ARTIGOS
Recepção: 04 Agosto 2015
Aprovação: 02 Maio 2016
Resumo: As bibliotecas escolares são objetos particulares de investigação em História da Educação. Procuramos analisá-las do ponto de vista da organização cultural, dos agentes envolvidos e do espaço escolar específico. A biblioteca da Escola Complementar e Normal de Piracicaba é nosso objeto privilegiado. Procuramos apreender sua constituição e seus usos, entre 1897, ano de instalação da Escola Complementar de Piracicaba, a 1923, data dos últimos registros sobre o acervo feitos por seu diretor Honorato Faustino. As fontes eleitas são os relatórios, os anuários do ensino e a legislação estadual. Autores como Marta Carvalho e Antonio Viñao-Frago colaboram para a análise, ao abordar a biblioteca como coleção e espaço. São analisadas neste artigo as dificuldades enfrentadas pelos agentes, a consolidação de um espaço e a estruturação de um acervo substancial.
Palavras-chave: biblioteca escolar, escola normal, cultura pedagógica, Diretor Honorato Faustino.
Abstract: School libraries are special objects of research in History of Education. We sought to analyze this space from the point of view of cultural organization, the agents involved, and the specific school space. The library at the Piracicaba Complementary and Normal School is the object of study. From it, we learned the constitution and uses, from a period starting in 1897, with the implementation ofthe Complementary School of Piracicaba to the recent records on the collection made by the director of the school Honorato Faustino, in 1923. The selected sources are reports, Yearbooks of Education and state law. Authors such as Marta Carvalho and Antonio Viñao-Fragocollaborate with the analysis, by checking the library while collection and space. The difficulties faced by the agents, the consolidation of a space and the structuring of a substantial collection are analyzed in this article.
Keywords: school library, normal school, pedagogical culture, Director Honorato Faustino.
Resumen: Las bibliotecas escolares son objetos particulares de investigación en Historia de la Educación. Buscamos analizar dichos espacios desde el punto de vista de la organización cultural, de los agentes involucrados y del espacio escolar específico. La biblioteca de la Escuela Complementaria y Normal de Piracicaba, Brasil, es nuestro objeto privilegiado. De él comprendimos la constitución y sus usos, en un período que inicia en 1897, con la instalación de la Escuela Complementaria de Piracicaba hasta los últimos registros sobre el acervo hechos por el director de la escuela Honorato Faustino, en 1923. Las fuentes elegidas son los informes, los Anuarios de Enseñanza y la legislación educativa del Estado de São Paulo. Autores como Marta Carvalho y Antonio Viñao-Frago colaboran con el análisis, al conferir la biblioteca en cuanto colección y espacio. Las dificultades enfrentadas por los agentes, la consolidación de un espacio y la estructuración de un acervo sustancial son analizados en este artículo.
Palabras clave: biblioteca de la escuela, escuela normal, cultura pedagógica, Director Honorato Faustino.
Introdução
Estudos focados na constituição de bibliotecas escolares podem resultar em elementos novos sobre a história da escola e da formação de professores. Centrar a atenção nas bibliotecas do final do século XIX e do início do XX implica entendê-las como reveladoras de conformação de espaços, tempos, relações sociais e ações políticas e como definidoras de contornos de uma cultura escolar em institucionalização.
A biblioteca escolar, assim, pode ser pensada como um lugar da memória onde ocorrem práticas de leitura, de escrita e de interpretação, as quais são produtoras de sentidos, de comportamentos, de hábitos e de formação do leitor em um tempo e um espaço. Nesse território, resultante de ações institucionais, coletivas e pessoais, os agentes promovem uma série de enunciados, estratégias e táticas, tanto na aquisição e na organização do acervo quanto no estabelecimento de inter-relações sociais em torno do processo de escolarização.
Tomada aqui como tipo específico, a biblioteca de escolas normais pode ser compreendida como um espaço tanto de seleção, produção e circulação de saberes quanto de constituição de cultura pedagógica voltada para a formação de professores (Carvalho, 2007; Nery, 2013). No mesmo sentido, Vidal (2000) aponta que, nas primeiras décadas republicanas, a constituição de bibliotecas para auxiliar na preparação docente aglutinava discursos de excelência e aprimoramento profissional. Desse modo, uma história das bibliotecas de escolas normais revela um conjunto de saberes como característica de uma cultura pedagógica, identifica discursos da política de instrução pública, indica relações entre as prescrições legais e o vivido no cotidiano escolar, bem como apresenta a configuração de uma rede de agentes envolvidos em seu processo histórico.
O presente artigo tem como objetivo geral discutir a constituição da biblioteca da Escola Complementar e Normal de Piracicaba (1897-1923)2. Analisamos suas formas de organização, os usos e a atuação dos agentes em relação ao acervo. Assim, embora não nos detenhamos em analisar a cultura pedagógica, partilhamos da ideia de Marta Carvalho que define a biblioteca como
[...] coleções de livros que, destinadas ao uso de professores, organizam e constituem a cultura pedagógica representada como necessária ao desempenho escolar de seu destinatário, o professor. Parte-se do pressuposto de que, na materialidade da coleção, inscrevem-se dispositivos de constituição e organização dessa cultura (Carvalho, 2007, p. 18-19).
Tal opção deve-se ao fato de que a biblioteca da referida escola foi constituída principalmente para auxiliar a formação de professores, o que lhe confere a peculiaridade de uma cultura pedagógica.
Para desenvolver a análise, elegemos como corpus documental os ofícios manuscritos, a legislação da instrução pública paulista e os relatórios dos diretores da escola. Tais documentos foram consultados no Arquivo Público do Estado de São Paulo e no Arquivo Permanente da Escola Estadual ‘Sud Mennucci’, onde estão acondicionados. Ao assumir os relatórios de seus diretores - Antonio Alves Aranha e Honorato Faustino - como fontes fundantes, delimitamos a periodização entre 1897 e 1923. A baliza inicial representa os primeiros registros de iniciativas para a constituição do acervo da biblioteca em foco; a final indica a data do último relatório do diretor da escola referente ao acervo, o qual foi encontrado na série documental da pesquisa realizada. Depois dessa data, as informações sobre a biblioteca só podem ser obtidas mediante análise do próprio acervo.
Com base nas fontes consultadas, foi possível realizar interpretações sobre o processo histórico da constituição do acervo e do espaço da biblioteca, o que passa necessariamente pelo interesse e pelo empenho do diretor da instituição, bem como pelo papel socioprofissional do bibliotecário e pelo movimento bibliotecal composto por número de exemplares, número de consultas, gênero e idioma das obras. Tais elementos compuseram a cultura pedagógica relacionada à formação de professores em Piracicaba.
Iniciativas de constituição do acervo e do espaço da biblioteca
Com base em um conceito mais amplo de biblioteca e considerando-a como um conjunto de livros destinados a professores e alunos (Jacob & Baratin, 2000; Carvalho, 2007; Hébrard, 2009), podemos inferir que a biblioteca da Escola Complementar de Piracicaba tem origem nas estratégias de constituição do acervo e não necessariamente na criação oficial do espaço da biblioteca. Assim, começamos nossa análise da história da biblioteca pelos indícios de constituição do acervo. A criação dessa biblioteca não foi um fenômeno isolado: ainda no século XIX, as escolas em geral e as de formação de professores, especificamente, passaram a ter a biblioteca como espaço constituinte das atividades de formação.
As primeiras iniciativas de constituição da biblioteca escolar em foco podem ser datadas de 1897, primeiro ano de funcionamento da Escola Complementar de Piracicaba. Nesse ano, em 17 de maio, o diretor, Antonio Alves Aranha, remeteu um ofício à Secretaria de Estado dos Negócios do Interior, solicitando a aquisição de uma “[...] relação de livros necessários à pequena biblioteca que deve ter esta Escola” (Aranha, 1897). A denominação ‘pequena biblioteca’, aquela que todas as escolas complementares deveriam ter, estava prevista no artigo 226 do Decreto nº 218 de 27 de novembro de 1893 que aprovou o Regulamento da Instrução Pública do Estado de São Paulo (São Paulo, 1893).
A relação encaminhada continha cento e dezoito títulos indicados de livros de diversas áreas do saber: literatura, gramática, aritmética, álgebra, geometria, trigonometria, mecânica, cosmografia, astronomia, escrituração mercantil, história do Brasil, história universal, geografia, física, química, zoologia, história natural, geologia, anatomia, fisiologia, botânica, antropologia, biologia, higiene, música, dicionários de português, francês, química e música, entre outros. Com esta diversidade, nota-se, por um lado, certa preocupação do diretor em atender, com o mínimo necessário, os conteúdos ofertados na instituição e, por outro lado, o escasso número de obras a ser utilizadas na formação de professores, dada a ausência de títulos de pedagogia3.
A respeito da solicitação, a Segunda Sub-Diretoria e a Terceira Seção, instâncias governamentais responsáveis por emitir as primeiras apreciações ao pedido, apontaram a necessidade de uma autorização especial com a seguinte justificativa: “[...] ainda não se fez fornecimento de livros destinados a formar a biblioteca de uma escola complementar” (São Paulo, 1897).
O parecer acima é do Sr. Godoy, primeiro oficial da seção, entretanto o Sr. Francisco Botelho, chefe da 3ª seção, e o Sr. A. Toledo, subdiretor, entenderam que deveriam ser verificados os preços dos livros para que o secretário os visse e autorizasse, se julgasse conveniente. É provável que tal entendimento tenha alimentado expectativas de recebimento dos livros, mas, no relatório da Escola Complementar de 1900, o diretor Antonio Alves Aranha mencionava outra realidade:
A Escola ainda não possui biblioteca, tem apenas o grande dicionário de Larousse que foi oferecido pelo Sr. Major Armando de Campos Pacheco. É indiscutível a utilidade de uma biblioteca escolar em um estabelecimento desta natureza, para uso dos professores e alunos. Falta, entretanto, este melhoramento indispensável, tendo servido para consultas gerais a biblioteca particular dos professores (Aranha, 1900, p. 16).
Na citação, fica evidente que a solicitação de compra dos livros não foi atendida, que a biblioteca pensada pelo diretor era inexistente e que o suporte de livros para os estudos procedia dos acervos pessoais e das doações. Fica evidente também que uma das finalidades da biblioteca era ser um local de estudos para professores e alunos.
De qualquer forma, havia indícios de livros por doação, ainda que não seja possível determinar o ano de início dessa prática. A oferta do dicionário pelo Major Armando de Campos Pacheco ilustra uma relação entre membros da ‘boa’ sociedade e a escola para minimizar algumas deficiências de uma instituição incumbida de promover a formação de professores primários. A doação de livros era uma prática corriqueira de estímulo ao progresso dos alunos e à composição do acervo da escola. Tal ação também foi diagnosticada por Nery (2013) ao identificar que o político republicano Prudente de Morais havia doado à Escola Complementar o livro A instrucção nos Estados Unidos, de autoria do pedagogista Hipeau e traduzido por ordem imperial em 1871. Os livros doados não receberam carimbo da biblioteca, o que pode indicar que foram doados antes de sua criação propriamente dita.
Já a abertura dos acervos particulares dos professores, indica uma relação entre o privado e a formação profissional e cultural de alunos que participaram do processo de institucionalização escolar. Deixar que alunos e colegas professores consultassem a biblioteca particular era uma prática do professor para estimular o hábito de leitura e para acentuar as relações interpessoais em configurações privadas e públicas. Era também uma maneira de manifestar certo poder sobre saberes específicos; à medida que se detinham as publicações fundamentais, instalava-se um sentimento de poder do conhecimento.
No relatório de 1901, o diretor Antonio Alves Aranha considerou que a escola dispunha de todo o grosso material para seu funcionamento e relatou ter encontrado uma forma para adquirir alguns livros, qual seja, comprar livros por conta da verba de expediente. No entanto, o investimento em livros não foi especificado nas despesas anuais da escola, as quais chegaram ao valor de 49:610$000 contos de réis. A alternativa foi otimizar os recursos de expediente de forma a ampliar o pequeno acervo do estabelecimento que nem configurava uma biblioteca escolar, quiçá uma biblioteca-armário nos moldes descritos por Hébrard (2009)4.
O fato é que, na Escola Complementar de Piracicaba, durante sete anos, os professores formaram quatro turmas de complementaristas, que lecionariam no magistério primário sem que tivesse existido uma adequada biblioteca escolar para que desenvolvessem consultas, leituras e estudos aprofundados. Ou seja, a escola carecia de um espaço para potencializar a cultura pedagógica, científica e literária.
Em 1904, Honorato Faustino, tendo completado um mês na condição de diretor da Escola Complementar de Piracicaba, em um ofício endereçado ao Dr. José Cardoso de Almeida, Secretário de Estado dos Negócios do Interior e Justiça, além de listar os objetos requisitados para a escrituração dos livros da administração da escola, reivindicou a instalação de uma biblioteca: “Seria também de muita conveniência que esta Escola possuísse uma pequena biblioteca, ao menos dos livros adotados ultimamente para consulta de professores e alunos” (Faustino, 1904).
Com acervo pequeno, sem bibliotecário e sem um espaço apropriado, a biblioteca foi instalada em 1904.
A biblioteca da Escola, fundada por esta diretoria, em 1904, acha-se ainda muito pequena, tendo falta de obras modernas de ensino para consulta de professores e alunos. Seria conveniente que essa Secretaria conseguisse do Congresso este ano a votação de uma verba no orçamento de 2:000$000, para a compra de livros, como se fez em relação aos outros estabelecimentos congêneres do Estado. (Faustino, 1911, p. 04).
Sob a direção de Honorato Faustino, inaugurou-se oficialmente o espaço da biblioteca, elemento de cultivo intelectual de professores e alunos na Escola Complementar. Em 1917, ao responder a um questionário da Repartição de Estatística e Arquivo do Estado de São Paulo, o diretor escrevera que a biblioteca havia sido fundada em 01 de junho de 1904 (Faustino, 1917). Por coincidência, essa é a mesma data do início de seu exercício como diretor da referida escola. Por divergência de informação, Honorato Faustino, no ofício de nº 45 de 01 de julho de 1904, menciona que “[...] seria também de muita conveniência que esta Escola possuísse uma pequena biblioteca” (Faustino, 1904). Observamos, portanto, uma imprecisão na data de instalação da biblioteca, que vinha sendo processualmente constituída desde 1897 com a instalação da Escola Complementar.
O que podemos atestar é que, em 1904, fora destinado um espaço à biblioteca da Escola. Esse espaço de retirada e consulta dos livros, bem como o tempo destinado à leitura na escola e/ou em outros lugares, representa um elemento constitutivo da atividade educativa dos alunos-mestres e dos professores. Ainda, à medida que o espaço da biblioteca é percebido pelos sujeitos escolares, torna-se, na perspectiva de Vinão-Frago (2001), um lugar reconhecido, com significado e dimensão simbólica e didática.
Informações sobre a localização da biblioteca no antigo prédio da escola, situado na Rua do Rosário, na cidade de Piracicaba, não foram encontradas. Provavelmente, as obras estivessem acondicionadas no espaço da secretaria, já que existia um amanuense, que também exercia o cargo de bibliotecário. Naquele momento, para gerir o expediente escolar, estava em exercício Fernando Paes de Almeida. No novo edifício da Escola Normal Primária, inaugurado em 1917 e situado à Rua São João, segundo os registros do diretor Honorato Faustino (1917, p. 42), a biblioteca estava “[...] bem localizada em uma espaçosa sala do pavimento inferior”. No entanto, para o exercício letivo de 1918, foi necessário removê-la para outro espaço, porque tal sala teria outra finalidade.
Achava-se bem instalada também a biblioteca em uma sala na qual o secretário da Escola podia ao mesmo tempo desempenhar a sua função de bibliotecário. Foi necessário igualmente aproveitar-se esta sala, para na mesma funcionar a nova classe masculina do Curso Complementar. A biblioteca foi mudada para uma pequena sala, na qual se achava o arquivo da Escola (Faustino, 1918, p. 04-05).
A sala da biblioteca e a do museu escolar foram desocupadas para abrigar a seção masculina e a feminina das novas turmas do Curso Complementar, reinaugurado em 19175 e, então, funcionando como anexo da Escola Normal Primária de Piracicaba. Até o relatório de 1923, não se encontraram mais informações sobre a sala da biblioteca. Contudo, com base nos dados do movimento escolar de 1920, publicados na Revista de Educação (Orgam da Escola..., 1921, p. 64), observa-se: “Com a nomeação de um bibliotecário, cargo criado pela nova reforma, a biblioteca da Escola Normal pôde ter uma reorganização e ser instalada em local adequado”.
Fica evidente, portanto, que a disposição do espaço e a formação do acervo da biblioteca estiveram na dependência do processo histórico da instituição, da transformação do Curso Complementar em Curso Normal, bem como das políticas de ensino e de fomento providas pelos gestores da instrução pública do Estado de São Paulo. Por outro ângulo, a biblioteca, com o passar do tempo, constituiu-se como um espaço legítimo de organização, referência e socialização da cultura pedagógica vivenciada pelos agentes escolares.
Agente da cultura pedagógica: o bibliotecário
Além dos doadores de livros, professores detentores de acervos pessoais, alunos consulentes e diretores responsáveis pelos relatórios, pelos ofícios e pelo desenvolvimento da escola de Piracicaba voltada à formação de professores, pergunta-se: existia um agente responsável pela biblioteca? Qual era seu perfil socioprofissional? Quais eram suas competências?
No relatório de 1911, na descrição do pessoal da escola, identifica-se, no cargo de amanuense-bibliotecário, o professor Fernando Paes de Almeida, que, no entanto, tinha sido contratado anteriormente (Faustino, 1911). Sua contratação fora proposta ao Governo de Estado por meio do ofício nº 51, de 27 de janeiro de 1905, assinado pelo diretor Honorato Faustino: “Sendo de urgente necessidade a nomeação de uma amanuense para esta Escola, proponho para exercer este cargo o cidadão Fernando Paes de Almeida, que se acha na condição de poder desempenhá-lo” (Faustino, 1905).
Cabe destacar que, para a composição do pessoal das escolas complementares, o artigo 225 do Decreto n° 218 de 1893 não estabelecia a presença de amanuense, mas sim a de secretário-bibliotecário. Nesse mesmo artigo, em seu primeiro parágrafo, consta: “[...] as funções de secretário e bibliotecário serão cumulativamente exercidas por um dos professores, que receberá mais a gratificação de 600$000 anuais” (São Paulo, 1893). No mesmo Decreto, no artigo 299, previam-se três amanuenses, um secretário e um bibliotecário para o quadro de pessoal da Escola Normal da Capital; para as demais escolas normais, o artigo 300 previa um secretário acumulando o lugar de bibliotecário e dois amanuenses, um dos quais serviria como arquivista (São Paulo, 1893). Contudo, as escolas complementares do estado de São Paulo apresentavam em seus quadros o cargo de amanuense, como se pode observar nos Anuários do Ensino publicados na década de 1910.
Reitera-se, as escolas normais previam a formação de professores em níveis mais elevados do que as complementares; por isso, a exigência de um quadro de pessoal mais complexo. Porém, até 1911, o governo paulista conseguiu prover somente uma escola normal, a da Capital, e cinco complementares - Piracicaba, Itapetininga, Campinas, Guaratinguetá e uma anexa à escola normal da Capital (Nery, 2009a; Honorato, 2013). Diante dessa situação, os diretores das escolas complementares ficavam confusos e tinham dificuldades quanto à nomenclatura socioprofissional, amanuense-bibliotecário e secretário-bibliotecário, a ser utilizada para fazer suas requisições junto ao Estado. Segundo Sales (2013), a função aparece com diferentes nomenclaturas na legislação da instrução pública paulista publicada entre 1911 e 1913. Todavia, no que diz respeito ao acervo das bibliotecas escolares, as funções descritas eram praticamente as mesmas para o amanuense-bibliotecário, o secretário-bibliotecário e o bibliotecário.
No caso, foi deferida a indicação de Fernando Paes de Almeida, professor complementarista diplomado pela Escola de Piracicaba em 1904. Existem informações de que ele entrou em exercício no cargo de amanuense no dia 06 de fevereiro de 1905, mas não foram encontrados registros de que ele exercia simultaneamente o cargo de professor. Já, do ponto de vista da prescrição legal, ao amanuense das escolas normais competia “[...] fazer todo o serviço que lhes for atribuído ou determinado pelos secretários, que designarão anualmente um dos amanuenses para inventariar, em companhia dos porteiros, todos os móveis e os utensílios das escolas, menos os que estiverem sob a guarda e vigilância dos zeladores de museus pedagógicos e dos preparadores de física e química” (São Paulo, 1893, art. 327).
Segundo Nery (2013), Fernando Paes de Almeida, por ter formação de professor, pode ter contribuído para a constituição de um acervo voltado para a área de pedagogia, já que cabia ao funcionário da biblioteca, além da orientação de leituras aos alunos, a responsabilidade pela lista de livros a ser adquiridos. Tal prerrogativa era dividida com os professores, responsáveis pela indicação de novas obras, e com o diretor, responsável final pela lista de aquisição. Dentre os livros adquiridos no período em que era escola complementar, consta o de Faria de Vasconcelos (1909), Lições de pedologia e pedagogia experimental. Sua presença indica uma preocupação com a formação pedagógica.
Da contratação de Almeida depreendemos que o agente da biblioteca da Escola Complementar de Piracicaba operava, em um determinado momento e em termos de legislação, com a nomenclatura socioprofissional prevista para uma escola normal, o que pode ser um indício do desejo de uma complementar se tornar uma normal. Essa mudança, com certas diferenças, só foi efetivada em 1911 com a Reforma ‘Oscar Thompson’ (São Paulo, 1912a). Ao consultar os mapas do pessoal da escola, os quais eram manuscritos pelo diretor Honorato Faustino no período de 1905 a 1909 (Faustino, 1909), não visualizamos o cargo de secretário-bibliotecário, o que indica que tal ocupação inexistia no estabelecimento e que Fernando Paes de Almeida, na condição de amanuense, colaborava, sob a orientação do diretor, na secretaria e na pequena biblioteca. Outro indício dessa atuação é que os livros continham o carimbo com o nome da escola e o número de identificação, o que expressa a tentativa de organização do acervo.
Fernando Paes de Almeida exerceu oficialmente o cargo de amanuense até 1911. Quando a Escola Complementar de Piracicaba foi convertida em Escola Normal Primária, ele foi nomeado, em 18 de abril de 1911, como amanuense-bibliotecário. Segundo os relatórios do diretor Honorato Faustino, seu nome ficou vinculado a tal ocupação funcional até o ano de 1917. Mais uma vez, observamos que, no caso de Piracicaba, havia a disposição de um cargo não previsto na legislação, ou seja, na legislação das escolas normais primárias paulistas. Tal realidade também acontecia nas demais congêneres, conforme registros do Anuário do Ensino (São Paulo, 1907).
Na Consolidação das leis, decretos e decisões referentes ao ensino primário e às escolas normais, encontra-se o Decreto nº 2.225 de 16 de abril de 1912, cujo artigo 518 versa sobre o pessoal administrativo da escola normal primária, como a de Piracicaba. Nesse momento, tal estrutura constaria de um diretor, um auxiliar, um secretário-bibliotecário e uma professora-inspetora, além de um porteiro, dois contínuos e dois serventes (São Paulo, 1912a). Portanto, é inexistente a previsão legal da ocupação de amanuense-bibliotecário. Para as escolas normais secundárias, por sua vez, já era prenunciado, desde 1913, o cargo de bibliotecário desvinculado do de secretário.
A partir de 1918, nos relatórios do diretor Honorato Faustino, Fernando Paes de Almeida aparece ocupando o cargo de secretário-bibliotecário da Escola Normal Primária de Piracicaba. Tal registro ocorreu de forma tardia, provavelmente em razão da desatualização do modo de escrituração dos livros escolares por parte dos responsáveis: desde 1911, na legislação, estabelecera-se o cargo de secretário-bibliotecário que Fernando Paes de Almeida devia ocupar cotidianamente. Ao cargo competia:
a) fazer o trabalho de escrituração escolar, de acordo com as determinações do diretor, tendo sob sua guarda todos os livros;
b) ter sob sua guarda o arquivo e a biblioteca da escola;
c) não permitir a retirada de livros, salvo por algum professor ou aluno, mediante recibo, e pelo prazo de 15 dias, no máximo;
d) guiar os alunos na consulta de obras, evitar que as danifiquem, responsabilizando-os perante o diretor;
e) cumprir e fazer cumprir, na sala de leitura, as disposições regulamentares;
f) propor ao diretor a aquisição de novas obras, principalmente as que forem indicadas pelos professores (São Paulo, 1912a, art. 547).
O cargo de secretário-bibliotecário foi ocupado por Fernando Paes de Almeida até o fim do exercício de 1920. A partir de outubro do mesmo ano, o cargo foi ocupado pelo cidadão Henrique de Moraes Barros, incumbido de substituir o responsável efetivo durante o gozo de uma licença de seis meses.
Em 1921, Fernando Paes de Almeida assumiu o cargo de secretário. O de bibliotecário ficou sob a responsabilidade do professor João Alves de Almeida a partir de 04 de março do mesmo ano. Esse professor nasceu no dia 19 de outubro de 1882 no município de Itapetininga/SP, onde se formou na escola complementar em 1899. Entre 1900 e 1917, já em Piracicaba, foi professor adjunto do Grupo Escolar ‘Moraes Barros’; em 1915 foi professor de Francês, em comissão, da Escola Normal Primária e, em 1917, tornou-se professor adjunto de Matemática na Escola Complementar e bibliotecário da Escola Normal Primária (Faustino, 1921b; Rodrigues, 1930).
Assim, em 1921, o cargo de bibliotecário foi desvinculado do de secretário. Além disso, no mesmo ano, Elpídio Godoy de Oliveira ingressou no cargo de escriturário, colaborando nas tarefas do secretário da escola. Isso foi consequência da conversão da Escola Normal Primária em Escola Normal, estabelecida pela Reforma da Instrução Pública de 1920, conhecida como ‘Sampaio Dória’ (São Paulo, 1921). No artigo 332 do Decreto nº 3356 de 31 de maio de 1921 que regulamentou a Reforma ‘Sampaio Dória’, foram fixados um cargo de secretário e um de bibliotecário para compor o pessoal administrativo das escolas normais. As atribuições inerentes aos respectivos cargos, conforme o artigo 338 do Decreto, teriam como referência o regimento interno de cada escola. Da Escola Normal de Piracicaba pode-se compreender que as funções de bibliotecário eram compatíveis com as de um professor do Curso Complementar, pois o professor João Alves de Almeida era responsável pelos dois cargos em concomitância.
Considerando a formação e as competências profissionais dos dois principais responsáveis pela biblioteca da escola de Piracicaba (1897-1923), pode-se aventar que o bibliotecário, embora sem formação profissional específica em biblioteconomia, mais do que um mediador entre o leitor e o acervo, cumpria a função de um agente da cultura pedagógica. A imagem6 representa uma das ações do bibliotecário, que nos parece ser também o responsável pelas práticas de leitura dos alunos na biblioteca.

Fonte: Acervo fotográfico da Escola Normal de Piracicaba.
O bibliotecário, além de guardar, organizar, catalogar, emprestar, preservar e zelar pelo acervo, assumiu, com o passar do tempo, o lugar de agente proativo na circulação, orientação e constituição de uma cultura pedagógica. Ao mesmo tempo, acompanhava, informava, selecionava, incentivava e orientava a prática de leitura dos alunos do curso de formação de professores, bem como oferecia suporte aos mestres e ao diretor da escola quanto à qualidade do acervo existente e das novas aquisições.
Destaca-se que os carimbos indicam o momento em que os livros entravam no acervo, da mesma forma que os números constantes na lombada dos exemplares indicam algumas das ações do(s) bibliotecário(s). A partir de 1911, o orçamento da Secretaria do Interior destinado à Diretoria Geral da Instrução Pública passou a ter a rubrica ‘Livros para a Biblioteca’ e, dessa forma, a Escola Normal Primária de Piracicaba começou a ter recursos para essa finalidade. Com isso, o responsável pela aquisição dos livros, segundo a legislação vigente, era o secretario-bibliotecário, outro forte indício da ação deste personagem.
Movimento e o uso bibliotecal
O movimento estatístico e o uso da biblioteca ilustram parte da dinâmica constituinte da cultura pedagógica em uma escola de formação de professores. A escrituração dos dados era função do responsável pela biblioteca, cabendo ao diretor apresentar os relatórios à oficialidade. No caso, o acervo da biblioteca da Escola de Piracicaba foi se constituindo e crescendo ao longo dos anos e, certamente, acompanhando os avanços dos modelos pedagógicos, como leva a entender o registro memorialístico publicado no ‘Livro Jubilar da Escola Normal da Capital’: “A Escola (Normal de Piracicaba) está provida de farto aparelhamento para o ensino moderno e intuitivo, de ótimo laboratório, museu pedagógico, gabinete de Psicologia Experimental, e possui uma biblioteca de cerca de cinco mil volumes, e uma biblioteca infantil” (Rodrigues, 1930, p. 142).
O aumento processual do número de obras e de volumes pode ser observado no quadro a seguir:

Em 11 anos, em número de obras, o acervo da biblioteca aumentou 140,7% e, em volumes, 170,2%. Na quantidade de consultas também houve aumento, exceto no ano de 1919, quando foi registrada uma queda significativa. Tais acontecimentos justificam também a pertinência de se ter um cargo de bibliotecário, considerado um espaço mais apropriado ao robustecimento do hábito de leitura empreendido pelos agentes escolares. Cabe destacar que a prática de leitura na biblioteca compunha o cotidiano escolar, como ilustra a imagem a seguir:

Fonte: Orgam da Escola Normal... (1922, p. 130).
Pela imagem, pode-se inferir que a biblioteca era de uso dos alunos da Escola Normal e também dos alunos da Escola Modelo, que ficava em prédio distinto e distante da Escola Normal7. Essa realidade implicava um deslocamento por parte dos alunos da Escola Modelo e a convivência de alunos de diferentes níveis de escolarização no mesmo espaço. Tais acontecimentos também provocavam relações escolares entre normalistas e alunos do ensino primário, que eram pauta central na preparação pedagógica dos futuros professores.
Retomando a questão do tamanho do acervo, em 1916, a biblioteca do estabelecimento ainda podia ser considerada pequena, como relata o diretor Honorato Faustino:
Uma das criações da Escola Normal, que tem dado os mais promissores resultados, é a sua pequena biblioteca. Ainda não são muito numerosas as obras que possui, sendo, entretanto, cuidadosamente escolhidas no que há de mais recomendado, quer em matéria de educação e ensino, quer nas bibliografias científica, literária e artística.
Possui atualmente um total de 1005 volumes, diária e constantemente consultados tanto por alunos como por professores (Faustino, 1916, p. 34).
O acervo era acanhado, mas havia a preocupação de adquirir, socializar e fomentar a leitura de obras de reconhecido valor pedagógico, científico e literário. Isso mostra que estruturar a formação de professores implica reunir saberes específicos materializados em livros, cartilhas, coleções, revistas e demais impressos pedagógicos adquiridos em situações culturais particulares, em tempos determinados e com finalidades definidas.
O acervo da biblioteca foi se ampliando por meio de doações, permutas, assinaturas de periódicos e compra de livros com recursos previstos em orçamento. Observa-se que, após a conversão das escolas complementares em normais primárias ou secundárias, foi obtido um apoio financeiro resultante da previsão de verba no orçamento do Estado especificamente para a aquisição de livros às bibliotecas. Foi nesse sentido que, em 1911, o diretor Honorato Faustino afirmara que, para a compra de livros, seria conveniente que, naquele ano, a Secretaria de Estado dos Negócios do Interior conseguisse do Congresso a votação de uma verba no orçamento de 2:000$000 contos de réis, como já tinha sido feito em relação a outros estabelecimentos congêneres do Estado.
A solicitação foi contemplada com o recurso financeiro para o exercício de 1912, como é relatado:
A biblioteca, fundada por esta diretoria em 1904, tem-se aumentado progressivamente, achando-se atualmente enriquecida com boas obras de educação e ensino mandadas vir especialmente do estrangeiro. Com a verba de 2.000$000 consignada na lei do orçamento para este ano, e destinada à compra de livros, a biblioteca desta Escola poderá melhorar ainda mais com a aquisição de obras que ainda lhe faltam (Faustino, 1912, p. 11).
Analisando o orçamento do Estado para exercício financeiro de 1912, Nery (2009a, p. 06) afirma: “[...] é possível verificar que a quantia destinada para esta mesma rubrica para as escolas normais secundárias era praticamente o dobro da destinada às escolas normais primárias e esta variava de uma escola normal primária para outra”.
É pertinente apontar que a verba consignada em orçamento, destinada a uma determinada escola, tanto variava de um ano para o outro quanto nem era aplicada em alguns anos. Em 1912, a Escola Normal Primária de Piracicaba recebeu dois mil contos de réis; em 1917, um mil contos de réis e, em 1918, solicitou-se o uso da rubrica para o exercício de 1919, o que indica a não aplicação da verba no ano corrente.
Há necessidade de ser aumentado número de obras, principalmente em língua portuguesa, havendo para este ano, e para esse fim, a verba de um conto de réis, que ainda não concedida mediante pedido que acompanhado de uma relação de livros que julguei convenientes (Faustino, 1917, p. 42).
A biblioteca ressente-se da falta de vários livros de consulta, havendo necessidade de que este ano seja aplicado a verba consignada em orçamento, para aquisição dos livros mais necessários (Faustino, 1918, p. 04).
Com recursos disponíveis e consignados nos orçamentos anuais, o acervo da biblioteca da Escola Normal se ampliava gradualmente. Nesse sentido, Honorato Faustino relata que, em 1912, o acervo foi enriquecido com obras oriundas do estrangeiro.
Observamos que, em 1914, nos relatórios da Escola Normal Primária de Piracicaba, o registro do número de obras, distribuídas por idioma na biblioteca, foi uma prática de escrituração do bibliotecário. Destacamos que, em 1915 e 1916, não houve anotações dessa ordem, mas, de 1917 em diante, a Repartição de Estatística do Arquivo do Estado de São Paulo passou a solicitar que os diretores escolares enviassem o movimento da biblioteca durante o ano, respondendo, por exemplo, ao seguinte questionário:
Biblioteca da Escola Normal de Piracicaba
Data da sua fundação? 1º de junho de 1904.
Em que lugar funciona? No edifício da Escola Normal.
É independente ou anexa a alguma instituição? É anexa à Escola Normal.
1º Qual o número de obras que possui essa biblioteca? 778.
2° Qual a totalidade em volumes? 1050.
3º Qual a média anual de leitores durante o ano? 312.
4° Quantas obras em português? 616.
E em francês? 150.
E em italiano? 1.
E em espanhol? 0.
E em latim? 1.
E em inglês? 8.
E em alemão? 2.
E finalmente em outras línguas? 0.
Total: 778.
5º Quantas obras recebeu durante o ano? 45.
Por compra? 45. Por doação? 0. Por permuta? 0.
6° Quantas revistas e jornais receberam durante o ano? 12 (Faustino, 1917, p. 42-43).
As respostas do questionário subsidiaram a elaboração dos quadros estatísticos a seguir, nos quais está apresentada a quantidade de obras conforme o idioma de origem:

Como era de se esperar, em terra luso-brasileira, as obras em português eram maioria em todos os anos referendados. Porém, quando se compara o percentual de aumento do número de obras em cada idioma específico no período de 1914 a 1923, os livros em francês são percentualmente a maioria. Isso porque, no período, o aumento do número de livros em francês adquiridos foi de 183,1%, enquanto o de livros em português foi de 150,1%.
Tal percentual se deve ao fato de que a cadeira de Francês passou a fazer parte do currículo dos normalistas, além de a escola francesa representar certo grau de civilidade inspirador à escolarização brasileira. Chama a atenção o dado de que, no ano de 1922, comparado ao de 1921, foram adquiridas mais obras em francês do que em português.
Fazemos ainda dois apontamentos em relação ao Quadro 2. O primeiro refere-se à aquisição de cinquenta e cinco obras em espanhol entre os anos de 1921 a 1923, talvez porque, em 1920, o estabelecimento tenha sido equiparado à escola normal. No entanto, observamos que a língua espanhola não estava prevista no programa oficial de ensino. O segundo refere-se à menção de duas obras em alemão até 1920, à redução do número de livros em inglês de 8 para 3 em 1923 e à variação entre 1 e 2 livros em italiano listados entre 1921 e 1923. Tais informações, entre tantas razões, podem estar relacionadas a desaparecimento de livros no acervo de um ano para outro ou a descuido do bibliotecário na elaboração do inventário da biblioteca.
Sobre o movimento de obras consultadas em cada idioma, encontramos informações referentes aos anos de 1921, 1922 e 1923, conforme segue:

As obras em português receberam 90,4%, em francês 6,1%, em espanhol 2,7%, em latim 0,6% e em inglês 0,2% das consultas realizadas pelos beneficiários entre 1921 e 1923. Comparando o movimento de obras consultadas com o de obras adquiridas, observamos que a maior aquisição de obras em idiomas como o francês e o espanhol, guardadas as proporções, não significou maior resultado nas consultas.
Os professores e os alunos faziam uso da biblioteca. Entre 1922 e 1923, reservadas as proporções, os alunos consultaram mais vezes o acervo. Em 1922, por exemplo, os dados de relatório apontam 314 consultas de professores para 3.970 de alunos.
Em 1923, o número de consultas de cada segmento conforme o idioma das obras é mostrado no quadro a seguir.

Comparando a opção dos alunos com a dos professores, no caso da predileção por consultas em obras em português em relação às demais publicações, observamos que a diferença percentual é pequena. A consulta de livros em português pelos alunos perfaz 90,2% e pelos professores, 86%. Havia um relativo equilíbrio entre as escolhas dos alunos e as dos professores em relação ao idioma a ser lido.
Considerando resultados da pesquisa sobre o acervo histórico da biblioteca da Escola Normal de Piracicaba, de Nery (2009a, p. 07-08) afirma que “[...] no tocante à nacionalidade dos livros há um volume significativo de livros publicados em Portugal”. As editoras que mais aparecem são a Francisco Alves, com sede na cidade de São Paulo, a Pocai-Weiss e a Garnier, duas editoras nacionais; além delas, destaca o caso específico da Typographia do Jornal de Piracicaba, que publicava livros escritos pelos professores da Escola Normal local. As obras em idiomas estrangeiros representam, de certo modo, os autores, os saberes pedagógicos e os modelos culturais que circulavam na formação de professores.
Sobre a especificidade da área de conhecimento das obras consultadas no período entre em 1921 e 1923, têm-se os seguintes dados:

O número de consulta de cada especificidade sugere que o uso das obras se fazia na seguinte ordem dos saberes: 1º) literários; 2º) históricos humanos e naturais; 3º) pedagógicos; 4º) químicos, físicos e matemáticos; 5º) voltados ao cultivo físico, estético, higiênico e cívico. Tal ordem não expressa um enquadramento rígido da preferência e do hábito de leitura do aluno em formação docente ou dos demais consulentes, mas indica os caminhos trilhados por sujeitos envolvidos em uma cultura pedagógica também alicerçada em um lócus denominado biblioteca escolar.
Em particular, no que diz respeito aos saberes pedagógicos, Nery (2014), ao analisar a materialidade das obras existentes no acervo da biblioteca da Escola Normal de Piracicaba, considera que existia uma profusão de tendências e correntes pedagógicas. Consideramos também a classificação feita por Carvalho (2007), segundo a qual, durante o período da Escola Complementar e o da Normal Primária de Piracicaba (1897-1920), havia forte presença de livros pedagógicos nos moldes da ‘Caixa de Utensílios’ e do ‘Guia de Aconselhamento’ e, mais tarde, tornaram-se cada vez mais notáveis os livros de ‘Tratado de pedagogia’. Em sua pesquisa, Nery (2014) identificou também diversos livros que compunham a cultura pedagógica, dentre eles: Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso dos pais eprofessores, de Norman Allison Calkins (1886); Educação e ensino, de Agostinho de Campos (1911); Lições de pedologia e de pedagogia, de Faria de Vasconcelos (1909); Manual prático de pedagogia: para uso dos professores em geral e em especial dos professores do ensino médio e primário, de José Augusto Coelho (1901).
Por sua vez, o aumento das consultas ao acervo, por parte dos alunos e dos professores, indica incorporação de práticas:
[...] sendo de se notar que no nosso meio escolar já conseguimos desenvolver satisfatoriamente o gosto pela leitura, trabalho esse que tem sido levado a efeito paulatinamente, desde 1904, ano em que tendo esta diretoria assumido a direção da Escola Normal, foi instalada a biblioteca e aberta ao pessoal docente e discente do estabelecimento (Faustino, 1916, p. 34).
Para esse diretor, era fundamental formar o hábito de leitura, pois, assim, as bases da educação do professorado e, por conseguinte, do cidadão, seriam mais consistentes. Em sua concepção, o gosto pela leitura deveria ser desenvolvido desde a infância.
Quando estiver instalada esta Escola em seu novo edifício, tendo-se mais apropriadas instalações, pode-se dar um pouco mais de extensão à parte educativa que se refere à biblioteca, criando-se uma seção de obras especialmente destinadas às crianças, o que será de grande alcance, por se ter ensejo de ir criando desde a infância o hábito da leitura, tão pouco cultivado entre nós (Faustino, 1916, p. 34).
Honorato Faustino entendia que, além da biblioteca já existente na Escola, dever-se-ia criar uma biblioteca infantil. Assim, processualmente, ele e os demais agentes do estabelecimento investiram forças na constituição de um espaço destinado ao uso infantil, conforme registrado em relatório de 1918: “[...] sendo de toda a conveniência a fundação de uma biblioteca infantil, esta diretoria já providenciou para que se possa converter essa ideia logo em realidade, contando com o apoio e auxílio do Governo do Estado” (Faustino, 1918, p. 05).
A biblioteca infantil ficaria anexa à biblioteca da Escola Normal e sua finalidade seria estimular o hábito de leitura na criança, além de disponibilizar obras que poderiam guiar os professores primários na execução dos programas de ensino. Esse projeto foi materializado em 1921.
Anexa à biblioteca da Escola Normal criei em 1921 uma biblioteca infantil, destinada às crianças do Grupo Modelo e das Escolas Isoladas, com o fim de habituá-las à consulta de livros e criar o gosto pela leitura. Para essa biblioteca mandei fazer uma mesa e bancos com altura apropriada. Os resultados desta iniciativa são incontestáveis, pois é uma providência de há muito adotada nos Estados Unidos com o melhor êxito (Faustino, 1921a, p. 21).
Fica evidente que, na criação da biblioteca infantil, manifestava-se inspiração norte-americana, bem como na adequação da mobília para a disposição do corpo do futuro leitor. A ideia era de que, o leitor estando desconfortável, a leitura não fluiria e se transformaria em um desprazer inibindo o cultivo de tal prática.
O acervo da biblioteca era especialmente destinado à população infantil: constituía-se de cartilhas, contos, coleções e obras de conhecimentos gerais, enfim, livros que o diretor Honorato Faustino (1922, p. 36) chamou carinhosamente de obrinhas: “A biblioteca infantil tem sido frequentemente procurada pelas crianças do Grupo e Escolas Isoladas Modelo, vão elas assim se afazendo ao hábito da leitura, que precisamos intensificar em nosso país. Consta atualmente de 142 obrinhas, em 162 volumes”6.

Com efeito, o acervo infantil, o aumento de aquisição de obras, a natureza das consultas efetivadas, as políticas públicas de financiamento de compra de livros e a exigência oficial de relatório anual do movimento estatístico bibliotecal indicam formas da estruturação e de organização de uma cultura pedagógica pertinente à formação de professores e ao avanço da estruturação do aparelho escolar paulista. Assim, estruturar constantemente a biblioteca escolar era também potencializar constantemente o hábito de leitura do aluno-mestre a ser introduzido no magistério primário e incumbido de inscrever inovadoras práticas e saberes na cultura escolar.
Considerações finais
A constituição, o movimento estatístico e os agentes envolvidos na biblioteca da Escola Complementar e Normal de Piracicaba (1897-1923) permitem visualizar as formas pelas quais a cultura pedagógica floresce no movimento de organização do acervo destinado à formação de professores e aos alunos do ensino primário.
A constituição da biblioteca foi prevista na legislação, mas, em razão da precariedade das políticas públicas efetivadas, foi um processo lento, resultante da insistência dos agentes locais. Por isso, neste artigo, discutimos efetivamente as dificuldades institucionais e os esforços de agentes envolvidos - sobretudo os diretores e os bibliotecários - na constituição de uma biblioteca escolar.
Ter uma biblioteca representava fomentar um lugar legítimo de organização, de referência e de socialização da cultura pedagógica produzida e experimentada pelos alunos e mestres. Como lugar e tempo pedagógico, a biblioteca tornava-se um elemento básico na atividade educativa, já que não era somente um espaço, mas correspondia ao objetivo de se constituir em uma realidade na cultura escolar.
Um agente de destacado papel foi o bibliotecário que, nas primeiras leis destinadas à escola analisada, aparecia desempenhando um cargo plural que, gradualmente, foi se tornando específico. Dessa forma, o agente foi ampliando o seu domínio de conhecimento sobre o acervo bibliográfico e fomentando o hábito de leitura. A criação oficial do cargo exclusivo de bibliotecário, em 1920, representou uma maior racionalização da biblioteca das escolas normais.
Como desfecho, quanto mais atenção era despendida à biblioteca escolar no que diz respeito ao espaço, ao bibliotecário e ao financiamento do acervo, mais atenção se despendia à qualidade da preparação de docentes para o magistério primário, materializada também no uso bibliotecal. A biblioteca acondicionava impressos pedagógicos que, para a época, eram considerados recursos sofisticados para potencializar e valorizar a formação profissional pautada nos saberes pedagógicos, literários e científicos. A gama de títulos e temáticas expressa a tentativa dos agentes em incorporar os saberes necessários à formação do público leitor.
Por fim, diante da descentralização do ensino que imperava naquele momento -determinando a responsabilidade exclusiva dos estados sobre a formação de professores - e também da ausência de políticas educacionais para o livro didático - tanto no âmbito estadual, quanto no federal -, estudar iniciativas como a que se apresenta neste artigo é uma forma de colocar em evidência as especificidades dos sistemas de ensino no Brasil, sobretudo no que se refere à constituição de bibliotecas escolares.
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Notas