ARTIGOS
Professoras e alunos negros no litoral norte do Rio Grande do Sul (meados do século XX): o aprendizado da cor
Profesoras y alumnos negros en el litoral norte do Rio Grande do Sul (mediados del siglo XX): el aprendizaje del color
Black teachers and students on the northern coast of Rio Grande do Sul (mid-twentieth century): the learning of color
Professoras e alunos negros no litoral norte do Rio Grande do Sul (meados do século XX): o aprendizado da cor
Revista Brasileira de História da Educação, vol. 17, núm. 2, pp. 235-259, 2017
Sociedade Brasileira de História da Educação
Recepção: 22 Janeiro 2015
Aprovação: 19 Janeiro 2017
Resumo: No artigo, analiso práticas educacionais na comunidade negra rural de Morro Alto, localizada no litoral norte do Rio Grande do Sul.A dita comunidade atualmente pleiteia a titulação de suas terras como ‘remanescente de quilombos’. Enfocam-se o período de meados do século XX, o processo de ensino (a partir da trajetória de três professoras) e o processo de aprendizado por crianças que lograram frequentar os bancos escolares. Além desses aspectos, estudo as ‘escritas de si’ daqueles que aprenderam a ler e redigiram registros sobre sua experiência pessoal ou grupal, entendendo-as como constituintes de subjetividades. Trago a hipótese de que o acesso ao ensino formal se constituiu como uma oportunidade de ascensão social, mas sobretudo como um mecanismo de empoderamento de mulheres negras que utilizaram a autoridade docente conquistada como meio decombate ao racismo e à consequente evasão escolar.
Palavras-chave: professoras negras, empoderamento, litoral norte do Rio Grande do Sul, racismo.
Resumen: El artículo se propone al análisis de prácticas educacionales en la comunidad negra rural de Morro Alto, ubicada en el litoral norte de Rio Grande do Sul, Brasil. Esta comunidad actualmente es pleiteante de la titulación de sus tierras en la condición de ‘remanente de quilombos’. Será enfocado el período de mediados del siglo XX, en cuanto al proceso de enseñanza (a partir de la trayectoria de tres profesoras), y sobre el proceso de aprendizaje por niños que lograron frecuentar los bancos escolares. Además de los aspectos mencionados, estudio las ‘escrituras de sí’ de aquellos que aprendieron a leer y redactaron registros sobre su experiencia personal o grupal, entendiéndolas como constituyentes de subjetividades. Traigo la hipótesis de que el acceso a la enseñanza formal constituyó una oportunidad de ascensión social, pero sobre todo un mecanismo de empoderamiento de mujeres negras que utilizaron la autoridad docente conquistada como medio de combate al racismo y a la consecuente evasión escolar.
Palabras clave: profesoras negras, empoderamiento, litoral norte de Rio Grande do Sul, racismo.
Abstract: The article aimed to analyze educational practices in the rural black community of Morro Alto, on the northern coast of Rio Grande do Sul. The community is currently a claimant of the titling of its lands as a ‘remnant of quilombos’. The period of the mid-twentieth century is focused, regarding the teaching process (from the trajectory of three teachers), and the learning process by children who have managed to attend school. In addition to the aforementioned aspects, it is studied the ‘self-writing’ of those who have learned to read and have written records about their personal or group experience, understanding them as constituents of subjectivities. Itis hypothesized that access to formal education was an opportunity for social advancement, but above all a mechanism for the empowerment of black women who have used the teaching authority they have acquired as a means of combating racism and consequent school dropout.
Keywords: black teacher, empowerment, northern coast of Rio Grande do Sul, racism.
Introdução
Muito antes da lei 11.645 (Brasil, 2008), que definiu a obrigatoriedade do ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas, a educação já se configurava como um âmbito a ser conquistado pela população negra; não exatamente no debate de conteúdos programáticos, mas no próprio ingresso nos bancos escolares. Em uma sociedade letrada, o acesso a algumas competências e habilidades oportunizadas pelo ensino formal constituem oportunidade de status - intra e extracomunitário - e até mesmo de ascensão social tanto para professoras quanto para alunos negros. Havia a necessidade de escrever, assinar, ler, fazer contas: tais competências ofereciam a possibilidade de uma vida melhor, de uma autonomia diante de terceiros e de ‘não ser enganados’1.
Exatamente por essa razão, o acesso à educação configurava-se como campo de disputa. Com efeito, segundo Goody (1987, p. 269), a discrepância entre linguagem escrita e oral, bem como as diferentes pronúncias dela decorrentes, constituem um poderoso fator de discriminação de classes sociais - ou de categorias sociorraciais. O domínio sobre outros códigos culturais pôde, portanto, minimizar esta distância e viabilizar uma expansão do horizonte de possibilidades de atuação social.
Conforme veremos, a presença de uma professora branca ou negra implicava um tratamento diferenciado para os alunos conforme a ‘cor’. Ainda que houvesse por parte dos pais, muitas vezes, a necessidade de tirar as crianças das escolas (ou mesmo de não as levar) para o auxílio na lavoura, já que, como a economia camponesa se caracteriza pela autoexploração da unidade familiar (Chayanov, 1979), o investimento na escolarização de uma criança e a subtração dos braços do trabalho camponês representavam um supremo esforço familiar. No entanto, é igualmente verdade que a conduta ou a prática racista de muitas professoras também poderia levar à evasão escolar.
Ser professora,entre as mulheres negras, era um status bastante almejado, reconhecido como resultante de hercúleos esforços familiares. Era uma possibilidade de ascensão social, na medida em que trazia reconhecimento e deferência na própria comunidade: tais moças também eram ‘valorizadas’ no mercado matrimonial, pois, com isso, apresentava-se a possibilidade de se casarem com homens mais brancos - as hierarquizações cromáticas operavam no interior da própria comunidade - ou mais bem situados profissionalmente. Era uma oportunidade de participar do espaço público - masculino por excelência -e escapar das limitações do espaço doméstico, mantendo sua honra intacta. Ao mesmo tempo, não há dúvidas, havia a possibilidade de dar um direcionamento menos hierarquizante racialmente ao processo de ensino-aprendizagem. Isso era reconhecido e valorizado pelos demais familiares e integrantes da comunidade.
Analiso alguns exemplos de professoras e alunos, no mais das vezes aparentados, da comunidade de Morro Alto - na divisa dos municípios gaúchos de Osório e Maquiné. Essa comunidade, desde o início dos anos 2000, vem pleiteando o reconhecimento e a titulação como ‘comunidade remanescente de quilombos’.2 É em razão de sua situação política que me atrevo a apresentar os nomes completos dos atores sociais aqui retratados, mesmo porque seu pleito exige sua visibilidade e não seu ocultamento. De mais a mais, para isso, foram colhidas autorizações escritas das pessoas entrevistadas. Optei por uma observação intensiva em lugar de panorâmica. O que perco em ‘representatividade’ ganho em densidade de análise, já que um olhar mais detalhado e atento possibilita a percepção de dinâmicas do funcionamento social que passariam batidas se me restringisse a uma observação mais generalista (Levi, 1992; Revel, 1998).
Desse ponto de vista, bastaram-me os exemplos de três professoras - de resto, bastante abrangentes, já que foram pouquíssimas as mulheres negras que lograram conquistar esse lugar em meados do século XX na região do litoral norte do Rio Grande do Sul - que ‘ensinaram’, dois alunos que ‘procuraram aprender’- universo menos restrito, mas também limitado - e dois que não apenas ‘aprenderam’, mas também ‘escreveram’ histórias de sua família e de sua ‘gente’. O último vocábulo é um termo êmico por meio do qual os integrantes da comunidade negra do Morro Alto costumam descrever seus vínculos de parentesco.Não de forma coincidente, a quase totalidade dos personagens que virão à tona neste artigo entrelaçam-se como parentelas interligadas.
Amparo-me, principalmente, em entrevistas realizadas no início da década de 2010 - mas também em uma de dez anos antes. Existe, também, um precioso texto autobiográfico de Ercília Marques da Rosa, valorizada na memória local como a primeira professora negra do litoral norte. É evidente que não me furtos à análise de sua redação, não exatamente como fonte fidedigna do que se passou, mas principalmente como forma de acessar a percepção que ela tinha acerca de seu próprio passado.
Localizar: o espaço geográfico e de ocupação histórica do Morro Alto
O município de Osório localiza-se a cerca de 100 quilômetros de Porto Alegre, rumo ao litoral. Denominado de Conceição do Arroio desde o período colonial até o Estado Novo, costumava abranger uma área bastante superior à que atualmente ocupa e incluía os balneários oceânicos, a encosta da serra e o complexo lagunar característico da região. Ao longo do século XX, em um processo que havia se iniciado já no século XIX, diversos municípios emanciparam-se, inclusive o de Maquiné, na década de 1990. A comunidade negra de Morro Alto situa-se exatamente na divisa entre os dois municípios.
Trata-se de uma região composta de diversas localidades de população negra interligada por vínculos de parentesco eque, atualmente, se encontra unida em torno de um projeto político comum: o reconhecimento e a titulação como comunidade quilombola. Assim, aquilo que hoje se denomina como ‘comunidade negra de Morro Alto’ se espraia por um território reivindicado que totaliza mais de 4.000 hectares, incluindo lugares como Aguapés, Barranceira (no município de Osório), Ramalhete, Faxinal do Morro Alto, Borba, Ribeirão do Morro Alto, Espraiado, Prainha (no município de Maquiné).Todavia, a localidade do Morro Alto, propriamente dita, situa-se no entroncamento entre as rodovias BR-101 e RS-407 (que segue em direção à praia de Capão da Canoa). Dista cerca de 24 quilômetros da cidade de Osório e 12 quilômetros de Maquiné.
A região se caracteriza por atividades como a lavoura de subsistência, a plantação de cana e produção de seus derivados, como açúcar, rapadura e aguardente, a criação de animais, a plantação de bananas e, mais recentemente, o extrativismo mineral - pedreiras e extração de areia. Até meados do século XX, os terrenos não eram cercados. Sua delimitação coincidiu com a construção da BR-101, que cindiu seu território e oportunizou que a margem oriental dos terrenos - entre a estrada e a lagoa - fosse expropriada por fazendeiros brancos (Corrêa, 1978; Barcellos et al., 2004; Weimer, 2013).
A comunidade de Morro Alto se constituiu pela ocupação territorial de antigos escravos e descendentes de uma ampla região desvalorizada pelos ex-senhores após a abolição da escravidão e, sobretudo, depois da guerra civil de 1893-1895. Ocorreu um entrelaçamento de parentelas nos séculos XIX e XX. Processou-se uma ocupação territorial através de diferentes modalidades: aquisição de terrenos - muitas vezes sem a devida formalização cartorial, ‘de boca’ ou por ‘recibos’ -, posses, doações - formalizadas por escrito ou não -, terras deixadas ‘para tomar conta’ (Barcellos et al., 2004). Tais famílias se entremesclaram na tessitura de um território negro que, nos dias de hoje, reivindica direitos constitucionais, mas que, já na década de 1940, era percebido pelo folclorista Dante de Laytano como um espaço de alteridade em relação à sociedade branca: “habitat ‘com as verdadeiras características de um quilombo’” (Laytano, 1945, p. 28, grifo nosso).
Lecionar: fazer-se professora
Ercília: conquistas e consideração
Ercília era filha de Rosalina e neta dos escravos Manoel Inácio e Felisberta.
No ano de 1999, por ocasião do evento ‘Raízes de Santo Antônio da Patrulha’3, Ercília Marques da Rosa4 colocou no papel e apresentou o relato de sua história de vida. Uma das tônicas de sua narrativa são os esforços de sua mãe - e dela mesma - para garantir sua formação docente. Esse aspecto também é recorrente nas entrevistas com ela realizadas (Rosa, & Rosa, 2001; Rosa, & Rosa, 2002), o que sugere que foi uma experiência mais do que marcante, talvez até mesmo definidora de sua identidade pessoal: a de primeira professora negra da região. Esse status pode ser assumido por meio da lucidez e do empenho de uma mãe analfabeta.
Seu texto (Rosa, 1999) tem um tom altamente confessional. Escrito na primeira pessoa do singular, apresenta todas as dificuldades pelas quais padeceu durante a infância: a ajuda à mãe, as atividades como lavadeira e as lides domésticas, a impossibilidade de brincar, exceto quando utilizava espigas de milho como brinquedo. Relata também as peripécias pelas quais passou até se tornar professora. Procura destacar ainda as boas relações com afilhados, compadres e amigos da sociedade local que conseguiu manter, não obstante o preconceito racial ainda presente. Essa tensão entre uma origem humilde e laços sociais convenientes é assinalada no primeiro parágrafo após a apresentação de seus dados pessoais: “Minha origem é de família pobre, benquista em toda a sociedade, com ótima relação familiar e social” (Rosa, 1999, p. 152)5.
A narrativa segue com o relato da oportunidade de estudo que Ercília teve. A aquisição de material escolar - por meio da venda de araçás - é exemplar do esforço para obter a escolarização, mas também das redes de relações sociais que estabeleceu e às quais a autora expressa sua gratidão: a dona Glória, que lhe deu uma lousa, e mesmo aos ‘fregueses certos’ da venda das frutas. No tom da narrativa, ressaltam-se a um só tempo as situações de grande necessidade pelas quais passou, necessitando trabalhar desde muito cedo - apontando uma infância diferenciada, em razão da impossibilidade de brincar - e os vínculos afetivos criados com as famílias e as crianças das quais cuidou.
Apresentando-se como vencedora em sua trajetória de vida, a autora creditatal condição aos esforços de sua mãe, ao auxílio de seu irmão e à graça divina. “Graças a Deus, venci, juntamente com minha mãe que apesar de analfabeta, lutou junto comigo, dando-me irrestrita colaboração e todo apoio possível” (Rosa, 1999, p. 153). Em paralelo aos vínculos familiares responsáveis por sua vitória, Ercília assinala a importância de relações solidárias verticais, exemplificadas no vaticínio de um juiz de paz que sintetizou uma trajetória de ascensão social bem-sucedida: “[..] estudes bastante e tenhas boa conduta, pois tu vais trabalhar” (Rosa, 1999, p. 153).
Dona Ercília tem o cuidado de apresentar uma trajetória social ascendente, sem, contudo, se esquecer de agradecer, profundamente católica que era, aos que consigo estiveram: Deus, sua mãe, seu irmão e a Virgem Maria, as professoras e a diretora da escola, seus colegas, muitos dos quais vieram a se tornar políticos na localidade. Com eles compartilhava uma conquista que a enchia de orgulho:
Devido aos problemas da época, e à forte discriminação racial, existente em nossa sociedade, principalmente com relação à tez da pele, destaco ainda, que mesmo assim, fui a primeira mulher negra a receber o diploma no Colégio General Osório e a ingressar nos quadros do magistério osoriense.
Nesse sentido, relato um acontecimento do qual fui personagem central. Quando recém-formada, em busca de trabalho, uma senhora que ainda vive em Osório, disse à minha mãe: ‘Não deixe a tua filha trabalhar como professora. Põe na cozinha dos outros, que ganhará roupa velha, comida e dinheiro livre’.
Obtendo como resposta o não, assim aconteceu: ‘Dona Santa, eu fico sozinha, com Deus. Deixoela seguir seu destino’.
Esta senhora foi infeliz em sua colocação e aconselhamento, enganando-se redondamente. ‘Eis que por toda minha trajetória de vida tive ótimas conquistas e consideração, principalmente na realização profissional e pessoal’. (Rosa, 1999, p. 154, grifo nosso e do autor).
Portanto, Dona Ercília atribui à providência de sua mãe, que não seguiu aquele conselho, o fato de ter conquistado a condição de professora. Conforme assinalado por Mello (2012, p. 224), “[...] botar uma filha para trabalhar [...]” implicava privá-la do aprendizado formal. Rosalina fez a opção de garantir à filha o acesso à educação. Era o destino de Ercília. Deixando a filha cumpri-lo, ao não se opor, a mãe fez seu papel. A importância de tal entendimento é ressaltada pelo fato de sua mãe ser analfabeta.
O trecho final do excerto sintetiza a maneira como Ercília narra sua vida: ‘conquistas’, decorrentes de seu próprio esforço e, porque não dizer, do investimento familiar de sua mãe e de seu irmão e da graça divina, mas também ‘consideração’ de pessoas da sociedade local - não obstante o racismo, sempre ressaltado. Em relação à última, a biografada não apenas manifesta gratidão, como também valoriza os vínculos afetivos como um aspecto significativo em sua vida6. Por exemplo, Ercília Marques da Rosa relata o período em que viveu em Bananeiras e trabalhou como professora: enumera as casas onde residiu, as pessoas que a abrigaram, os filhos que foram seus alunos e os afilhados que ali teve.
No entanto, segundo seu filho, o racismo impactou as possibilidades de sua aceitação como professora na sociedade local. Ercília enfrentou um abaixo-assinado de moradores da localidade que eram contrários à presença de uma professora negra ali. Diante da situação, ela escreveu uma carta ao presidente Getúlio Vargas, que teria autorizado sua continuidade como docente naquela localidade. Tal atitude redundou em mais animosidade, porque Ercília ‘pulou a hierarquia’ (Rosa & Rosa, 2010).
A biografada disserta ainda sobre seu matrimônio, sobre a participação política de sua família junto ao Partido Trabalhista Brasileiro7, a perda de seu marido, a nomeação como subprefeita do distrito do Morro Alto, na década de 1980, por ocasião do processo de redemocratização do Brasil. A tônica de seu relato é demonstrar uma trajetória de ascensão social baseada no próprio esforço ao vencer dificuldades socioeconômicas e o racismo. Tal esforço foi coadjuvado por relações amistosas com alguns integrantes da sociedade local e por uma aliança matrimonial privilegiada: Júlio Eloy era bastante claro e veio a se tornar dono de uma venda na localidade conhecida como Prainha. À parte o amor que uniu os dois e o trabalho que conjuntamente empreenderam para a construção de uma vida em comum, certamente sua condição de docente foi favorável para abstrair a diferença cromática da tez do casal.
Edite e o fantasma do racismo
Edite é filha de José Inácio da Rosa e Maria Ermenegilda Luísa Francisca.
A avó de seu avô materno era a escrava Angélica Inácia Isabel.
Sua avó materna, Amélia Vitalina, nasceu de ventre livre e era filha dos escravos Merêncio e Vitalina.
Ainda que bastante mais nova que Dona Ercília (Edite Maria da Rosa tinha 67 anos em 2010), os obstáculos vividos por esta professora para realizar sua formação também são a tônica de sua narrativa. Ela estudou no Ribeirão, onde ainda vive, até a 5ª série e, depois, partiu para Porto Alegre, onde completou sua formação. Ali, estudou e trabalhou como doméstica, residindo na casa de uma família de Capão da Canoa.
Outro paralelo que pode ser estabelecido entre essa narrativa e a de Dona Ercília é o da gratidão para com aqueles que as auxiliaram em sua formação:
Edite - Eles eram muito bons pra mim, o velho [...] eu estudava de tarde. Eu levantava de manhã, arrumava a casa, fazia o almoço, e a aula começava uma e meia. Ele lavava a louça pra mim, pra mim poder estudar. E quando chegavam minhas colegas lá, ele brigava, que eu tinha de fazer o trabalho do colégio [?]. Ele me ajudava muito, me ajudou muito, nossa, hoje eu sou quem sou graças a eles. Que o pai não podia me dar estudo. E ai eu conseguia lá, consegui uma bolsa de Osório, em Osório da prefeitura, ai eu pagava metade da bolsa e a outra metade com o que eu trabalhava, com o que eu ganhava; naquela época não se ganhava muito não, 100 reais, 100 reais [...] 100 cruzeiros, acho; acho que era cruzeiros, naquela época, 65, não 67[...] 6. Era cruzeiro, nem me lembro mais. Eu não sei, só sei que dava pra pagar o colégio, comprava roupa pra mim, mandava dinheiro pra casa e ainda tinha caderneta de poupança.
Rodrigo - Tinha tudo isso?
Edite - Tudo isso! Eles me ajudavam muito, material escolar, roupa, eles me davam, ajudava bastante... eu tive uma infância boa, não posso me queixar (Rosa, 2010 ).
Curiosamente, ao contrário de Ercília, ela relata esses obstáculos com a satisfação de ter podido vencê-los, mesmo que fosse com o auxílio de terceiros. Em ambos casos, aparece a gratidão em relação aos pais e a outras pessoas que a ajudaram; no entanto, no relato anterior,o tom é épico, heroico, ao passo que no de Edite, o contornar das dificuldades é apresentado com mais tranquilidade. É bem possível que, entre as duas décadas que separam a formação docente de ambas, as coisas se tenham tornado, efetivamente, menos dificultosas. No entanto, ainda hoje, o racismo segue sendo um fantasma a assombrara vida de professoras negras.
Edite relata que, recentemente [em relação à ocasião da entrevista, junho de 2010], em um jogo de futebol, a Secretária da Educação de Maquiné chamou seu sobrinho, goleiro, de ‘macaco’. Porém, os tempos são outros: tal tipo de injúria é contida porque existe o risco de denúncia por crime de racismo; além do mais, o desaforo não é aceito passivamente. A mãe do rapaz avançou contra a secretária com uma vassoura e Edite escreveu para o jornal local. De outra feita, em um debate entre educadoras, discutia-se a existência de racismo: uma professora afirmou que não era racista, mas não admitiria que um negro se casasse com sua filha. Edite ‘não deixou barato’ e indagou: se fosse com Pelé, permitiria? Edite escreve para jornais e faz abaixo-assinados em situações de racismo.
Os dias de hoje oferecem um aparato legal e muitos avanços no que toca ao preconceito e, apesar de algumas limitações na capacidade de reação a ele, não estamos mais nos tempos de dona Ercília, quando a mera condição racial era tratada como um impeditivo para lecionar.
Estudar: o aprendizado da ‘cor’.
Manoel, as calcinhas curtas e as asas das professoras
Manoel era neto, por parte de pai, dos escravos Manoel Inácio e Felisberta.
Por parte de mãe, seus bisavós eram os escravos Merêncio e Vitalina.
Por parte de pai, é primo-irmão de Dona Ercíliae, por parte de mãe, de Edite.
Foi raro o ingresso à experiência escolar para os entrevistados na faixa de 80 ou 90 anos. Além de uma hierarquização propriamente racial no acesso à educação básica, também contavam fatores de classe, já que cabia aos filhos de camponeses ajudar seus pais na lavoura, tendo pouco ou nenhum tempo para se dedicar aos estudos. Por esta razão, o acesso à escola era mais garantido aos irmãos mais novos, como Manoel Inácio Marques Neto e Eva Inácia Marques, septuagenários na década de 2010: eles estiveram em idade escolar em um momento em que a unidade produtiva familiar já estava consolidada. Por outro lado, as escolas, quando existiam, eram distantes, de forma que a maior parte deles permaneceu analfabeta. Mesmo para aqueles que conseguiram estudar, a realidade escolar também produzia suas hierarquias raciais: era um espaço de ‘aprendizado’ do lugar reservado para brancos e negros naquela sociedade8. O espaço ocupado pela realidade escolar é bastante significativo nos relatos de experiências de racismo.
Neste texto, opta-se por pensar a questão em termos de ‘racialização’ em vez de ‘raça’ por se conceber as experiências desta natureza como processuais, e não substantivas. Assim, segundo Hebe Mattos: “[...] da perspectiva adotada nesta tese, procurei evitar trabalhar com a noção de raça enquanto construção substantiva, preferindo utilizar o conceito de racialização” (Mattos, 2004, p. 9). A noção de ‘raça’ não deve ser definida a partir do biológico ou do cultural, e sim politizada com base em experiências sociais necessariamente tensas e enfrentadas em uma diversidade de ambientes - dentre os quais o escolar, conforme se verá.
Alguns entrevistados, mais novos, relatam que tiveram acesso ao ensino fundamental em uma escola no Espraiado (Silva, Marques, & Marques Neto, 2009). O tempo que as crianças puderam permanecer na escola foi inversamente proporcional à sua ordem de nascimento, o que indica que aos mais novos foram reservadasmaiores possibilidades de estudo, ao passo que aos mais velhos estava reservado um engajamento mais direto no sustento da unidade familiar. Nesses casos, também houve a intervenção de fatores de outra ordem. O senhor Manoel Inácio Marques Neto9, por exemplo, abandonou a escola por ter ficado desgostoso com práticas racistas no meio escolar, que, assim, é lembrado por ele como um local racialmente hierarquizado:
Manoel Inácio Marques Neto - a professora era mais assim, ó, do lado dos brancos do que do lado dos negros, porque os negros nunca puderam se trajar como os brancos. [...] Então assim ó, ela torcia mais pro lado dos brancos porque os brancos foi que deram asas pra ela trabalhar de professora. [...] Os negros andavam atrasados. Com a calcinha, desse tamanhozinho. Os brancos andavam com a calcinha comprida, que nem eu tô (Marques Neto, 2009).
A percepção de que a professora favorecia os alunos brancos é explicada pelas vestimentas mais humildes dos negros em relação aos demais, mas, principalmente, pelo fato de ela ter sido alçada à condição docente pelas boas relações com a sociedade branca - ‘adquiriram asas’.Parece claro que, naquele momento, a escola era uma instância de socialização e de internalização de hierarquias raciais - um lugar, pois, onde ocorria o ‘aprendizado da cor’ e de tudo o que isso implicava. A impressão se mantém,sobretudo, quando se compara o caso de Manoel ao de sua irmã, que teve uma professora negra.
Eva e a professora Hermínia, negra
Eva é irmã de Manoel e tem, portanto, os mesmos vínculos de parentesco.
Também era ‘meio parente’ da professora Ermínia.
Certamente, a conduta decorrente do racismo das professoras contribuiu para aevasão escolar,10 pois sua irmã, Eva Inácia Marques11, estudou os quatro anos do ensino fundamental com uma professora negra, de nome Hermínia, que inclusive era ‘meio parente’ (Marques, 2009). Parece, portanto, que o empoderamento de mulheres negras à condição de professoras era fundamental para que esse grupo tivesse acesso à educação e para que não fosse discriminado na realidade escolar. O elemento chave na interpretação do fato de Ercília Marques da Rosa - prima de Eva e Manoel Inácio Neto - ter conquistado a condição de primeira professora negra do litoral norte é a ‘luta’ - dela e de sua mãe - para se educar e se formar como docente.
A condição docente era uma das raras condições de ascensão social em uma sociedade em que as mulheres tinham poucas oportunidades. Sobretudo, era uma forma de protagonismo feminino no espaço público, insuspeita diante dos perigos da ‘rua’, considerada um lugar perigoso e aviltante para a honra das mulheres. À exceção das docentes, ou de mulheres que apareciam no spoucos espaços festivos sob o atento olhar de maridos e pais, a presença feminina fora de casa era vista com suspeição em relação à sua virtude. O recorte de gênero é evidente neste caso: às mulheres reservava-se um local circunscrito ao âmbito do lar, ao passo que o espaço da ‘rua’ era monopolizado pelos homens. Ora, a atividade educacional não era considerada adequada para os últimos, sendo, assim, desempenhada pelas mulheres, o que lhes fornecia a possibilidade de ter participação política, respeitabilidade por parte dos homens para além de suas habilidades como mulheres e mães, e intervenção comunitária12.
Uma professora negra teria um potencial papel democratizador nas relações raciais em sala de aula. Talvez tenha sido por isso, como se depreende do relato de seus primos, que Ercília enfrentou forte resistência para desempenhar a profissão arduamente obtida. Em 1945, conforme relato de seu filho, Ercília foi designada para lecionar na região de Bananeiras, onde não foi aceita pela sociedade local (Rosa & Rosa, 2010 ). Ela apelou ao Presidente da República, Getúlio Vargas, que acolheu seu pedido e a autorizou a dar aulas. Ainda assim, sofreu represálias da prefeitura por ‘pular a hierarquia’ e buscar uma interlocução direta com o Presidente. Vale destacar que se apelou à figura benevolente de Vargas, reconhecido, com base em diversos estudos com comunidades negras rurais, como instituinte de direitos (Mattos, 2004; Mattos, 2005; Dezemone, 2004). O caso, porém, não se refere a um canal institucionalizado de acesso a direitos, mas de alguém com quem se podia contar. Não se tratava de um direito assegurado, mas de uma dádiva, que não fora recebida, porém, de forma passiva: Ercília tomara a iniciativa de dirigir a missiva por saber que Vargas poderia interceder por ela.
Na realidade escolar, pois, o problema racial assumia um aspecto tenso, não apenas para discentes, mas também para docentes. No entanto, alçar-se à condição de professora representava, finalmente, uma oportunidade, se não de reverter, ao menos de mitigar os efeitos de um sistema educacional racista.
Empoderar-se: a prática docente
Elizabete - ou Bete
O avô de Bete nasceu de ventre-livre e atendia por Antero.
Sua bisavó Gasparina era escrava de Manoel Antônio Marques.
Elizabete Alves13 teve em Dona Ercília uma grande referência para sua atividade docente, seja por experiências profissionais compartilhadas, seja por seu pioneirismo e exemplo, seja pela autêntica admiração profissional: “[...] eu trabalhei numa escola depois que ela [Ercília] tinha sido [...] então ela foi uma grande mestre na minha vida assim” (Alves, fins de 2001 ou início de 2002). É possível, no entanto, que, trilhando os passos de sua precursora, talvez mais do que Edite, que também assume uma postura explicitamente antirracista, Bete encarne o empoderamento das professoras negras de que venho falando. Ela afirma que ‘se fez respeitar’ ao ter conquistado o lugar de diretora em várias escolas nas quais trabalhou:
[...] eu também faço respeitar, porque eu grito mais alto, eu procuro fazer as coisa certas, ser correta e honesta, não deixar furo pra não pegar no meu pé, então eu sempre grito mais alto, mais se eles puderem nos dá sempre o tombo, eles vão continuá sempre tombando, é a lei do maior [...] (Alves, fins de 2001 ou início de 2002).
A postura dessa professora representa, de certa forma, uma postura de resistência, de ‘dar a volta por cima’ diante dos diversos desestímulos que teve em sua vida escolar, já que era a única ou uma das únicas alunas negras. Tal como Manoel Inácio Marques Neto14, afastou-se da escola mais de uma vez em virtude do racismo, masacabou por se afirmar:
Quando eu estudei o ginásio aqui só tinha eu e um outro negro no ginásio [...] três dias depois eu me afastei da escola porque todo mundo me olhava [...] depois eu voltei novamente, fiz dois anos em Capão e depois voltei no terceiro ano porque naquela época nós tínhamos quatro anos de ginásio [...] então eu sempre provei pra eles por A mais B que eu sou igual a eles, ou melhor do que eles [...] só que a gente sente que no momento que eles podem te dar uma pernada eles te dão, no momento que tu pode ser discriminado, eles te discriminam na cara dura [...] (Alves, fins de 2001 ou início de 2002).
Ela também trabalhava na lavoura em um turno e no outro estudava, mas essa dificuldade não foi suficiente para fazê-la desistir da frequência à escola. Conforme foi mencionado anteriormente, ‘abdicar’ do trabalho de um filho e permitir que assistisse às aulas fazia parte do investimento em um projeto familiar de ascensão social por meio da função docente.
Escrever: escritas de si e autorrepresentação
Além de Ercília, outros, como seu filho e sua nora, que também é professora e historiadora, utilizaram a palavra escrita para narrar histórias de si, de sua comunidade ou de sua família. Nos mesmos encontros ‘Raízes’, nos quais a mãe/sogra apresentou sua história de vida, Wilson Marques da Rosa15 escreveu acerca da resistência do povo negro e de sua importância no desenvolvimento do município de Capão da Canoa, enquanto Marilda Souza apresentou um texto homenageando sua sogra.
A relação entre subjetividade e escrita foi esmiuçada por Foucault (2006). Para os fins deste trabalho, não pretendo retomar de que maneira essa relação foi historicamente empreendida16. Embora não se trate da notação monástica de experiências espirituais, da recolha de coisas lidas e ouvidas como suportes de exercícios de pensamento ou, ainda, de uma narrativa epistolar de si - aspectos analisados pelo autor sob a rubrica de ‘escritas de si’ -, nos textos publicados nos eventos ‘Raízes’, os integrantes dessa família procuraram fixar determinada autorrepresentação e legá-la à posteridade17. Essa autopercepção é organizada, assim, por meio de uma narrativa constituinte de subjetividades.
Numa autobiografia, a prática mais acabada desse arquivamento, não só escolhemos alguns acontecimentos, como os ordenamos numa narrativa; a escolha e os acontecimentos determinam o sentido que desejamos dar às nossas vidas.[...] Escrever um diário, guardar papéis, assim como escrever uma autobiografia, são práticas que participam daquilo que Foucault chamava a preocupação com o eu (Artières, 1998, p. 11).
Se essa prática de escrita opera sobre o leitor, expressando e configurando determinadas subjetividades que o autor tinha a intenção de transmitir, também efetua um trabalho sobre o próprio escritor, em um movimento denominado por Foucault (2006, p. 151-152), no que toca às missivas, como ‘introspecção’. A mesma dinâmica é reconhecida por Artières (1998) como ‘subjetivação’. O domínio da palavra escrita representa ainda a possibilidade de autonomia da expressão, ou seja, ‘sem a mediação’ de outros interlocutores. Dessa maneira, a escrita da história de resistência do povo negro em Capão da Canoa é a um só tempo expressiva e constituinte de seu lugar de liderança comunitária - Wilson é o presidente da Associação de Moradores de Morro Alto e importante militante pelos direitos constitucionais daquela comunidade quilombola.
O texto de sua esposa Marilda (Rosa, 2008) não possui o mesmo tom confessional que tem o da sogra. Com base em relatos desta, a autora não se dedica auma narrativa exaustiva da vida de Ercília, mas compõe um texto com reminiscências - relativamente fragmentárias - dos episódios que a última enfrentara. Assim, Marilda, professora de história, realiza um acurado trabalho de história oral com a sogra. Em seu texto, disserta acerca da condição da avó escrava de Ercília; de um salvo-conduto por ela utilizado para circular durante a década de 1940; das lavadeiras de Osório; das bonecas com as quais brincava em sua infância; de seu casamento e atividades camponesas promovidas quando não estava em sala de aula.
Marilda da Rosa escreveu ainda sobre o salão de baile pertencente a Júlio Elói da Rosa, seu sogro, e acerca do fato de que ali dançavam brancos e negros juntos, desafiando a segregação racial então vigente. Narra, ainda, episódios em que a mãe de sua sogra, Rosalina, instava o neto, Wilson, marido da autora, a buscar as terras pertencentes àquela comunidade enquanto ele lhe preparava palheiros. Esse relato é idêntico ao apresentado por Wilson em entrevistas diversas. De qualquer maneira, Rosa (2008) conclui seu texto com o relato da participação, não ouvida, mas testemunhada, de dona Ercília nas lutas comunitárias pelo reconhecimento e titulação de Morro Alto como ‘remanescente de quilombos’.
Tônica um tanto diversa é a apresentada no texto de seu marido, Wilson Marques da Rosa (2004), que se apresenta na condição de pesquisador e presidente da Associação Rosa Osório Marques. Talvez por não se propora realizar uma análise da trajetória familiar ou uma narrativa biográfica acerca de si ou de sua mãe, o autor coloca-se em um maior distanciamento ao narrar, na terceira pessoa, a história dos negros na região do Capão da Canoa. Referindo-se à tradição e à história oral, descreve uma fuga em massa de cativos após um desembarque clandestino e um massacre ali ocorrido por ocasião da Revolução Farroupilha. As mesmas narrativas, atribuídas à avó, me foram apresentadas em entrevista concedida em 2010 (Rosa & Rosa, 2010).
Wilson Marques da Rosa prossegue arrolando os nomes de diversos negros que contribuíram para a formação da cidade de Capão da Canoa, seja com melhorias urbanas, com atividades como parteiras, vendedores de produtos agrícolas, benzedeiras, ou ainda como proprietários de salões de baile, nos quais os negros podiam dançar. Havia,inclusive um salão misto, onde brancos e negros podiam dançar juntos:
O Santa Rosa enfrentou o racismo, na prática, permitindo o acesso de brancos e o uso do mesmo espaço entre as duas etnias. Custou-lhe o ônus de abaixo-assinados, solicitando o fechamento do salão, com acusações infundadas. O delegado da cidade Sr. Prates, homem correto de bom censo [sic], não se dobrou às pressões e deu grande contribuição para barrar o racismo, permitindo que o salão continuasse a sua missão.
O proprietário do salão SR. JULIO ELOI DA ROSA, além da dar a sua contribuição para a cultura e o lazer, juntamente com os seus pais, avós, irmãos e irmãs, também deram sua participação para o desenvolvimento na urbanização, construção civil, limpando ruas, lavando roupas, trabalhando em hotéis ou tocando bailes como o seu irmão gaiteiro CHICO ILÓRIO. (Rosa, 2004, p. 44, palavras em maiúsculas originais).
Efetivamente, Wilson fala de sua própria família, apresentando seus méritos na formação da sociedade de Capão da Canoa, inclusive no combate ao racismo representado pelo salão de bailes de seu pai. Porém, o faz sem admitir, já que em nenhum momento explicita seu pertencimento familiar. Wilson chega mesmo a falar de si em terceira pessoa. Creio que ao imprimir um maior distanciamento por meio desse recurso retórico, o autor tenha em vista passar a percepção de imparcialidade na narrativa18.
Também na área da política os negros deram sua contribuição, com eleição de WILSOM [sic] MARQUES DA ROSA para vereador na primeira eleição no município, com uma votação expressiva. Confirmou seu compromisso social, apresentou projetos para a criação da Biblioteca da Câmara. Atuou para a organização e regulamentação dos vendedores ambulantes, na luta pela causa Negra, criou e apoiou a escola de samba, grupos de pagode e o fortalecimento do carnaval de rua, entre outros.
No compromisso com a preservação do patrimônio AFRO, luta atualmente pela regulamentação das terras QUILOMBOLAS. (Rosa, 2004, p. 45, palavras em maiúsculas originais).
Embora existam convergências entre as diferentes formas como esse núcleo familiar representa sua história, observam-se ênfases diversas, que, contudo, não são divergentes. O relato de dona Ercília e, em menor grau, o de Marilda apontam para um processo de ascensão social com base no esforço, no trabalho e em alianças verticais - ‘conquistas’ e ‘consideração’. O de Wilson indica a resistência negra na região e não propriamente uma memória doméstica e familiar. Há uma distinção, operada pelo gênero, entre memórias referentes a episódios públicos ou privados (Weimer, 2013).
Se a autorrepresentação dessa família agrega um itinerário de ascensão social ascendente com base em alianças sociais verticais - mas poderíamos acrescentar horizontais -, de mobilização de esforço familiar e pessoal e uma narrativa de resistência negra, é porque nas experiências sociais desse grupo esses elementos estavam colocados.
Considerações finais
Talvez soe um tanto óbvio afirmar que o ambiente escolar se constitui como campo de disputas entre concepções racistas e não-racistas de educação. No entanto, não terá sido de pouca valia perceber as formas de funcionamento dessas disputas em uma localidade rural de significativa presença negra e, sobretudo, na agência das professoras ao intervir sobre essa realidade.É importante também sublinhar que, mesmo não estando substancializadas em um corpus pedagógico, tais questões já estavam presentes na atuação de professoras negras desde meados do século XX. Cumpre observar que havia muitos significados na prática docente.
Ser professora era uma conquista de respeitabilidade, de deferência e de orgulho étnico, posto que oferecia um espelho para os jovens se mirarem e uma possibilidade de exercício mais equânime, racialmente, da autoridade professoral. Não foi, portanto, mero mecanismo individualista de prosperidade pessoal: havia um compromisso com a coletividade à qual pertenciam e que era marginalizada nos meios escolares.A assunção desse papel pelas professoras, contudo, não foi simples ou tranquilo; o empoderamento por elas assumido não custou barato; com maior ou menor grau de sofrimento, e com relatos mais ou menos aguerridos, sempre resultou de luta e esforços, sejam pessoais, sejam familiares, sejam por meio do auxílio de terceiros - ‘consideração’ e ‘conquistas’,autorrepresentações expressas por meio da palavra escrita adquirida nos bancos escolares. Os textos analisados conformaram subjetividades e identidades, individuais e coletivas, que adquirem significado especial no momento de um embate fundiário de fundo étnico, mas que estiveram presentes desde décadas atrás.
O papel ativo dessas docentes - este é outro aspecto que chama atenção - não se inaugurou na contemporaneidade. Em gerações anteriores, já havia professoras negras preocupadas com uma distribuição mais equânime da autoridade professoral. Se a postura antirracista de Edite e Bete é gritante, foi apenas o pioneirismo de Ercília e Hermínia - aquela professora de Eva de quem infelizmente não consegui obter maiores informações - que lhes permitiu tomar uma postura mais incisiva. Assim, ao passo que suas antecessoras combateram o favorecimento aos brancos que afugentava alunos negros, a geração mais nova posiciona-se mais explicitamente contra o racismo, amparada no fundamento legal que criminaliza tal prática.
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Notas