pesos atômicos e moleculares; Hidrogênio;Reações chimicas, equações chimicas. Allotropia e isomeria; Thermochimica;Leis numéricas da chimica; O xigênio e ozona; Óxydos metallicos; Chloro e seus compostos; Radicaes, atomicidade dos radicaes (Ginásio de Campinas, 1909).
Para a prova escrita do 6° ano, poderiam ser os seguintes temas: ‘Series chimicas, sua divisão. Corpos homologados; Analyse elementar das substancias não azotadas; Analyse elementar das substancias azotadas; Assucares; glycose e sacharose; Ácidos Orgânicos’; os temas para a prova oral seriam:
Séries chimicas, sua divisão. Corpos homologados; Analyse elementar das substancias azotadas; Hidrocarbonetos não saturados, acetyleno; Hidrocarbonetos paraffinicos; Função álcool e geral; Glycol e glycerina; Aldehydes e acetonas; Hidratos de carbono, amido, dextrina e cellulose; Hidrocarbonetos saturados, phenoes; Aminas e amidas (Ginásio de Campinas, 1909).
Quanto às habilidades cobradas, as avaliações para a turma de 1909 confirmavam a tendência a uma formação teórica. Nas quatro avaliações, observa-se uma predominância de abordagens descritivas e praticamente nenhuma possibilidade de que seu objetivo fosse a verificação de qualquer aspecto da prática laboratorial. A exceção foi o tema das análises das substâncias azotadas e não azotadas (que apareceu na prova escrita do 6º ano), o qual implicava a possibilidade de se fazer referência a certas práticas demonstrativas que existiam nos manuais.
Em relação aos conteúdos, notam-se alterações em relação às avaliações de anos anteriores. Os pontos “[...] reações chimicas, equações chimicas, Allotropia e isomeria e Thermochimica, Leis numéricas da chimica e Radicaes, atomicidade dos radicaes” (Ginásio de Campinas, 1909) da prova oral do quinto ano demonstram uma modificação nos temas trabalhados no curso. Eles não só não foram abordados em nenhuma outra avaliação conhecida como também não faziam parte do programa oficial ou da seleção de temas dos manuais.
Na prova escrita, nota-se a presença dos temas “Hypothese atômica e molecular. Afinidade, causas que a modificam” (Ginásio de Campinas, 1909). Essas alterações indicam uma modificação importante no ensino de Química: da abordagem puramente descritiva que prevaleceu nos anos anteriores para uma orientação que valorizava o conhecimento conceitual.
Em resumo, nota-se que as avaliações realizadas nesse período confirmam que a educação em Química, apesar do grande aparato montado para tornar o ensino mais concreto, ainda continuava distante de ser ativa ou de estimular a curiosidade, a capacidade de observação e de elaboração de hipóteses. O que se percebe pelas avaliações é que, no ensino secundário de Química, predominou uma concepção de educação que exigia do estudante apenas as capacidades de memorização, de abstração e de repetição.
Considerações finais
No final do século XIX, com a introdução dos conhecimentos sobre a natureza nos currículos escolares, houve uma grande mudança na educação secundária. Em relação aos conteúdos conceituais, observa-se uma predominância de temas mais teóricos e menos voltados ao cotidiano. No caso específico da Química, verifica-se que a maior parte deles referia-se às descrições da ocorrência, dos métodos de produção e das propriedades das substâncias.
Nesse período, também ocorreram mudanças nas orientações para as práticas de ensino, com a proposição de metodologias mais ativas. Houve um grande investimento na organização dos laboratórios escolares, com a criação do cargo de preparador, na construção de espaços específicos e na aquisição de grande quantidade de materiais para o ensino.Além disso, os manuais de ensino, os regulamentos e o programa oficial ofereciam orientações para a realização de práticas de caráter demonstrativo.
Apesar dessas orientações para o ensino de ciências, no estudo de caso realizado no Ginásio de Campinas, não foram encontrados indícios de que as aulas práticas tenham se realizado plenamente. Embora os registros indiquem que os laboratórios foram usados, não contêm informações sobre o objetivo.
Algumas avaliações escolares sugerem que o tema ‘análises químicas’ foi trabalhado na escola, mas não foram encontradas evidências de que ocorreram aulas práticas de Química, muito menos de que os alunos tenham realizado quaisquer experiências.
Percebe-se que, no final do século XIX, houve uma valorização do conhecimento científico, mas envolvendo uma tensão: a ciência seria um conhecimento prático ou um conjunto de conhecimentos que deveriam ser memorizados.
Em resumo, em uma sociedade em que, com uma industrialização incipiente, havia uma excessiva dependência da lavoura cafeeira, não se demandava um conhecimento científico sofisticado. Tudo indica que, embora a educação secundária tenha valorizado as Ciências da Natureza, o que predominou foi a quantidade de conteúdos e o método descritivo em detrimento da qualidade da análise dos conceitos e das metodologias ativas.
Em outras palavras, houve um movimento importante no sentido de tornar o ensino de Química concreto, mas tal mudança, que desenvolveria a capacidade de observação, estimularia a curiosidade e formaria homens de ação, não se efetivou.
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