ARTIGOS
Recepção: 17 Novembro 2016
Aprovação: 16 Maio 2017
Resumo: O propósito neste artigo é fazer uma reflexão historiográfica sobre as classes secundárias experimentais. A análise abrange três momentos históricos: o primeiro, da década de 1950, quando os ensaios renovadores no ensino secundário brasileiro emergiram e foram oficializados pelo MEC, até o golpe de 1964; o segundo, durante o regime militar; o terceiro corresponde ao período de redemocratização da sociedade brasileira iniciado na década de 1980 e que se desdobra até hoje. Para tanto, usam-se os conceitos de memória coletiva, formulado por Jacques Le Goff, e de representação, enunciado por Roger Chartier, além de textos de história da educação, como artigos científicos, livros, dissertações de mestrado e teses de doutorado.
Palavras-chave: classes experimentais, ensino secundário, renovação pedagógica.
Abstract: The purpose of this article is to make a historiographic reflection on the experimental secondary classes. This analysis is made in three historical moments: first, from the 1950s, when these renovatory essays in Brazilian secondary education emerged and were officialized by the MEC until the 1964 coup; Second, during the military regime; And, finally, in the period of redemocratization of Brazilian society, which began in the 1980s and which is still unfolding today. To do so, he uses the concepts of collective memory, formulated by Jacques Le Goff, and representation, enunciated by Roger Chartier, and uses texts of history of education as scientific articles, books, master's dissertations and doctoral theses.
Keywords: experimental classes, high school, pedagogical renewal.
Resumen: El propósito de este artículo es hacer una reflexión historiográfica de las clases secundarias experimentales. Este análisis se realiza en tres momentos históricos: en primer lugar, a partir de la década de 1950, cuando estos ensayos renovadores en la enseñanza secundaria de Brasil surgieron y fueron anunciados oficialmente por el Ministerio de la Educación hasta el golpe de 1964; en segundo lugar, durante el régimen militar; y, finalmente, el período de re-democratización de la sociedad brasileña, que comenzó en la década de 1980 y que se desarrolla hasta la actualidad. Para ello, se utilizan los conceptos de la memoria colectiva, formulado por Jacques Le Goff, y de la representación, enunciado por Roger Chartier, y, además, textos de historia de educación como artículos científicos, libros, disertaciones de máster y tesis doctorales.
Palabras clave: clases experimentales, enseñanza secundaria, renovación pedagógica.
Introdução
A transformação do ensino secundário brasileiro começou no início da década de 1950 por meio de experiências pontuais. No estado de São Paulo, a renovação do ensino secundário foi vinculada umbilicalmente ao Centre International d`Études Pedagogiques (CIEP), criado em Sèvres em 1945 com o objetivo de elaborar uma tradição pedagógica inovadora para o ensino secundário francês - as classes nouvelles (Viaud, 2005; Araújo, 2013) - e disseminá-la, especialmente por meio do oferecimento de estágios a educadores franceses e estrangeiros. O primeiro professor paulista a realizar estágio no CIEP foi Luiz Contier, que, ao retornar ao Brasil, em meados de 1951, deu início a uma experiência pedagógica renovadora no Instituto Alberto Conte. Nesse ensaio educativo, com referência nas classes nouvelles, ele colocou em prática estratégias didáticas escolanovistas, como trabalhos de pesquisa, estudos do meio, atividades em equipe, conselhos de classe, integração entre disciplinas e saber e constituição de turmas menores de alunos. Tal cultura escolar ganhou destaque no estado de São Paulo e, em meados de 1958, estimulou o Ministério da Educação e Cultura (MEC) a publicar uma legislação que autorizava, em caráter de experiência, a realização das classes secundárias experimentais em estabelecimentos de ensino secundário (Vieira, 2015). É importante frisar que foi a partir desse momento que os ensaios renovadores do ensino secundário brasileiro passaram a ser chamados de classes secundárias experimentais.
Dessa forma, a partir de 1959, de modo restrito e regulado pelo MEC, as classes experimentais começaram a ser implantadas em alguns estabelecimentos de ensino secundário brasileiro, concentrando-se mais nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essas experiências geralmente foram introduzidas no primeiro ano do curso ginasial - primeiro ciclo do ensino secundário formado por quatro anos - de colégios do sistema público e de redes privadas, especialmente a das escolas vinculadas à Igreja Católica - a maior e a mais estendida no território nacional. Em 1962, ano de conclusão do curso ginasial das turmas iniciantes em 1959, havia no Brasil 172 classes secundárias experimentais, das quais 112 eram no curso ginasial e 60, no curso colegial - segundo ciclo do ensino secundário. Esse fato indicava a afirmação de uma nova tradição escolar (Cunha & Abreu, 1963), prevista na Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961 (Brasil, 1961), a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBDEN), que permitia a criação de colégios ou classes experimentais, conforme consta em seu artigo 104: “Será permitida a organização de cursos ou escolas experimentais, com currículos, métodos e períodos escolares próprios, dependendo o seu funcionamento para fins de validade legal da autorização do Conselho Estadual de Educação, quando se tratar de cursos primários e médios” (Brasil, 1961). Os conselhos estaduais de educação, criados pela LDBEN de 1961, foram instalados no ano seguinte, indicando uma inflexão descentralizadora da educação brasileira.
Em 1964, com a implantação do regime militar, essa tradição pedagógica renovadora foi contida e, com o recrudescimento do autoritarismo forjado pela decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, muitos colégios renovadores foram fechados e alguns de seus diretores, perseguidos e presos.
Com o predomínio da educação tecnicista durante o regime militar, os ensaios vanguardistas no ensino secundário foram colocados no esquecimento, mas, com a abertura política, começaram a ser rememorados de diferentes maneiras. Apesar do regime militar, alguns livros de História da Educação passaram a mencionar, en passant, experiências renovadoras no ensino secundário. Efetivamente, com a abertura política, iniciada, timidamente, no final da década de 1970, tais experiências passaram a ser estudadas de forma sistemática no meio acadêmico, especialmente por educadores e historiadores.
Nessa direção, procura-se no presente trabalho compreender como foram construídos o esquecimento e a memória das classes secundárias experimentais e dos ginásios vocacionais na historiografia da educação brasileira. Constata-se que esses ensaios pedagógicos renovadores no ensino secundário foram esquecidos por algumas das obras de história da educação brasileira e lembrados por outras. Para a análise, usa-se o conceito de ‘memória coletiva’ formulado por Le Goff (1990). Em sua acepção, o esquecimento ou a rememoração são produzidos por jogos de poder entre indivíduos e/ou grupos sociais. Assevera o autor:
[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (Le Goff, 1990, p. 426).
Ademais, as dimensões rememoradas do passado não são fixas e cristalizadas, mas sempre fazem parte do jogo das representações. Assim, neste texto, movimenta-se também o conceito de representação de Chartier (2002, p. 165), pensado em uma dupla dimensão: “[...] tornar presente uma ausência, mas também exibir sua própria presença enquanto imagem e, assim, constituir aquele que olha como sujeito que olha”. Na presentificação do ausente há uma construção social de uma coisa, pessoa ou fato, mas atravessada por interesses e intenções. Na historiografia, o ausente é o passado.
No campo educacional, a construção da memória coletiva, materializada em textos de história ou de ficção, é realizada também por meio de ‘estratégias de esquecimento’ (Carvalho, 2003) decorrentes do jogo de poder de indivíduos ou de grupo sociais. De outra parte, as estratégias de rememoração constroem diferentes representações dos bens culturais com base nos vestígios disponíveis, como textos escritos, imagens e objetos. Assim, os textos de história da educação oferecem um misto de esquecimentos e de representações do passado que atende às demandas do presente e, portanto, deve ser compreendido como sínteses provisórias e fragmentárias. A historiografia da educação, portanto, constitui uma forma rigorosa e conceituada de memória coletiva, operando uma leitura específica de restos do passado.
Nesta direção, o corpus documental deste artigo é formado por trabalhos acadêmicos de história da educação sobre as classes secundárias experimentais, publicados no Brasil desde a década de 1960. O objetivo é acompanhar a construção do esquecimento e das memórias de uma tradição pedagógica (quase) esquecida, bem como compreender suas representações.
Destaca-se ainda que o que move este trabalho historiográfico é a atual situação do ensino médio brasileiro, cujas marcas de mal-estar e exclusão social indicam a necessidade urgente de sua renovação e democratização. Uma das respostas do MEC nesse sentido é a criação do Programa Ensino Médio Inovador, que vem sendo colocado em prática, de diferentes formas, pelos sistemas estaduais de educação. Dentre as estratégias didáticas prescritas em tal programa, têm-se a integração curricular, a educação em tempo integral, o ensino ativo, o envolvimento mais estreito dos pais dos alunos com o colégio.
Assim, em boa medida, com diferentes matrizes pedagógicas, esse modelo escolar foi ensaiado nas classes secundárias nas décadas de 1950 e 1960. O ensaio historiográfico apresentado neste artigo tem como finalidade lançar luzes sobre esse passado com o intuito de contribuir para a construção de um ensino médio mais eficaz e socialmente justo.
Os primeiros relatos
Na primeira metade da década de 1960 - período de grandes expectativas políticas e educativas - as classes secundárias experimentais passaram a ser mencionadas ou analisadas de modo específico. Por exemplo, no início da década de 1960, em um pequeno texto intitulado O movimento das novas classes experimentais, a equipe editorial da revista Escola Secundária, vinculada à Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES), defendeu a experimentação pedagógica no ensino secundário (A redação, 1961).
A primeira observação contida no texto é de que as classes secundárias experimentais vinham chamando a atenção de educadores, professores, alunos e pais, revelando a insatisfação geral com a cultura escolar prescrita na Lei Orgânica do Ensino Secundário produzida no apogeu da ditadura getulista. Na sequência, o relevo vai para a iniciativa do titular da Diretoria de Ensino Secundário do MEC, Gildásio Amado, que não mediu esforços para implementar a legislação que viabilizava a experimentação pedagógica no ensino secundário, tirando o Brasil do pequeno grupo de países que ainda não permitiam ensaios renovadores na escolarização média. Da perspectiva da equipe, de um lado, “[...] as classes experimentais possibilitam o descongestionamento do currículo tradicional, permitindo aos educadores a adoção de uma seriação de estudos mais racional e consentânea com as reais necessidades dos educandos” (A redação, 1961, p. 3); de outro, as atividades extraclasse eram muito salutares porque concorriam para estimular a iniciativa pessoal e criadora dos estudantes, bem como o seu espírito colaborativo. Em suma, o tom do texto é elogioso.
Na obra Grandezas e misérias do ensino no Brasil, analisando o sistema de ensino brasileiro a partir da cultura escolar prescrita pela LDBEN, Werebe (1963) contempla as classes experimentais no capítulo dedicado ao ensino secundário. Analisadas em menos de duas páginas, essas classes são inicialmente saudadas como “[...] iniciativa que veio insuflar um ar novo na rotina escolar” (Werebe, 1963, p. 154). Fazendo referência a um estudo realizado pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), Werebe (1963, p. 155) constata que “[...] a maioria dessas classes [secundárias experimentais] em funcionamento adotou o regime de tempo integral para o aluno, ampliou as atividades escolares e em todas elas foi reduzido o número de alunos por turma”. Constata também que a experiência brasileira foi inspirada nas classes nouvelles francesas e que a LDBEN permitiu a expansão de inovações pedagógicas para todo o ensino médio. No entanto, explica que tais ensaios renovadores foram considerados muito restritos porque atingiam menos de 1% do total de colégios de ensino secundário e foram realizados, sobremaneira, em condições privilegiadas no tocante à infraestrutura escolar e à clientela. Ademais, ela critica a ausência dos núcleos estaduais ou regionais do movimento renovador do ensino secundário que existiam no modelo escolar francês.
O estudo referenciado por Werebe (1963) foi realizado por Nádia Cunha, técnica no INEP, e Jayme Abreu, especialista em ensino secundário no CBPE, e publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (Cunha & Abreu, 1963). Trata-se de um balanço das classes secundárias experimentais de 1959 - quando elas começaram a ser implantadas em nível nacional - a 1962, quando se completou o período de quatro anos dessas classes - duração do curso ginasial - e se iniciou a vigência da LDBN. Em relação às classes secundárias experimentais que vigoraram nesse período, os autores abordam os seguintes temas: a legislação vigente; a quantificação por estados em relação aos dois ciclos do ensino secundário, a divisão por gênero, o número de colégios, de alunos e de professores; a estrutura pedagógica, com a indicação e a análise dos métodos importados e usados em diferentes redes de ensino. Ao final, fazem uma análise conclusiva do sentido e do significado dessa experiência escolar.
Quanto a isso, constata-se que Werebe (1963) fez uma apropriação bastante tópica e reducionista do trabalho de Cunha e Abreu (1963), já que destaca somente a ampliação de atividades escolares com a adoção do regime de tempo integral e a redução do número de alunos por classe e deixa de lado a análise dos autores a respeito da apropriação de métodos de ensino inovadores - dimensão fulcral das classes secundárias experimentais.
Depois de arrolar e descrever as leis e instruções normativas que possibilitaram a implantação das classes secundárias experimentais em nível nacional, Cunha e Abreu (1963) apresentam os resultados de uma pesquisa de cunho quantitativo a respeito de cada um dos anos do período recortado por eles nos educandários que realizaram ensaios renovadores no ensino secundário. Em 1959, foram introduzidas classes secundárias experimentais em 17 educandários privados e 8 colégios públicos, localizados especialmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro; em 1962, essas classes estavam presentes em 30 educandários privados e 16 colégios públicos, distribuídas em oito estados e com concentração no eixo Rio-São Paulo. Durante os quatros anos analisados, a grande maioria dos estabelecimentos de ensino privado que realizou experimentação pedagógica era de caráter confessional, com destaque para aqueles da rede católica.
Na terceira parte do artigo, Cunha e Abreu (1963) analisam as estratégias didático-pedagógicas adotadas nas classes secundárias experimentais, agrupando-as por colégios em cada estado. No estado do Rio de Janeiro, Cunha e Abreu (1963) constatam a predominância de metodologias apropriadas dos EUA, como o método de projetos e os planos Morrison, Dalton e Winnetka, considerando esse encaminhamento como hibridismo pedagógico. No estado de São Paulo, constatam o uso maciço das matrizes pedagógicas francesas, quais sejam: as classes nouvelles (colégios públicos) e a ‘pedagogia personalizada’ do Pe. Pierre Faure (educandários católicos). No âmbito nacional, destacam as práticas da integração de disciplinas, do estudo dirigido, da orientação educacional e do conselho de classe.
À maneira de conclusão, na última parte do artigo, Cunha e Abreu (1963) fazem uma apreciação crítica da experiência das classes secundárias experimentais no quadriênio 1959-1962. Por um lado, apontam um saldo positivo desse ensaio pedagógico: “A nosso entendimento, seu maior mérito estaria no conceber à escola oportunidade de autonomia, de afirmação própria no processo educacional, oportunidade essa lamentavelmente subtraída com a vigência do regime centralizado” (Cunha & Abreu, 1963, p. 148). Destacam, entre as práticas educativas inovadoras, a flexibilização curricular, com a redução ou a integração de disciplinas, a adoção de métodos ativos de aprendizagem, a implantação do serviço de orientação educacional e a extensão do tempo de permanência dos estudantes na escola. De outro lado, em relação à apropriação dos métodos de ensino, Cunha e Abreu (1963, p. 147) asseveram: “[...] houve, em vários casos, perceptível insegurança metodológica, com adoção de posições ecléticas incongruentes entre si, denotando improvisações apressadas”. Além dessa fragilidade metodológica, os autores apontam a extensão limitada da experiência das classes secundárias experimentais - restritas a um pouco mais de 1% dos estabelecimentos de ensino secundário no Brasil - e a predominância dos colégios confessionais, com destaque para aqueles da rede católica. O artigo de Cunha e Abreu (1963) é o trabalho mais abrangente sobre as classes secundárias experimentais publicado entre o final dos anos 1950 e meados da década seguinte.
Em relação ao expressivo número de classes secundárias experimentais em educandários católicos, existem dois relatos de um mesmo autor a respeito da experiência colocada em prática no Colégio Santa Cruz, dirigido por padres canadenses de ascendência francesa e segmentado para adolescentes homens. La France (1959) descreve e analisa a preparação da implantação das classes experimentais no curso ginasial e, especialmente, a experiência renovadora nesse curso ao longo do ano letivo de 1959. Após a conclusão da experiência nos quatro anos do curso ginasial, Lafrance (1963) publicou um longo artigo, dividido em três partes, sobre o ensaio renovador no Colégio Santa Cruz entre 1959 e 1962. A primeira parte é dedicada à fundamentação filosófica da proposta, destacando-se uma leitura católica do movimento escolanovista e a apropriação das ideias de Fernando de Azevedo. Na segunda parte, o autor focaliza a experiência pedagógica renovadora colocada em prática no Colégio Santa Cruz, identificando que seus fundamentos eram os da pedagogia do Pe. Pierre Faure, já que tal experiência envolvia uso de fichas de trabalho ou de pesquisa, nova escanção do tempo, integração de disciplinas, estudo dirigido, realização de seminários, conselho de professores entre outras estratégias didáticas. Por fim, apresenta depoimentos dos agentes educacionais envolvidos na pesquisa, como alunos, professores, corpo diretivo e pais de alunos. O texto de Lafrance (1963), portanto, é um relato detalhado e consistente da prática das classes secundárias experimentais em um colégio católico.
Os primeiros relatos sobre as classes secundárias experimentais, produzidos na primeira metade da década de 1960, quando já havia quase duas centenas de ensaios renovadores no ensino secundário, foram de educadores envolvidos e comprometidos com a reforma do ensino secundário. Desse período, o artigo de Cunha e Abreu (1963) é o único trabalho que lança um olhar panorâmico em nível nacional sobre as classes secundárias experimentais e apresenta uma abordagem qualitativa/quantitativa. Em nível institucional, Lafrance (1963) oferece uma análise consistente das classes secundárias experimentais no Colégio Santa Cruz de 1959 a 1962. Portanto, são dois trabalhos com uma percepção do imediato pós-experiência, finalizada em fins de 1962, quando se completou o ciclo ginasial.
Repressão política e esquecimento
Durante o regime militar, que desestimulou e, após a promulgação do AI-5, reprimiu as experiências inovadoras no ensino secundário brasileiro, bem como perseguiu e até prendeu seus formuladores, houve parcas reflexões sobre as classes secundárias experimentais. Azanha (1974) faz críticas a essas iniciativas, explorando sua falta de planejamento e seu caráter experimental. Inicialmente, ele lança um olhar negativo sobre elas: “Foi, assim, sob o signo de improvisação e sem uma discussão ampla e crítica, que surgiram as classes experimentais no ensino público de São Paulo” (Azanha, 1974, p. 9). No entanto, seu questionamento de fundo é de ordem epistemológica. Sua finalidade é compreender o conceito de experimentação educacional adotado nas classes secundárias experimentais e cotejá-lo com a experimentação científica. Armando-se com autores como Gaston Bachelard e Karl Popper, ele chama a atenção para a polissemia da palavra experiência, diferenciando a experimentação, a forma pela qual se controlam hipóteses, um procedimento específico da ciência, da experiência pessoal, que é de ordem subjetiva. Assim, Azanha (1974, p. 67-68) assevera: “[...] as classes e escolas experimentais não constituem exemplos de experimentação científica; não porque apresentem uma ou outra falha de planejamento ou de execução, mas porque lhe falta o indispensável: as hipóteses a serem submetidas à prova”. É importante frisar que, além de professor de Filosofia da Educação da USP, o autor dessa obra dirigira a Coordenadoria do Ensino Básico e Normal da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo de 1967 a 1970, quando as últimas experiências inovadoras do ensino secundário foram destruídas pelo regime militar.
Na segunda metade da década de 1970, na obra Estórias da educação no Brasil de Pombal a Passarinho, Lima (1975) faz algumas referências à modernização do ensino secundário implantada pelo MEC, as quais se deveram, em boa medida, à sua atuação como inspetor seccional do ensino secundário no Ceará (Lima, 1962) e, posteriormente, como titular da Diretoria do Ensino Secundário, da qual foi deposto pelo golpe militar de 1964. Ao analisar os ‘educadores fora do sistema’, com destaque para Anísio Teixeira, Lima (1975, p. 185), afirma que “O INEP era o conselho de educação com referência ao curso normal e primário [...] (a pedagogia do ensino médio só apareceu com a CADES, o colégio de aplicação e o COLÉGIO DE NOVA FRIBURGO) [sic]”.
Como inspetor seccional do ensino secundário no estado do Ceará, Lauro de Oliveira Lima teve atuação destacada em atividades da Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES) - criada em 1953 pelo INEP, sob a direção de Anísio Teixeira. Ele ministrou palestras, cursos, seminários, encontros com professores e diretores vinculados à CADES não só no Ceará, mas também nos estados do Amazonas, Pará, Pernambuco, Minas Gerais, entre outros. Para tanto, preparou material escrito, posteriormente reunido e organizado no livro A escola secundária moderna (Lima, 1962). A CADES, por meio de iniciativas diversificadas, irradiou a sua ação renovadora para todos os estados da Federação e, entre meados de 1957 e 1963, publicou a revista Escola Secundária, cuja linha editorial priorizava textos de caráter didático-pedagógico sobre as disciplinas do ensino secundário (Rosa, 2014).
Quando menciona também ‘o Colégio de Aplicação’, Lima está certamente se referindo ao da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas, em verdade, colégios de aplicação de várias universidades federais colocaram em marcha uma cultura escolar renovadora. Ao grafar o Colégio de Nova Friburgo em caixa alta, Lima (1975) lhe confere a distinção escolar que, efetivamente, teve no Estado do Rio de Janeiro. Esse colégio foi instituído por meio de um convênio entre a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a prefeitura de Nova Friburgo e inaugurado em 11 de março de 1951, com a presença do presidente Eurico Gaspar Dutra. O Colégio Nova Friburgo, localizado no bairro Cascata da cidade de Nova Friburgo (Estado do Rio de janeiro), foi concebido e criado para ser um centro de excelência de ensino secundário no Brasil, com regime de internato e semi-internato, com o fito de formar uma elite moderna. Para tanto, plasmou-se o método de unidades didáticas, uma proposta didática experimental híbrida, fundamentada especialmente na noção de unidade do Plano Morrison. Na condição de escola-laboratório, o Colégio Nova Friburgo converteu-se em um centro de formação pedagógica para educadores comprometidos com a renovação do ensino secundário por meio do oferecimento de estágios e da publicação da revista Curriculum, que divulgava textos sobre suas experiências didático-pedagógicas (Santos, 2005).
Defendendo a ideia de que teria havido uma onda de renovação pedagógica mais intensa antes da LDBEN, Lima (1975, p. 192) arrola iniciativas modernizadoras da Diretoria do Ensino Secundário, dentre as quais as “Classes Experimentais que permitiram a introdução da pedagogia no MEC, sob a influência da CADES”. Essa afirmação geral e concisa indica que, diferentemente do que ocorreu no ensino primário, a renovação pedagógica no ensino secundário surgiu somente na década de 1950, razão pela qual ele destaca a atuação da CADES - da qual ele fez parte. Contudo, não dá relevo ao movimento pioneiro de implantação das classes secundárias experimentais ocorrido desde os anos 1950 no Estado de São Paulo. Em vez desse movimento, que foi o mais vigoroso no território nacional, tanto no sistema público quanto nas redes privadas, ele destaca o Colégio Nova Friburgo e o trabalho da CADES.
A década de 1970, com a Lei nº 5.692 (Brasil, 1971), que, criando o 1º e o 2º graus, alterou a estrutura do sistema de ensino no Brasil, foi marcada pela ausência de debate da política educacional e pelo investimento no esquecimento de experiências renovadoras no ensino brasileiro, particularmente daquelas mais críticas que foram realizadas no ensino secundário. Por um lado, o livro de Azanha (1974) faz uma crítica sútil aos ensaios experimentais colocados em prática no ensino secundário, referindo-se à improvisação metodológica e refutando o conceito de experimentação educacional.De outro, Lauro de Oliveira Lima, com seus trabalhos criativos na década de 1970, toca tangencial e cuidadosamente nos ensaios de renovação do ensino secundário, dando destaque para experiências cariocas.
Redemocratização e o retorno das memórias
Procurando compreender a modernização do ginásio nos anos de 1950 a 1960 e a sua relação com o modelo desenvolvimentista, Nunes (1980) tece considerações sobre as classes secundárias experimentais. Ela percebe que o Brasil se apropriou da matriz pedagógica das classes nouvelles de Sèvres e não faz referência à matriz católica escolanovista, desenvolvida por Pierre Faure no Instituto Católico de Paris. Ao mesmo tempo, afirma que as classes secundárias experimentais eram direcionadas aos colégios privados, mas não aos colégios públicos paulistas. Entendendo as classes secundárias experimentais como uma rompimento com o caráter rígido, tradicional e centralizador da Reforma Capanema, Nunes (1980, p. 61) assevera:
O primeiro passo, no sentido de quebrar a rigidez curricular da escola secundária, dotando-a com a flexibilidade necessária à introdução de disciplinas práticas e vocacionais, foi a criação das classes experimentais, que surgiram apenas em 1959, após dois anos de propostas e contrapropostas jurídico-políticas, já na gestão de Gildásio Amado [...]
Baseadas no modelo francês das classes nouvelles, apresentavam, as classes experimentais, como objetivo, o ensaio de novos currículos, métodos e processos de ensino. [...]
As classes experimentais destinavam-se à clientela dos colégios privados e, portanto, predominantemente, a crianças da alta burguesia e camadas médias. Segundo o mesmo estudo [do INEP], participaram da experiência excepcionalmente, alguns componentes do operariado mais altamente qualificado, sobretudo de ascendência estrangeira.
No início da abertura política, surgiram iniciativas no sentido de rememorar as experiências renovadoras do ensino secundário que, de alguma forma, tinham sido constrangidas e reprimidas pelo regime militar. A coletânea Inovação educacional no Brasil (Garcia, 1980) inaugurou esse novo momento, apresentando dois capítulos sobre as classes secundárias experimentais no Estado de São Paulo.
No primeiro, Warde (1980) analisa a experiência no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP entre 1957, ano de sua criação, e 1969, ano do seu fechamento. Sobre a perspectiva modernizante dessa escola, Warde (1980, p. 113-114, grifo do autor) afirma: “Quanto ao modelo de renovação que se percebe presente no C.A., a influência do que se estava buscando na França através das ‘classes novas’ é indiscutível. [...] Foi grande a participação de Werebe na penetração do modelo de renovação pedagógica francês no C.A.” A autora enfatiza que Maria José Garcia Werebe estagiara no Centre International d`Études Pedagogiques e organizara o Serviço de Orientação Educacional no Colégio de Aplicação da USP. Contudo, como o foco é colocado nas tensões ocorridas no interior dessa escola, as quais eram umbilicalmente decorrentes das disputas políticas na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, as referências ao modelo pedagógico renovador são econômicas.
No outro capítulo, Werebe (1980) tece considerações sobre projetos inovadores anteriores ao regime militar e lembra a experiência do Colégio de Aplicação da USP, destacando que foi realizada em ‘condições privilegiadas de trabalho’ e com clientela formada especialmente por filhos das classes médias. Enfim, no tocante às classes secundárias experimentais, estes textos restringem a reflexão ao Colégio de Aplicação da USP, privilegiando tensões políticas.
Nessa coletânea organizada por Garcia (1980), privilegiou-se também a experiência renovadora dos chamados ginásios vocacionais, realizada no estado de São Paulo de 1962 a 1969. Para entender esse fato, é preciso lembrar que, em 1961, a Secretaria da Educação paulista criara o Serviço de Ensino Vocacional (SEV), cuja primeira dirigente foi a professora Maria Nilde Mascellani, que havia coordenado as classes secundárias experimentais no Instituto Narciso Pieroni, na cidade de Socorro. Tais experiências, conhecidas como classes experimentais de Socorro, tornaram-se referência no estado de São Paulo; assim, para construir a rede dos ginásios vocacionais, Maria Nilde apoiara-se na experiência que havia adquirido com elas. No entanto, com o golpe militar, tais experiências foram consideradas como uma tendência esquerdizante (Chiozzini, 2014). Assim, em 1969, com a decretação do AI-5, os ginásios vocacionais foram invadidos e fechados e as suas principais lideranças, perseguidas e até presas. Não por acaso, com a consolidação da redemocratização na década de 1980 e as denúncias da repressão política, foram as memórias da experiência dos ginásios vocacionais que vieram à tona. Nessa direção, as dissertações de mestrado Contribuição ao estudo dos ginásios vocacionais do Estado de São Paulo: o Ginásio Vocacional “Chanceler Raul Fernandes” de Rio Claro (Marques, 1985) e A memória do ensino vocacional: contribuição informacional em um núcleo de documentos (Oliveira, 1986) construíram a representação de que as classes secundárias experimentais foram a pré-história dos ginásios vocacionais.
Na década seguinte, como um desdobramento dessas reflexões, foram produzidas as teses de doutorado intituladas As cinzas e a brasa: os ginásios vocacionais - um estudo sobre o processo de ensino-aprendizagem no ginásio vocacional “Oswaldo Aranha” - 1962/69 (Rovai, 1996) e Os ginásios vocacionais: a dimensão política de um projeto pedagógico transformador (Tamberlini, 1998), bem como a dissertação de mestrado Revisitando o ginásio vocacional: um lócus de formação continuada (Silva, 1999). Em boa medida, esses trabalhos acadêmicos estão condensados na coletânea Ensino vocacional: uma pedagogia atual organizada por Rovai (2005), na qual se procuram estabelecer conexões entre o ensino vocacional dos anos 1960 e o ensino técnico na atualidade. Ademais, na recente obra História & memória da inovação educacional no Brasil: o caso dos ginásios vocacionais(1961-1969) (Chiozzini, 2014), além de problematizar as representações em disputa, explora-se o liame entre as classes secundárias experimentais de Socorro e os ginásios vocacionais organizados por Maria Nilde Mascelani e Olga Bechara, já que as duas atuaram nessas experiências educacionais.
A tradição de estudos pedagógicos marxistas que se afirmou no Brasil a partir dos anos 1980 não deu realce às classes secundárias experimentais. A obra mais paradigmática dessa tradição historiográfica é História das ideias pedagógicas no Brasil de Saviani (2008), para o qual, entre meados da década de 1940 e 1961, quando foi aprovada a LDBEN, houve predominância da ‘pedagogia nova’. Além dos educadores que assinaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e se aglutinaram na ABE a partir de 1933, Saviani (2008) constata, de forma arguta, a emergência da ‘escola nova católica’ em meados dos anos 1950 e, posteriormente, da ‘Escola Nova Popular’, cuja ponta do iceberg foi o método Paulo Freire. Apoiado em Avelar (1978), ele confere importância às intervenções do padre Pierre Faure, jesuíta francês, em prol da disseminação das ideias pedagógicas de Montessori e Lubienska e da defesa das classes experimentais a partir do que ficou conhecido como pedagogia personalizada, que se apropriava da pedagogia montessoriana, do Plano Dalton e da tradição pedagógica católica. Nessa direção, depois de afirmar que o jesuíta francês esteve no Brasil em 1955 e 1956, Saviani (2008, p. 301) afirma: “O mesmo Pierre Faure retornará ao país diversas vezes a partir de dezembro de 1958 para preparar grupos de professores para atuar nas classes experimentais instaladas nos Colégios Santa Cruz, Sion e Madre Alix, em São Paulo”. É curioso que, como historiador marxista, Demerval Saviani reflita sobre a implantação das classes secundárias experimentais na rede católica e não faça menção aos estabelecimentos públicos de ensino secundário que implantaram a renovação pedagógica à luz das classes nouvelles francesas.
Saviani (2008, p. 336) considera que a década de 1960 foi de “[...] apogeu e crise da pedagogia nova”. Ele argumenta que o auge do escolanovismo deveu-se ao impulso das escolas experimentais - mas não cita nem analisa nenhuma delas-, à consolidação dos colégios de aplicação - mas menciona unicamente o da Universidade de São Paulo - e à implantação e disseminação dos ginásios vocacionais no estado de São Paulo. No caso desses estabelecimentos de ensino secundário, identifica os nomes e a respectiva localização e, embora não explore sua cultura escolar renovadora, enfatiza sua existência meteórica, de sorte que no início da década de 1970 eles tinham sido incorporados à rede regular de ensino do estado de São Paulo. Nessa onda renovadora, ele se refere ao trabalho de Paulo Freire, que se destacou pela formulação de um método de alfabetização de adultos, incrementando o que Saviani (2008) chama de ‘Escola Nova Popular’. À maneira de conclusão, afirma que o avanço da renovação pedagógica nos anos 1960 teve diferentes desenvolvimentos:
Esse movimento de radicalização das ideias renovadoras no campo pedagógico manifestou-se num triplo desdobramento: pela esquerda, resultou nos movimentos de educação popular e na pedagogia da libertação [...]; pelo centro, desembocou nas pedagogias não-diretivas que se expressaram na divulgação das ideias de Karl Rogers, de A. S. Neill com a escola Summerhill e de alguns ensaios de experimentação baseados na pedagogia institucional, por inspiração de Lobrot e Oury; pela direita, será articulada a pedagogia tecnicista (Saviani, 2008, p. 339).
O último modelo pedagógico mencionado pelo autor teria sido plasmado nos chamados ‘acordos MEC-USAID’ e predominaria durante o regime militar.
As classes secundárias experimentais somente começaram a ser estudadas, de modo efetivo, na dissertação de mestrado intitulada Um núcleo pioneiro da renovação da educação secundária brasileira: as primeiras classes experimentais do estado de São Paulo (1951-1964) (Vieira, 2015). Esse trabalho de história da educação escolar foi realizado com rigor historiográfico e, ao mesmo tempo, com um olhar microscópico sobre a cultura escolar renovadora das classes secundárias experimentais.
Por um lado, o texto lança luz sobre a apropriação que, a partir de 1951, Luiz Contier fez das classes nouvelles no Instituto Alberto Conte, localizado em São Paulo, certamente, a face menos conhecida da renovação do ensino secundário na década de 1950. Para iluminá-la, são exploradas as missões pedagógicas de educadores brasileiros no Centre International d`Études Pedagogiques, tendo como pioneiro o professor Contier - considerado ‘o pai do experimental’.
Por outro lado, de forma inédita, o texto apresenta uma reflexão sobre as classes experimentais do Instituto Narciso Pieroni do município paulista de Socorro, coordenadas por Maria Nilde Mascelani, Olga Bechara e Lígia Forquin Sim. Essa foi uma experiência renovadora de referência do curso ginasial no estado de São Paulo. Bem mais do que no Instituto Alberto Conte, exploram-se as novas estratégias didáticas adotadas no colégio de Socorro, como o trabalho em equipes, a integração curricular, o uso de métodos ativos e, particularmente, o estudo do meio, por meio do qual se trabalhava a consciência crítica dos estudantes em relação ao seu contexto social. Ademais, é destacada a liderança de Maria Nilde Mascelani na experiência das classes experimentais de Socorro, razão pela qual ela teria sido levada, em 1961, a assumir a direção do projeto dos ginásios vocacionais promovido pela Secretaria da Educação do estado de São Paulo.
Enfim, desde a abertura política, a historiografia da educação brasileira vem tratando as classes secundárias de forma tangencial, em boa medida, por força da importância dada aos ginásios vocacionais como objeto histórico. A afirmação da redemocratização e seu acerto de contas com o regime militar colocou em relevo a experiência dos ginásios vocacionais pelo fato de terem sido reprimidos pelo Estado de exceção. Assim, rigorosamente, é somente o recente trabalho de Vieira (2015) que procura compreender a experiência pedagógica renovadora representada pelas classes secundárias experimentais na década de 1950 - época marcada pelo tradicionalismo pedagógico e pelo elitismo no ensino secundário.
Considerações finais
As memórias dos ensaios pedagógicos renovadores no ensino secundário, realizados nas décadas de 1950 e 1960, foram produzidas de forma diferenciada pela historiografia brasileira. As classes secundárias experimentais, que emergiram no estado de São Paulo no início dos anos 1950 e se disseminaram em nível nacional a partir de 1959, tiveram visibilidade particular até a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961), já que essa legislação permitiu o funcionamento de cursos e colégios experimentais. Ao mesmo tempo, nesse momento histórico, no estado de São Paulo, começaram a ser implantados os ginásios vocacionais que herdaram a tradição renovadora das classes secundárias experimentais e lhes deram uma perspectiva mais crítica em relação ao mundo social, inspirada em princípios católicos de esquerda e marxistas. Em 1969, após o endurecimento do regime militar viabilizado pelo AI-5, os ginásios vocacionais, tidos como redutos revolucionários, foram aniquilados e boa parte de suas lideranças, perseguida e presa pelo regime de exceção. Até o final da década de 1970, com a abertura política, tanto as classes secundárias experimentais quanto os ginásios vocacionais foram silenciados ou lembrados de modo pontual e/ou geral, como no livro de Lima (1975), que enfatiza as experiências renovadoras no Rio de Janeiro e no nordeste.
A partir dos anos 1980, a memória coletiva dos ensaios renovadores do ensino secundário passou a ser construída de forma crescente, sendo anunciada pela coletânea organizada por Garcia (1980). Esse movimento encorpou-se com a produção de dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas em universidades paulistanas com clara assimetria. Tais trabalhos acadêmicos, geralmente transformados em artigos científicos e livros, focalizam sobremaneira os ginásios vocacionais, enquanto as classes secundárias experimentais são citadas en passant. Essa preferência historiográfica deve-se, em boa medida, ao fato de os ginásios vocacionais terem tido uma proposta política e socialmente mais crítica e, especialmente, por terem sido abortados pelo regime militar e seus mentores, perseguidos e presos - particularmente Maria Nilce Mascellani. Além disso, embora tenham sido disseminadas em vários estados, as classes secundárias experimentais rememoradas geralmente são aquelas colocadas em prática em colégios públicos do Estado de São Paulo. O esquecimento também se deve ao fato de boa parte da experiência das classes secundárias experimentais ter sido realizada em colégios confessionais, especialmente aqueles que integravam a rede católica.
As classes secundárias experimentais foram, efetivamente, transformadas em objeto histórico por meio do trabalho de Vieira (2015), que estudou seu pioneirismo no estado de São Paulo, o processo de sua oficialização liderado pela Diretoria do Ensino Secundário do MEC, bem como a cultura ginasial renovadora no Instituto Alberto Conte, sob a batuta do professor Luiz Contier, e no Instituto Narciso Pieroni, liderada pela educadora Maria Nilde Mascelani. Esse trabalho, fundador da investigação sobre as classes secundárias experimentais, pode se desdobrar em diferentes frentes, a exemplo de um estudo comparativo, envolvendo a implantação dessa onda renovadora do ensino secundário em diferentes estados da federação nos colégios públicos, onde ocorreu a apropriação da matriz francesa das classes nouvelles, nos educandários católicos, nos quais foi utilizada a pedagogia personalizada do Pe. Pierre Faure, bem como em outras escolas confessionais e privadas. Essa leitura histórica das diferentes configurações das classes secundárias experimentais colocadas em marcha nas décadas de 1950 e 1960 pode produzir subsídios e suporte ao desafio de superar os impasses e as fragilidades do atual ensino médio.
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