Resumo: No presente artigo, analisam-se as ‘cartas de formação’ trocadas entre Mário de Andrade e um conjunto de jovens escritores ao longo de mais de duas décadas, nas quais ele ocupou o lugar de mestrepara os mais novos. Inspirados pela análise de Michel Foucault sobre o cuidado de si greco-romano e sobre sua extensão para o âmbito educacional - a ‘psicagogia’ -, sustentamos a hipótese de que, por meio das correspondências em tela, instauraram-se práticas formativas em nada tributárias do trato pedagógico stricto sensu. Apontamos para um arranjo educativo marcado por um endereçamento ético à prática escritural, de sorte que esta assumisse o papel de elo permanente entre o sujeito escrevente e sua verdade, ambos em permanente construção.
Palavras-chave: cartacarta,escritaescrita,literatura brasileiraliteratura brasileira,Mário de AndradeMário de Andrade,Michel FoucaultMichel Foucault.
Abstract: This paper concerns the formation letters exchanged between Mário de Andrade and a group of young writers during more than two decades, in which he was recognized as a master for the younger ones. Inspired by Michel Foucault’s analysis about Greco-roman’s care of the self and its extension in the educational field - psicagogy -, we support the hypothesis that claims that, through the mentioned correspondence, some practices of formation were stablished away from the pedagogical dealing strictosensu. That redirects education towards a new arrangement, marked by an ethical addressing to writing practices, which would lead them to undertake the role of a permanent ethical link between the subject who writes and his own truth, both in permanent elaboration.
Keywords: letter, writing, brazilian literature, Mário de Andrade, Michel Foucault.
Resumen: El presente artículo trata de las cartas de formación intercambiadas entre Mario de Andrade y un conjunto de jóvenes escritores, a lo largo de más de dos décadas, en las cuales él ocupó el lugar de maestro para los más nuevos. Inspirados por el análisis de Michael Foucault sobre el cuidado de sí greco-romano y su extensión en el ámbito educacional - la psicagogía -, sostenemos la hipótesis de que, por medio de las correspondencias en cuestión, se establecieron prácticas formativas lejanas del trato pedagógico stricto sensu, apuntando para un diseño educativo marcado por un direccionamiento ético a la práctica escritural, a fin de que esa asumiera el papel de eslabón ético permanente entre el sujeto que escribe y su verdad, ambos en permanente construcción.
Palabras Clave: carta, escrita, literatura brasileña, Mário de Andrade, Michel Foucault.
ARTIGOS
As ‘Cartas de Formação’ de Mário de Andrade (1924-1945) e sua Potência Educativa
Mário de Andrade’s ‘Formation Letters’ (1924-1945) and its Educational Strenght
Las Cartas de Formación de Mário de Andrade (1924-1945) y su Potencia Educativa
Recepção: 03 Março 2017
Aprovação: 15 Maio 2017
O presente artigo está centrado nas relações entre educação e escrita consubstanciadas por um tipo de formação que, longe de se restringir aos meios escolares, envolveu um conjunto de literatos brasileiros reconhecidos. Mais especificamente, analisam-se as ‘cartas de formação’ trocadas entre jovens escritores e Mário de Andrade, a quem o tempo afixou o epíteto ‘mestre’, quase como um prenome, em razão de sua atuação formativa entre os escritores mais novos.
Mantidas por mais de duas décadas - ao menos desde 1924, quando se iniciou sua comunicação epistolar com Carlos Drummond de Andrade -, referidas correspondências notabilizaram-se entre os escritores iniciantes da época, graças à solicitude e à franqueza com que o autor de Macunaíma os acolhia. Aflitos por aconselhamento acerca do ofício escritural, tais jovens nutriram-se intensamente da assumida ‘epistolomania’ de Mário, reforçada pela obrigação autoimpingida de não deixar sem resposta as cartas dos mais novos: “[...] uma carta não respondida me queima, me deixa impossível de viver, me persegue” (Andrade apud Moraes, 2007a, p. 48). Sobre tais bases, o escritor paulista teria estabelecido um projeto epistolar, cujas orientações aos interlocutores eram baseadas na aspereza e na crítica, conforme Marcos Antonio de Moraes afirma em seu célebre estudo intitulado Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia deMário de Andrade (2007a).
Tal projeto levou-o a arrebanhar, entre seus pupilos, nomes como Otto Lara Rezende, Fernando Sabino, Otávio Dias Leite, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino, Murilo Rubião e Moacir Werneck de Castro, dos quais foram chegando, nas décadas seguintes à morte de Mário em fevereiro de 1945, notícias de uma educação literária em nada similar ao que se veiculava nas escolas e universidades. Tratava-se, conforme Guilherme de Figueiredo (apud Andrade, 1989), de uma formação em que ‘estética literária e ética política’ convergiam em uma ‘justiça social’ capaz de guiar o escritor. Drummond fez coro com Figueiredo ao defender o caráter ético-formativo de sua interlocução com o mestre, descrevendo-a como o “[...] mais constante, generoso e fecundo estímulo à atividade literária, por mim recebido em toda a existência [acompanhado de...] lições de comportamento humano, desvelos de assistência ao homem tímido e desarvorado” (Andrade & Andrade, 2002, p. 34).
Relatos como os de Drummond e Figueiredo não foram os primeiros a tornar pública a preocupação de Mário com a questão educacional. Antes disso, durante o período em que foi diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, o escritor já havia se empenhado em oferecer a crianças em idade pré-escolar uma formação pública por meio dos parques infantis, entendidos por muitos como precursores da educação infantil em seus moldes atuais (Arantes, 2008; Faria, 1993). Foi apenas postumamente, contudo, que sua atuação formativa sobre os próprios escritores alcançou notoriedade para além dos meios literários. Conforme suas cartas iam sendo publicadas por seus interlocutores, desenhava-se para o grande público a imagem de Mário de Andrade como um guia e, em certa medida, um exemplo para toda uma geração de literatos. Um desses pupilos, João Etiene Filho (1994, p. 22), afirmou que, ainda que Mário possa não ter sido “[...] o maior em nenhum dos gêneros que versou, [...] é, sem dúvida, a maior figura humana de toda a história do pensamento no Brasil [...]”, uma vez que o que ofertava aos interlocutores “[...] não eram só os conselhos e reprimendas, [mas] era o tom, era o coração, era o dar-se de si mesmo, com o melhor dele mesmo, inundando-nos de carinho, de afeição, de confiança” (Etiene Filho, 1994, p. 22).
Além das cartas e de artigos lamentando sua morte, também os obituários escritos pelos jovens com quem tinha travado contato contribuíram para associar definitivamente o nome do poeta modernista ao epíteto de mestre. Alguns desses escritos, reunidos por Marcos Antonio de Moraes (2007a) em ‘Um mestre que perdemos’ - seção do livro, já aludido, sobre epistolografia de Mário de Andrade -, reforçam a singularidade que garantiu a Mário o elogio recebido: um correspondente “[...] intuitivo miraculoso, capaz de conhecer as minudências psicológicas de cada moço que se socorria de sua experiência” (Guimaraens Filho apud Moraes, 2007a, p. 32). Sua atuação fundava-se, segundo Lygia Fagundes Telles (citada por Moraes, 2007a, p. 33), no zelo mútuo entre os missivistas, “[...] porque com ele os mais desconfiados ficavam logo à vontade, os mais ariscos iam logo abrindo a alma”. Ao voto de confiança dos jovens, revela Mário da Silva Brito (citado por Moraes, 2007a, p. 35), Mário de Andrade retribuía ofertando-lhes “[...] generosa e fraternalmente a sua inteligência [...], pondo-os a par dos múltiplos e intrincáveis mistérios e segredos da criação artística e ainda fazendo-os colocar a arte em conjunção direta com a vida”. Esses e outros relatos, conclui Moraes (2007a, p. 36, grifo do autor), constroem “[...] a figura do ‘mestre’ que incorpora os valores do ‘amigo’ e do ‘confidente’, engendrando o ‘professor’, capaz de ensinar sem o anteparo distanciador do título”.
O encontro epistolar entre Mário e os jovens escritores teria consistido, portanto, em uma educação pautada no saber literário, mas sua realização dependia sobremaneira da rede de afetos entre educador e educando.
Em vez de almejar estabelecer paralelos entre a conduta de Mário de Andrade e possíveis abordagens pedagógicas inspiradas em relações afetivas, defendemos, aqui, a hipótese geral de que, por meio das correspondências em tela, instauraram-se práticas formativas em nada tributárias do trato pedagógico stricto sensu. Em uma direção distinta, tal experiência, atribuindo centralidade à moderação ética dos iniciantes por um mestre, representaria, ao que nos parece, um ponto de inflexão importante na história recente das práticas educativas, já que rompe com a preponderância do tipo canônico de transmissão de conhecimentos viabilizado pelo modus operandi escolar.
A fim de sustentar tal hipótese, pautamo-nos na discussão entabulada por Michel Foucault em seu curso ministrado no Collège de France nos primeiros meses de 1982 e intitulado A hermenêutica do sujeito (2010a). Nessa discussão, o pensador francês alude à noção filosófica greco-romanado ‘cuidado de si’, a qual teria constituído, por longo período, um núcleo ético-político em torno do qual teria sido organizada uma série de práticas e preceitos caros à constituição dos modos de vida propostos por algumas correntes filosóficas, sobretudo a dos estoicos. Incluída entre tais práticas, a troca de cartas é evocada na investigação de Foucault em razão de sua importância na consecução de tais modos de vida, por operar não somente como meio de difusão de ideias, mas também como prática de transformação estilístico-existencial dos correspondentes. Exemplo magno disso são as Cartas a Lucílio, de Sêneca (2009).
Além da comunicação epistolar, concorriam para a constituição dessa ética de existência os exercícios espirituais e físicos, por meio dos quais os sujeitos envolvidos acederiam à ‘verdade filosófica’. Para tanto, necessitava-se, antes de mais nada, angariar para si um diretor de consciência que os pudesse orientar no caminho da verdade; alguém que, podendo ter sido antes um estulto, tivesse ultrapassado tal condição, logrando saber como cuidar de si mesmo.
Dessa feita, a correspondência, na tradição estoica, congregava a função de vigília dos hábitos e pensamentos do pupilo. A moderação imposta pelo mestre estava diretamente ligada à conversão do discípulo a uma ‘vida outra’, embasada, segundo Foucault (2011), em uma ética distintiva do existir. Daí serem conferidos grande valor e responsabilidade à fala do mestre-remetente, a qual deveria, por isso, portar franqueza, pautando-se na parrhesia (libertas, para os latinos). Referida forma de enunciação da verdade, para Foucault, comprometia o mestre com um ‘dizer-a-verdade’ conjugado à necessidade de tudo dizer.
Se, por um lado, a escrita epistolara carretava uma forma de governo da vida do discípulo, por outro, oportunizava a reativação constante de máximas existenciais, as quais deveriam ser incorporadas pelo aprendiz, de modo a constituir uma ‘armadura’ ética que o impedisse de se perder em face de situações difíceis. Nesse sentido, as cartas assumiam função concomitante e conjugada à dos hypomnémata, espécie de cadernos de anotação que “[...] constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; assim, eram oferecidos como um tesouro acumulado para releitura e meditação posteriores” (Foucault, 2004, p. 147).
Nessa perspectiva, a escrita assumiria um duplo sentido: ascético e etopoiético.
Seja qual for o ciclo de exercício em que ela ocorre, a escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askésis: ou seja, a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de ação. Como elemento de treinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma expressão que se encontra em Plutarco, uma função ‘etopoiética’: ela é a operadora da transformação da verdade em êthos (Foucault, 2004, p. 147, grifo do autor).
Os hypomnémata já foram alvo de muitas comparações com práticas modernas, tais como a escrita de diários ou cartas. Também foram interpretados como rascunhos posteriormente utilizados para a construção de tratados filosóficos. Tal aproximação, contudo, não é suficiente, a nosso ver, para situar sua complexidade no pensamento antigo aí implicada, já que não importava, naquele contexto, fazer das anotações registros completos de algum tema - nisso diferindo da gramática que “[...] procura conhecer uma obra em sua totalidade ou todas as obras de um autor” (Foucault, 2004, p. 150). A verdade, para os estoicos, congregava um valor ‘local’, sendo o conhecimento algo que só importava quando convertido em leitmotiv da atuação por seu portador. Tampouco estaria em jogo ali uma narrativa de si mesmo, como aquela constitutiva da identidade cristã e hoje associada à cultura autobiográfica (Gomes, 2004; Malatian, 2009). Na direção oposta, “[...] trata-se não de buscar o indizível, não de revelar o oculto, não de dizer o não-dito, mas de captar, pelo contrário, o já dito; reunir o que se pôde ouvir ou ler e isso com uma finalidade que nada mais é que a constituição de si” (Foucault, 2004, p. 149).
Todos esses atributos dos hypomnémata que, de modo geral, também se aplicavam às cartas, apontam para dois modelos de educação bastante distintos, os quais tiveram lugar, segundo Foucault (2010a), entre os pensadores clássicos: o da ‘pedagogia’ e o da ‘psicagogia’.
Chamemos, se quisermos, ‘pedagógica’ a transmissão de uma verdade que tem por função dotar um sujeito qualquer de aptidões, capacidades, saberes etc., que ele antes não possuía e que deverá possuir no final dessa relação pedagógica. Se chamamos ‘pedagógica’, portanto, essa relação que consiste em dotar um sujeito de aptidões previamente definidas, podemos, creio, chamar ‘psicagógica’ a transmissão de uma verdade que não tem por função dotar um sujeito qualquer de aptidões, etc., mas modificar o modo de ser do sujeito a quem nos endereçamos (Foucault, 2010a, p. 366, grifo do autor).
Na prática, ambas as modalidades convergiam na atuação de um mestre, o que não significa que uma delas não fosse preponderante na relação estabelecida com os discípulos, como era a ‘psicagogia’ para os estoicos ou a pedagogia para os platônicos.
Se ora fazemos alusão à experiência educativo-filosófica greco-romana, nosso intuito não é suscitar similitudes com aquela vivenciada pelos literatos em contato com Mário de Andrade - argumento, aliás, largamente explorado pelos estudos voltados à atualização da noção de escrita de si a fim de descrever um alegado éthos autobiográfico próprio à escrita na Modernidade (Gomes, 2004; Klinger, 2007; Malatian, 2009). Em vez disso, pretendemos, no presente artigo, inscrever a experiência vivenciada por Mário de Andrade e seus pupilos em um horizonte de práticas formativas que, antes de se afiliar a uma vertente propriamente pedagógica, operaram em detrimento de uma formação centrada na transmissão de saberes; práticas atentas, portanto, à transformação subjetiva do indivíduo.
Aferrados a tal hipótese, propusemo-nos a compilar e analisar a comunicação de Mário de Andrade com 24 jovens escritores, com quem foram trocadas cartas de teor formativo no período compreendido entre 1924 e 1945, a saber: Alphonsus de Guimaraens Filho, Araldo Alexandre, Carlos Drummond de Andrade, Cristiano Martins, Fernando Mendes de Almeida, Fernando Sabino, Guilherme Figueiredo, Helio Pellegrino, Henriqueta Lisboa, João Etiene Filho, José Antonio Ferreira Prestes, José Dantas Mota, Ledo Ivo, Lygia Fagundes Telles, Moacir Werneck de Castro, Murilo Miranda, Murilo Rubião, Oneyda Alvarenga, Oswaldo Alves, Otávio de Freitas Júnior, Otavio Dias Leite, Otto Lara Rezende, Paulo Mendes Campos e Pedro Nava.
A busca pelas correspondências listadas (ao todo, 1146 cartas) direcionou-nos ao caminho dos arquivos, em especial ao do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB - USP), onde se encontra a íntegra do acervo pessoal do escritor, incluindo cartas por ele recebidas e cópias de algumas de suas respostas. Na ocasião da aquisição do acervo pela instituição paulista, na década de 1970, o volumoso montante de missivas - 6992 passivas e 588 ativas - foi entregue por seus herdeiros com uma condição testamentária imposta por Mário de Andrade: que se passassem 50 anos de sua morte antes da abertura do espólio ao público. Do ano em que tal prazo se perfez (1995) para cá, muitas edições de cartas do mestre vieram se juntar àquelas que já haviam sido impressas nas décadas anteriores, algumas das quais reúnem tanto as cartas do venerado escritor quanto as respostas a elas. Isso muito colaborou para nossa pesquisa, visto que dispúnhamos de material adicional para consulta quando, por exemplo, estávamos em dúvida sobre determinadas passagens manuscritas nos originais.
No que tange ao corpus da investigação, convém relembrara existência de lacunas nas comunicações, fato explicado por terem se perdido, com o tempo, algumas das peças que compunham a correspondência originalmente. Essa condição lacunar, todavia, não configurou impedimento para nossos objetivos, visto não focalizarmos o modo particular de endereçamento a um indivíduo ou outro, mas antes uma experiência partilhada por muitos. Nesse sentido, aproximamo-nos também metodologicamente de Foucault (2010b), tomando de empréstimo sua conceituação de ‘foco de experiência’ para orientar nosso trato com as fontes e com a história das práticas educativas nelas espelhada.
Em contraste com a definição de experiência advinda da fenomenologia, em Foucault tal noção vê-se desatrelada de uma trama subjetivista que a poderia condicionar à interioridade de um indivíduo. Em vez disso, o que se tem são experiências moduladas por focos específicos, como a loucura no século XVIII ou a imoralidade sexual no século XIX, os quais se constituíram pela articulação entre “[...] formas de um saber possível, matrizes normativas de comportamento, modos de existência virtuais para sujeitos possíveis” (Foucault, 2010b, p. 5). Movido por essa perspectiva, Foucault viu-se forçado a operar uma revisão de seu referencial metodológico, a qual nos interessa aqui. Ouçamo-lo mais uma vez:
Tratava-se de deslocar o eixo da história do conhecimento para a análise dos saberes, das práticas discursivas que organizam e constituem o elemento matricial desses saberes, e estudar essas práticas discursivas como formas reguladas de veridicção. [...] Tratava-se de analisar em seguida, digamos, as matrizes normativas de comportamento. E aí o deslocamento consistiu, não em analisar o Poder com ‘P’ maiúsculo, nem tampouco as instituições de poder ou as formas gerais ou institucionais de dominação, mas em estudar as técnicas e procedimentos pelos quais se empreende conduzir a conduta dos outros. [...]Em terceiro lugar, tratava-se de analisar o eixo de constituição do modo de ser do sujeito. E aí o deslocamento consistiu em que, em vez de se referir a uma teoria do sujeito, pareceu-me que seria preciso tentar analisar as diferentes formas pelas quais o indivíduo é levado a se constituir como sujeito (Foucault, 2010b, p. 6, grifo do autor).
Em consonância com tais pressupostos, a abordagem das cartas ateve-se à circulação de discursos e práticas por elas fomentada. Pudemos descrever e analisar determinados contornos dessa experiência literário-formativa, bem como alguns de seus deslocamentos ao longo do arco temporal dos 22 anos em tela. Importava-nos pouco relacionar os discursos a um ou outro dos correspondentes, visto não termos em foco a constituição de determinadas obras literárias, nem tampouco a relação destas com seus respectivos autores - como fazem, aliás, estudos que atribuem às cartas o caráter de ‘paratexto’ literário, alegadamente facilitador da leitura crítica de uma obra (Willemart, 2005; Moraes, 2007b; Pino & Zular, 2007).Em nosso caso, o par explicativo obra/autor demonstrou, ademais, ser pouco efetivo por estar centrado no fazer escritural per se, ao passo que almejamos atentar para uma experiência mais difusa, capaz de produzir gestos não atrelados imediatamente à prática textual. Em suma, ao nos posicionarmos em favor da apreensão da experiência sempre indeterminada entre escrita e existência, não nos propusemos a perscrutar o encontro entre o autor e a obra, mas sim o âmbito constituído entre escritor e escrita literária quando de sua correspondência com um mestre.
Não tendo sido direcionada apenas a Mário de Andrade, a demanda dos jovens literatos por conselhos de autores já estabelecidos foi relativamente usual ao longo do século XX. Nem todos os escritores contemporâneos de Mário, contudo, demonstraram a mesma disposição para se envolver em diálogos epistolares, como demonstra o relato de Manuel Bandeira, em entrevista de 1968.
Ai de mim! Vivo recebendo manuscritos. Que me consultem sobre poesia, ainda vá lá! Mas sobre romances e contos? [...] Aos portadores destes gêneros vou logo dizendo: por que não procuram o Graciliano, o Zé Lins, o Otávio de Faria? Imagine que uma manhã fui despertado às sete horas pelo tilintar do telefone. Era um incipiente poeta desconhecido que, sem mais preâmbulo, me desfechou esta: ‘- O senhor pode ouvir um pardal novo?’ Respondi que era cedo demais para ouvir pardais novos. Desde então chamo esses poetinhas ‘pardais novos’. Às vezes nem novos são. O tal do telefone já tinha 35 anos! Aliás essas consultas me deixam perplexo. Não sei o que responder senão dizendo: leiam as Cartas a um jovem poeta, de Rilke (Senna, 1968, p. 65, grifo do autor).
O fenômeno das cartas de formação, mais do que consistir no único caminho de contato entre escritores inexperientes e outros já estabelecidos, incluía-se num rol de práticas específicas fundadas sobre a experiência dos literatos, as quais não eram novas quando Mário se pôs a receber cartas de jovens e tampouco se restringiam a trocas epistolares. O relato por carta do jovem escritor Hugo de Carvalho Ramos a seu irmão, em 1912, dá-nos mostras disso. Nela, Ramos conta estar seduzido pela perspectiva de se mudar para a então capital da República, não pelas paisagens, mas por “[...] poder conhecer e admirar de perto o grande estilista de Inverno em flor, do Jardim das oliveiras, enfim Coelho Neto” (Ramosapud Broca, 1960, p. 51). Seu anseio era cabível, conforme relata Brito Broca em A vida literária do Brasil: 1900, já que não faltavam exemplos de grandes escritores que, no início do século, haviam recebido, em seus grupos, jovens oriundos dos mais diferentes lugares. Tais foram os casos de Coelho Neto e Inglês de Souza, no Rio de Janeiro, e de José de Freitas Vale, em São Paulo, os quais, nas duas primeiras décadas do século XX, faziam de suas casas espaços para reuniões de artistas e escritores, sendo, muitas vezes, admitido o ingresso de principiantes. O mesmo ocorria com alguns literatos frequentadores dos cafés cariocas, cujas rodas eram compostas também por rapazes provenientes de outros locais, com o intuito de conviver com aqueles escritores que mais estimavam. O grupo de Lima Barreto, por exemplo, era simpático à presença de ‘calouros’ (Broca, 1960).
A busca dos jovens pela aprovação dos literatos incensados manifestara-se, antes disso, nas cartas a Machado de Assis (2008, 2009, 2011, 2013, 2015), que, tomado por mestre ainda mais cedo do que Mário de Andrade, correspondeu-se com alguns jovens por ele ‘apadrinhados’. Um dos casos mais lembrados é o de Carlos Magalhães de Azeredo, por quem o notável escritor nutria grande admiração e afeto, tal qual ocorria com Joaquim Nabuco, cuja correspondência se iniciara quando este estava no colégio (1866), e com Mário de Alencar, 33 anos mais jovem do que o autor de Memorial de Aires. O mesmo Machado, em tempos ainda mais remotos, teria sido o mancebo para os ilustres homens de letras de sua juventude, como Quintino Bocaiúva e Caetano Filgueiras, como atestam as cartas trocadas entre eles no começo dos anos 1860 (Assis, 2008).
Se, por um lado, a demanda formativa dos literatos aspirantes por pares reconhecidos colaborou para a emergência da prática epistolar com fins formativos, por outro, não se pode desconsiderar a disposição dos escritores mais velhos em assumir o posto de mestre, a fim de difundir certo saber literário. Tal incumbência, longe de ter sido levada a cabo de maneira uniforme por aqueles conclamados pelos mais novos, suscitou não uma, mas muitas maneiras de proceder diante da demanda dos remetentes. Nessa seara, uma suposta responsabilidade formadora dos escritores mais velhos parece ter sido, desde há muito, confrontada por interpelações de várias ordens, abrangendo, entre outros aspectos, o perfil do escritor-formador e a frágil fronteira existente entre aprender a escrever e mimetizar o estilo de escrita de quem o ensina.
Dos literatos do início do século XX até Fernando Sabino (1989) - que, em entrevista, afirma ter se recusado a se corresponder com colegas mais jovens por não estar apto a tal tarefa -, uma longa linhagem de escritores que refletiram sobre os limites e os problemas decorrentes do gesto formativo para com os iniciantes dá mostras de quanto a questão educacional esteve presente nos meios literários. É o que preside, parece-nos, a preocupação de Lima Barreto com os jovens sob influência de outras rodas boêmias que não a sua. O autor de Policarpo Quaresma, vendo que se sustentava nesses grupos um vínculo ‘artificialmente literário’ com a escrita, teria estipulado como regra, entre os seus, que não se falasse de literatura, almejando proteger seus novos integrantes de uma esfera ‘literatizante’ (Broca, 1960).
Mesmo Mário de Andrade, cuja atuação junto aos jovens talvez tenha sido a mais celebrada nos meios literários, não teria passado impune a algumas críticas quanto à relação com seus ‘moços’. Foi ao menos o que ele próprio parece ter ponderado ao ler uma crítica publicada em 1944 n’O jornal. O texto em tela fazia referência aos “[...] escritores de cinquenta anos sempre projetados sobre a veia literária dos novos, e que acabam cognominados de ‘mestres’” (Borba apud Moraes, 2007a, p. 162, grifo do autor). Seriam ‘mestres Drácula’, dada a ‘sede’ com que iam até os pupilos.
É para eles uma necessidade vital acompanhar os rapazes, nunca se desgarrar dos discípulos, tê-los sempre à altura da sua presença e do seu contato, não de uma maneira esclarecedora e leal, mas como um meio de amparar a própria decadência [...] é tão sutil o afago desses ‘mestres’, tão refrescante a sua proximidade, tão suave o sussurro de sua conversa! (Borba apud Moraes, 2007a, p. 162, grifo do autor).
O escritor paulista, sentindo-se censurado, mesmo sem ter seu nome mencionado, pôs-se a refletir sobre seu lugar ante os mais novos e admitiu que não conseguia de todo justificar um “exclusivo interesse [...] desinteressado” (Borba apud Moraes, 2007a, p. 163) por eles, de modo que nada provaria que ele não era um ‘Drácula’. A questão, frequentemente repisada quando se iniciava uma amizade com alguém menos tarimbado no ofício, refletia a difícil tarefa de mensurar os limites do que ofertava aos moços que o procuravam. Nesses embates, suas reflexões recaíam constantemente sobre a diferença entre o que fazia e uma pedagogia fundada em conselhos. Do mesmo modo, coube-lhe numerosas vezes refutar o epíteto de mestre com o qual convivera por longos anos. Para Moacir Werneck de Castro (citado por Moraes, 2007a), tal atitude advinha do incômodo com o caráter ‘hagiográfico’ anexado ao título em tela.
Se, de um lado, Mário evitava ser cognominado dessa maneira, de outro, também recusava que o título fosse outorgado a Machado de Assis, escritor de longa data reconhecido como tal, a quem nunca afligira ser chamado de mestre, e que, ao contrário, havia se habituado a encontrar, conforme a idade lhe fora chegando, tal forma de tratamento nas cartas que recebia. Passadas algumas décadas da morte de Machado, os elementos que o teriam qualificado para a mestria foram postos em xeque por Mário em uma série de artigos publicados no Diário de Notícias (Andrade, 1993), a começar de sua influência sobre os jovens que, segundo dizia, era pequena, como atestava o fato de que aqueles que o cultuavam só o faziam depois dos 30 anos. Além disso, por lhe faltarem “[...] dons de generosidade, a confiança na vida e no homem, a esperança” (Andrade, 1993, p. 53) e por ter feito o possível para “[...] ocultar os seus possíveis defeitos, as suas origens, os elementos de sua formação intelectual e a sua doença” (Andrade, 1993, p. 65), Machado só pôde, sustenta Mário, suscitar nos leitores da geração pós-modernista a admiração por sua obra, sem que lhes interessassem os caminhos e descaminhos que o ligavam a ela. Por fim, aponta o tipo de influência que dele poderia ter advindo.
Machado de Assis é um fim, não é um começo e sequer um alento novo recolhido em caminho. Ele coroa um tempo inteiro, mas a sua influência tem sido sempre negativa. Os que o imitam, se entregam a um insulamento perigoso e se esgotam nos desamores da imobilidade (Andrade, 1993, p. 68).
Torna-se claro, mediante os argumentos apresentados, que, quando o escritor paulista se referia ao criador de Dom Casmurro como um mestre, almejava criar um efeito pejorativo. De seu ponto de vista, o que lhe poderia ser elogiado restringia-se à sua escrita, não havendo razão para o tomar como ideal de existência. Quanto a isso, alertou alguns de seus correspondentes, como é o caso de Fernando Sabino.
Você precisa muito de ler Machado de Assis, mas ler com reler, roubando ele, plagiando ele, não no estilo nem no espírito mas na delicadeza de sentimento. Machado de Assis não deve ser pra você um companheiro de vida, mas apenas um tesouro onde você vai roubar. Roube dele tudo quanto possa ser útil a você, jogando o resto fora (Andrade & Sabino, 2003, p. 52).
Tais considerações de Mário de Andrade sobre si mesmo e sobre o romancista do Cosme Velho delineiam um quadro para a compreensão do ofício literário, no qual os papéis de escritor e formador entrecruzam-se, sem necessariamente coincidirem. E, ainda que a solicitude diante dos jovens tenha gerado dissenso entre os literatos, a recorrência do tema de uma mestria literária demonstra o peso assumido pela figura do literato-mestre e, em oposição complementar, da do literato-discípulo, na experiência de escrita vivenciada nos meios literários dos meados do século XX. Isso faz com que as cartas trocadas com o criador de Losango cáqui garantam um interesse e um valor significativos para as investigações educacionais voltadas aos meandros da temática da formação.
A face amiga e encorajadora de Mário, aludida nos relatos de alguns de seus discípulos, não raro dava lugar a outra mais austera, sobretudo quando o escritor se via diante da necessidade de avaliar negativamente os textos de seus destinatários. A aspereza, nesses casos, recendian as suas críticas que circulavam em jornais e revistas da época. Nas cartas, a tarefa crítica, longe de demonstrar desafeto, emergia como dever do amigo mais velho que dizia preferir ser condescendente com os outros que não lhe importavam. Isso não quer dizer que o papel autoatribuído de Mário fosse cumprido inequivocamente, pois, mesmo acreditando “[...] que os bons aguentam o tranco” (Andrade & Sabino, 2003, p. 26), receava que a vaidade dos jovens pudesse levar a um desentendimento, como confessa em carta a Otávio Dias Leite (Moraes, 2006).
Ainda assim, a rendição dos jovens a esse arranjo crítico era apresentada como condição para que Mário se correspondesse com eles. Ou seja, ele estabelecia uma espécie de ética de exposição por parte dos mais novos, a qual se defrontaria com a irretocável disposição do escritor paulista de dizer com franqueza o que derivou de sua leitura dos originais.
Quanto aos prejuízos de quem agiria de outra maneira, temos em carta de julho de 1940 a Alphonsus de Guimaraens Filho um esclarecimento detalhado.
Indivíduos da minha espécie, combativos e combatidos, mas em principal confiantes no progresso, no aperfeiçoamento, não propriamente humano, mas dos homens em particular, quando chegam numa certa idade principiam temendo o frio vazio em torno quando se der a chegada da velhice. Isso é terrível, Alphonsus, porque é um premente, constante convite à condescendência. Quando a gente encontra um homem, um artista ‘direito’, se fica num medo danado de perder essa possível companhia, esse possível calor pra idade que vai chegar. Acredite, Alphonsus, é muito mais difícil, então a gente ser sincero, ser honesto pra com um moço como você, do que pra com um já-feito que a experiência dos anos já nos garante que não perderemos mais. Mas sua carta veio me sossegar, me provando mais uma vez o que eu já pressentira em nossos rápidos encontros de Belo Horizonte: que você é um sujeito ‘direito’ mais inteligente que a vaidade (Andrade & Bandeira, 1974, p. 15, grifo do autor).
Mário ultrapassa o tom confessional com que principia a narrativa, apresentando a relação entre mestres e discípulos sob moldes bastante conflituosos. Finda por constituir uma espécie de pequeno tratado sobre tais relações, no qual discorre tanto sobre as obrigações de cada um dos envolvidos na comunicação, quanto sobre o lugar dúbio ocupado pela amizade nesse tipo de prática, já que ela poderia redundar tanto naquilo que criaria as condições para uma crítica mais direta, quanto no que impediria o mestre de dizer a verdade, em favor da manutenção da relação afetiva.
Tal noção de crítica, direcionada a quem escreve e não ao texto escrito, parece ter sido uma das bases para a aparição de uma educação ética e da figura do mestre-literato de que ora tratamos, o que, por sua vez, circunscreve a experiência formativa referida ao século XX, quando o debate público em torno da importância da literatura já se havia arrefecido e o homem de letras havia dado lugar ao escritor. Até então, pode-se dizer, o tipo de mestre aludido encontrava-se tão somente em latência, sendo que a mestria existente cuidava de converter os ‘monges’ - conforme analogia de um dos correspondentes de Machado de Assis, reportando-se àqueles que praticavam a escrita isolados - em ‘soldados’ que, por diferentes meios-os jornais e as academias de letras, por exemplo -, lutavam pela salvação da instituição literária (Assis, 2008).
É possível que outros literatos de então tenham constituído relações formativas sob outros moldes, mais parecidos com aquele que fez as cartas de Mário serem objeto de interesse em dias mais recentes. Ainda assim, foram necessárias mais algumas décadas para que a demanda formativa dos jovens se deflagrasse, centrando-se mais no próprio literato e menos na defesa da literatura.
Para que a formação do escritor iniciante fosse concretizada, não importava tão somente o diálogo entre mestre e discípulo, mas também a inserção do jovem em grupos de literatos, nos quais se construíam elos comuns entre os pares e se lapidava diuturnamente uma distância que os distinguia dos leitores. O contato com o mestre era muitas vezes um fator determinante para o acolhimento, ou não, do jovem admirador, fosse por meio de sua inserção em grupos previamente formados dos quais Mário fazia parte, fosse pelo apadrinhamento de grupos inteiros de jovens, como ocorreu com alguns escritores mineiros do círculo de Fernando Sabino e Otto Lara Resende.
A frágil situação dos recém-chegados aos ambientes literários incitava-os ao contato com os mestres não apenas por admiração, mas também em razão do próprio mecanismo pelo qual aqueles com mais tempo de profissão auxiliavam os mais novos. E a isso Mário não se furtava, por entender que a vida dos escritores dependia não somente da escrita, mas também das relações interpessoais estabelecidas entre eles, especialmente aquelas fomentadas no interior de um grupo. Houve, por exemplo, alguns pupilos seus que puderam testemunhar uma entrega maior do poeta às manifestações de cunho gregário. Entre eles, destaca-se o grupo de literatos cariocas de que faziam parte Murilo Miranda, Carlos Lacerda e Moacir Werneck de Castro. É o próprio Mário quem o relata:
Você quer saber mesmo o que o Rio me deu de bom? - foram as companheiragens, as conversas de bar, as nossas conversas fiadas, o espetáculo humano estranhíssimo das vossas vidas. [...] pra mim que vinha de uma ordem de existências perfazidas, bem delineadas, antibiscatísticas, onde se fazia completa abstração do imprevisto, vocês todos me fizeram um imenso choque, me deram um deslumbramento vital, feito de tudo, do pior e do melhor (Andrade, 1981, p. 67).
O período de três anos que separa as cartas enviadas a Miranda e a Resende parece delinear com clareza a mudança de tom de uma época a outra, já que é nesse ínterim que o modernista sofre críticas de escritores da nova geração -quer por sua postura política, quer por sua motivação supostamente vampiresca em manter amizade com os jovens -, restando, de qualquer modo, o enaltecimento dos grupos de jovens que apadrinhava.
Nem todos os grupos, todavia, seriam dignos de tais elogios, segundo o autor paulista, como dá a ver a crítica que faz aos rumos escolhidos por Sabino após sair de Belo Horizonte.
Você está vivendo artisticamente demais. Você está conquistando simpatias condescendentes mesmo nos grupos que deviam detestar você. Que era preciso que detestassem você. Você está escolhendo amigos que são más companhias pro artista Fernando Sabino. Você está abandonando os seus amigos de Minas [...]. Isso é trair, se trair, trair a amizade, trair o grupo, trair sua mineirice (Andrade & Sabino, 2003, p. 199).
Fernando Sabino, na carta em resposta, acatou a reprimenda do amigo, concordando com a argumentação de que estava cercado de “[...] amigos de ocasião” (Andrade & Sabino, 2003, p. 207). Disse, então, querer se “[...] corrigir, ser menos gratuito, menos disponível e menos bobo-alegre” (Andrade & Sabino, 2003, p. 206), bem como “[...] meter o pé na bunda das considerações condescendentes” (Andrade & Sabino, 2003, p. 207). Tendo ou não feito isso, anos mais tarde confessaria, em entrevista a Clarice Lispector, nutrir o mesmo sentimento de Mário quanto à sua mocidade: faltara-lhe uma geração em seu entorno que lhe pudesse abstrair da solidão (Sabino, 2007).
Como resultado dessa dupla interação promovida por Mário - consigo próprio e entre seus interlocutores afins -, as cartas dão a ver um arranjo educativo marcado por um endereçamento de cunho ético à prática escritural. Tal arranjo se fundaria não somente na crítica apresentada pelo mestre, mas em uma contínua tarefa autorreflexiva, confundida, em muitos casos, com o próprio fazer escritural. Tal configuração parece ter dado lugar a uma escrita capaz de se dobrar sobre a própria vida dos literatos que, nesse contexto, se deixariam por ela governar em outros aspectos além do fazer literário.
É o caso das relações amorosas tratadas como matéria a ser submetida à formação e à criação artística, sendo o tema do ‘custo’ da felicidade um tópico recorrente nas comunicações de diferentes interlocutores com Mário. Partindo da suspeita de um prejuízo trazido à escrita de um quando deixa os amores assumirem demasiada importância em sua vida, tais comunicações foram campo para a moderação dos idealismos e presumidos exageros dos inexperientes missivistas, como ocorreu com Carlos Drummond de Andrade, que não via como conciliar experiências prosaicas, como o casamento, com a tarefa sublime da criação que supostamente definia o literato (Andrade & Andrade, 2002).
Diante desse caso específico, Mário teceu considerações sobre o que poderia satisfazer os anseios do amigo de Itabira: “É certo que uma pessoa da sua sensibilidade e da sua volúpia de consciência não pode ter a felicidade comum que é feita de insensibilidade e de inconsciência. A felicidade de você tem de ser espiritual e a melhor maneira de alcançar isso é ter não a vaidade mas a coragem de si mesmo” (Andrade & Andrade, 2002, p. 128). A coragem de que fala o mais velho não seria aquela usualmente associada a certa ‘vida estética’; ao contrário, foi em detrimento desta que Mário organizou sua argumentação, ao tratar a literatura como ‘peste’, capaz de envenenar os sentimentos e dificultar a realização de uma vida para além de seu ideal. “Não bote nada de estética na vida de você, bote vida que não tem nada a ver com as atitudes artísticas e portanto desinteressadas do espírito” (Andrade & Andrade, 2002, p. 125).
Também na comunicação com Fernando Sabino, a alegada dificuldade de conciliação entre a atividade de escrita e as relações amorosas foi tematizada. O jovem remetente expressava sua dificuldade em se adequar ao pressuposto de que “[...] a obra de arte exige do artista tudo aquilo que ele tem de vida, de força humana que só o sofrimento é capaz de proporcionar” (Andrade & Sabino, 2003, p.27), sem revelar claramente qual tipo de situação estava vivendo.
Em duas palavras: eu tendo em vista uma felicidade muito esperada, uma possibilidade de realizar essa felicidade, que não me apagará, estou certo, esse sofrimento, essa carência a que me referi: acha você que isso irá impedir de me realizar como escritor? É imprescindível que eu dispense essa oportunidade de ser feliz, que eu sofra vendo os meus sonhos desabarem, minhas esperanças frustradas, tudo fracassado na vida, para que venha a criar alguma coisa? (Andrade & Sabino, 2003, p. 28).
Somente na carta seguinte, se vem a saber que a felicidade de que falava era, conforme presumira Mário, um “[...] amor sinceríssimo que acontece de ser rico, noivado, casamento legal e vida arranjada, sem mais inquietações financeiras” (Andrade & Sabino, 2003, p. 30). Entre as duas cartas, no entanto, a do mestre já se havia ocupado de lhe aquietar o que ia no coração, pela simples defesa de que aquilo a que ele devia se opor era o acomodamento, não a felicidade. Tal argumentação principia pelo reconhecimento do valor do sofrimento para o artista.
Não há dúvida nenhuma que a arte tem entre os elementos que a constituem a insatisfação. A arte é filha da dor, dizem e você repete na sua carta. Prefiro dizer insatisfação que é mais dinâmico [...]. Há satisfações momentâneas, está claro. E há, meu Deus! Os satisfeitos [...] Mas você há-de observar em toda a sua vida que os ‘satisfeitos’ com sua missão e com as obras que realizam, nunca serão artistas ‘verdadeiros’ (Andrade & Sabino, 2003, p. 31, grifo do autor).
Não seria por isso, contudo, que a felicidade do escritor não poderia ser alcançada, estando ela tão somente condicionada a uma ressignificação de modo a observar uma vida artística, a qual não poderia ser sustentada em meio a atitudes acomodadas.
É simples, meu irmãozinho, embora seja difícil. É você não perder jamais de consciência que a sua experiência de felicidade deve ser também um objeto de aprimoramento pessoal. Não é justo a gente recusar uma facilidade que a vida nos ofereça, desde que essa facilidade seja justa (Andrade & Sabino, 2003, p. 34).
Para Mário e seus correspondentes, portanto, parece se ter firmado um olhar sobre a experiência amorosa, segundo o qual esta, antes de se oferecer como conteúdo para a criação literária, se interporia entre o literato e a escrita, obrigando os amantes a modularem-na pela própria experiência literária.
A ideia da moderação de traços subjetivos do escritor em favor de ações e sentimentos mais propícios à criação literária estende-se, nas cartas, também a outros temas. A própria tópica da criação apresenta-se problemática, especialmente quando é trazida à tona a querela entre as concepções de uma escrita literária espontânea e outra que seria adquirida pelo esforço e pelo estudo.
Em meio a tal disputa, Mário opta pela crítica à crença exacerbada na ideia de espontaneidade. Nesse ponto, nada parece haver de original na mestria do escritor paulista, visto ter sido comum, nas discussões do século XIX, ponderações quanto ao trabalho necessário para que a inspiração - de acepção próxima à espontaneidade das cartas oitocentistas - pudesse se manifestar (Assis, 2008).A criação seria, para muitos autores do período imperial, algo a ser não apenas moderado pelo rigor formal, mas também incentivado, residindo seu problema não na inspiração em si, mas na presunção de que ela viria sem esforço. Desse modo, caberia ao literato um trabalho sobre sua escrita que o direcionasse a uma inspiração capaz de gestar uma obra de maior vulto. Ao trabalho e aos estudos do literato, portanto, restaria abrir caminho para que a força criadora do escritor pudesse fluir. E isso ocorreria de tal maneira que, quanto mais bem-sucedido fosse seu trabalho, mais a obra traria em si o que lhe ia na alma.
Entretanto, ainda que parta da ideia comum de que o esforço é condição primordial à produção literária, a crítica de Mário à noção de espontaneidade apresenta-se sob outro viés, que a opõe forçosamente à escrita literária. Em tal viés,tomava a espontaneidade não como aquilo que deve ser balizado para se atingir uma boa obra, mas como obstáculo e como não obra, isto é, como aquilo que, sendo inato, não pode coexistir com a operação consciente da escrita, de modo que só poderia advir da impostura do literato.
De acordo com tal ponto de vista, vemos emergir uma concepção diferente de artista/escritor em contraste com aquela do século anterior,atrelada ao par inspiração/esforço, já que o literato seria quem põe a perder sua espontaneidade em favor de uma escrita artificial. Pensando nisso, Mário de Andrade instrui Fernando Sabino a duvidar da ideia de que o artista só deve criar quando em ‘estado de poesia’.
[...] isso do sujeito que só se põe escrevendo quando ‘sente disposição’ é estupidez da miúda. Principalmente para o prosador. [...] Não se trata de ter disposição: você é um operário como qualquer outro: se trata de ter horas de trabalho. Então, vá escrevendo, vá trabalhando sem disposição mesmo (Andrade & Sabino, 2003, p. 25, grifo do autor).
Sabino, apesar de se identificar com a figura do operário aludido por Mário, mostra-se reticente quanto ao modo como o amigo conduz a argumentação, considerando que ele “[...] exagera quando diz que a espontaneidade e a sinceridade do artista não importam em nada para a obra de arte. Penso que alguma coisa devem importar. Pelo menos influem” (Andrade & Sabino, 2003, p. 43). Diante da irresolução do jovem, então com 19 anos, Mário voltou ao tema na carta seguinte. Como contraexemplo, evocou o escritor “Olegário Mariano que jamais lê um livro ‘pra não se influenciar’” (Andrade & Sabino, 2003, p. 50, grifo do autor), explicando, na sequência, de onde provinha seu incômodo.
Tudo é porque não conceituam sinceridade nem espontaneidade. Sinceridade pra com o quê? Espontaneidade imediata ou posterior? [...] Sinceridade com o que a gente é ou com o que a gente tem a convicção que deve ser? [...] A sinceridade e a espontaneidade são coisas que se modificam constantemente, dia por dia. Têm de ser repudiadas como elementos conscientes da obra-de-arte que é artificial, arte fazer, arte feitura. Sinceridade, espontaneidade não pode ser elemento estético nem muito menos técnico! A sinceridade é, sem a gente querer. Como elementos conscientes da arte, sinceridade e espontaneidade só podem academismos, passadismos, preguiça e ignorância (Andrade & Sabino, 2003, p. 50).
Ao fim, assentindo quanto ao ponto defendido por Mário, Sabino acatou de bom grado a necessidade de seguir o plano estabelecido pelo tutor para se moderar quanto à escrita. Tal plano incluía alguns rituais que obstaculizariam o recurso ‘preguiçoso’ à criação espontânea.
Há um jeito humano da gente consertar essa tendência sorrateira [o comodismo]: a fixação de uma data comemorativa de sua grandeza de homem e de artista. Fixe uma data anual para o seu retiro espiritual [...] O que fiz este ano que passou? No que isso me acrescenta em minha obra ou a prejudica? O que preciso fazer este ano próximo? No que devo me complementar? Afinal das contas estou lhe dizendo coisas banais, que, aos banais, parece estar cheirando a confessionário (Andrade & Sabino, 2003, p. 35).
Anos mais tarde, em uma das últimas cartas da correspondência entre os dois escritores, Sabino demonstrou que a prática descrita por Mário, fosse ou não pelo conselho do mais velho, participava de sua vida de escritor com bastante destaque.
Olha, Mário, eu fiz 21 anos outro dia, com um vastíssimo exame de consciência, botei as coisas nos lugares. [...] fiz uma coisa que foi como arrumar uma estante desarranjada, tirar os livros todos e depois ir botando um por um no seu lugar. Trancado sozinho num quarto procurei durante horas seguidas de silêncio e solidão atingir um desapego e uma humildade absoluta (Andrade & Sabino, 2003, p. 188).
Além dos rituais contra a falta de reflexividade própria à escrita espontânea, o plano sugerido por Mário a Sabino incluía ainda um conjunto indefinido de leituras, para o qual o mestre sugeria alguns critérios de seleção.
Pois o que eu acho, em principal, é que você estabeleça um plano de leitura e siga contra tudo e contra todos. Os dois critérios principais, creio (nunca pensei muito no caso), devem ser esses:
1º Leituras imprescindíveis para a dignidade do intelectual.
2º O critério da proximidade:
Proximidade do ser social (suas tendências políticas, religiosas e outras)
Proximidade do ser individual (suas tendências e gestos e idéias de artista)
Proximidade do ser vital (em princípio a arte atual deve interessar mais que a do passado)
Proximidade do ser étnico (em princípio a literatura brasileira deve interessar mais que a portuguesa, esta mais que a espanhola, a latina mais que a germânica, a européia mais que a chinesa) (Andrade & Sabino, 2003, p. 53).
A mesma argumentação contra a espontaneidade voltou a aparecer dois anos mais tarde em comunicação de Mário com dois pupilos de gerações anteriores à de Sabino - Guilherme de Figueiredo e Carlos Drummond de Andrade -, dando mostras de que não se tratava de um tema circunscrito ao diálogo com o literato mineiro.
Si a gente tem técnica, e eu tenho, fiz tudo para ter, e faço, e tenho desprezo e quase nojo dos que não têm técnica e xingo eles de desonestos: quem tem técnica de verdade sabe como esta se incorpora ao artista de tal maneira que se torna ele tanto como a ideia e o dedo da mão. A técnica é uma espontaneidade adquirida (Andrade, 1989, p. 106).
Haverá coisa mais sinceramente espontânea do que a correção quando surge? É conhecido o caso de Musset corrigindo a rima [que estava certa...], só pra irritar o mestre Vitor Hugo que detestava as rimas pobres. Haverá coisa mais lírica, mais espontânea que isso! (Andrade & Andrade, 2002, p. 527).
Como consequência, temos que a escrita, para Mário e seus convivas, já não buscava a expressão máxima do sujeito, fazendo da obra uma representação da interioridade do escritor. Para eles, a escrita só poderia vir a existir pela crítica ou pelo afastamento do escritor do que lhe era mais íntimo e imediato. Em outras palavras, não seria bem-sucedida a obra que mais se aproximasse do que o escritor supostamente sentisse, mas aquela que mais modificasse o quelhe constituía como sujeito.
Centrada na figura de Mário de Andrade, a experiência formativa dos jovens, cujas cartas foram aqui analisadas, denota o esforço comum em direção a um afastamento daquilo que fora vivenciado pelos literatos do século XIX em seu encontro com o ofício da escrita. Tomado como referência negativa por Mário, Machado de Assis desempenhou papel de contraexemplo no estabelecimento de uma relação com o fazer escritural, de modo a apartar os iniciantes da frieza técnica que redundaria tão somente em “[...] obras-primas de caráter acadêmico [...]”, nas quais, contudo, “[...] a perfeição se isola na infecunda tristeza da imobilidade” (Andrade, 1993, p. 68). Em lugar de um gesto escritural governado pela produtividade literária, o poeta paulista sustentou outro savoirfaire, moderado pela funcionalidade que este assumiria na vida dos literatos em formação, conclamando uma escrita, de certo modo, desobrigada da obra: escrever sem objeto nem largada, senão com o intuito de transformar aquele que escreve.
Referido deslocamento, por sua vez, veio romper com a lógica literária canônica - fundada na assertiva da transitoriedade do autor em face da obra -, visto instaurar uma esfera subjetivadora da escrita, na qual não seria o escritor, mas o escrito que pereceria. Desponta, assim, algo como uma ‘escrita intransitiva’, não condicionada à conclusão de um texto literário. De modo invertido, se houvesse obra que importasse a tais interlocutores, estase consubstanciaria na transformação ética do próprio escritor, e não na apuração de seus escritos.
Para tanto, quer-nos parecer, delegou-se aos escritores em formação a atribuição de abrirem mão de ideais literários e de uma alegada ‘verdade’ espontânea que lhes definiria, em favor de um intenso trabalho sobre si próprios, doravante em torno de outra modalidade de veridicção, esta artificiosa e fundada na escrita contínua, assim preconizada por Mário (Andrade & Sabino, 2003, p.213, grifo do autor): “Leve três anos pra escrever o seu romance novo. Ou cinco. Não faz mal. Mas adquira pelo sofrimento perfeito da análise da vida e dos ‘seus’ autores uma coisa muito mais nobre que a espontaneidade e muito mais espiritual que a sinceridade: a convicção”.
Tratava-se, portanto, de reorientar o vínculo entre os modos de subjetivação e a própria natureza do ofício escritural, apontando para um não apaziguamento na relação do indivíduo consigo próprio. Antes, este abarcaria um enfrentamento de si próprio que forçosamente o afastaria do ponto em que se iniciara a escrita, vendo-se intrinsecamente transformado ao fim do percurso.
Nesse embate, restava ao mestre a responsabilidade de vetar aos jovens o apego condescendente a um ideal de sucesso, bem como à fixidez dele decorrente. Mantinha-se, assim, o caminho aberto a uma experimentação contínua de si próprios. Dito de outra maneira, fazer escrever seria a função precípua do preceptor epistolar na experiência em foco, para que, assim, a escrita assumisse o papel de elo permanente entre o sujeito escrevente e sua verdade, ambos em permanente construção. Foi esse imperativo que enlaçou a formação dos iniciantes a uma ética de insatisfação em face daquilo que já traziam consolidado, impondo-lhes a tarefa da escrita perene, resumida no complemento do conselho enviado a Sabino na carta de 6 de janeiro de 1945, a última trocada entre os dois: “Sempre a sério, se esbofe, não economize nada, gaste tudo, jogue todas as suas cartas na mesa e não blefe. E si o livro não sair bom, diga: perdi. E comece outra partida. Porém no livro defeituoso ou fracassado você terá um caminho” (Andrade & Sabino, 2003, p. 212).
Em consequência desse tipo de arranjo entre mestre e discípulo, o labor escritural viu-se arrastado à condição de operador formativo não mais em favor de um jogo de apreensão-expressão dos sentimentos, das ideias e das percepções do indivíduo que escreve. Diversamente, o efeito pretendido com a escrita passa a ser o de uma experiência questionadora das verdades que haviam constituído o sujeito, num jogo especular em que ele próprio deveria ocupar o lugar do parresiasta que enuncia um discurso franco e destemido, visando à transformação do interlocutor.
Tal modo formativo, ‘psicagógico’ por excelência, buscou apartar o escritor do plano imediato da pedagogia e do conhecimento de si. A partir de Mário de Andrade e de suas ‘cartas de formação’, as duas ideias - escrita como expressão de si mesmo e como afastamentode si mesmo - passam a coexistir, é certo, tanto nas discussões entre os literatos quanto, em alguma medida, naquelas encabeçadas pelos estudiosos do campo literário. Resta, contudo, a tarefa de aprofundar tal discussão no campo educacional propriamente, investigando mais amplamente o possível impacto de tal coexistência, para além do perímetro literário,nas experiências formativas atuais.