ARTIGOS
Contextualismo linguístico: contexto histórico, pressupostos teóricos e contribuições para a escrita da história da educação
Linguistic contextualism: historical context, theoretical assumptions and contributions to the history of education writing
Contextualismo lingüístico: contexto histórico, supuestos teóricos y contribuciones a la escritura de la historia de la educación
Contextualismo linguístico: contexto histórico, pressupostos teóricos e contribuições para a escrita da história da educação
Revista Brasileira de História da Educação, vol. 17, núm. 3, pp. 43-67, 2017
Sociedade Brasileira de História da Educação
Recepção: 09 Maio 2016
Aprovação: 19 Fevereiro 2017
Resumo: O contextualismo linguístico (CL), cujas origens estão na escrita da história do pensamento político, disseminou-se e se tornou uma das mais importantes referências também no debate de questões atinentes à história intelectual. Considerando que os historiadores Skinner e Pocock estão entre os seus principais formuladores, suas obras de caráter metodológicoforam definidas como fontes deste estudo. A análise está dividida em trêspartes. Na primeira, procura-se identificar a emergência do projeto intelectual do CL; na segunda, explora-se a arquitetura lógica da teoria e, na terceira, analisa-se o foco do CL no exame do funcionamento da linguagem e na questão do protagonismo do sujeito na história. Nas conclusões, aborda-seo potencial dessa proposição para a escrita da história da educação.
Palavras chaves: história intelectual, História da Educação, contextualismo linguístico, Skinner, Pocock.
Abstract: The origins of linguistic contextualism (LC)are found in the writing of the history of political thought, although it was disseminated and became one of the most important references for debating issues related to intellectual history. Skinner and Pocock are among its main formulators and thus the sources emphasized in this study are these historian’s methodological works. The analysis is divided into tree parts. The first identifies the emergence of the intellectual project of LC. The second explores the logical architecture of the theory,while the third emphasizes the focus of LC in the review of the functioning of language and the question of the role of the individual in history.The conclusions discuss the potential of this proposition for the writing of the history of education.
Keywords: intellectual history, History of Education, Linguistic contextualism, Skinner, Pocock.
Resumen: Los orígenes del contextualismo linguístico (CL) se encuentran en la escritura de la historia del pensamiento político, a pesar de que se difundió y se convirtió en una de las referencias más importantes para debatir temas relacionados con la historia intelectual. Skinner y Pocock se encuentran entre sus principales formuladores y, por lo tanto, las fuentes destacadas en este estudio son obras metodológicas de estos historiadores. Dividiremos el análisis en tres partes. La primera pretende identificar la emergencia del proyecto intelectual de CL, la segunda explora la arquitectura lógica de la teoría, mientras que la tercera explora el enfoque del CL en el examen del funcionamiento del lenguaje y la cuestión del papel del individuo en la historia. En las conclusiones trataremos sobre el potencial de esta proposición para la escritura de la historia de la educación.
Palabras clave: historia intelectual, Historia de la Educación, contextualismo lingüístico, Skinner, Pocock.
Introdução
Nosso objetivo neste artigo é explorar as contribuições do contextualismo linguístico (CL) para as escritas das histórias intelectual e da educação. Dividiremos esta análise em três partes. Na primeira, abordaremos a emergência do projeto intelectual do contextualismo linguístico (CL), particularmente as correntes historiográficas e os métodos com os quais o CL se confrontou e dialogou. Na segunda, exploraremos a arquitetura lógica do CL, identificando suas fontes teóricas inspiradoras. Nasequência, discutiremosdois de seus aspectos particulares: o primeiro é a ênfase atribuída ao exame do funcionamento da linguagem, já que o giro ou a virada linguística produziram grandes efeitos na percepção dos objetos e, sobretudo, na estruturação dos métodos históricos; o segundo é a questão do protagonismo do sujeitoque foi reafirmada na perspectiva da história do discurso político sustentada pelo CL. Esse foco no indivíduo e no acontecimento retornou à pauta historiográfica após um período de relativa interdição, quando as críticas eram apoiadas nas noções da longa duração e da impessoalidade das formações discursivas. Nas conclusões, articularemos as discussões realizadas ao longo do texto em torno da proposição do CL ao seu potencial para os estudos no campo da História da Educação.
O procedimento metodológico denominado neste artigo como contextualismo linguístico (CL) tem suas origens na escrita da história do pensamento político. No entanto, disseminou-se para outras áreas, tornando-se uma das mais importantes referências no debate atinente à reflexão e à prática da história intelectual, especialmente no que tange a questões como natureza dos objetos, tipologia das fontes e, sobretudo, procedimentos de interpretação. Entre seus principais formuladores estão os historiadores ingleses Quentin Skinner (1940) e John Pocock (1924), mas o CL Contou também com as contribuições de John Dunn (1940) e de Peter Laslett (1915-2001). Este último é consideradopor Pocock como o pioneiro da revisão metodológica da história do pensamento político, já que declarou, em sua introdução à edição crítica dos Two treatises on goverment, que o seu objetivo foi fixar as ideias políticas de Locke em seu contexto histórico de enunciação (Silva, 2010, p. 301)1.
O espaço institucional de desenvolvimento dessa teoria foi a Universidade de Cambridge, na Inglaterra. O projeto intelectualinterdisciplinarpreconizado pelo CL gravita, fundamentalmente, em torno da filosofia da linguagem, da ciência política e da história intelectual. Escola de Cambridge e enfoque coolingwoodiano são formas alternativas utilizadas para designar o CL no debate acadêmico, enfatizando o lugar institucional em que a teoria surgiu ou o filósofo que, segundo seus principais elaboradores, inspirou sua produção. Nesta análise, adotaremos o termo CL, uma vez que esse binômio, a um só tempo, expressa sinteticamente o cerne da proposição metodológica e evita as denominações demasiadamente preocupadas com a demarcação de poder institucional ou de afirmação duvidosa de uma tradição intelectual2.
As publicações de Pocock remontam aos últimos anos da década de 1950, destacando-se: The ancient constitution and the feudal law: a study of english historical thought in the seventeenth century (1957); Politics, language and time: essays on political thought and history(1972); The machiavellian moment: florentine political thought and the atlantic republican tradition(1975); Barbarism and religion (obra em cinco volumes, de 1999 a 2011). Os textos de Skinner começaram a aparecer na segunda metade dos anos de 1960; dentre eles, destacam-se: The foundations of modern political thought (obra em dois volumes, de 1978); Machiavelli (1981); Reason and rhetoric in the philosophy of Hobbes (1996); Liberty before liberalism (1998) e Visions of politics (obra em três volumes, de 2002). Como a extensão dessa produção dificulta um balanço exaustivo de suas contribuições, privilegiaremos os escritos de caráter teórico e metodológico.
Importante mencionar que não pretendemos neste espaço produzir uma reflexão histórica sobre o CL, analisando os momentos de gênese, desenvolvimento e revisão que caracterizaram a produção da teoria. Outros autores já realizaram esse tipo de análise, dentre os quais destacamos Brett (2002), Palonen (2003), Feres Júnior (2005), Jasmin (2005), Feres Júnior e Jasmin (2006), Souza (2008) e Silva (2010).
No que diz respeito à contribuição de Skinner, exploraremos vários textos, mas dedicaremos mais atenção ao primeiro volume da obra Visions of politics: regarding method. Organizado e bastante revisado pelo autor, esse livro é uma espécie de antologia de seus principais escritos sobre o tema da teoria da interpretação histórica. No que tange às contribuições de Pocock, privilegiaremos Politics, language and time: essays on political thought and history, particularmente o texto O conceito de linguagem e o métier d´historien: algumas considerações sobre a prática, que foi republicado em língua portuguesa em 2003.
A reconstrução racional na história do pensamento
A primeira sistematização, por parte de Skinner,do projeto historiográfico do CL encontra-se em um texto publicado no periódico History and Theory3 em 1969: Meaning and understandingin the history of ideas. Esse artigo, muitas vezes republicado, proporcionou visibilidade ao CL no cenário historiográfico, mobilizando interesses e, sobretudo, críticas de distintasprocedências teóricas4. Como todo projeto intelectual que visa ocupar um espaço no debate teórico e metodológico de seu campo do conhecimento, as proposições do CL foram precedidas de críticas àqueles que ocupavam o campo e que pontificavam a orientação dos procedimentosde interpretação na escrita das diferentes modalidades dehistória do pensamento. Nesse sentido, duas frentes de interlocução foram abertas: de um lado, as críticas às estratégias analíticas denominadas de textualistas, presentes em grande medida na história da filosofia, na ciência política e na história das ideias, herdeira dos procedimentos filosóficos; de outro, as que questionavam as abordagens denominadas de contextualistas, presentes na sociologia do conhecimento e na parcela da história das ideias que recusava os procedimentos estritamente textualistas.
As condutas textualistas foram identificadas em vários textos e autores ao longo do artigo Meaning and understanding, cujo foco crítico principal foram as obras de Leo Strauss, George Sabine e John Plamenatz e, sobretudo, o projeto intelectual da história das ideias, liderado pelo filósofo e historiador Arthur Lovejoy. Os contextualistas eram representados por Lewis Namier e Robert Merton, bem como pelas obras que, apoiadas no marxismo, estabeleciam a subordinação do plano das ideias à lógica do contexto das forças econômicas. A crítica ao primeiro grupo é bem mais extensa e contundente, uma vez que, segundo Skinner, a abordagem textualista está nas origens da história da filosofia e das ideias e, sobretudo, tem seus pressupostos metodológicos consagrados, ou melhor, naturalizados nas práticas de pesquisa dessas áreas do conhecimento5.
Para Skinner, o textualismo produziu uma concepção de história do pensamento filosófico, científico e literário fechada sobre si mesma e repleta de várias ordens de anacronismo6.Emsíntese, essa concepção da escrita da história supõe a investigação das ideias sem considerar seus contextos de produção e/ou seus produtores e, dessa maneira, privilegia a análise do movimento lógico do pensamento presente nos textos considerados clássicos ou canônicos das diferentes tradições intelectuais. Nessa perspectiva, a história do pensamentotem plena autonomia e independência em relação a outros cenários, sejam eles econômicos ou sociais. Em parte significativa dessa produção, as relaçõesentre ideias e diferentes contextos históricos, quando abordadas, são representadas em sentido unívoco de determinação do plano espiritual ou subjetivo sobre as práticas sociais7.
Para além desse caráter focado exclusivamente no texto e na interpretação (hermenêutica) dos seus significados, Skinner afirma que a abordagem textualista favorecea produção de inúmeras mitologias.
Dentre elas, destacamos o que Skinner (2002, p.57) chamou de “[...] mitologia das questões perenes”. Nesta chave interpretativa, algumas ideias, literalmente, não têm história, pois seguem indefinidamente reverberando seus significados em diferentes circunstâncias históricas. Noções como liberdade, justiça ou virtude, por exemplo, perpassam a história do pensamento de Platão a Locke, sem qualquer descontinuidade. Para Skinner, não existe um conjunto fixo e limitado de questões existenciais, políticas, epistêmicas ou moraissobre as quaispensadoresde culturas e temporalidades diversasse empenharam em responder. Essa visão da história do pensamento só é passível de ser representada se deslocarmos os termos, próprios das múltiplas tradições intelectuais, dos seus lugares específicos de enunciação. O efeito desse deslocamento é a construção de um plano eminentemente lógico e aistórico, designado, na expressão de Baumer, como debate de questões perenes8.
Outra mitologiacriticada por Skinner (2002, p.67) foi denominada de “[...] mitologia da coerência”. Nesta acepção, cabe ao historiador buscar a articulação íntima e racional das obras do pensador ao qual ele dedica seu estudo,mesmo que esse personagem investigado não tenha se empenhado em produzir um sistema de pensamento articulado e coerente. Nesse caso, os nexos articuladores estão apoiados muito mais na imaginação do intérprete do que nas fontes que expressam as ideias do teórico analisado.
Ele se refere também ao mito das‘influências’cujo pressuposto é da construção de uma genealogia das ideias, que passam a ser explicadas pelas relações estabelecidas entre doutrinas ou pensadores de diferentes gerações. Tal genealogia forma uma cadeia de relações causais que revelam como cada época ou geração herda e evoluciona o pensamento dos antepassados (Skinner, 2002). Nessa acepção, segundo o autor, prevalece o sentido de continuidade nas tradições intelectuais e, sobretudo, o empenho imaginativo dos intérpretes para suprir as lacunas produzidas pelas fontes.
Por fim, ele critica a mitologia de prolepsis (Skinner, 2002), que identifica nos pensadores do passado antecipações de argumentos que só se tornariam temas na teoria políticaou na filosofia,muito tempo depois da morte desses filósofos. Nesse caso, presume-se que o passado só completa o seu significado no futuro próximo ou distante. Para Skinner, essas pretensas clarividências são mais bem explicadas pela discrepância entre o sentido que o intérprete confere a um termo localizado nas fontes e o conferido à palavrapelo agente que a enunciou. Para Skinner, no estudo da história do pensamento, existe sempre o risco de encontrarmos algo familiar em culturas alienígenas e passarmos à manipulaçãodo caleidoscópio de imagens mentais, construindo relações insólitas entre passado e presente (Skinner, 2002).
Em grande medida, segundo Skinner, essas operações analíticas, ou melhor, a produção dessas mitologias, dependemdo recurso da tradução da linguagem dos pensadores mortos em termos contemporâneos, ou seja: os significados do termo república em Cícero e em Maquiavele nas convicções contemporâneas de um pesquisador do discurso republicano podem ser articulados em um argumento coerente, caso sejam traduzidos para uma linguagem que estabeleça um terreno comum de significação para o termo república9. Essa tradução depende do princípio da correção, pois a produção de um sentido comum supõe o descarte ou o ajustedaqueles sentidos considerados limitados, inconsistentes ou contraditórios. O anacronismo, ou, como prefere Skinner, a presentificação das ideias produzidas no passado,é inevitável nessa concepção de escrita que, sinteticamente, ele denominou de ‘modo de reconstrução racional’da história do pensamento, em contraste com os procedimentosque ele considera como eminentemente históricos.
O princípio teórico ordenador do modo de reconstrução racional está em sustentar um argumento específico, uma hipótese sobre um determinado problema do debate filosófico ou político, conectando esse argumento com as ideias de pensadores célebres, independentemente do lugar e do tempo histórico em que estes viveram e produziram. Para Skinner, na perspectiva da reconstrução racional, a “[...] razão para exumarmos o pensamento dos grandes filósofos do passado é que eles nos ajudam a achar melhores respostas para as nossas próprias perguntas” (1990, p. 236). A temporalidade e as circunstâncias em que as obras foram escritas são aspectos secundários ou irrelevantes, ao passo que os nexos entre os horizontes intelectuais do intérprete e de seus interlocutores são logicamente harmonizados. Fragmentos de obras de autores canônicos, logicamente arranjados com as teses dos seus intérpretes, produzem o efeito de deslocar as ideias dos seus espaçose momentos de enunciação e, assim, posicionar intérprete e interpretados em posições equivalentes e, portanto, aparentemente envolvidos na solução dos mesmos problemas teóricos.
A ‘reconstrução racional’ do pensamento produzido no passado tem como grande motivação o incremento, por parte de filósofos e cientistas políticos, da discussão em curso no presente. Assim, as reações às críticas de Skinner foram intensas e rapidamente formuladas. Os críticos do CL não aceitaram o que foi chamado de aprisionamento das ideias aos seus contextos históricos de produção e passaram a adjetivar o CL como uma teoria antiquarista10. Em outros termos, para eles, o sentido da história do pensamento político e filosófico está em sua possibilidade de informar e de evolucionar os estudos contemporâneos. A essas manifestações, Skinner reagiu, posicionando-se contra a manipulação do pensamento produzido no passado em favor de projetos filosóficos e políticos em disputa no presente. Conforme seu argumento, não precisamos da autoridade dos mortos para defender nossas teses políticas, além de a presença de autores clássicos ou canônicos em muitas análises ter uma função retórica e não propriamente teórica. Richard Rorty, corroborando as posições de Skinner, acrescenta:
[...] se nos propomos a uma auto justificação por meio de um diálogo com pensadores mortos sobre os nossos problemas atuais, somos livres de nos entregarmos a eles tanto quanto queiramos enquanto nos dermos conta de que estamos procedendo assim (1990, p. 76).
O problema, segundo Rorty, reside no fato de que nem sempre os intérpretes da história do pensamento têm consciência de que estão discutindo, de fato, questões que são suas. Dessa maneira, os fragmentos dos textos canônicos reproduzidos no interior das suas análises são partes, não da prova das suas hipóteses, mas de sua própria argumentação.
Reagindo à acusação de antiquarismo, Skinner defendeu um lugar para a história no âmbito da produção da ciência e da arte política. Segundo ele,
[...] o historiador do pensamento pode nos ajudar a apreciar até onde os valores incorporados em nosso atual modo de vida, e nossas atuais maneiras de pensar sobre esses valores, refletem uma série de escolhas feitas em épocas diferentes entre diferentes mundos possíveis. Essa consciência pode ajudar a libertar-nos do domínio de qualquer uma das explicações hegemônicas desses valores e de como eles devem ser interpretados e compreendidos. Munidos de uma possibilidade mais ampla, podemos nos distanciar dos compromissos intelectuais herdados e exigir um novo princípio de investigação sobre esses valores (Skinner, 1999, p.93).
Reforçando esse argumento,de forma simples e convincente, ele resumiu sua reação ao rótulo de antiquarista: “[...] a única forma de aprendermos com o passado é nos apropriarmos dele” (Skinner, 1990, p. 237). Em outras palavras, as mitologias presentes no modo de reconstrução racional não favorecem o uso competente das ideias produzidas no passado no âmbito do debate filosófico ou político contemporâneo, uma vez que elas distorcem a forma como os autores se manifestaramelidindo seus efetivos projetos intelectuais e políticos.
As críticas aos procedimentos contextualistas foram expostas de forma bastante diferenciada, quando comparadas à contundência das oposições às estratégias textualistas. O CL, como o próprio binômio expressa, situa-se no âmbito das abordagens contextualistas; assim, não se opõe a elas, ainda que exija a definição precisa do significado de contexto. Em outras palavras, o CL considera necessário definir o que entendemos por contexto, pois a simples assunção desta noção nas narrativas históricas não resolve os problemas da interpretação das fontes.Para além da questão do significado, o CL sustenta a necessidade de análises contextualistas que evitem o estabelecimento de relações causais e arbitrárias entre circunstâncias e ideias. Essa crítica visa mostrar o risco das explicações históricas deterministas, ou seja, de pensarmos esquematicamente as relações entre texto e contexto, de maneira a representar as ideias, as ideologias ou os discursos como efeitosou reflexos passivos de causas estruturais, sejam estas de ordem econômica ou social. As dimensões materiais e imateriais da experiência social não devem ser justapostas, seja na perspectiva da determinação do contexto em relação ao plano das ideias seja na da acepção conciliadora, mas meramente retórica, que sustenta a dialética das mútuas determinações.
Para Skinner, não é possível falar abstratamente de contexto histórico, uma vez que essa noção é extremamente ampla e subjetiva. Contexto é o todo social, logo inacessível, caso não seja claramente definido. Para o CL, contexto é a linguagem compartilhada pelos grupos sociais em períodos e lugares sociais específicos. Assim, não podemos pensar essa noção central da explicação histórica em termos abstratos, mas sim como contexto linguístico ou jogo de linguagem, cujo acesso se faz por meio das enunciações presentes na materialidade textual das fontes, as quais possibilitam, pela característica referencial da linguagem, que se acessem outros estratos contextuais.
Jogos de linguagem, atos de fala e força ilocucionária
O CL se esforça por pensar as ideias em seus contextos de enunciação e, produzindo estudos eminentemente históricos, busca estabelecer os liames entre o plano subjetivo dos sentidos (ideias e discursos) e o plano objetivo das práticas sociais. Nessa acepção, as ideias não são essências ou arquétipos plenos de autonomia e, muito menos, reflexos ou efeitos passivos dos movimentos estruturais: são atos de fala (speech acts), registrados em fontes empíricas e, portanto, passíveis de ser tratados historicamente como qualquer outra atividade humana. Segundo Skinner, o entendimentohistórico do discursopolítico supõe a compreensão do projetopolítico ao qual o agente da enunciação estava vinculado.
Skinner (2002, p. 79) assevera que,para interpretarmos umtexto, necessitamos compreender o queo autor estava fazendo quando o escreveu. Trata-se da pretensão de estabelecer a tensão relacional entrelinguagem e experiência. Paraele, aindaque o historiador não tenha acessodireto à experiênciahistórica, a análise do discurso, acessível por meio da materialidade textual das fontes, possibilita a compreensãohistórica da relaçãoentreestas e as práticassociais. O discursopolíticonãocria a experiênciapolítica (teseidealista), pois, segundo Pocock, “[...] o historiador é, sem dúvida, perfeitamente consciente de que as coisas acontecem aos seres humanos antes de serem verbalizadas, embora não antes de eles possuírem os meios de verbalizá-las” (2003, p. 56).
Na perspectiva da formulação dessa teoria da interpretação, Skinner e Pocock estabeleceram uma intensa interlocução com os estudos sobre o funcionamento da linguagem ordinária e, emparticular, com a teoria dos jogos de linguagem do filósofo Ludwig Wittgenstein e com a teoria dos atos de fala desenvolvida pelo filósofo John Austin. As reflexões realizadas por Wittgenstein e Austin, posteriormente levadas adiante por John Searle, não tinham como escopo a análise histórica11. Assim, suas proposições foram ressignificadas por Skinner e Pocock para servir ao estudo histórico do discursopolítico.
A premissaprincipal desse diálogocom a filosofia da linguagem é a crítica ao positivismológico e à concepçãomeramente referencial da linguagem. Em sua teoria, Austin busca entender a linguagemem seusprocessosreais de manifestação, destacando a relaçãoentreenunciação (ato de fala) e contexto (situação de comunicação). Nesse sentido, para além dos atos locucionários ou proposicionais (aquilo que se diz sobre algo), essa abordagem visa investigar os atos ilocucionários ou a força ilocucionária (aquilo que pretendemos fazer ao falar) e os atos perlocucionários (aqueles que revelam os efeitos da locuçãosobre os seusdestinatários). A ênfase da análise não recai sobre o significado das palavras (semiologia) ou sobre as mudanças históricas do sentido (semântica histórica), massimsobre os diversosusosque as palavras encerramquando associadas a determinados jogos de linguagem. A preferência pelo termo uso em vez de significadoexplica-se pelo sentido de ação ou de desempenhoque o termo denota, bem como pela compreensão de que vocábulos, mesmo aqueles que têm significados relativamente estáveis, podem ter usos diversificados em razão das intenções (força ilocucionária) dos diversos enunciadores.
Na perspectiva de Wittgenstein, apropriada pelo CL, os jogos de linguagem são situações estruturadas de enunciação que impõem regras, tacitamente aceitas pelos jogadores, sobre o que é possível ser dito, por quem, quando e como. A teoria dos atos de fala, também chamada de análise pragmática da linguagem, adotou a clássica distinção entre langue (estrutura da língua) e parole (processosconcretos de conversação) estabelecida pelo linguista Ferdinand Saussure. Porém, diferentemente da linguística saussuriana, a pragmática investe no estudo da parole, oumelhor, dos processos concretos de conversação ou interação comunicativa.
Os historiadores ingleses perceberam que o estudo da força ilocucionária e dos atos perlocucionários da língua impunha a compreensão da relação entre a parte verbal (signo) e a extra verbal da enunciação (contexto), bem como pressupunha o caráter social e histórico da linguagem. Deslocando essa discussão para o campo da história intelectual, Skinner e Pocock, embora com especificidades procedimentais e diferentes interesses temáticos, postularam a tese da correspondência entre os contextos político e discursivo, fazendo da linguagem usada no discursopolítico uma chavepara a análise das performances, dos acontecimentos discursivos e dos atos de falaassociados à açãopolítica. Da mesma formaquea natureza performativa da língua oportuniza o acesso às práticassociais, o caráter referencial da linguagem favorece a aproximação com o cenário mais amplo em que esses eventos se manifestam. Nessa perspectiva, a linguagem política é entendida como um modo de argumentação que se apresenta em várias línguas vernáculas e está disponívelpara uma série de autores. A linguagem é, a umsótempo, ummodo de falar prescrito (efeito estruturador da langue sobre a parole) e umespaço de disputas (papel estruturante da parole sobre a langue).
O CL busca, assim, estudar a variedade linguística praticada pelosatores do discurso, os quais pretendemdifundir e criarmodos de argumentação e, porextensão, meios de persuasão. O discursopolítico - conceituado como resultante da interação entre langue (contexto linguístico) e parole (modopeloqual o sujeito se apropria da língua, seja para reafirmá-la ou para inová-la) - torna-se o objeto de investigação,por excelência, dos historiadores vinculados ao CL. Para Pocock (2003, p. 74), é “[...] do métier de nosso historiador aprender uma série de linguagens e estabelecê-las como contextos em que são efetuados os atos de enunciação”.
Pocock (2003) sistematiza os procedimentos dessa operação de interpretação da estrutura e do funcionamento das linguagenspolíticas.Primeiramente, ele indica a necessidade de identificação dos termos (lexicais ou normativos) presentes no discursoque se pretende analisarpara, então, flagrar as ocasiões nas quaisesses termos surgem, assim como os modoscomoeles se complementam ou se opõem. Essa operaçãodemandaleituraextensiva e exaustiva das fontes, seguida doexercício de formulação de hipótesessobre as características do discurso analisado. Nos termos de Pocock (2003), o funcionamento ‘normal’ do discurso, bem como os momentos de subversão de sua estrutura normativa, chamados por Skinner de lances (throw), podem ser percebidos no interior de uma linguagem delimitada temporalmente. Essa linguagem tem suas manifestações, tanto nos autores clássicos e nos textos canônicos da política quanto nos autores de pouco reconhecimento público ou nos textos apócrifos de circulação restrita. Em outras palavras, trata-se de localizar o autor e o texto no interior de uma comunidade de falantes que partilha convenções sobre o que pode serdito e comquaispalavras e, assim, interpretar os programas de ação em curso (projetos políticos) e a história geral do período.
Para esses autores, o CL controla, em melhores condições, a inclusão de sentidos estranhos ao discurso de um determinado tempo e lugar. Para além dessa atenção contra o anacronismo e a presentificação dos termos do debate político, o CL possibilita demonstrar historicamente como um conjunto de agentes partilharam um determinado meio expressivo. Esse contexto linguístico comum é o lugar das disputas políticas, de forma que, ao compreendermos seu funcionamento e seu modo de estruturação, aproximamo-nos da experiência histórica, seja no sentido de identificar e qualificar os agentes envolvidos seja no de entender e explicar os conflitos materiais e simbólicos que marcam o mundo social. Essa perspectiva teórica possibilita, ainda, demonstrar que determinados agentes lidam de forma crítica com a linguagem, produzindo lances ou linguagens de segunda ordem e, assim, produzem, na expressão de Pocock (2003), a ação da parole sobre a langue, ou melhor, o efeito estruturante da fala sobre a língua.
Por fim, Skinner e Pocock sustentam a ideia do discurso político como uma língua complexa, na qual coabitam inúmeros vocábulos normativos (religioso, econômico, jurídico e científico). O encontro desses léxicos ocorre no âmbito do uso da linguagem, no qual os termos oriundos dos diferentes discursos assumem sentidos próprios no plano do discurso político.
As linguagens e seus sujeitos
Considerando essa exposição da teoria do CL, pretendemos, neste momento, enfatizar alguns de seus aspectos, cujas contribuições consideramos importantes para a reflexão sobre a escrita da história. Destacamos particularmente as questões relacionadas às estratégias interpretativas relacionadas ao uso da linguagem e ao papel atribuído ao sujeito na história.
Contudo, antes de seguirmos nessa linha de argumentação, salientamos que parte dos pressupostos do CL vem se modificando ao longo dos anos em função do movimento das ideias de Skinner em relação aos seus críticos. Os escritos de Feres Júnior (2005), Feres Júnior e Jasmin (2006), Silva (2010), entre outros,mostram como as posições de Skinnervêm se alterando, desde o artigo/manifesto de 1969 (Meaning and understanding) até o presente, particularmente quanto à possibilidade de o historiador interpretar/recuperar a intenção do autor com base na identificação da força ilocucionáriapresente nos atos de fala e registrada na materialidade textual das fontes12.
O tom enfático sobre o potencial de objetividade analítica do CL, incluindo a crença no acesso à intencionalidade autoral, levou muitos a considerar Skinner como uma nova versão do positivismo. Esse tom foi gradativamente se tornando mais brandoem suas respostas aos críticos13 e Skinner passou a sublinhar que a análise histórica é sempre um ato de interpretação, ou seja, passível de ser limitada ou mesmo equivocada, dependendo das condições para sua realização. Essa posição não constitui novidade para a prática historiográfica, uma vez que é amplamente compartilhada a premissade que as explicações históricas envolvema combinação entre o acesso à documentação disponível e os inúmeros pressupostos subjetivos e intersubjetivos que interferem no contexto de cada investigação. Não obstante, se percebemos mudanças no tom, na ênfase dada aos argumentos e/ou na reapresentação de certos truísmos relativistas característicos da cultura historiográfica, não observamos uma ruptura com as bases teóricas e metodológicas que sustentam o CL. Noções cruciais do método, tais como força ilocucionária, intenção autoral, jogo de linguagem, permanecem como princípios articuladores da análise, mesmo diante das críticas mais substanciais14.
Nesses termos, apesar dos críticos, o CL segue reafirmando a possibilidade de captação da intencionalidade do autor (força ilocucionária), ainda que afirme que muitos atos de fala, produzidos no passado ou no presente, tenham irremediavelmente sua intencionalidade completamente elidida. Assim, ainda que a intenção autoral seja uma condição essencial para qualquer ato de comunicação, de acordo com a teoria dos atos de fala, muitos mal-entendidos marcam o processo da comunicação, seja oral seja escrita. Dessa forma, as intencionalidades autorais de muitas enunciações registradas em textos produzidos no passado estarão definitivamente inacessíveis aos intérpretes.Logo, da aceitação do pressuposto teórico da imanente intencionalidade autoral nos atos de fala à produção de uma explicação histórica apoiada nessa premissa, temos um enorme caminho a ser trilhado.
Para o CL, a linguagem de um autor é passível de ser acessada pela materialidade textual das fontes, de maneira que as intenções de quem realiza um ato de comunicação bem-sucedido deve, por hipótese, ser apreensíveis publicamente (Skinner, 2002). Assim, uma hipótese sustenta o método, demonstrando a relatividade de seu sucesso. Esse tipo de questão associada às condições de produção de conhecimento, típica da epistemologia e que há muito tempo vem sendo formulada em relação à objetividade do conhecimento histórico, não tem imobilizado os historiadores. Estes seguem interpretando o passado e produzindo explicações que, se não são verdadeiras, podem ser consideradas consistentes, em relação ao suporte de evidências empíricas disponíveis, e plausíveis, em termos propriamente lógicos.A produção desse tipo de explicação é um dos potenciais do CL,que - sem a pretensão da exclusividade, da infalibilidade ou da aplicabilidade a qualquer espécie de registro -confere uma direção e um grau de controle ao processo de interpretação. Essa conduta mantém o risco do anacronismo e da presentificaçãoem evidência e, assim, apresenta uma condição crucial para o debate acadêmico interessado em refletir sobre as formas de pensamento em termos eminentemente históricos.
Dessa forma, o CL mostra-se plenamente sintonizado com o movimentode crítica àtradicional história das ideias,a qual manipula o pensamento produzido no passado em favor das teses políticas ou filosóficas em disputa no presente15. Em outros termos, se, para alguns críticos literários, filósofos ou cientistas políticos, a intencionalidade de um autor pode ser considerada irrelevante ou inacessível, para o historiador, a intenção do autor, ao menos como hipótese, é uma questão que pode contribuir para a produção de determinadas explicações históricas. A rigor, o CL não inaugura esse desejo ou objetivo de compreensão da intencionalidade autoral, mas apresenta um caminho que permite pensar de forma controlada e sustentada o que os historiadores da filosofia, da ciência ou do pensamento político, desde meados do século XVIII, vêm buscando fazer nos marcos da filologia e da hermenêutica. O CL oferece uma alternativa importante para as interpretações que, consciente ou inconscientemente, preconizavam penetrar na mecânica mental dos autores do passado, assumindo um procedimento linguístico em oposição à adoção de categorias psicológicas.
No debate com a hermenêutica, ao focar o conceito de uso da linguagem em oposição à noção de ‘significado’, o CL também inova. Nessa chave de leitura, se, em razão dos horizontes de interpretação dos seus leitores, o significado de um texto pode ser indefinidamente alterado, o uso da linguagem por um determinado autor remete a um momento histórico singular. Disso surge a célebre pergunta que expressa o tipo de problema buscado pelo CL: o que o autor estava pretendendo fazer quando disse isso? (Skinner, 2002).
Como foi formulado na crítica do CL ao pensamento de Lovejoy e à tradição da história das ideias e da filosofia, as ideias não são entidades atemporais, não são perenes, mas sim manifestações discursivas, respostas a circunstâncias mais imediatas. A identificação dessas circunstâncias no tempo e no espaço favorece o entendimento do uso da linguagem por um determinado autor no interior de um jogo de linguagem,marcado por regras tacitamente estabelecidas. Acompreensão da singularidade dousode um texto para um determinado fim não representa uma atitude antiquarista, que aprisiona o texto e seu sentido no passado. A interpretação de que um determinado autor usou um texto para sustentar uma mudança no sistema de ensino ou para defender um princípio político em debate não está em conflito com a ideia de que o significado desse mesmo texto será permanentemente atualizado pelo processo de recepção ativadopor seus leitores em outros contextos culturais ou históricos. O significado (que depende dos modos de recepção) e ouso (que depende da força ilocucionária) são expressões da história de um texto e podem ser assumidos e interpretados separadamente ou de forma combinada, de acordo com o interesse específico do historiador. Este tem a opção do estudo, seja das ideias de Marx ou do marxismo, podendo, inclusive, contrastar suas análises com o que Marx pretendia com seus escritos ou com o que foi assumido e realizado em nome de suas ideias.
O foco na intenção do autor e no uso da linguagem remete para a aproximação entre discursos e práticas, entendendo sempre que, para o CL, o discurso, a palavra, as ideias não são determinantes das práticas, mas sim processos que informam e justificam suas manifestações. Logo, não podemos imaginar uma correspondência plena entre essas duas dimensões do mundo social, mas apenas o que definimos anteriormente como uma tensão relacional entre experiência e linguagem. Essa ênfase na autoria significa, também, repensar o lugar do sujeito do discurso, mas sem retomar a tese idealista do autor livre de constrangimentos e senhor de suas ideias e palavras. De acordo com o CL, a conversação pública e privada ocorre no interior de um jogo de linguagem,composto por um vocabulárioconceitual limitadoque governa o mundo mental.Assim, situar o texto em seu
[...] contexto linguístico significa, portanto, compreender os valores ideológicos compartilhados pelos agentes num mesmo período e obedecendo a um certo número de convenções sobre o que é possível a um autor dizer ou não num dado tempo, sobre o que é ou não legitimamente aceito por seus pares (Souza, 2008, p. 10).
Nesseenquadramento do argumento, o autor não é soberano em seu discurso, pois pressupõe uma audiência e, por extensão, um conjunto de convenções que o constrangem. Contudo, alguns atores do discurso agem de maneira a rearranjar as regras de conversação estabelecidas, com o intuito de justificar linhas de ação em curso e defender interesses sociais e políticos16. Na expressão de Pocock (2003), são os lances (throw) de agentes conscientes de sua posição no jogo, caracterizando a ação da parole sobre a langue. Essa maneira de entender o sujeito do discurso, não necessariamente o sujeito da história, atualiza e supera, a um só tempo, a noção de onipotência e a ideia da morte doautor17. Em outras palavras, todos os membros de uma determinada comunidade discursiva estão aptos a participar do jogo de linguagem, mas nem todos são capazes de subverter suas regras. Os que praticam a subversão fazem isso dentro de certos limites. Nessa chave de leitura, debates intelectuais, realizados por uma comunidade científica ou literária, podem ser avaliados, levando-se em conta tanto os constrangimentos que circunscrevem o que pode ser dito quanto a ação de determinados protagonistas dessa comunidade, os quais se destacam pela maneira peculiar como se comportam.
O ator do discurso, seja científico, político ou pedagógico, é conceituado como aquele que vive em um universo de langues e que visa ocupar o lugar da enunciação na perspectiva de difundir sentidos postos pela langue e/ou criar lances por meio da parole. Para Pocock (2003), existem intelligentsias que adquiriram autoridade no uso de certaslinguagens, da mesma forma como existem teóricos épicos, como Hobbes na filosofia política, os quais revelaram plenaconsciência dos seuslances, produzindo mudanças no comportamento linguístico. Trata-se, portanto, de uma concepção de história intelectual que rompe com os maniqueísmos que opõem ou sobrepõemsujeitos e discursos ou textos e contextos. Em síntese, o CL busca articular o princípio da intencionalidade dos sujeitos historicamente situados com o da impessoalidade dos sistemas linguísticos, entendendo o agentecomocapaz de manipular a pluralidade de linguagens especializadas disponíveis, em benefício da expressão singular.
Conclusões: contextualismo linguístico e escrita da história da educação
Por fim, devemos indagar qual é o potencial dessa teoria para a escrita da história da educação, uma vez que é este o espaço acadêmico para o qual nos dirigimos preferencialmente. É corrente nas análises sobre a
[...] historiografia da educação a constatação da expressiva presença no campo, em períodos que variam, nas diferentes tradições nacionais, do gênero História das Idéias Pedagógicas. Essas narrativas mostram-se intimamente associadas ao modelo da História da Filosofia e da sua variante História das Idéias. A ênfase sobre o significado das idéias e das correntes de pensamento; a organização cronológica dos capítulos; a estruturação de um cânone de obras e de autores consagrados; a relação indireta com as fontes; e, sobretudo, a análise das idéias a partir de um método internalista são características gerais que aproximam as escritas da História das Idéias Pedagógicas e da História da Filosofia (Vieira, 2009, p. 190).
Nesse sentido, as críticas do CL à história das ideias, ao seu método textualista ou internalista e às suas mitologias (questões perenes, coerência e prolepses) são de grande valia para a problematização desse gênero de escrita, possibilitando atualizar metodologicamente a investigação sobre a história do pensamento pedagógico ou das ideias educacionais. No limite desse raciocínio, podemos afirmar que a consagração da crítica ao modo filosófico de narrar a história da educação, apoiada única e exclusivamente no pensamento dos filósofos pedagogos, não deve significar a renúncia à abordagem histórica das ideias e das teorias pedagógicas. Em outras palavras, de um lado, acreditamos que é possível manter na pauta historiográfica os estudos sobre o pensamento e as teorias educacionais, de outro, consideramos necessária uma revisão profunda dos métodos aplicados nesse tipo de investigação (Vieira, 2015, p. 16).
Nesse exercício revisionista de recusa dos métodos tradicionais, mas sem abrir mão do pensamento como problema historiográfico, o CL apresenta uma contribuição que acreditamos ter sido capazes de expor e analisar ao longo deste artigo. A rigor, o CL permite compreender as ideias educacionais como discurso e linguagem, ou melhor, como um ‘jogo de linguagem’ praticado em contextos institucionais. Esse jogo envolve as regras estabelecidas para a enunciação e o protagonismo dos enunciadores no sentido de reiterar ou de subverter as convenções estabelecidas.
Nos termos propostos por Pocock sobre o discurso político, podemos pensar o discurso educacional como uma linguagem complexa, na qual identificamos a presença de léxicos próprios de outros jogos de linguagem, particularmente aqueles praticados nos contextos dos discursos religioso, político, econômico e científico. Não obstante, esses termos, ao ser apropriados pelo discurso educacional, ganharam, no jogo compartilhado de linguagem e nas relações de poder presentes no campo educacional, novos significados e usos próprios. Podemos identificar também como esse jogo é praticado por uma intelligentsia autorizada a falar dos problemas e, sobretudo, das prioridades da educação. Nessa perspectiva, talvez, precisemos substituir a expressão história das ideias pedagógica por termos que expressem o foco na história do discurso sobre a educação ou na história da linguagem praticada no campo educacional.
O CL, embora se concentre na análise do discurso, da linguagem e da retórica, pode contribuir também para o estudo das práticas educacionais, uma vez que as práticas, entendidas como experiências em grade medida inacessíveis à pesquisa histórica, só são passíveis de ser imaginadas e representadas na narrativa histórica em razão do caráter locucionário ou descritivo da linguagem. Em outros termos, se não temos acesso direto às práticas pedagógicas realizadas no passado, somos obrigados a representá-las e interpretá-las com base nos vestígios presentes nos textos, sejam escritos,sejam imagéticos. Assim, ainda que não possamos estabelecer uma relação causal entre discurso e prática, entre palavras e ações, podemos adotar como hipótese que mudanças na linguagem são indícios de mudanças nas práticas. Como afirmou Skinner (1999, p. 86): “[...] o que é possível fazer em política é geralmente limitado pelo que é possível legitimar. O que se pode esperar legitimar, contudo, depende de que curso de ação se pode plausivelmente alcançar sob princípios normativos existentes”.
Nesta chave de leitura, estudar as práticas educacionais pressupõe entender o funcionamento da linguagem, considerando o léxico corrente em cada contexto, bem como os termos que, no interior desse léxico, assumem contornos de princípios normativos. Lembremos, ainda, que, na origem das teorias sobre o funcionamento da linguagem que inspiraram o CL, as palavras são assumidas como atos (Wittgenstein e Austin) que enfatizam o caráter performático da linguagem, ou melhor, o efeito provocado pela linguagem sobre a audiência. Temos aqui mais uma evidência teórica da relação estreita que se pode estabelecer entre palavras e práticas sociais ou pedagógicas.
Em síntese, podemos afirmar que o diálogo com o CL possibilita à História da Educação pensar o discurso educacionalcom base em seus contextos de produção, circulação e recepção. Essa opção favorece a escrita de uma história da educação articulada à história das linguagens, da circulação dos saberes, das profissões ligadas à esfera cultural, das formas de transmissão da cultura e dos meios e dos lugares institucionais de construção do conhecimento.
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Notas