Resumo: Com base na metodologia da história oral temática,analisa-se no artigo uma entrevista simultânea, na qual três docentes relatam suas trajetórias familiares, escolares e acadêmicas. Analisa-se o processo de sua formação como professoras, a partir do final dos anos 1960, e as posições políticasque assumiram no presente,2012, em relação à educação e à escola municipal paulistana no período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). O principal objetivo é mostrar que suas memórias expressam divergências individuais e coletivas e que existem outras formas de expressão da intelectualidade docente, as quais emergem das tensões econtradiçõesvivenciadas em suas trajetórias formativas e não das prescriçõespolíticas e acadêmicas educacionaisque silenciamoutras vozes, memórias e saberes.
Palavras-chave: história oral temáticahistória oral temática,intelectualidade docenteintelectualidade docente,trajetórias formativastrajetórias formativas,ensino municipal de São Pauloensino municipal de São Paulo,ditadura civil-militarditadura civil-militar.
Abstract: The article analyzes, through the methodology of oral thematic history, an interview made simultaneously with three teachers who relate through their family and academic school journey, the process which caused them to become teachers starting in 1960s and their present political positions (2012), relative to education and to the São Paulo Municipal School system during the civil military dictatorship in Brazil (1964-1985). The main objective is to show that their memories express individual and collective differences as well as the existence of other forms of expression of teacher intellectuality that emerge from tensions and contradictions experienced in their formative paths and not from political and educational academics which silence other voices, memories and knowledge.
Key words: oral thematic history, teacher intellectuality, formative paths, São Paulo Municipal School system, civil military dictatorship.
Resumen: El artículo analiza, a partir de la metodología de la historia oral temática, una entrevista simultánea con tres docentes que relatan, a través de sus trayectorias familiares, escolares y académicas, el proceso que resultó en su formación como profesoras, a partir de los años 1960 y de sus posiciones políticas asumidas en el presente, 2012, con relación a la educación y a la escuela municipal paulistana en el periodo de la dictadura civil-militar en Brasil (1964-1985). El principal objetivo es mostrar que sus memorias expresan divergencias individuales y colectivas; y la existencia de otras formas de expresión de la intelectualidad docente surge de las tensiones y contradicciones vividas en sus trayectorias formativas y no de las prescripciones políticas y académicas educacionales, que silencian otras voces, memorias y saberes.
Palabras clave: historia oral temática, intelectualidad docente, trayectorias formativa, enseñanza municipal de São Paulo, dictadura civil-militar.
ARTIGOS
Histórias divergentes na intelectualidade docente: trajetórias formativas nas memórias de professoras do ensino municipal de São Paulo (1964-1985)
Divergent stories in the teaching intelligentsia: formative paths in the memory of teachers in São Paulo Municipal Schools (1964-1985)
Historias divergentes en la intelectualidad docente: trayectorias formativas en las memorias de profesoras de la enseñanza municipal de São Paulo (1964-1985)
Recepção: 01 Março 2016
Aprovação: 01 Março 2017
Ao considerar os ‘professores como intelectuais’ (Giroux, 1997), nem sempre nos deparamos com o mesmo sentido político e históricoda posição central e estratégica que ocupam nassociedades contemporâneas, principalmente quando se tratade analisar memórias que parecem ir na contramão daquelas que foram construídas nas lutas contra a ditadura civil-militar e, fundamentalmente, daquelas que vieram após o fim do regime militar no Brasil. Neste artigo, para analisar uma entrevista simultânea com duas professoras aposentadas e uma readaptada que trabalharam no ensino municipal de São Paulodurante o período da ditadura civil-militar (1964-1985) (Alberti, 2005), utilizamos a metodologia da história oral temática.
A pesquisa é desdobramento de um projeto mais amplo sobre a história do ensino de primeiro grau da cidade. Nesse desdobramento, entrevistamosprofessoras e alunasde algumas das oito escolas pesquisadas,as quais foramrebatizadas com nomes de patronos militares brasileiros a partir de 1969,em substituição aos nomes dos bairros onde se localizavam1. Nesse período,as três professoras trabalhavam na Escola Municipal Tenente Aviador Frederico Gustavo dos Santos.
Suas histórias são divergentesporque não partem de uma memória contra a ditadura civil-militaretambém porque, embora tenham sido entrevistadas simultaneamente,revelam perspectivas diferentesde sua profissão ao longo de sua trajetória de vida. Sãovozes dissonantestambém em relação à produção dos intelectuais da educação,marcada por uma ‘memória militante’ que silenciou grande parte dos professores de classe média que não se posicionaram, não se opuseram ou que defenderam abertamente o regime. Isso não significa que estes tenham deixado de atuar e elaborarconforme a ‘expertise’ do seu trabalho.
Adotamos o conceito de ‘intelectualidade docente’ como um modo de compreender as tensões eas contradições sociais do professor em sua história, o que nos impede de determinar aprioristicamente o que é ou como deve ser um ‘professor como intelectual’. Consideramos que o conceito é fruto de um esforço narrativo da memória dos sujeitos e de interpretação dos historiadores sobre essa narração.
Nesse sentido,não é possível separar as narrativas da história da profissão e de sua relação com a intelectualidade docente, pois o modo como a carreira dos professores primários e secundários adquiriu legitimidade social, em que pese sua maior valorização ou desvalorização em determinados momentos históricos, está atrelado à maneira como justificam racionalmente seu ofício, seu saber-fazer, objetivando, mesmo que parcialmente, seus saberes experienciais (Tardif, 2002), principalmenteos professores ‘aposentados’.
Para Miriam Ben-Peretz:
No que diz respeito à evocação das ocorrências profissionais dos professores aposentados, vários conceitos podem servir como ponto de partida para a aquisição de uma melhor compreensão das próprias narrativas profissionais de professores. Podem analisar-se as recordações dos professores em relação ao seu passado profissional como um reflexo de um processo de cristalização das suas teorias e convicções pedagógicas, associando-as explicitamente a determinadas experiências e ocorrências da sua prática. [...] As reflexões dos professores aposentados sobre a prática educativa não se orientam, todavia, no sentido da decisão, nem procuram soluções defensáveis em relação a situações problemáticas presentes e futuras. As suas reflexões orientam-se para as conclusões, de um modo muito pessoal, e apresentam-se como uma síntese do conhecimento profissional adquirido no tempo. As ocorrências relatadas por professores em exercício são geralmente inconclusivas, não didáticas, e orientam-se para a decisão. Os professores aposentados parecem gostar de partilhar suas conclusões e vivências com outros (Ben-Peretz, 2007, p. 211).
A autora acrescenta que, em seus relatos, os professores aposentados dialogam virtualmente com uma ‘comunidade de ouvintes’, o que pode incluir professores estagiários, professores em início de carreira ou professores muito experientes, pois consideram que suas ‘autobiografias’ são de extrema importância para o crescimento profissional e deveriam ser incorporadas à formação de professores. No entanto, a pesquisa de Ben-Peretz (2007) diverge em alguns pontos nevrálgicos de nossa metodologia de pesquisa e resultaem outras conclusões sobre as memórias das docentes entrevistadas.
Chama nossa atenção a atitude de Maria Heloísa Alves da Silva, na ocasião da entrevista com 73 anos. Ao preencher uma ficha de identificação, quando a recepcionista pediu para tirar a palavra ‘professora’ e deixar apenas a palavra ‘aposentada’, sua reação foi:
Ai eu fiquei brava e disse para ela: Eu sou professora, pode riscar ‘esse’ aposentada. Quando um médico se aposenta ele não vira aposentado, ele continua um médico; quando um dentista se aposenta, ele continua dentista; eu sou professora. Não vou deixar de ser professora para ser aposentada, de jeito nenhum. Eles não dão valor pra gente (Silva, 2012, grifo do autor).
O contexto da fala de Maria Heloísaé quase o final da entrevista, quando suas colegas, Maria de Lurdes Henriques Pereira de Oliveira, na ocasião com 60anos, e Maria Lúcia Lima Santi Yuassa, com 56 anos, comentavam as dificuldades atuais com a disciplina dos alunos e com a participaçãoemcongressos para professores,em virtude da extensiva jornada de aulas ou da falta de professores substitutos,no ensino municipal da cidade de São Paulo.
A palavra ‘entrevista’não é aleatória, pois suas respostas foram gravadas e transcritas com base em um roteiro semiestruturado de questões, conforme a metodologia da história oral. Esta é concebida como um ‘arquivo provocado’: “[...] a história oral é uma metodologia interdisciplinar de pesquisa e de constituição de fontes para o estudo da história contemporânea” (Pomian, 2012, p. 21). Não é ‘outra história’, mas um modo de “[...] criar fontes quepossam servir à reconstrução de um passado ao qual elas fazem referência. Como exploração de fontes, a história oral é, principalmente, um estudo da memória e das representações do passado que ela veicula” (Pomian, 2012, p. 22).Ademais, a situação dialogal da entrevista é que confere todo o peso de significações para a história oral:
Mas a narração oral da história só toma forma em um encontro pessoal causado pela pesquisa de campo. Os conteúdos da memória são evocados e organizados verbalmente no diálogo interativo entre fonte e historiador, entrevistado e entrevistador. Este assume um papel diferente daquele que em geral é atribuído a quem realiza pesquisas de campo: mais do que ‘recolher’ memórias e performances verbais, deve ‘provocá-las’e, literalmente, contribuir com sua criação: por meio de sua presença, das suas perguntas, das suas reações. [...] Na história oral, enfim, o relato da história não é um fim em si mesmo. No que diz respeito ao entrevistador, visa à produção de um outro texto: uma fita, um vídeo e, principalmente, um texto escrito, um livro. Estas diferenças resultam num uso diferente do espaço: em vez de uma ‘roda’ de ouvintes, a situação da entrevista instituiu uma bipolaridade dialógica, dois sujeitos face a face, mediados pelo emprego estratégico do microfone. A ideia de que existe um ‘observado’ e um ‘observador’ é uma ilusão positivista: durante todo o tempo, enquanto o pesquisador olha para o narrador, o narrador olha para ele, a fim de entender quem é e o que quer, e de modelar seu próprio discurso a partir dessas percepções. A ‘entre/vista’, afinal, é uma troca de olhares. E bem mais do que outras formas de arte verbal, a história oral é um gênero multivocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em diálogo (Portelli, 2010, p. 19-20, grifo nosso).
Sem esta multivocalidade, as recordações dos professores pesquisados por Ben-Peretz (2007) são reunidas e cotejadas a título de orientação para futuras pesquisas sobre histórias de vidas de professores e também para sua utilização na formação de docentes. A perspectiva da psicologia cognitiva, baseada no pensamento de professores, difere da perspectiva histórica que adotamos, pois, enquanto a primeira está preocupada com um fundo de regularidades, a nossa está preocupada com a emergência das mudanças na situação dialogal da entrevista em que se entrelaçam presente, passado e futuro. Desse modo, não se deve esperar de nossas entrevistadas, tampouco de nossa análise, um conjunto coeso que sirva como lições, mas sim um conjunto de vozes diferentes e divergentes que, organizadas por meio de uma narrativa, podem nos ajudar a refletir sobre o que queremos dizer e o que evitamos que seja dito quando nos referimos aos ‘professores como intelectuais’.
Não trabalhamos com as entrevistas como um‘discurso’ a ser analisado, isto é, que toma como pronta ou concebida uma tecnologia de poder que organiza e normatiza no ato enunciativo o que deve ser um ‘professor como intelectual’, mas como uma narrativa da memória que refrata esse discurso pelo fato de ser produzidano diálogo entre entrevistador e entrevistado, oralidade e escrita e, sobretudo, entre temporalidades que devem ser interpretadas em conjunto, o queconstitui a base metodológica da história oral.
Como vimos, Maria Heloísa insistiu na manutenção da expressão ‘professora’ e exigiu que se riscasse a expressão‘aposentada’, recusando-se a aceitar que sua fala e principalmente sua vida pudessemser vistas na ‘conclusão’ de um processo ou comouma “[...] síntese do conhecimento profissional adquirido no tempo” (Ben-Peretz, 2007, p. 211). Ela queria ser valorizada no presente para além do discurso que aprisionava e imobilizava seu saber docente apenascomo uma ‘experiência’ do passado.
Será que o conceitode ‘professores como intelectuais’que chegou ou foi apropriado no Brasil a partir da década de 1980, com a abertura do regime militar, e os de ‘professor reflexivo’ ou de ‘professor-pesquisador’, surgidos nos anos 1990, conseguiram apreender outras experiências intelectuais de modo que os docentes se sentissem valorizados?
Artigos como o de Henry Giroux, datados dos anos 1980, foram traduzidos nos anos 1990 no Brasil, revelando uma face bastante prescritiva para a questão:
Portanto, os professores enquanto intelectuais ‘precisarão’ reconsiderar e, possivelmente, transformar a natureza fundamental das condições em que trabalham. Isto é, os professores ‘devem’ ser capazes de moldar os modos nos quais o tempo, o espaço, atividade e conhecimento organizam o cotidiano nas escolas. Mais especificamente, a fim de atuarem como intelectuais, os professores ‘devem’ criar a ideologia e as condições estruturais necessárias para escreverem, pesquisarem e trabalharem uns com os outros na produção do currículo e repartição de poder. Em última análise, os professores ‘precisam’(os itálicos são nossos) desenvolver um discurso e conjunto de suposições que lhes permita atuarem mais especificamente como intelectuais transformadores (Giroux, 1997, p. 29, grifo nosso).
O livro Os professores como intelectuais de Henry Giroux teve e ainda tem ampla circulação nos cursos para a formação de professores.
Não se trata de negarmos o contexto em que o livro foi produzido na defesa da democracia e das lutas sociais pela educação ou defender a ausência de qualquer prescrição, mas de mostrarmos que uma visão histórica da formação de professores traz um questionamento sobre a natureza de tais prescrições, que omitem ou interditam outras vozes, principalmente aquelas consideradasincômodas,supostamentenão críticas ou tendentes ao conservadorismo. Nos anos 2000, vários intelectuais da educação passaram a criticar conceitos como o de ‘professor reflexivo’,baseado numa espéciede nova racionalidade técnica que vinha se instaurando de maneira acrítica e abusiva no pensamento educacional brasileiro e internacional (Pimenta & Ghedin, 2006).
Ao nos debruçarmos sobre os estudos da história da profissão docente no Brasil, ‘representações em disputa’ (Vicentini & Lugli, 2009) emergem em imagens contraditóriasna definiçãoda natureza e do papel do trabalho do professor ao longo do tempo e que sobrevivem no presente. Para o ensino primário, as imagens de‘abnegação’ e ‘sacerdócio’ são as mais comuns; para o ensino secundário, as de ‘apostolado’ ou ‘missão’ (Nadai, 1991), mas também acompanhadas por outrasimagensmais críticas, construídas nas lutas sindicais do professorado desde os anos 1960 no Brasil. No entanto, isso não significa que discordamos da ideia de que uma intelectualidade docente esteja atrelada à crescente consciênciae à autonomia de seu papel profissional, mas nem sempre podemos pressupor que a questão tenha um mesmo sentido político e histórico.
Nossas entrevistadas são mulheres que vivem e atuam no processo de construção de uma memória sobre um período em que se esperava uma postura combativa, de crítica ou de maior conscientização sobre os problemas sociais e políticos. Porém, comovamos observar nos relatos, suas representações trazem uma postura favorável não propriamente à ditadura, mas ao modo como a escola municipal, a profissão docente e a importância do seu papel adquiriam maior visibilidade social naquele momento histórico. Evidentemente, tal avaliação é feita no presente,nasituação de aposentadoria ou de readaptação para outras funções dentro da escola, mas tem a ver também com as próprias trajetórias de vida e com sua posição social nas classes médias em ascensão,as quais redundaram em suas escolhas profissionais, políticas e ideológicas.
Nosso desafio neste artigo é entender o modo como essas docentes concebiam seu protagonismo. Não se trata de fazer uma apologia da ditadura civil-militar tampouco de justificar posições políticas, mas de entender que, em suas fontes, o historiador não se depara com as respostas que almeja e que os sentidos nelas encontrados podem ser divergentes da históriaque gostaríamos de contar. A maneira como as entrevistadas representam seus papéis como docentes, tanto no passado quanto no presente, expressa as contradições histórico-educativas em que estão envolvidas e que dificilmente aparecem em memórias contra a ditadura civil-militar.
Portanto, as divergências tambémaparecem nos momentos em que a profissão docente e sua importância foram colocadas em xeque em face dos problemas do ensino municipal no passado e isto serve como umcontrapontopara os problemas da educação no presente. Tal contraste serve como uma ‘inversão de expectativas’, ou seja, aquilo que era considerado uma valorização do docente diz respeito ao que se espera do presente e aquilo que hoje é considerado uma desvalorização do docentecorresponderia às expectativas não cumpridas no passado. Esse jogo entre a lembrança e a recordaçãonos dá pistas para relativizar as memóriasdas entrevistadas, mas também para conferir legitimidade às suas representações, o que será fundamentado teoricamente adiante.
Resta salientar que as histórias dessas professoras também são atravessadas pela história da educação no Brasil, isto é, são parteda história e expressam a dualidade entre ensino primário e secundário e entre currículo profissional e propedêutico no país; a formação profissionalnas escolas normais ou nos institutos de educação e nas faculdades de filosofia e de educação a partir da Reforma Universitária de 1968; bem como os efeitos da Lei 5692/1971, com o advento do ensino de primeiro grau (Nunes, 2000), quando se tornaram docentes no ensino municipal. Expressam ainda o momento atual de aposentadoria e de readaptação de funções no processo de democratização do acesso bem como o problema da qualidade de ensino que se escancarou no pós-ditadura civil-militar (Tanuri, 2000).
Nossas ‘três Marias’ não choraram pela ditadura civil-militar queteimava em se manter no final dos anos 1970, naquele ‘espaço de experiência’, tampouco tinham como ‘horizonte de expectativa’ (Koselleck, 2006) que a democracia chegasse com a volta dos políticos, artistas e intelectuais anistiados pelo regime em uma mesma ‘esperança equilibrista’. Por isso,esperamos que suas vozes sejam ouvidas não no sentido de conceder um espaço, como se fosse um favor ou a aceitação de um perdão, masno do direito de se expressarem como autoras de suas narrativas, senhoras de suas memórias e protagonistas de suas carreiras, mesmo que marcadas por uma profunda divergência em relação à nossa perspectiva política e que a história oral pode conjurar.
Na tarde do dia 13 de fevereiro de 2012,uma entrevistadora-pesquisadora e dois alunos de iniciação científica que integraram o projetodirigiram-se até a Escola Municipal Tenente Aviador Frederico Gustavo dos Santos,situada no bairro de Vila Nova Cachoeirinha, zona norte de São Paulo. Os alunos estavam motivados e ansiosos, pois era a primeira entrevista de que participariam. A indicação de possíveis entrevistadas foi de uma professora de história dessa escola,comaqual temos uma relação profissional em práticas estagiárias e de pesquisa,de longa data. A condição de fazer a entrevista com as três professoras simultaneamente foi sugestão da escolhida, que trouxe as outras duas. Notou-se uma dinâmica diferente, certo afastamento das questões do roteiro da entrevista pelas intervenções das entrevistadas,uma na fala da outra, o que, certamente, influenciou os resultados de nossas análises, pois as divergênciaspuderam vir à tona com mais clareza do que emuma entrevista individual.
Somente a entrevistadora-pesquisadora conduziu as perguntas do roteiro; os alunos ficaram responsáveis por manejar o gravador, pois fazia parte de seu processo de aprendizagem acompanhar a entrevista e depois realizar a sua transcrição (Alberti, 2005). Dessa forma, as respostas das entrevistadas eram dirigidas para a interlocutora principal. As entrevistadas autorizaram a citação direta dos seus nomes por meio de uma carta de anuência e a transcriçãofoi enviada para que a conferissem. Por isso, resolvemos divulgar seus nomes, assim como o da referida escola, conscientes dos procedimentos éticos discutidos em história oral (Portelli, 1997).
Como se trata de uma pesquisa sobre a história do ensino de primeiro grau do sistema municipal de São Paulo durante o regime militar, as questões do roteiro foram elaboradas de modo a se perceber a inserção das docentes na história da instituição e no conjunto de suas escolas. No entanto, neste artigo, enfatizaremos as trajetórias individuais que redundaram em sua formação como docentes e em suas posições políticas coletivas. Não podemos ignorar a história individual ou biográfica das entrevistadas, pois o individual e o coletivo não podem ser dissociados no movimento da memória, mesmo porque contêm refrações e tensões fundamentais para as representações da experiência vivida. Neste sentido, iniciamos a entrevista com suas histórias sobre a infância e a vida escolar.
Maria Heloísa:
Eu comecei muito cedo em uma escola de freiras, na época era o Jardim da Infância. Depois fui para uma escola do estado, Dr. Arlindo Zaroni, onde eu fiz as primeiras séries e depois vim para São Paulo e terminei em um grupo escolar em Botucatu. Foi muito bom, tenho muitas lembranças. Nós somos cinco irmãos, quatro nascidos em Maria da Fé [cidade de Minas Gerais]. Eu me lembro da igreja, meus pais eram católicos, então nós participávamos das missas (Silva, 2012).
Maria deLurdes:
Eu nasci em Portugal, meus pais eram lavradores. Eles fizeram só até o terceiro ano, então não tiveram muito estudo [...].Me lembro que, durante as tardes e as vezes em algumas manhãs, quando minha mãe ajudava meu pai, eu ficava com uma jovem professora [...]. Vim para o Brasil com cinco anos e fui para um Jardim da Infância que ficava dentro de uma igreja, a capela de São José[...]. Embora portuguesa, existia a dificuldade da língua. Eu falava diferente; então, para ter companheiros e amigos, fui para esse Jardim da Infância, foi ali que me entrosei com essa nova cultura. Fiz um ano lá e depois fui para o grupo escolar que, até hoje, fica ao lado; que é o grupo escolar Frei Antonio Santana Galvão (Oliveira, 2012).
Maria Lúcia:
Eu nasci na Casa Verde e estudei em escola de freiras, porque a família do meu pai e da minha mãe era católica. O sonho da minha mãe era de que nós estudássemos em escola de freira, assim como ela estudou e se formou, ela e todas as suas irmãs. [...] Eu tenho ótimas lembranças, porque nós somos quatro irmãos [...], masnós cuidávamos um do outro. Um ensinava o outro, eu também ensinava minha irmã e o meu irmão mais novo. São só boas lembranças, meus pais são ótimos, meu pai tem 90 anos e minha mãe 89 anos; eles são muito lúcidos[...].Digo para meu filho que eu tive uma infância felicíssima. Eu saia de carro com meu pai e ele parava para que eu lesse as placas, eu era pequena e me lembro disso. Ele apontava e eu as lia. Eu sabia todas as tabuadas.[...]Como dizem os meus irmãos, eu sou a queridinha dele. E é verdade. Ele fazia de tudo para o meu aprendizado (Yuassa, 2012).
Fizemos uma relação entre a história da infância e a da vida escolar porque gostaríamos de entender as representações da ambiência escolar no passado e o seu contraste com as da escola no presente. A formação católica familiar foi o principal critério para a escolha das escolas onde estudaram e circunscreveram uma infância acolhedora e cuidadosa. A relação entre as experiências escolares no primário e a ideia de cuidado não é surpreendente na história da profissão docente. Em uma pesquisa sobre o trabalho de professoras primárias no estado de São Paulo entre as décadas de 1960 a 1980, as ‘práticas de cuidado’ também aparecem nas memórias de professoras alfabetizadoras consideradas bem-sucedidas (Bueno & Santos-Bossolo, 2011). Ou seja, nessas memórias é recorrente a ideia de que as relações escolares com criançasse pautavam no empenho, no envolvimento ena proximidadepróprios do ambiente familiar.No entanto, a impressão afetiva (afecção) não é um dado intrínseco dessas memórias, mas do movimento da ‘lembrança’ em contraste com o da racionalização da ‘recordação’.
Para Paul Ricoeur, existe uma diferença fundamental entre esses dois fenômenos mnemônicos: a lembrança (retenção do passado) e a recordação (relembrança do passado). A lembrança se manifesta nos testemunhos que ainda não foram transformados em documentos, mas dirigidos a um interlocutor preciso. É nessa situação dialogal que se manifesta sua dimensão de verdade ou de fidelidade ao passado:
[...] consiste no fato de que a asserção de realidade é inseparável de seu acoplamento com a autodesignação do sujeito que testemunha. Desse acoplamento procede a fórmula típica do testemunho: eu estava lá. O que se atesta é indivisamente a realidade da coisa passada e a presença do narrador nos locais de ocorrência. E é a testemunha que de início se declara testemunha. Ela nomeia a si mesma. Um triplo dêitico pontua a autodesignação: a primeira pessoa do singular, o tempo passado do verbo e a menção ao lá em relação ao aqui. [...] A autodesignação se inscreve numa troca que instaura uma situação dialogal. É diante de alguém que a testemunha atesta a realidade de uma cena à qual diz ter assistido, eventualmente como ator ou vítima, mas, no momento do testemunho, na posição de um terceiro com relação a todos os protagonistas da ação. Essa estrutura dialogal do testemunho ressalta de imediato sua dimensão fiduciária: a testemunha pede que lhe dêem crédito. Ela não se limita a dizer: ‘Eu estava lá’, ela acrescenta: ‘Acreditem em mim’. A autenticação do testemunho só será então completa após a resposta em eco daquele que recebe o testemunho e o aceita; a partir desse instante, está não apenas autenticado, ele está acreditado. É o credenciamento enquanto processo em curso, que abre a alternativa da qual partimos entre a confiança e a suspeita (Ricoeur, 2007, p. 172-173, grifo do autor).
A lembrança é uma dimensão passiva (objetal) da memória porque está gravada na porção afetiva, de reconhecimento do passado do sujeito que testemunha. A confiança de que aquilo que foi lembrado é verdade só pode ser atestada pela aceitação presumida da dimensão fiduciária do testemunho, que autoriza e credita que algo diferente da imaginação ou da ficção tenha existido. A recordação é uma dimensão ativa (pragmática) da memória, que busca um sentido para o passado no presente, apagando ou conferindo explicaçõesa respeito das quais pairam as suspeitas do interlocutor.
Não há como fazer história sem memória, pois os testemunhos falsos só podem ser contestados“[...] por uma instância crítica cujo único recurso é opor aos testemunhos tachados de suspeitos outros testemunhos mais confiáveis. [...] o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição entre a memória e a história” (Ricoeur, 2007, p. 40-41). A atividade do historiador é uma representação e está, igualmente,sujeita ao mesmo jogo de ausência e presença dos testemunhos, mas, de maneira diferente, suas condições de validação relacionam-se à representação escrita de documentos arquivados e não a uma situação dialogal: “Assim, a ambição de fidelidade da memória antecederia a ambição de verdade da história” (Ricoeur, 2007, p. 241).
É da perspectiva das representações da memória-lembrança e da memória-recordação que podemos entender o contraste entre a impressão do passado como uma infância feliz, de somente boas lembranças, e a dos cuidados familiares e escolares como‘autenticação’ e‘acreditação’ da experiência das docentes. Por sua vez, a busca de sua valorização no próprio presente é operada pela recordação, ou seja, uma organização narrativa que explica o rastro do passado, mas se projeta para ofuturopor meio de ‘utopias’ bastante concretas: por exemplo, ser reconhecidas profissionalmente no agora,talcomo foram em sua vida familiar e escolar (Almeida Neto, 2011).
Essa busca de reconhecimento no presente não é algo incomum entre os professores aposentados ou experientes que se prontificam a conceder entrevistas para historiadores (Almeida Neto, 2011). O presente é o parâmetro para a valorização da formação familiar, escolar e acadêmica e da atuação profissional no passado, que se apresenta como contraste com avaliação da vida familiar dos alunos e da ‘decadência’ do ensino municipal e da educação na atualidade.
Para Maria Heloísa:
Quanto ao regime da ditadura, eu acho que naquela época as crianças eram diferentes. Nós estamos vendo agora a decadência do ensino, eles não aprendem mais uma tabuada, eles não precisam. ‘É nóis [sic] toma café e passa de ano’. Isso para mim é muito frustrante. Antes nós ficávamos aqui com crianças pobres, simples, mas que os pais vinham, te davam atenção, participavam de tudo, era reunião, era tudo. Pais analfabetos, simples, mas que participavam [...]. Os valores se perderam? Agora o professor é morto em sala de aula, é ameaçado, é agredido. De onde está vindo isso? Será que essas crianças se perderam? Onde se perdeu tudo isso? (Silva, 2012, grifo do autor).
Para MariadeLurdes:
Eles usavam uniforme, alguns vinham com seus uniformes remendados, mas vinham. Hoje eles ganham tudo da prefeitura, tênis, uniforme de inverno, uniforme de verão e mais diversas coisas e eles não se importam. Me desculpe falar isso, mas[...]Então a minha visão é esta, veja, houve uma decadência do ensino, eu também noto que sim, foi assim contínuo. [...] Eu acho que não está ligado a um regime ou outro, é social e é grave, e por quê? Porque as famílias não têm como prover suas famílias, houve uma desintegração assim, ele tem uma família assim hoje, amanhã ele tem outra, ele tem cinco filhos, dez filhos, ele não tem como prover esse sustento e nem moralmente e nem afetuosamente (Oliveira, 2012).
Para Maria Lúcia:
Ao longo desse tempo, de lá pra cá, foi tudo caindo, tudo despencando. Aquela austeridade dos diretores acabou. Hoje o aluno entra em uma sala de direção e não pede nem licença, vai entrando, gritando. Eu comecei muito nova, foi no meio de 1981, mas eu acho que as coisas eram melhores, funcionava melhor. Se alguém me perguntar: ‘você defende o regime militar?’ Eu vou responder que sim, porque tudo funcionava melhor. Havia mais respeito, até mesmo um pouquinho de medo, porque não existe respeito sem medo. Seus filhos têm que ter um pouquinho de medo pra te respeitar. Hoje em dia os adolescentes não respeitam mais os pais. Eles os chamam de você e na minha época não tinha isso, eu sempre chamei e chamo meus pais de senhores. Nós cantávamos o hino nacional. [...] Sim, todos nós. Tem uma das estrofes que todo mundo erra e isso era corrigido. Quando eu estudava no colégio de freiras, entrava alguém e todos ficavam de pé. Rezava-se uma Ave Maria quando entrávamos na sala de aula. Tudo isso por conta do militarismo? Sim, mas nós aprendíamos muita coisa, o respeito principalmente. Tudo isso, eu vi cair. Um aluno de hoje não conhece o hino nacional (Yuassa, 2012, grifo do autor).
Os relatos das entrevistadas já não trazem com força a memória histórica que construiu e idealizou a imagem da ‘boa escola pública’ do passado entre os anos 1950 e 1960. Tal memória se prestou a conferir legitimidade social à profissionalização docente, seja do ensino primário (Tanuri, 2000), seja do ensino secundário e superior (Nadai, 1991; Nunes, 2000). Embora nossas entrevistadas mantenham o profissionalismo de classe construído historicamente, não vivenciaram sua idealização como alunas, tampouco como docentes, o que,por um lado, matiza seus elogios sobre a escola e os alunos na época do regime militar (quando as dificuldades estruturais já eram evidentes), mas, por outro, acentua a crítica em relação à escola no presente onde tudo parece ‘despencar’. Não que tudo fosse ótimo na escola do passado; já havia um processo de ‘decadência’ que culminou no presente. Assim, o que foi elidido do passado para que se construísse a ideia de um‘pior’ no presente? Precisamos enredar suas narrativas de vidana trama coletiva da história da educação, não como um modo de retificar ou ratificar suas afirmações ou opiniões, mas de compreender os limites e as possibilidades de seus horizontes de expectativas.
Maria Heloísa, nascida em 1939, concluiu o primário em um grupo escolar de Botucatu durante os anos 1940. As escolas dessa região, embora sob os ‘sopros da renovação pedagógica’ da Escola Nova, não conseguiam se desvencilhar dos métodos intuitivos de ensino. Tais conflitos geraram as discussões transcritasnos relatórios da delegacia regional de Botucatu e em outros de delegacias do interior do estado de São Paulo, nas quais se apresentavam as dificuldades dos professores dos grupos escolares para implantar e seguir asnovas finalidades da escola calcadas na racionalização científica (Souza, 2009, p. 206-208).
Maria Heloísa não forneceu detalhes de sua formação posterior, mas revelou que fez parte de uma geração de alunos que vivenciou a expansão do ensino secundário nos anos 1950 e 1960, pouco influenciado pela pedagogia da Escola Nova (Nadai, 1991). Na formação de elites condutoras, mantinha-se a tradição deum ensino propedêutico e o exame de admissão para o ginásio público era a primeira barreira rumo à ascensão social (Nunes, 2000). Por isso, algumas famílias com melhores condições financeiras e cujos filhos não passavam nos exames de admissão, viam-se obrigadas a escolher ginásios ou cursos técnicos profissionalizante sem escolas privadas com menor seletividade social e cultural. Maria Heloísa comentou brevemente que, tendo feito o curso de ‘Contabilidade’, atuou na área por pouco tempo, mas nada sabemos dessa etapa de sua vida profissional.
Afirmou que atuava como professora na rede estadual antes de ingressar no ensino municipal. Sua formação foiobtidaem uma escola normal, provavelmente em nível colegial, pois no estado de São Paulo não havia escolas normais ginasiais (Tanuri, 2000). O certo é quea Lei 4024 de 1961 apenas manteve essa dualidade formativa baseada na Lei Orgânica do Ensino Normal de 1946, que oficializoua divisãoentreescolas normais ginasiais (que formavam o ‘regente primário’ em quatro anos em um curso mais generalista e incompleto) e colegiais (que formavam o ‘professor primário’ em três anos em um curso mais profissional e propedêutico). Tal divisãohierarquizava e mantinha a dualidade históricaentre os ensinos primário e secundário na formação dos professores,o que se tornou alvo de debates acirrados desde os anos 1930 no Brasil. Já a Lei 5692 de 1971,institucionalizouo magistério como um ramo de habilitação profissionalizante do segundo grau,padronizando uma maior qualificação escolar para sua diplomação do que no período anterior. Embora parecesse ter suprimidotal dualidade, fez tábula rasa da formação dos professores primários. Tais aspectos matizam o discurso de que o ‘tecnicismo’ foi a ‘novidade’ que marcoua profissionalização compulsória eaprecarização do trabalho docente e que teria ocorrido somente em função do regime militar (Frankfurt, 2011).
Depoisde onze anos de casada,Maria Heloísafoi cursar Pedagogia “[...] porque começaram a cobrar ‘tem que ter Pedagogia’, acho que foi nesse momento que todo mundo começou a cursar Pedagogia” (Silva, 2012, grifo do autor), ou seja, entre os anos de 1969-1970. Embora ela não tenha entrado em detalhes sobre sua formação no ensino superior, sabemosque muitas professoras normalistas almejavam melhores condições salariais e de trabalho na carreiraproporcionada pelo diploma desse nível. A possibilidade de atuar como diretoras ou supervisoras de ensino era remota, pois não havia concursos instituídos para esses cargosno ensino municipal, os quais, na prática, eram lotados por indicações ou por compadrios.
Maria Heloísa pode ter omitido algumas dessas informações por não ter estudado em escolas e faculdades públicas ou privadas consideradas renomadas, já que é muito comumque as pessoas identifiquem suas instituições de formaçãoquandose referem à tradição e ao prestígio social. Nos anos 1960, estudos documentam “[...] um excesso de professoras primárias no estado de São Paulo, enquanto em outros estados havia falta de pessoal habilitado” (Vicentini & Lugli, 2009, p. 46).
Durante os anos 1960 e 1970, houve uma expansão dos cursos de Pedagogia no país, em sua maioria oferecidos em faculdades isoladas de ensino privado, consideradas de qualidade duvidosa, e não em universidades (Vicentini & Lugli, 2009). Tais problemas se acentuaram com a Reforma Universitária de 1968 e, posteriormente, coma Lei 5692/71. Para Leonor Maria Tanuri:
Entre as reformas do regime militar, a reordenação do ensino superior, decorrente da Lei 5.540/68, teve como consequência a modificação do currículo do curso de Pedagogia, fracionando-se em habilitações técnicas, para a formação de especialistas, e orientando-se tendencialmente não apenas para a formação do professor primário em nível superior, mediante o estudo da Metodologia e Prática de Ensino de 1º Grau. [...] A Lei 5.692/71 que estabeleceu diretrizes e bases para o primeiro e o segundo graus, contemplou a escola normal e, no bojo da profissionalização obrigatória adotada para o segundo grau, transformou-a numa das habilitações deste nível de ensino, abolindo de vez a profissionalização antes ministrada em escola de nível ginasial. Assim, a já tradicional escola normal perdia o status de ‘escola’ e, mesmo, de ‘curso’, diluindo-se numa das muitas habilitações profissionais de ensino de segundo grau, a chamada Habilitação Específica para o Magistério (HEM). Desapareciam os Institutos de Educação e a formação de especialistas e professores para o curso normal passou a ser feita exclusivamente nos cursos de Pedagogia (Tanuri, 2000, p. 80, grifo do autor).
Maria Heloísa vivenciou problemas coletivos em sua formação escolar, acadêmica e profissional. Tais problemas não se restringiam à história individual, mas faziam parte do processo dosavanços e muitos recuos na legitimação social da profissão docente que atingiam as classes médias ao longo do tempo e, portanto, não podem ser atribuídos somente ao período do regime militar. Se isso não justifica,torna mais clara sua afirmação de que ‘as crianças eram diferentes’, pois as de hoje ‘não aprendem mais tabuada’, quer dizer, não decoram, e o professor é ‘morto’, ‘ameaçado’ e ‘agredido’ em sala de aula(Silva, 2012). Diante dessa longa duraçãoà qual pertenceu e cuja conexãoseperdeu com o presente, talvez caiba sua indagação: “De onde está vindo isso? Será que essas crianças se perderam? Onde se perdeu tudo isso?” (Silva, 2012). Tudo se perdeuquando os sucessivos revesesna autoridade da experiência dos professores de classe média os aproximaram dos alunos, não pelas ‘diferenças’, mas pelas desigualdades sociais.
Maria de Lurdes, nascida em 1952, estudou no grupo escolar Frei Antonio Santana Galvão, na zona norte de São Paulo,e bem poderia ter sido aluna de Maria Heloísa na época do regime militar. Antes de iniciar sua carreira no ensino municipal, atuava em outra“[...] escola de madeira, do Estado, e hoje é uma escola muito bonita de alvenaria que se chama E. E. Angelina Madureira” (Oliveira, 2012).Explica a professora que,na época, foi para ‘uma classe de emergência’, um tipo de escola que, depois da distribuição de aulas, ficava sem professores.Sobre esse período na escola primária no estado de São Paulo, Rosa Fátima de Souza comenta:
O Movimento de Tecnologia Educacional, que vinha ganhando adeptos e força na educação brasileira da década de 1960, chegava à escola traduzido na ênfase aos procedimentos didáticos, minuciosamente detalhados, no incentivo ao uso de recursos de ensino principalmente dos meios audiovisuais e na busca de maior eficiência e controle do sistema educacional mediante a adoção de técnicas administrativas mais racionalizadas no plano escolar. [...] Embora voltada para o ‘como fazer’, para as urgências da prática educativa, a renovação do ensino paulista no início dos anos 1960, ao associar ciência e tecnologia, acentuou o processo de desqualificação do professor ao depreciar sistematicamente os saberes docentes tradicionais. [...] A orientação calcada na autoridade da experiência, foi gradativamente substituída pela orientação técnica legitimada pelas ciências da educação. [...] Nesse processo, agravado pelas carências materiais da rede e pelas críticas à perda da qualidade do ensino público, boa parte dos princípios sobre os quais se consolidara a Escola Primária Paulista foram questionados e redefinidas ao longo da década 1960. Ruíam os ‘últimos baluartes’ (Souza, 2009, p. 359-360, grifo do autor).
Entretanto, em estudo já citado sobre o trabalho das professoras primárias no estado de São Paulo entre 1960 a 1980, Bueno e Santos-Bossolo (2011) mostramque,embora houvesse a entrada paulatina do tecnicismonas escolas,não foram diretamente as ciências da educação que levaram àmaior racionalização das atividades, nema organização hierárquica funcional, tampoucoa entrada de materiais prescritivos, pois, segundo os relatos das docentes, não havia impedimento para a realização de um trabalho autônomo. As docentes até podiam incorporar alguns princípios ‘tecnicistas’, mas não ligados necessariamente aos das ciências da educação, pois o critério de seleção eram as condições de vida das professoras e o seu comprometimento com os alunos nas correções e observações de cadernosbaseados nas ‘práticas de cuidado’.
Embora as autoras deixem intocada a matriz discursiva do tecnicismo,énotório que a permanência dessas práticas de cuidado na identidade do professor primáriopossibilitou apropriações das ciências da educação. O esmero na correção também aparece no relato de Maria Heloísa: “[...] como professora eu abracei aquilo que eu gostava de fazer, não achava complicado. Nós tínhamos que passar redações, levar pracasa, corrigir, mostrar ao aluno onde ele havia errado” (Silva, 2012). Para a então aluna Maria de Lurdes:
Eu me lembro da minha professora da primeira série que tratava todos como se fosse mãe mesmo. [...] Ela se chamava Ruth. A professora da segunda série se chamava Ânion, ela era esposa de um dentista e tinha uma filha. Nós tínhamos uma convivência muito boa, porque ela já conhecia minha família, às vezes eu ia até a casa dela, nós estudávamos, eu tinha acesso a casa dela como se fosse da família. A professora da terceira série era Dona Jandira, também tenho boas lembranças. A professora da quarta série foi a que mais me marcou, porque era a mais nova de todas, sendo menina, você acaba se espelhando no professor. Ela era uma moça esguia, muito bonita e muito bem arrumada. Ela usava um sapato de salto fino e sempre de tailleur e era negra. [...] era uma professora impecável, [...] deixou muito boas lembranças (Oliveira, 2012).
Na lembrança de Maria de Lurdes, o grupo escolar a marcou pela proximidade familiar e social com algumas professoras, mas também pelo distanciamento para com a ‘professora negra’,cujo nome não citou. Essa professora espelhava seus ideais de correção estética ede ascensãosocial que a tornavam ‘impecável’, isto é, postura esguia, boa aparência e roupas elegantes. Tais elementos de identificação social misturam-se com a avaliação do que era ser uma ‘boa professora’, de sua conduta pedagógica. Maria de Lurdes explicou a decadência atual do ensino não pelo ‘regime’, mas por uma questão global, social, e enfatizou que a família se desestruturou. Trata-se de uma explicação recorrente do senso comum, mas que revela os valores de classe média calcados na aparência de estabilidade familiar, estética e moral: os alunosvinham com o uniforme, mesmo que remendado, mas “[...] hoje eles ganham tudo da prefeitura, tênis, uniforme de inverno, uniforme de verão e mais diversas coisas e eles não se importam” (Oliveira, 2012).
Da mesma forma que Maria Heloísa, Maria de Lurdes não conseguiuse desvencilhar de seus valores de classe para rever o seu passado e explicá-lo no presente, o que não significa que tenha deixado de vivenciar esse choque social na escola durante o período. No entanto, a distinção de classe ainda era nítida e conformava valores que as separavam dos alunos pobres pela hierarquia social. Por sua vez, a promessa deque alunos adquiririam tal distinção social caso terminassem seus estudosera frustrada com a paulatina democratização do acesso à escola de primeiro grau, com a abolição dos exames de admissão como barreira social e com a junção do primário e do secundário em um mesmo ciclo formativo, descaracterizando as práticas dos grupos escolares, assim como o elitismo propedêutico do ensino ginasial. Todavia, isso não significa que o advento da Lei 5692/71 tenha abolido as diferenças e as hierarquias entre essesníveis de ensino.
Ao contrário de Maria Heloísa, Maria de Lurdes faz questão de enfatizar quenunca tinha se visto como professora“[...] porque eu estava em um colégio estadual muito bom. Eu estudei no colégio ‘Instituto de Educação Dr. Octávio Mendes’, ali em Santana, e que na época era um colégio onde a nata estudava” (Oliveira, 2012, grifo do autor).Porém,nos anos 1970, as escolas que levavam o nome de ‘Instituto’ já não correspondiam àquelas dos anos 1950 e 1960,nas quais se formava o professor do ensino primário em nível colegial e com status de ensino superior. Como já comentamos, nos anos 1970, os professores primários eram formados pela Habilitação Específica para o Magistério (HEM), como um segmento de profissionalização do segundo grau (Tanuri, 2000). A sobrevivência do nome ‘Instituto’ fazia a ‘reputação social’ dessas escolas nos bairros de classe média, afastando a clientela indesejada, pobre.
Essa seletividade social e cultural das recordaçõesde Maria de Lurdes contém idealizações sobre o período, mas suas lembranças não são fruto daimaginação e sim um dado real e concreto do passado, pois, de fato, ela sempre estudou em instituições próximas às de sua classe social. Tornar-se professora, nesse sentido, nunca foi um objetivo ou necessidade, o que parece ser um dado comum nas memórias de docentes do ensino secundário, sobretudode homens (Nadai, 1991), mas também de mulheresque se formaram em colégios e universidades públicas ou privadas confessionais altamente elitizados nos anos 1950 e 1960 (Perosa, 2009). Embora Maria de Lurdes não pertencesse a essa fração da elite e tivesse cursado o ginásio no final dos anos 1960 e o colégio no início dos nos anos 1970, fica notória a estratégia recorrente das classes médiasem buscar maior qualificação profissional e ascensão social.Aincessante meta de alcançar estabilidade social não significou uma vida menos atribulada, ao contrário, levou Maria de Lurdes a um périplo de formações profissionais e acadêmicas:
Eu prestei vestibular e deixei uma procuração com uma amiga pra fazer Letras, mas nesse espaço de tempo a inscrição foi errada. A primeira opção foi Filosofia e a segunda opção Letras. Como Filosofia não é um curso muito procurado, eu acabei passando e não fiz Letras. Eu não queria Filosofia, então fui procurar uma faculdade particular e prestei vestibular. [...] O meu pai não me deixava trabalhar, eu comecei a trabalhar tarde, acho que já devia ter 20 anos. Uma amiga e eu nos inscrevemos em alguns lugares pra começar a trabalhar [...] Eu comecei a trabalhar em banco. Depois fui pra USP. Prestei um novo concurso e arrumei um emprego na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Foi tudo junto, eu comecei a trabalhar e entrei na faculdade. Foi uma vida nova.[...] Eu trabalhava das 7h às 12h, ia para a USP e estudava das 14h às 18h e fazia Letras das 19h às 23h. Foram assim os quatro anos de Letras, depois que terminei Letras fui terminar Filosofia, porque depois dos quatro anos ainda tinha Licenciatura.[...] Então eu fiz Letras, fiz Filosofia e fiz Pedagogia. [...] Eu gosto de dar aula apesar de nunca ter me visto professora(Oliveira, 2012).
Maria de Lurdes pertence a uma outra geração que viveu os problemas da expansão das escolas públicas de primeiro grau e das universidades privadas nos anos 1970. Seu sonho era se tornar advogada, mas apenas se aproximou da área,tornando-se funcionária da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP. A escolha ‘errada’, que atribuiuà amiga, pelo curso de Filosofia, entretanto, representou sua entrada na Faculdade de Filosofia da USP. Mesmo não sendo um curso muito procurado, essa foi sua porta de entrada para a melhor universidade pública do país: “[...] eu não podia deixar” (Oliveira, 2012). Nada foi dito a respeito das faculdades privadasem que cursou Letras e Pedagogia, porém, foi por meio da formação em Letras que ingressou na carreira docente no ensino municipal de São Paulo em 1978, o que garantiu sua profissão e também justificou a escolha ‘certa’ no presente. Ou seja, seus parâmetros familiares de classe média, de distinção social, tendem a explicar aaparente falta de necessidade de uma carreira profissionalcomo forma de conseguir melhores condições de vida em contraposição às famílias dos alunos de hoje: “[...] houve uma desintegração assim, ele tem uma família assim hoje, amanhã ele tem outra, ele tem cinco filhos, dez filhos, ele não tem como prover esse sustento e nem moralmente e nem afetuosamente” (Oliveira, 2012).
Maria Lúcia não fugiu à regra desse raciocínio em suas recordações do passado. Afirmar isso não significa reduzir as experiências das docentes a um viés econômico, mas considerar que, para as camadas médias, a falta de um‘capital social’ adquirido por tradição familiar tende a mascarar o alto preço pago à aquisição de um ‘capital cultural’ no mercado de bens simbólicos2. Neste sentido, nascida em 1956 e pertencente a uma classe média mais estabilizada, essa docente viveu com mais intensidade a crise do ensino público como aluna e docente, mas procurouapagar as dificuldades do seu passado valorizando sua visão mais conservadora no presente:
Eu só tirava notas 10 e 9,5, era a primeira aluna da classe. Até a 8ª série, sempre foi escola de freiras e só tinham meninas. Na 8ª série eu me rebelei, disse a minha mãe que não queria mais estudar em uma escola onde só havia meninas, eu queria ir para uma escola do Estado, como todas as minhas amigas, uma escola com meninas e meninos e não aquela coisa de escola de freiras. A minha educação já era rígida, a educação das freiras era ainda mais rígida. Eu era muito pressionada, queria ir pra escola do Estado, usar saia curta e fazer todas as coisas que as meninas da minha idade faziam e não teve outro jeito, minha mãe teve que me colocar na escola do Estado, inclusive era a escola onde ela trabalhava. Eu estudava de manhã e ela trabalhava à tarde.[...] Adorei fazer o ensino médio na escola do Estado e depois eu fui para o Mackenzie. Não fiz cursinho, terminei a escola, prestei vestibular e fui estudar lá (Yuassa, 2012).
Na lembrança de Maria Lúcia, sua transição da escola de freiras para a escola estadual foi uma forma dese emancipar do rígido controle familiar. No entanto, em sua recordação, procura justificaressa rigidez com o fato de ter sido uma excelente aluna, de não ter se livrado da mãe que trabalhava na mesma escola e de ter ingressado sem cursinho no ensino superior na Universidade Mackenzie, ou seja, em uma instituição tradicional,presbiteriana,com valores próximos aos de sua família cristã e católica. Graduou-se em Matemática nessa instituição e, depois que ingressou no concurso para professor nível II no ensino municipal em 1981, foi fazer Pedagogia, mas sem mencionar o local de formação.
As três docentes podem ser vistas como pertencentes às classes médias da sociedade, não necessariamente por sua ‘origem’ social no passado ou por suas condições socioeconômicas no presente, mas sim pelo modo como representam a si mesmas no ato enunciativoda entrevista, isto é,pelamobilização entre temporalidades inerente ao jogo da memória e de suas representações. O que seus relatos indiciam é o processo de ascensão social para as camadas médias da sociedade ou a luta para manterem tal posição social, ainda que as entrevistadas possam ter trajetórias bastante distintas no que se refere ao processo de estabilização social no passado ou no presente. No jogo da memória entre lembrança e recordação, ora esse processo de ascensão e manutenção social aparece involuntariamente na lembrança,revelando as dificuldades de suas trajetórias formativas, ora é ocultado pelo processo reconstrutivo da recordação de modo a ressaltar o processo de conquista, que, no limite, não é a vitória na vida, mas uma autorrepresentação vitoriosa sobre um mar de fracassos cotidianos.
Importa ressaltartambémque,nas lembranças das três docentes, o curso de Pedagogia aparece apenas como certificação de uma experiência já adquirida em sala de aula e não como uma formação profissional. A formação disciplinar oferecida nas Faculdades de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Filosofia, no caso de Maria de Lurdes) e do Mackenzie (Matemática, no caso de Maria Lúcia) foi recordada mais como uma distinção socialdo que comouma comprovação de excelência acadêmica na carreira. Embora nascidas em períodos diferentes, as docentes concluíram o ensino superior nos anos 1970,quandoa imagem dos professoresera a de ‘sacerdotes’ ou ‘missionários’ da educação que, baseados em uma ética cristã ou laica(Nadai, 1991), dificilmente resistiam àprecarização das condições de trabalho.
Maria Lúcia iniciou sua vida profissional como bancária. Em seguida, seu pai conseguiu que fosse secretária na Editora Abril. Professora por dezoito anos teve um problema vocal e foi readaptada. Trabalha na secretaria da escola sendo responsável pela folha de pagamento. Sua readaptação para a secretaria indicia as dificuldades de lidar com as salas de aula naquele momento histórico. Talvez por isso, nos últimos anos,venha substituindo licenças médicas de coordenadoras e assistentes de direção. Porém, a interrupção da docência lhe deixou um sabor amargo, um maior distanciamento da sala de aula e a convicção de que tudo ‘despencou’: a rigidez familiar, religiosa, militar, o respeito à pátria, a austeridade dos diretores e, sobretudo, a autoridade do professor.
As trajetórias da formação familiar, escolar, acadêmica e profissional das docentes entrevistadassão distintas e marcadas por constantes mudanças de cidade ou de país embusca de melhorias de vida. De pais lavradores, com pouca formação escolar,ou de pais professores, que precisavam se ausentar de casa para trabalhar, tais docentes revelam a movimentação das classes médias em constante busca por manutenção e ascensão social. Tais dificuldades, porém, mobilizaram-nas na aquisiçãode um capital culturalque divergia da imagem de longa duração da docênciacomo uma profissão ‘feminina’ e de extensão do lar que ainda permanecia como rescaldo nos idos dos anos 1970.
Se considerarmos que,nos anos 1920-1930, houve uma primeira crise no ensino primário com a expansão dos grupos escolares e que, nos anos 1950-1960, ocorreu uma nova crise no primário e no secundáriocom a expansão dos grupos escolares e dos ginásios,podemos compreender o motivo de a docência não ser escolhida como uma ‘vocação feminina’ e sim comouma possibilidade concreta de profissionalização de homens e mulheres no período do regime militar no Brasil, agudizado pelo processo de expansão do ensino de primeiro grau, mesmo que à custa de uma crescente desvalorização da imagem, dos salários e das condições de trabalho dos professores primários e secundários.
A história da formação da docência nesses dois níveis de ensino mostra que os professores primários, ‘mestres’, sempre foram valorizados como imagem, mas sim desvalorizados salarial e intelectualmente (Vicentini & Lugli, 2009). Os do secundário, ‘professores’, conquistaram prestígio social e intelectual em um curto período, entre os anos 1950 e 1960, o que motivou idealizações de que a escola pública do passado, sobretudo o ginásio, era melhor no que tange ao nível da clientela, das condições de trabalho e salariais.Entretanto, os relatos de alunos e professores do período e a documentação compulsada por Nadai (1991)mostramque essa idealização do ensino era movida por uma alta seletividade do corpo discente, por um ensino baseado na memorização de conteúdos e por professores autodidatas que se desdobravam em dois ou três empregos convivendo com os professores formados nas Faculdades de Filosofia e Educação e em constante disputa pela afirmação profissional.
Nesses relatos,podemosidentificar o movimento da memória de nossas entrevistadas. No plano da lembrança, elas deixaram transparecer seus valores de classe média relacionados à dimensão afetiva de sua vidafamiliar e escolar, caracterizadacomo ‘feliz’ no passado. No plano racional darecordação,desapareceramou foram elididas as dificuldades da formação escolar, acadêmica e profissionalcomo parte da longa duração da história da educação, ao passo que foi alinhavada a estabilidade conquistada no presente com a ‘felicidade’ do passado. Mas será que só hoje tudo parece ‘despencar’?
Entre a lembrança e a recordação resideo significado histórico de suas intelectualidades docentes. Projetando-se do passado para o presente,reafirmando que a posição social, o status profissionale a autoridade em sala de aula eram mais visíveis no passado,elas revelam a expectativa de que esse reconhecimento profissional seja reabilitado, ainda que individualmente, no presente.Projetando-se do presente para o passado, aoreforçar o ‘feliz’ resultado de suas trajetórias individuais no presente, ocultama trama de desvalorização da profissão docente na qual estavam inseridas e das expectativas educacionais não cumpridas coletivamenteno passado. De todo modo, ao inverter as expectativas, suas memórias expressam divergências individuais e coletivas, do presente e do passado, as quais escancaram a fragilidade das prescriçõespolíticas e acadêmicaseducacionais que, à revelia de suas histórias de vida e profissionais,determinam o que deve ser um ‘bom professor, como intelectual’.