ARTIGOS
Balanço sobre a historiografia do ensino profissional paulista (meados de 1880 a meados de 1940)1
A review on the historiography of professional education in the state of São Paulo, Brazil, from mid-1880 to mid-1940
Balance sobre la historiografía de la enseñanza profesional en São Paulo (mediados de 1880 a mediados de 1940)
Balanço sobre a historiografia do ensino profissional paulista (meados de 1880 a meados de 1940)1
Revista Brasileira de História da Educação, vol. 17, núm. 2, pp. 107-134, 2017
Sociedade Brasileira de História da Educação
Recepção: 14 Dezembro 2015
Aprovação: 23 Janeiro 2017
Resumo: Neste trabalho,por meio da análise de livros publicados entre 1986 e 2003, apresenta-se um balanço da historiografia do ensino profissional paulista. Foram examinados os conteúdos referentes ao período de meados de 1880 a meados de 1940 a fim de verificar como se relaciona a produção sobre a história do ensino profissional com a da História da Educação. Apesar da forte relação entre as características das duas áreas, na historiografia do ensino profissional analisada ainda não houve a renovação ocorrida na área da História da Educação proveniente das abordagens da Nova História Cultural. Tal aspecto pode ser explicado, em parte, pela predominância de análises baseadas nas necessidades de qualificação para o desenvolvimento industrial.
Palavras-chave: ensino profissional, História da Educação, historiografia, desenvolvimento industrial.
Abstract: A survey of the historiography of professional education in the state of São Paulo, Brazil, has been undertaken by analyzing several books on the theme published between 1986 and 2003. The contents of books between mid-1880 and mid-1940 have been examined to check how production on the history of professional education is related to the History of Education. In spite of the deep relationship between their characteristics, the historiography of professional education failed to experience the renewal that occurred in the area of the History of Education derived from the New Cultural History. This aspect may be partially due to the predominance of analysis based on the qualification requirements for industrial development.
Keywords: professional education, History of Education, historiography, industrial development.
Resumen: Este trabajo presenta un balance sobre la historiografía de la enseñanza profesional en São Paulo, por medio del análisis de libros publicados entre 1986 y 2003. A partir del examen de los contenidos acerca del período que va de mediados de 1880 a mediados de 1940, se buscó verificar cómo se relaciona la producción sobre la historia de la enseñanza profesional con la de la Historia de la Educación. A pesar de la fuerte relación entre las características presentadas, en la historiografía de la enseñanza profesional analizada aún no hubo la renovación que ocurrió en el área de la Historia de la Educación provenientes de los abordajes de la Nueva Historia Cultural. Tal aspecto puede ser explicado, en parte, por el predominio de análisis basados en las necesidades de cualificación para el desarrollo industrial.
Palabras clave: enseñanza profesional, historia de la educación, la historiografía, desarrollo industrial.
Introdução
A historiografia do ensino profissional apresentada em livros publicados nos anos de 1980, 1990 e 2000 é o objeto central do presente trabalho.Os livros que compõem o corpus da análise são: Trabalhadores urbanos e ensino profissional,escrito por Maria Alice Ribeiro, Coraly Gará Caetano e Maria Lúcia Caira Gitahy (1986a); A Escola Profissional de São Carlos, escrito por Ester Buffa e Paolo Nosella (1998); O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização e O ensino profissional na irradiação do industrialismo, escritos por Luiz Antônio Cunha (2000a, 2000b); Educação profissional no Brasil, escrito por Silvia Maria Manfredi (2002) e A socialização da força de trabalho: instrução popular e qualificação profissional no estado de São Paulo (1873-1934), escrito porCarmen Sylvia Vidigal Moraes (2003).
Tal seleção tem algumas motivações. Uma delas é que, houve um intervalo de 20 anossem a publicação de livros sobre a temática. A última delas tinha sido em 1969, com a obra Ensino médio e desenvolvimento, escrita por Gouveia, Havighurst e Lourenço Filho. Ou seja, as referidas obras foram selecionadas porque voltaram a abordar a temática depois de todo esse tempo. Além disso, os trabalhos foram publicados por editoras, oque indicaa possibilidade de terem influenciado um modo interpretativoda história do ensino profissional, já que se tornaram leituras obrigatórias para pesquisadores ou interessados na temática.
O período escolhido para a análise das características do ensino profissional abrange de meados de 1880 a meados de 1940. Em primeiro lugar, porque,em 1883, tinha sido criada uma das principais instituições de ensino profissional, o Liceu de Artes e Ofícios; em segundo, porque, na década de 1940, foi implementado um conjunto de leis que visava organizar o sistema de ensino brasileiro, aqui entendido como todos os níveis, sob um padrão de legislação e funcionamento, do qual o ensino profissional era parte integrante. Além disso, as obras escolhidas apresentamdiscussões importantessobre os processos de industrialização e urbanização, bastante intensos no período sugerido.
A opção por analisar as iniciativas de ensino profissional desenvolvidas no estado de São Paulo explica-se pela peculiaridade dessa região em relação às demais regiões do país no período proposto. Ou seja, esse era o local onde o desenvolvimento da economia e da indústria, além das demais instâncias e das relações sociais, apresentava maior dinamismo, conforme destaca Cunha (2000a, p. 68):
[...] o processo de industrialização apresentava uma tendência centrípeta. Não só as novas fábricas tendiam a se localizar no Centro-Sul, especialmente São Paulo, como, também, para lá se transferiam atividades manufatureiras antes desenvolvidas em diversas regiões do país.
A investigação sobre os conceitos e análises empreendidas pelos autores selecionadosabrange os apontamentos sobre a historiografia da educação brasileira nas décadas de 1970, 1980, 1990 e o início dos anos 2000, período em que houve renovações sobre o modo de produção, os temas, os conceitos e os referenciais teórico-metodológicos trabalhados. O objetivo é verificar aproximações e distanciamentos entre as características da produção sobre a história do ensino profissional e as da historiografia da educação brasileira.
Em relação ao significado de historiografia, Warde (1990) destaca que o termo é usado de modo indiscriminado: para indicar o conjunto de obras de história e/ou para se referir a um mapeamento, a um arrolamento ou a qualquer maneira de ordenação dessas obras. Neste trabalho, porhistoriografia entende-se o conjunto das obras sobre a história, especificamente as que, editadas entre os anos de 1986 e 2003, referem-se ao ensino profissional paulista. Esse entendimento é baseado no fato de que: “Para o historiador impõe-se a tarefa de, permanentemente, movimentar-se entre um determinado conceito de História e o muito ramificado conjunto de estudos históricos” (Warde, 1990, p. 4).
Assim, para essa tarefa, especialmente para o entendimento dos trabalhos e da conformação da historiografia, é preciso considerar um suporte conceitual primordial: o ‘modo de produção das obras históricas’. Esse modo de produção, de acordo com Ferro (1989, p. 2), define-se “[...] como as condições que determinam a produção e a natureza das obras históricas, ou seja, quais são os temas por elas privilegiados, de que maneira são abordados, como esses dados evoluem através do tempo”.
A leitura dos títulos dos livros que compõem as fontes principais desta pesquisa indicou que são utilizados vários termos para se referir ao ensino profissional:qualificação profissional, ensino de ofícios, ensino industrial, educação profissional etc. Entende-se por ensino profissional a formação destinada à obtenção de um ofício ou profissão, desenvolvida de forma independente ou integrada aos demais níveis de ensino, primário e secundário, conforme expressões dos anos delimitados para a análise. Os termos que designam este ramo de ensino serão utilizados de acordo com a versão dos autores dos trabalhos utilizados como fontes, ou seja, para o período de interesse desta investigação ensino profissional é o mais utilizado.
Antes de apresentar os trabalhos considera-se importante destacar que o desenvolvimento do conhecimento científico está relacionado ao momento de sua produção, aos resultados atingidos e, posteriormente, à crítica aos resultados apresentados, sem a intenção de desqualificar, mas sim de contribuir para eventuais avanços da discussão sobre a temática. Essa é a intenção ao se analisar a história do ensino profissional.
Os livros sobre a história do ensino profissional
O livro de Ribeiro et al. (1986a), Trabalhadores urbanos e ensino profissional, contém três monografias, cada uma realizada por uma autora. As pesquisas foram desenvolvidas entre 1982 e 1984 no Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), como parte do projeto intitulado ‘Formação do Trabalhador Assalariado’, agregado à linha de pesquisa ‘Qualificação e Treinamento da Força de Trabalho’. O resultado foi publicado em livro pela Editora da Unicamp. A proposta, segundo a coordenadora do projeto, Maria Alice Rosa Ribeiro et al. (1986a), era abordar a qualificação como parte integrante do processo de formação do trabalhador e de construção do urbano, ligado ao desenvolvimento capitalista.
O trabalho de Carmen Sylvia Vidigal Moraes, A socialização da força de trabalho: instrução popular e qualificação profissional no estado de São Paulo (1873-1934), é fruto da tese de doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) em 1990. Foi publicada em livro em 2003 pela Editora da Universidade São Francisco, na série Historiografia do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação (CDAPH). Portanto, a pesquisa foi realizada na década de 1980. O objetivo do trabalho, segundo a autora (Moraes, 2003), foi discutir a importância da educação escolar, mais especificamente da ‘instrução popular’ destinada ao ensino profissional, como parte do processo desocialização da força de trabalho pelo capital, por meio da comparação entre as iniciativas privadas e estatais de educação para o trabalho.
O trabalho de Buffa e Nosella, A Escola Profissional de São Carlos, foi publicado pela Editora da Universidade de São Carlos (EdUFSCar) em 1998 e faz parte do projeto de investigação dos autores sobre as instituições escolares da cidade de São Carlos, desenvolvido a partir de 1994. De acordo com Buffa e Nosella (1998, p. 23), a proposta foi analisar “[...] como a industrialização da região influenciou a escolarização e criou sua própria escola [...]”, ou seja, analisar a relação entre política econômica e política educacional, o impacto da política industrial e as leis estaduais e nacionais sobre a escola e a vida da escola (atores, organização, cotidiano, cultura).
O estudo de Luiz Antônio Cunha2, O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização, publicado em 2000, foi produzido entre 1998 e 1999 para o projeto de formação de formadores do Planfor (Replanfor), ligado às políticas públicas de trabalho, emprego e geração de renda do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)3 em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), que publicou os livros em parceria com a Editora da Unesp. No livro, foi incorporadaparte dos resultados de pesquisasobre as escolas de aprendizes artífices, por ele coordenada no Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas (IESAE)no final dos anos de 1970 até os anos de 1990.Cunha (2000a) analisou as instituições que ofereceram cursos de ensino profissional a partir do final do século XIX, destacando a importância de três processos que modificariam a estrutura social, afetando as questões educacionaise, portanto, a organização do ensino profissional: imigração estrangeira, urbanização e industrialização.
A respeito de O ensino profissional na irradiação do industrialismo, de 2000,Cunha revela queo estudo foi produzido em 1999, também para o Replanfor. No livro, foram incorporadas partes de outros textos sobre o tema: desde sua dissertação de mestrado sobre a reforma do ensino de 2° grau4, produzida em 1972, até uma conferência proferida em 1977 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e que era parte do concurso para professor titular de educação brasileira. Isso significa que grande parte do trabalho foi produzida na década de 1970. Oautor (Cunha, 2000b) discutiuo ensino profissional para a formação da força de trabalho industrial e manufatureira, por suas características próprias e por receber maior atenção das políticas públicas, a partir da organização do Estado Novo, mas com apontamentos e análises que vão até a década de 1990.
O estudo de Silvia Maria Manfredi, Educação profissional no Brasil, de 2002, faz parte da Coleção Docência em Formação da Editora Cortez e teve por objetivo oferecer aos professores, em processo de formação e aos que já atuavam como profissionais da Educação, subsídios fundados nas novas diretrizes curriculares, de forma a atender às transformações decorrentes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (Brasil, 1996) e do Decreto 2.208 (Brasil, 1997), que introduziu reformas no ensino médio, mais especificamente no ensino profissional. Manfredi (2002) analisou as disputas e as negociações em torno da educação profissional, por meio de uma abordagem histórico-política das reformas empreendidas. Destacando os sentidos, as perspectivas e os projetos dos diferentes grupos envolvidos,de ministérios e entidades empresariais e sindicais, buscourevelar os diferentes interesses e necessidades dos formuladores das propostas de acordo com o lugar social de onde se originaram.
Ao mesmo tempo em que se analisa a forma como foram desenvolvidos esses trabalhos, entende-se que eles são importantes fontespara a historiografia, pois favorecem a compreensão do ensino profissional, já que apresentam diversificada quantidade de dados sobre os momentos do processo, bem como sobre as instituições envolvidas na organização desse ramo de ensino no estado de São Paulo.
Nos trabalhos, destacam-se algumas das iniciativas do ensino profissional no estado de São Paulo5: o Liceu de Artes e Ofícios foi estudado Gitahy (1986), Moraes (2003) e Cunha (2000a); as escolas de aprendizes artífices foram analisadas por Cunha (2000a); as escolas profissionais estaduais foram analisadas por Ribeiro (1986), Moraes (2003), Cunha (2000a, 2000b) e Buffa e Nosella (1998), que se dedicaram apenas à Escola Profissional de São Carlos; as escolas ferroviárias foram estudadas por Caetano (1986) e Cunha (2000a, 2000b); o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) foi analisado por Cunha (2000b) e Manfredi (2002).
Por meio do decreto 7.566 de 1909, foram criadas 19 escolas de aprendizes artífices, uma em cada unidade federal, menos no Distrito Federal e no Rio Grande do Sul6.Destinadas a ministrar ensino profissional gratuito, tais escolas ficavam subordinadas ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. A medida foitida por Cunha (2000a, p. 63) como “[...] o acontecimento mais marcante do ensino profissional na Primeira República”. Em São Paulo, houve uma cooperação com o Liceu de Artes e Ofícios, o que tornou possível a utilização de oficinas de tornearia e mecânica. A Lei Orgânica do Ensino Industrial, instituída em 1942, transformou as escolas de aprendizes artífices em escolas industriais.
O regime federativo possibilitava a realização de iniciativas estaduais de organização do ensino profissional, a exemplo de São Paulo, onde as escolas oficiais foram criadas em 1910 e começaram a funcionar em 1911. As primeiras escolas profissionais estaduais começaram a funcionar na capital e se espalharam por outras cidades: Amparo, Sorocaba, Rio Claro, Campinas, Franca, Ribeirão Preto, dentre outras. Até 1935, foram criadas 10 unidades, uma das quais a Escola Profissional de São Carlos, de 1930, segundo Buffa e Nosella (1998).
Segundo Gitahy (1986), o Liceu de Artes e Ofícios foi criado em 1883, em decorrência da reorganização dos cursos oferecidos desde 1873 pela Sociedade Propagadora da Instrução Popular. O Liceu, segundo Manfredi (2002),era uma entidade privada que se beneficiavade subsídios públicos e da articulação com a Escola Politécnica da cidade de São Paulo, da qual utilizava professores e dirigentes. Os espaços de aprendizagem eram designados como escolas-oficinas porque os alunos trabalhavam e aprendiam produzindo. Em 1923, foi criada a Escola Profissional Mecânica, que funcionava no Liceu, mas era mantida por companhias ferroviárias paulistas, com recursos do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, e por meio dearticulações com empresas da construção civil. Em 1934, de acordo com Manfredi (2002), a ampliação dessas articulações criou o Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (Cfesp).
Para Caetano (1986), as escolas ferroviárias tinham objetivos diferentes dos do Liceu e das escolas profissionais estaduais porque estariam diretamente ligadas ao trabalho na ferrovia, ao tipo de ocupação exigido nas estradas de ferro. As escolas ferroviárias funcionavam de forma isolada até que, em 1930, ocorreu a criação do Serviço de Ensino e Seleção Profissional (Sesp), substituído pelo Cfesp em 1934. Esses órgãos eram gerenciadores do ensino ferroviário e implementavam a seleção dos candidatos por meio de testes de aptidão e vocação.
O Senai foi oficializado pelo governo federal por meio do Decreto-lei 4.048 (Brasil, 1942), quando iniciou suas atividades, segundo Moraes (2003), incorporando todo o complexo do Cfesp: métodos de ensino, financiamento, organização etc.
Os trabalhos em tela foram produzidos em alguns campos de pesquisa, como Educação, História e Sociologia, os quais são desmembrados em outros campos7 afins. Por isso, a abordagem do tema é mais complexa, embora o debate se torne mais rico. Como a pesquisa que deu origem a este artigo foi desenvolvida na área de História da Educação, os trabalhos em tela serão analisados no interior desse campo.
A historiografia educacional brasileirareferente às décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000 é analisadacom base em alguns estudos sobre suas tendências, seus objetos e aportes teóricos, bem como em críticas às maneiras de sua interpretação ou escolha de temas e objetos de pesquisa. Destaca-se uma distinção entre dois períodos: o que abrange as décadas de 1970 até meados de 1980 e de meados de 1980 em diante.
A aproximação com a História da Educação produzida nos anos de 1970 e 1980
Warde (1984), ao se referir à produção entre 1970 e 1984 nos programas de pós-graduação em Educação8, identifica como seus traços característicos: o enquadramento em períodos consagrados (Primeira República, Revolução de 1930 e Estado Novo9); a presença marcante do Estado como interlocutor obrigatório das investigações sobre assuntos educacionais; a predominância de literatura das Ciências Sociais como aporte teórico nos trabalhos; e a conformação do objeto de estudo às condições históricas de sua produção, o que caracterizaria o uso da história para, por meio de longos recuos, buscar a origem de problemas presentes e não o interesse em ‘historicizar a educação como objeto’.
Sobre os períodos consagrados, Bontempi Jr. (1995) destaca um acúmulo de trabalhos em História da Educaçãoreferentes os anos de 1930, no período denominado por Estado Novo (1937 a 1945) e no ano de 1964. Outro elemento característico da historiografia educacional até meados de 1980é a interlocução com o Estado. Segundo Nunes (1989), o Estado é o grande personagem nos trabalhos sobre História da Educação, porque coube a ele, por sua prática como definidor, selecionador e conservador de documentos na área, dispor das fontes necessárias às investigações. Assim, é possível “[...] observar o que ele fez ou deixou de fazer, o que cumpriu ou deixou de cumprir, o que absorveu das demandas de setores sociais e o que deixou de absorver” (Nunes, 1989, p. 45).
Para analisar o ensino profissional, os autores pautaram-se em diversos acontecimentos, discussões e leis.As bases para analisar os momentos cruciais da organização do ensino profissional, entre meados de 1880 e meados de 1940, destacadas por Ribeiro (1986), Gitahy (1986), Cunha (2000a, 2000b), Buffa e Nosella (1998) e Manfredi (2002) foram: o Inquérito (1926), o Manifesto dos pioneiros da educação nova (1932), o Código de Educação (São Paulo, 1933), a Superintendência (Brasil, 1934), a Constituição (Brasil, 1937) e a Lei Orgânica (Brasil, 1942), cuja produção relaciona-se ao suposto desenvolvimento industrial, iniciado, segundo os pesquisadores, no início do século XX e acelerado no período posterior à Segunda Guerra Mundial.
Para Gitahy (1986), o Código de Educação de 193310 e a Superintendência da Educação Profissional e Doméstica do Estado de São Paulo11 de 1934 modificaram o ensino profissional nesse estado, principalmente com a criação do serviço de psicotécnica utilizado para a seleção dos alunos das escolas estaduais profissionais. Já, para Ribeiro (1986), o Código de Educação de 1933 fundou-se nos princípios racionalizadores (menor tempo, menor esforço, menor dispêndio de energia): cursos vocacionais, seleção, gabinete de psicotécnica.
Buffa e Nosella (1998) afirmam que as alterações na legislação educacional e no mundo do trabalho podem ser agrupadas em quatro momentos, nos quais se poderia captar o desejo de libertar esse nível de ensino do caráter assistencialista e de equipará-lo ao secundário. Dois momentos12 fazem parte do período analisado: 1933, com o Código de Educação que estruturou o ensino estadual e 1942, com a Lei Orgânica que organizou o ensino industrial em todo o país.
Segundo Cunha (2000a), teriam ocorrido três importantes acontecimentos envolvendo questões sobre o ensino profissional de forma inédita na história do país: os debates sobre a legislação (especificamente no plano federal), o Inquérito de 1926 e o Manifesto dos pioneiros da educação nova de 193213. O autor (2000a) destaca alguns aspectos das discussões parlamentares ocorridas entre 1915 e 1927: necessidade de ensino profissional, destinação do ensino, incorporação do taylorismo, obrigatoriedade do curso profissional para ingresso no nível superior, venda dos artigos produzidos nas escolas profissionais, organização do ensino profissionaletc. Para Cunha (2000a), um dos projetos discutidos era o de criar três tipos de instituição profissional: industrial, agrícola e comercial. Embora não tenha sido aprovado, ele serviu como base para a criação da Lei Orgânica de 1942.
Sobre o Inquérito de 1926, Cunha (2000a) comenta que esse foi o primeiro projeto educacional completo do país e, com base em análises de outros autores, ressalta que as universidades formariam as elites, e o ensino secundário, as classes médias. Essa seria uma tentativa de recuperar a hegemonia das oligarquias rurais por meio de uma educação moderna:
Mais do que uma pesquisa (chamada pelo galicismo ‘inquérito’), Fernando de Azevedo elaborou o que parece ter sido o primeiro projeto educacional completo do país, compreendendo o ensino primário e o normal, o ensino técnico-profissional, o ensino secundário e o superior, abrangidos todos por uma concepção geral a respeito da administração pública nesse campo. Não se tratava de um mero empreendimento especulativo, pois esse projeto foi suscitado por questões práticas inéditas (Cunha, 2000a, p. 216, grifo do autor).
No que diz respeito ao ensino profissional, considerando a interlocução com o Estado, Cunha (2000b)destaca que, a partir de 1937, ocorreu a preparação do aparelho estatal para iniciativas de grande alcance, como a da centralização, realizada pelo Ministério da Educação (MEC)14, e a da Lei Orgânica de 1942. O autor (Cunha, 2000b) explica a reorganização do ensino comercial como um sistema paralelo em um grau pós-primário, um técnico e um superior e a introdução do termo ‘técnico’ na legislação educacional para designar um nível intermediário na divisão do trabalho.
A Lei de 1942 teria trazido uma importante novidade com a articulação dos demais ramos e graus para facilitar entradas e saídas. As grandes inovações da Lei Orgânica de 1942, segundo o autor (Cunha, 2000b), foram o deslocamento do ensino profissional para o grau médio e a introdução de exames de seleção e testes de aptidão para o ensino industrial, distinguindo as escolas industriais, baseadas no aprendizado de um oficio por vocação, das escolas de aprendizagem, voltadas ao assistencialismo.
Para Cunha (2000b), o processo de integração do sistema escolar, iniciado em 1930, configurouum sistema dualista, porque dividiu o ensino posterior ao primário, considerado comum a todos, em duas vertentes: ramo secundário, destinado à formação das elites dirigentes e direcionado para o ensino superior, e ramo profissional, destinado à formação de trabalhadores qualificados. Mesmo assim,o autor considera que essa divisão não estaria baseada na divisão clássica entre trabalho manual e trabalho intelectual, pois este era abrangido também pelo 2º ciclo dos cursos profissionais destinados a formar técnicos industriais, agrícolas e comerciais.
Em relação ao predomínio da literatura da área de Ciências Sociais, destaca-se a presença de referenciais conceituais de Marx e de Durkheim. Yamamoto (1994) afirma que a abordagem marxista foi o principal referencial teórico-metodológico e que alguns fatores influenciaram tal alinhamento: o local de produção, a instituição à qual se vinculava o pesquisador e o forte apego à militância política.
Manfredi (2002) e Moraes (2003), em suas introduções, deixam evidente sua opção por análises baseadas na teoria marxista e por questões sobre luta de classes, produção capitalista, hegemonia15, dentre outras. Essa preferência é pertinente, já que tais trabalhos foram produzidos no campo da Sociologia, com perspectiva histórica. Nos trabalhos de Ribeiro (1986), Gitahy (1986) e Caetano (1986) também se observa o aporte marxista do campo da História no sentido de contar a história dos vencidos, no caso, a dos trabalhadores. Cunha (2000a, 2000b) não apresenta abertamente seus referenciais, mas, ao tratar das disputas de concepção do ensino profissional, deixa transparecerque se apoia nos referenciais marxistas, mais precisamente nos de Gramsci com a questão da hegemonia, abordagem central também de Buffa e Nosella (1998). Uma das principais discussões sobre o ensino profissional dos anos de 1930 e 1940, principalmente as realizadas pelos pesquisadores, centrou-se na dualidade do ensino secundário: formação geral para as elites e formação profissional para as classes menos abastadas, ou seja, relacionada ao conceito de luta de classes.
Bontempi Jr. (1995) concorda com a constatação de Yamamoto (1994) sobre a presença do marxismo na historiografia educacional brasileira, mas faz referência a outra vertente sociológica, a de Durkheim.A presença de Durkheim seria invisível, pois seus conceitos não eram explicitados, conforme aponta Bontempi Jr. (2005). Só é possível percebê-la observando as funções destinadas ao ensino profissional. Ribeiro (1986) destaca que as funções de controle foram as principais, seguidas das questões de formação para o mercado de trabalho em constituição e pela formação do operário nacional. Moraes (2003) destaca que nas escolas profissionais houve o atendimento aos interesses político-empresariais, por meio do controle do processo de trabalho: formava-se, dessa maneira, um operário que, sujeitando-se às necessidades capitalistas, ajudava a reproduzir o capital. Buffa e Nosella (1998) apontam que as modificações da Escola Profissional de São Carlos ao longo dos anos receberam influências das necessidades sociais. Cunha (2000b) aponta que, nos anos de 1940, o ensino industrial foi bem sucedido porque cumpriu a função de auxiliar o processo de desenvolvimento industrial. Manfredi (2002) salienta que o ensino profissional, na reformulação das políticas educacionais, cumpriria a função de modificar as relações entre a sociedade civil, as organizações de trabalhadores, empresários e o Estado, por meio da gestão compartilhada entre as esferas.
A outra característica da produção em História da Educação para as décadas de 1970 e 1980 diz respeito à utilização de longos recuos no tempo. Os trabalhos de Cunha (2000a, 2000b), Manfredi (2003) e Buffa e Nosella (1998) apresentam ou tentam dar conta de toda a história do ensino profissional. Apesar de designar isso como longos recuos, os autores visam ou, pelos menos, indicam a tentativa de explicar questões do presente, ou seja, relativas ao momento da produção de suas obras. Isso fica nítido nas indicações de Manfredi (2002) sobre a disputa pela hegemonia do ensino profissional ao longo de todo o século e de Cunha (2000b, p. 16), para quem “[...] o legado varguista do campo educacional foi profundamente atingido [...]” após os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso.
Diante dessas constatações, concorda-se com a análise efetuada para os anos de 1970 e meados de 1980:
Ainda predomina, nos trabalhos examinados, uma certa tendência de se caminhar pelas fendas já abertas pela historiografia da educação, quando muito acrescentando novos dados, mais do que vasculhando as muitas zonas de sombra nas quais se encontra a história da educação brasileira. No meu entender, isso decorre, principalmente, do fato de que boa parte dos trabalhos não resulta de um efetivo interesse na investigação histórica, na efetiva preocupação de historicizar a educação como objeto de análise. Resulta mais de longos recuos no tempo com vistas a encontrar, supostamente, a origem da questão que se está se examinando. Ao realizar esse recuo, tendencialmente, novas investigações históricas não são feitas em profundidade (Warde, 1984, p. 5).
O distanciamento da renovação efetuada na História da Educação
A partir de meados dos anos de 1980, a pesquisa em História da Educação se renovou, buscando outras formas interpretativas e metodológicas. Segundo Warde e Carvalho (2000, p. 10), o primeiro aspecto denotador de mudança foi o das “[...] iniciativas que buscavam penetrar nas relações intergrupais e na cotidianidade da vida escolar [...]” com base nos estudos etnográficos e na Nova Sociologia da Educação:
Essa redefinição acabou por favorecer a reflexão sobre questões metodológicas e conceituais, sedimentando práticas de discussão historiográfica em torno de temas, questões e procedimentos[...] Nesse processo, foi sobretudo a crescente problematização da relação entre historiografia educacional e fontes, que assumiu o papel motor principal das transformações (Warde & Carvalho, 2000, p. 10).
As modificações no campo da História da Educação se fizeram sentir, segundo Warde e Carvalho (2000), nas intensas reflexões conceituais e metodológicas, cuja finalidade era
Penetrar a ‘caixa preta’ escolar, apanhando-lhe os dispositivos de organização e o cotidiano de suas práticas; pôr em cena a perspectiva dos agentes educacionais; incorporar categorias de análise - como gênero -, e recortar temas - como profissão docente, formação de professores, currículo e práticas de leitura e escrita [...] (Warde & Carvalho, 2000, p. 14, grifo nosso).
Segundo Carvalho (2003), o movimento de renovação teórica, temática e metodológica em História da Educação seguiutrês orientações principais: problematização das fontes; problematização das relações entre gênero e educação; incorporação de referências teórico-conceituais que permitiam destacar a historicidade do lugar de produção, marcada pela interlocução com a vertente francesa chamada Nova História Cultural.
A busca pelas novas fontes citadas nos trabalhos de Ribeiro (1986), Caetano (1986) e Gitahy (1986) é marcante: relatórios da diretoria do Serviço de Ensino e Seleção Profissional (Sesp), publicações do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (Cfesp), Revista do Instituto Racional de Organização do Trabalho (Idort), boletins do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Revista Ferroviária, Revista da Superintendência do Ensino Profissional16, legislação sobre o ensino industrial e relatórios das diretorias das ferrovias, periódicos (A construção em São Paulo - anuário do estado de São Paulo, A plebe, Correio Paulistano, O Estado de S. Paulo, Revista Polytechnica e Revista de Organização Científica) e documentos primários (A educação pública em São Paulo - Inquérito de 1926, Relatórios do Liceu de Artes e Ofícios, relatório do Serviço de Remodelação do Ensino Récnico). Moraes (2003)explica que não existiam referenciais documentais para a construção do cotidiano das instituições pesquisadas e que utilizou os regulamentos, as normas de funcionamento e os programas de ensino das instituições, além de bibliografia da história do ensino profissional. Buffa e Nosela (1998) se utilizaram de acervos documentais da Escola Profissional, da Câmara Municipal, do arquivo de História da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e de outros arquivos particulares; jornais e revistas da época, entrevistas (com ex-atores da Escola), legislação e literatura referente à escola e ao ensino profissional.
O caráter inovador dos trabalhos termina por aí. A produção efetuada nos anos de 1980, especialmente de Ribeiro (1986), Gitahy (1986), Caetano (1986) e Moraes (2003), relacionou-se às tentativas de construir novos marcos de análise da história: novas fontes, valorização da história das classes menos favorecidas, além de outros marcos interpretativos, como os processos de urbanização e socialização em São Paulo. No entanto, essa produção não acompanhou a renovação da historiografia educacional.
Sobre o surgimento de novos objetos, Catani e Faria Filho (2003) destacam as investigações sobre raça, gênero, etnia, currículo, disciplinas escolares, impressos e práticas de leitura, imprensa periódica educacional, materiais e práticas escolares e alunos e infância.
Os trabalhos sobre a história do ensino profissional não se referem às relações entre gênero e educação.
De acordo com Lima e Fonseca (2003, p. 59-60), balanços sobre a produção de pesquisas em História da Educação indicam forte e reconhecida tendência na “[...] direção da nova história, especialmente da história cultural”. Para Falcon (2006), apesar das discussões emblemáticas sobre a dimensão da História Cultural, seu advento foi marcado pelo reconhecimento de outra dimensão inerente à realidade, a cultural. Essa dimensão opera no sentido de minimizar a separação entre os lugares econômico, político e cultural, pois, efetivamente,eles não se separam: “[...] a dinâmica das relações culturais e sociais tende a misturar essas divisões e distinções aparentemente tão homogêneas” (Falcon, 2006, p. 336).
No balanço de Vidal, Vicentini, Silva e Silva (2005), restrito ao estado de São Paulo, mesmo que se apontassem novos rumos, foram confirmadas explicações anteriores sobre as influências do campo da História da Educação: observou-se a maior influência da Nova História Cultural, em correlação com as mudanças ocasionadas pela aproximação com a História Cultural, e a diminuição do viés sociológico nos anos de 2000. Nas análises de Xavier, Tambara e Pinheiro (2011), referentesà primeira década do século XXI, são reforçadas as influências da História Cultural e da Nova História Culturalna produção em História da Educação.
De forma geral, a Nova História Culturalé um prolongamento das perspectivas iniciadas pela História Cultural17. De acordo com Barros (2011, p. 56), nessa nova vertente,constituiram-se um novo repertório conceitual e o deslocamento para novas abordagens: “As aberturas apontam na direção de um aumento cada vez maior da percepção da complexidade pertinente aos aspectos culturais [...]”, em que se privilegia cada vez mais a dinâmica das relações socioculturais.
De acordo com Carvalho (2003), a Nova História Culturalprivilegiacomo objeto de investigação as práticas culturais, os sujeitos e os produtos tomados como objetos culturais. Ao fazê-lo, ofereceu a possibilidade de formulação de novos problemas, já que favoreceu o questionamento do uso que os agentes fazem dos modelos e objetos culturais em sua materialidade. Assim, trouxe à tona questões que se referem à história da escola, como: o espaço escolar, a transmissão do saber, o tempo escolar, os agentes escolares, os dispositivos de organização e de normatização, elementos buscados na materialidade de fontes como livros, impressos, cadernos, regulamentos, revistas etc.
Essa complexidade de relações entre a prática, os sujeitos, os objetos e a materialidade resultaria em um conjunto de conceitos a ser utilizados, dentre os quaisse destacam: representação e apropriação em A história cultural: entre práticas e representações (1990) de Roger Chartier; cultura escolar em A cultura escolar como objeto histórico de Dominique Julia (2001); forma escolar em Sobre a história da teoria e da forma escolar (2001) de Guy Vincent, Bernard Lahire e Daniel Thin; tática, estratégias e saber fazer em A invenção do cotidiano (1994)18 de Michel de Certeau.
Na historiografia do ensino profissional não houve a incorporação da abordagem da Nova História Cultural nem teórica e nem metodologicamente. Os diversos conceitos e autores que configuraram o campode pesquisa em História da Educação não foram utilizados.
Os motivos pelos quais a Nova História cultural não foi incorporada pelos trabalhos que analisaram a história do ensino profissional podem estar relacionados a três fatores: parte da produção foi elaborada nos anos de 1970, como é o caso de algumas análises de Cunha (2000b) e de Manfredi (2002); os trabalhos foram produzidos em outros campos de pesquisa que não o da História da Educação, como os de Moraes (2003), Ribeiro (1986), Caetano (1986), Gitahy (1986); a forma interpretativa, chave pela qual os autores se basearam para analisar a história do ensino profissional. Os dois primeiros fatores indicam que talvez não se pudesse incorporar a Nova História Cultural, em razão da distância em termos do lugar de produção e do período. Entretanto, o terceiro fator precisa ser melhor analisado, pois parece que impediu a incorporação de novos referenciais teórico-metodológicos. A abordagem no sentido de que o desenvolvimento industrial seria o balizador das análises sobre as iniciativas de ensino profissional, elemento comum em todos os trabalhos analisados, pode explicar, em parte, o distanciamento da Nova História Cultural.
A influência da questão do desenvolvimento industrial
Gitahy (1986) concluiu que, no Liceu de Artes e Ofícios,teria havido uma mudança nos procedimentos de qualificação profissional direcionados para o ensino científico, pautado na adoção de métodos racionais de ensino e seleção, conforme necessidades da indústria. Para a autora, o Liceudedicou-se à formação do operário completo, ou seja, um operário que dominasse todas as etapas da transformação da matéria-prima em produto, além da formação integral por meio das diversas disciplinas escolares - Português, Matemática, Geografia, Física, Química etc. Além disso, apesar de seu caráter manufatureiro, a escola teria, até 1934, contribuído para a formação de profissionais da indústria, colaborando no processo de desenvolvimento da cidade de São Paulo.
Ribeiro (1986) concluiu que as escolas profissionais analisadas não se interessaram necessariamente pela formação voltada à industrialização, mas pela organização do mercado de trabalho e da sociedade, visando o controle do operariado e sua sujeição. Para a autora (1986, p. 178), pelo processo de qualificação “[...] passa um reduzido número de trabalhadores, reforçando ainda mais a ideia de que a verdadeira escola profissional é a fábrica”. Ela tomou por base alguns dados, mas sem fazer referência ao total de alunos que deveria ser atendido ou à caracterização de ‘quem’ deveria tê-lo sido.
A conclusão de Caetano (1986) foi a de que o ensino ferroviário qualificou e reformulou o perfil do trabalhador, sujeitando-o ao coletivo ferroviário e, consequentemente, ao processo de produção capitalista.
Moraes (2003) chegou a três conclusões: 1) a instrução popular e o ensino profissional serviram para a sujeição e o disciplinamentodo trabalhador pela nova sociedade, marcada pelo padrão fabril; 2) não houve divergências, como sugeria a historiografia, entre os diversos projetos e facções políticos (republicanos, liberais, renovadores), os quais se mantiveram em torno dos mesmos ideais; no campo educacional, como em outros setores, as classes dominantes, representadas pelos renovadores (Lourenço Filho, Roberto Mange e outros), teriam se utilizado do poder estatal para atualizar suas estratégias pedagógicas, visando a sujeição do trabalhador; 3) o ensino profissional e a instrução popular foram incipientes, considerando-se a quantidade de escolas e pessoas que atenderam à atuação modernizadora do capital. Segundo a autora (Moraes, 2003, p. 430), o aumento do número deescolas, de cursos e de vagasnas escolas profissionais estaduais, no Liceu, nas escolas ferroviárias e no Senainão acompanhou o crescimento populacional nem as necessidades industriais de formação de mão-de-obra qualificada.
Buffa e Nosella (1998) concluíram que a divisão entre trabalho intelectual e manual, entre dirigentes e dirigidos, seria o aspecto principal para seranalisado no caso da escola profissional. De um ângulo histórico, segundo os autores, a modernização do trabalho permitiu que a escola, embora evoluísse de assistencialista para técnica, carregasse o estigma de ser destinada aos pobres.
Cunha (2000a, 2000b) desenvolveu a tese que derrocou a ideia de que o ensino profissional não se direcionou ao mercado de trabalho. A criação do Senai, segundo o autor (2000a, p. 238), colocaria o ensino profissional nos padrões da fábrica, ligando-o ao processo econômico brasileiro de substituição de importações, o que explicaria o sucesso da entidade ao longo das décadas de 1940 a 1980.
Manfredi (2002) analisou questões históricas sobre o ensino profissional à luz do conceito de trabalho e de suas transformações ao longo dos anos, entendendo que isso teria afetado o ensino profissional em suas concepções, bem como as disputas pelo controle e pelos objetivos de formação. Os significados e as modificações do conceito e da atividade de trabalho, das profissões, desde as sociedades primitivas, foram, segundo Manfredi (2002), fruto das transformações na ordem econômica e do advento do capitalismo. Tais transformações afetaram a organização do trabalho, da sociedade e da classe trabalhadora, pois organizaram as profissões necessárias ao desenvolvimento urbano e industrial.
De acordo com os trabalhos analisados, as modificações no processo de produção (processo de trabalho, mercado de trabalho, o desenvolvimento do capitalismo por meio da industrialização) foram o elemento definidor das práticas e das necessidades relacionadas à oferta do ensino profissional. Foi a transformação do processo de produçãoque gerou a urbanização, que determinou a passagem de um ensino assistencialista, baseado em métodos tradicionais, para um ensino racional, pautado em métodos científicos. Prevaleceu a interpretação mecânica de que os conflitos sociais, quando apareceram, foram determinados pela dinâmica interna do modo de produção, conforme destaca Bontempi Jr. (2005, p. 58):
Com efeito, se no modelo de explicação marxista da dinâmica social a ênfase não é posta na diferenciação estrutural gradual e cumulativa, mas no conflito de classes, entretanto, nele a mudança social permanece sendo endógena, porque é a dinâmica interna do modo de produção que leva às contradições internas que conduzem a sociedade aos conflitos.
Ao tratar do ensino profissional, os trabalhos em tela referem-se, preferencialmente, ao ensino destinado às ocupações da indústria ou, mais precisamente, às supostas necessidades de um tipo de ensino que auxiliasse o desenvolvimento da indústria.
O ensino industrial, segundo Cunha (2000a), tornou-se uma das estratégias para barrar o avanço operário, formar mão-de-obra nacional e prepará-la para a indústria. O autor afirma que a organização do ensino industrial foi indispensável ao atendimento das necessidades econômicas,como a substituição de importações, os problemas com a Guerra Mundial, a necessidade da formação de técnicos, a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, dentre outras que exigiam alta tecnologia: “As mudanças ocorridas na indústria brasileira durante a Segunda Guerra Mundial concorreram decisivamente para que se organizasse o ensino industrial enquanto sistema” (Cunha, 2000b, p. 121).
Para os autores, as iniciativas que não se destinaram ao mercado de trabalho industrial ou cujos objetivos não estiveram ligados a ele fracassaram justamente por não se relacionarem à ‘modernização’, à industrialização.
Os autores, seguindo a ordem cronológica de produção, utilizaram os seguintes referenciais: Moraes (2003) apresentou Ribeiro (1986), Gitahy (1986), Caetano (1986) como importantes referenciais; Cunha escreveu o prefácio do livro de Moraes (2003) e se baseou em Buffa e Nosella (1998) para tratar de parte de seus escritos; Manfredi (2002) afirma que se baseou em aspectos da história e em dados quantitativos de Cunha (2000a, 2000b). Parece ter ocorrido um conformismo entre eles. Ao analisar a historiografia da educação brasileira nos anos de 1970 e 1980, Bontempi Jr. (1995) utilizou a expressão ‘terreno do consenso’ para se referir a essa situação em que os autores se utilizaram como fontes e atestaram entre si suas próprias conclusões.
De forma geral, os trabalhos sobre o ensino profissional apresentados pautaram-se na utilidade do ensino profissional para a modernização do país e para a industrialização. Mesmo apresentando bom conteúdo de informações (cursos, programas, mecanismos de seleção, legislação), as conclusões são voltadas ao mercado de trabalho e ao desenvolvimento econômico/industrial do país. Em nenhum dos trabalhos são analisadas as práticas de ensino comercial ou agrícola, de forma substantiva ou abrangente como no caso do ensino industrial, fato que permite a presunção de que o ensino profissional, para esses autores, estaria restrito ao industrial manufatureiro, o que é explicitado por Cunha (2000b, p. 1-2):
O ensino profissional tratado neste livro abrange o orientado para a força de trabalho industrial e manufatureira, de modo que deixei de lado o voltado para a agricultura, a pecuária e todos os serviços. A concentração nesse segmento do ensino profissional justifica-se não só por suas características próprias como, também, pelo fato de que grande parte das políticas governamentais têm sido inspiradas em suas práticas, problemas e perspectivas, que acabam por serem estendidas a todos os demais setores.
Considerações finais
Entre os anos de 1970 até meados de 1980, a historiografia do ensino profissional esteve em sintonia com a forma de produção desenvolvida na História da Educação, apresentando características similares quanto aos períodos analisados, à interlocução principal com o Estado, ao predomínio de abordagens desenvolvidas nas Ciências Sociais e ao encaminhamento para a utilização de novas fontes.
Analisando-se a historiografia do ensino profissional, observa-se que, a partir dos anos de 1990, o deslocamento efetuado na História da Educação em direção à História Cultural e à Nova História Culturalpode ser verificado pelas fontes buscadas, até mesmo nos trabalhos produzidos nos anos de 1980. Se, de um lado, esses trabalhos, especialmente para suas conclusões a respeito da organização e do funcionamento da escola em seu cotidiano, utilizaram os documentos oficiais eos documentos internos das escolas, com mais ênfase, no trabalho de Buffa e Nosella (1998), por outro, tais conclusões permaneceram pautadas no processo de industrialização como o modelo a ser seguido.
O predomínio dessa ótica na historiografia do ensino profissional torna necessária uma revisão bibliográfica que favoreça a introdução de novos referentes interpretativos que permitam entendê-la no ambiente cultural.
Um grupo de pesquisadores apresentou e analisou a importante história do ensino profissional paulista, mas entende-se, com base nos elementos balizadores de suas incursões,que isso não permitiu que novos rumos fossem desvendados acerca de uma produção baseada nas mudanças ocorridas no campo da História da Educação. Apesar de analisar detidamente algumas experiências e mesmo atestando-as como inovadoras e pertinentes, ao buscar uma caracterização, os autores remeteram ao processo de industrialização, entendendo que este seria o elemento que o ensino profissional deveria atender, acompanhar e até conduzir.
Enfim, a Nova História Cultural não penetrou na historiografia publicada pelas editoras ou ainda não foi trabalhada nos programas de pós-graduação que investigam a história do ensino profissionalporque não foram utilizados os métodos e os referenciais em voga no campo da História da Educaçãoa partir dos anos de 1990. Inaugurou-se uma nova maneira de investigar em História da Educação nos anos de 1980 e 1990, mas essa nova maneira ainda não chegou integralmente à história do ensino profissional.
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