ARTIGOS
Recepção: 04 Fevereiro 2017
Aprovação: 28 Junho 2017
Resumo: O objetivo do artigo é apresentar parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado em Educação, na qual defendemos que o ‘programa institucional’ do Colégio Pedro II passou por uma crise que culminou na perda do seu caráter de instituição padrão para o ensino secundário brasileiro. O recorte temporal adotado é o período entre 1931 e 1945, marcado pelas Reformas Campos e Capanema, que consolidaram o processo de institucionalização do ensino secundário brasileiro. O principal referencial teórico adotado foi Dubet (2002), que construiu a noção de ‘programa institucional’. A metodologia utilizada foi a análise da legislação sobre o sistema educacional do período e das fontes encontradas no Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II e no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas.
Palavras-chave: Colégio Pedro II, programa institucional, ensino secundário.
Abstract: The aim of this article is to show some results of a doctoral research in Education, in which we defend that the ‘institutional program’ of the Colégio Pedro II went through a crisis that culminated in the loss of its patronage. The time cut adopted is the period between 1931 and 1945, marked by the Campos and Capanema Reforms, which consolidated the process of institutionalization of Brazilian secondary education. The main theoretical reference was Dubet (2002), who built the notion of ‘institutional program’. The methodology used was the analysis of the legislation on the educational system and the sources found in the Documentation and Memory Nucleus of the Colégio Pedro II and in the Center for Research and Documentation of Contemporary History of Brazil of the Fundação Getúlio Vargas.
Keywords: Colégio Pedro II, institutional program, secondary teaching.
Resumen: El trabajo tuvo como objetivo analizar y presentar una parte de los resultados provenientes de una investigación de doctorado en Educación, cuya defesa era que la crisis en el ‘programa institucional’ del Colégio Pedro II provocó la pierda del carácter modelar de la institución. Se investigó en el estudio el periodo entre 1931 y 1945, marcado por las Reformas Campos y Capanema, responsables por consolidar el proceso de institucionalización de la enseñanza secundaria brasileña. El principal referencial teórico elegido fue Dubet (2002), y el concepto desarrollado por el autor de ‘programa institucional’. La metodología utilizada fue el análisis de la legislación relacionada al sistema educativo del periodo y de las fuentes encontradas en el Núcleo de Documentación y Memoria del Colégio Pedro II y en el Centro de Pesquisa y Documentación de Historia Contemporánea de la Fundação Getúlio Vargas.
Palabras Clave: Colégio Pedro II, programa institucional, enseñanza secundaria.
Introdução
Este artigo tem origem em resultados parciais de uma pesquisa de doutoramento, cujos objetivos foram conhecer e compreender aspectos da construção da identidade profissional dos professores do Colégio Pedro II, entre 1925 e 1945. Esse período, marcado pelas Reformas Rocha Vaz (Brasil, 1925), Francisco Campos e Gustavo Capanema, é considerado por Nagle (1974) e Silva (1969) como de consolidação da institucionalização do ensino secundário no Brasil. Nessa pesquisa, em diálogo com referenciais teóricos da história da educação, da história da profissão docente e da sociologia das profissões, buscamos entender como os professores do Colégio Pedro II construíram suas trajetórias profissionais. Embora a pesquisa original tenha o ano de 1925 como recorte inicial, neste artigo optamos pela Reforma Campos, de 1931, como marco inicial por entendermos que a crise mencionada no título se desenvolve a partir desse momento.
A análise foi desenvolvida com base no diálogo com as contribuições do sociólogo francês François Dubet (2002). Em seu livro Le declin de l’institution, - o autor se dedica às profissões vinculadas à educação, à saúde e ao serviço social e postula que essas profissões remetem ao ‘trabalho sobre o outro’. Ou seja, remete a “[...] atividades assalariadas, profissionais e reconhecidas que visam explicitamente a transformar o outro [...]” ou ao “[...] conjunto das atividades profissionais que participam da socialização dos indivíduos” (Dubet, 2002, p. 17).
Segundo Dubet (2002), a profissão docente, em sua essência, é caracterizada como um trabalho sobre o outro, isto é, um trabalho de mediação entre os valores e princípios universais e os indivíduos particulares, com o objetivo de transformá-los. Esse trabalho é exercido como um ‘programa institucional’, que se consubstancia em uma atividade de socialização orientada diretamente por valores e princípios no sentido da construção de um ‘tipo ideal’. A categoria proposta por Dubet, de ‘trabalho sobre o outro’, além de parecer explicativa de certas especificidades da profissão docente, é particularmente sugestiva: abordando particularmente a situação francesa, o autor estabelece uma diferenciação entre os professores primários (instituteurs) e os professores secundários (professeurs). Partindo do pressuposto de que o ‘trabalho sobre o outro’, em suas origens, foi concebido como um ‘programa institucional’, que designa particularmente um modo de socialização ou um tipo de ‘relação com o outro’, o autor estabelece distinções entre a forma como se configurou o trabalho do professor primário e o do ensino secundário. O ‘programa institucional’ é entendido como um processo social que “[...] transforma valores e princípios em ação e em subjetividade através de um trabalho profissional específico e organizado” (Dubet, 2002, p. 24). O funcionamento do ‘programa institucional’ faz apelo a um tipo específico de profissionalismo que supõe uma vocação, na medida em que a competência e a legitimidade profissionais não se restringem às dimensões exclusivamente técnicas e instrumentais, mas também se faz pela adesão a um sistema de valores, incorporado na própria identidade profissional. No quadro do ‘programa institucional’, o professor se beneficia de uma ‘autoridade carismática’, na medida em que repousa em uma legitimidade transcendente (Canário, 2005).
Segundo Canário (2005, p. 65), a escola, como instituição, comunga do paradoxo fundamental que atravessa as várias modalidades do ‘programa institucional’. Esse paradoxo consiste em promover uma ação socializadora que encara os destinatários, ao mesmo tempo, como objetos e como sujeitos da socialização. Como se refere Dubet, é nessa duplicidade que reside a “[...] verdadeira magia do programa institucional [...]” que produz, simultaneamente, “[...] um ator conforme as normas e as regras sociais e um sujeito senhor de si próprio” (Dubet, 2002, p. 35). O ‘programa institucional’, mais do que um processo de imposição coercitiva de regras, deve ser encarado como um tipo particular de relação social. Dubet (2002) ressalta o fato de que mudanças nesse ‘programa institucional’ condicionam mudanças na percepção que os professores possuem de seu trabalho docente e, consequentemente, da sua própria identidade profissional.
O Colégio Pedro II, primeira instituição brasileira de ensino secundário, fundada em 1837, conservou o caráter de instituição padrão para essa modalidade de ensino até meados do século XX e permanece mantida pelo governo federal nos dias atuais. Neste artigo, apresentamos aspectos que nos levaram a defender que o programa institucional desse colégio passou por uma crise que teve início com as determinações da Reforma Campos.
As fontes analisadas foram os livros de atas da Congregação do Colégio Pedro II; regulamentos e decretos relativos às reformas educacionais e às mudanças internas do Colégio Pedro II; relatórios elaborados pelos diretores do Colégio Pedro II e encaminhados aos ministros da Educação e Saúde Pública; livros didáticos elaborados pelos docentes e adotados pelo Colégio Pedro II; anuários; almanaques de pessoal docente e administrativo, dentre outros. Esses documentos estão disponíveis no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (FGV/CPDOC), no Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM) e no Portal da Câmara dos Deputados.
A Reforma Campos e o início da crise
A Reforma Campos, Decreto nº 19.890 de 1931, determinou que o corpo docente do Colégio Pedro II devia ser composto apenas por professores ‘catedráticos’1 e ‘auxiliares de ensino’2 (Brasil, 1931). No ano seguinte, o Decreto nº 21.241, que instituiu dispositivos de consolidação da Reforma do ensino secundário, estabeleceu que o corpo docente do Colégio Pedro II se constituiria por professores catedráticos, professores contratados e auxiliares do ensino (Brasil, 1932).
Os professores catedráticos do Colégio Pedro II permaneceram nomeados por decreto do Governo Federal, mas deveriam também ser escolhidos entre diplomados pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras mediante concurso de provas e títulos. O concurso deveria ser realizado de acordo com instruções oportunamente expedidas pelo Ministro da Educação e Saúde Pública.
Enquanto não houvesse diplomados pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras, que deveria ser criada, o cargo de professor do Colégio Pedro II seria provido por concursos, nas condições estabelecidas para a escolha dos catedráticos dos institutos de ensino superior, devendo os três membros da comissão examinadora estranhos à Congregação ser indicados pelo Conselho Nacional de Educação. O professor seria nomeado por 10 anos, findos os quais, sendo candidato à recondução no cargo, haveria novo concurso a que só poderiam concorrer, além dele, professores de outros estabelecimentos de ensino secundário e cuja nomeação também tivesse sido feita mediante concurso. O julgamento deveria ser feito por uma comissão e compreendia a apreciação de publicações originais ou didáticas e quaisquer outros trabalhos científicos ou literários apresentados pelos candidatos. Se o professor cujo mandato terminasse não fosse candidato à recondução, o concurso seria de títulos e provas. Dias (2008, p. 189) considera importante esse aspecto referente ao estatuto profissional dos professores catedráticos porque, segundo a autora, trata-se aqui da ‘extinção da vitaliciedade no cargo’. Entretanto, não encontramos elementos que nos permitam afirmar que o fim da vitaliciedade das cátedras tenha ocorrido na prática.
Em consulta às atas de reuniões da Congregação no período entre 1933 e 1937, pudemos apurar a ocorrência de um dos debates mais polêmicos, motivado pelo fato de a Reforma Campos ter tirado dos professores a atribuição de redigir os programas. Estes passaram a ser revistos de 3 em 3 anos por uma comissão designada pelo Ministro, à qual eram submetidas as propostas elaboradas pela Congregação. Nessas condições, foi sugerido que cada professor apresentasse um programa da matéria de sua cátedra, o qual seria examinado pela Congregação e apresentado ao governo. Assim, nas reuniões, as discussões sobre os programas permaneciam acaloradas. Diante da insatisfação dos professores, foi definida uma comissão para tratar do assunto com o governo.
O período foi marcado também por polêmicas relacionadas a outros concursos, principalmente o de Matemática, Português, Química e Latim. Para este último, Nelson Romero fora aprovado e nomeado. Tais polêmicas tinham a ver com irregularidades ou ilegalidades praticadas nos julgamentos dos concursos ou com a nomeação pelo Governo de bancas estranhas ao Colégio, fato que também causava grande insatisfação entre os professores. Dito de outra forma, os professores catedráticos perderam o poder de definir as bancas dos concursos. Além disso, as cadeiras de Inglês, Francês e Alemão se encontravam vagas em 1935. Dois anos depois, essa situação ainda perdurava. Atuavam nelas professores contratados que não podiam ser ‘indefinidamente provados’ nas cadeiras. Alguns membros da Congregação encaminharam à mesa proposta para que essas cadeiras fossem colocadas em concurso.
Em 1934, houve uma tentativa de municipalizar o Colégio Pedro II. Os professores, contrários, reagiram a essa tentativa dirigindo uma moção à ‘opinião culta do Brasil’. Em sessão de 19 de maio de 1934, a ‘Moção dirigida à opinião culta do Brasil’ foi aprovada em reunião da Congregação do Colégio Pedro II, por unanimidade de votos.
Na ‘Moção dirigida à opinião culta do Brasil’, os professores do Colégio estavam cientes da apresentação à Assembleia Nacional Constituinte de uma emenda ao projeto da Constituição, a qual se fosse aceita pela Assembleia, determinaria a transferência do mesmo Colégio para a jurisdição da Municipalidade do Distrito Federal. Por isso, apresentaram à ‘opinião culta do país’ um protesto contra essa medida que, no entendimento dos professores, equivalia ao que chamaram de “[...] um golpe funesto às prerrogativas, à tradição, aos direitos que o Instituto onde exercemos nossa atividade logrou conquistar após quase um século de grandes serviços prestados à cultura de humanidades no Brasil” (Pereira, 1937, p. 20).
Os professores ressaltaram que não tinham sido induzidos a formular tal protesto por qualquer cogitação relativa aos interesses de ordem política regional que tinham inspirado os autores e propugnadores da emenda. Alegavam eles que desejavam o progresso, a eficácia, a seriedade do ensino no país e conheciam o estado precário em que funcionavam - salvo raras exceções - os estabelecimentos estaduais, apesar da vigência da lei federal e da inspeção a que se encontravam sujeitos.
Os professores lamentavam o que poderia acontecer quando essa providência se tornasse lei constitucional da República, que deixaria “[...] à mercê do regionalismo todo um ramo de educação que tamanha influência deveria ter na formação cívica e cultural do povo brasileiro” (Pereira, 1937, p. 20).
Entendiam também que semelhante medida poderia desencadear o surto imediato de novas correntes regionalistas, cuja consequência natural seria o enfraquecimento do espírito de nacionalidade considerado por eles como um dos fatores essenciais da coesão do povo brasileiro:
Estamos certos de que a sabedoria e o patriotismo dos futuros brasileiros saberão evitar em tempo a realização desses penosos vaticínios, revogando a medida ora proposta - se lei vier a ser - antes que produza o mal de que é capaz. Entretanto, movidos pelo amor que consagramos ao Colégio Pedro II, e secundando o clamor que já irrompeu do entusiasmo da mocidade, protestamos contra a ameaça que paira sobre o tradicional instituto, que se pretende, na melhor hipótese, reduzir à condição de simples dependência no complexo mecanismo do ensino municipal deste Distrito. Não se veja neste gesto uma deselegância de nossa parte para com a Municipalidade do Distrito Federal. O principal Instituto de ensino secundário mantido pelos poderes locais tem merecido destes um tratamento carinhoso e acha-se dotado de condições materiais primorosas3. Há entre os professores do Pedro II, alguns que o são também de estabelecimentos municipais, com o que muito honrados se sentem. Mas isso não impede que ergamos o nosso protesto porque não nos parece justo privar o Colégio Pedro II de seu caráter de instituto nacional, caráter que os nossos maiores lhe deram e que se consolidou definitivamente ao cabo de um século de profícuo e honesto labor - Moção lida em reunião da Congregação do Colégio Pedro II realizada em maio de 1934 (Pereira, 1937).
O Colégio Pedro II era visto pelos professores como um ‘patrimônio da Nação’; patrimônio jurídico, patrimônio moral, patrimônio cultural e cívico. Os professores tinham medo de que esse patrimônio fosse destruído. Para evitar que qualquer medida, bem intencionada ou não, viesse a ferir o que era considerado um ‘padrão da cultura brasileira’, os professores apelaram para a consciência dos ‘brasileiros cultos’ (Pereira, 1937).
A moção foi assinada por Raja Gabaglia, Euclides Roxo, Escragnolle Dória, Almeida Lisboa, J. Accioli, Eduardo Badaró, Agliberto Xavier, Oliveira de Menezes, Lafayette R. Pereira, Honório Silvestre, Antenor Nascentes, Cecil Thiré, Pedro do Coutto, José Oiticica, Waldomiro Potsch, Othelo Reis, C. Delgado de Carvalho, Hahnemann Guimarães, Quintino do Valle, J. B. Mello e Souza, Jonathas Serrano, George Sumner, Adrien Delpech, Benedicto Raymundo, Enoch da Rocha Lima, J. de Sá Roriz, Alcino J. Chavantes Junior e Octacílio A. Pereira, Secretário da Congregação. Philadelpho Azevedo contribuiu ao redigir a conclusão da moção, especificamente no que dizia respeito ao Colégio Pedro II.
Como desfecho dessa situação, está registrado nas atas que a Assembleia Nacional Constituinte, por maioria, havia aprovado o regime de ensino preconizado pelos membros da Congregação. O Presidente da Congregação chegou a propor que telegramas fossem dirigidos à Assembleia, na pessoa de seu Presidente e de dois deputados, dentre eles, Henrique Dodsworth4, manifestando o agradecimento do Colégio pela aprovação das disposições que iam figurar na Constituição do Brasil. Esse fato pode ser visto como uma demonstração do poder político que os professores do Colégio, membros da Congregação, possuíam naquele contexto e do apoio que receberam da imprensa. Por outro lado, a tentativa de municipalização também pode ser vista como consequência de um programa institucional em crise.
Torna-se necessário pontuar que as formas de controle estabelecidas no Colégio Pedro II e, por meio dele, como instituição de referência, padrão para outras instituições, ocorria pela via dos programas e dos manuais das disciplinas escolares elaborados por seus professores. Por outro lado, embora também tenha perdido atribuições, seu corpo docente buscou incorporar, no período investigado, uma série de privilégios que não se estenderam às demais instituições de ensino secundário. O corpo docente do Colégio Pedro II se fechou em si mesmo, pois, embora exercesse o controle, a subcategoria dos demais professores secundários organizou-se fora do Colégio, com base em outros padrões e paradigmas. Não é gratuito que, diferentemente do que aconteceu com os professores primários, a primeira organização sindical dos professores secundários tenha nascido dos professores da esfera privada, o Sindicato dos Professores do Ensino Secundário do Rio de Janeiro, criado em 1931. Dito de outra forma, existia uma dualidade na relação do Colégio com o contexto externo, pois, ao mesmo tempo em que ficava acima do sistema que estava se instituindo, também ficava fora dele, pois o ensino secundário se organizou por fora do Colégio Pedro II.
Nesse sentido, também é possível vislumbrar a proposta de municipalização do Colégio Pedro II ocorrida em 1934 como uma tentativa de inseri-lo nesse sistema que estava se construindo por fora do Colégio. Cabe ressaltar que, paralelamente à tentativa de municipalização, encontramos na conjuntura histórica e política: a promulgação da Constituição em 16 de julho de 1934; a eleição indireta de Pedro Ernesto, que assumiu a Prefeitura do Distrito Federal; a transformação do Departamento Geral de Educação em Secretaria de Estado por Anísio Teixeira. No contexto em que o Colégio Pedro II se encontrava à parte, Anísio criticava a existência de um sistema federal e outro municipal, sem articulação. Tereza Fachada Levy Cardoso (2009) fornece-nos mais detalhes dessa crítica quando pontua que Anísio Teixeira, entendendo que cultura e trabalho eram inseparáveis, empreendeu uma reforma na qual, embora a ênfase estivesse no ensino secundário e na criação da Universidade do Distrito Federal, existia também o objetivo de unificar a legislação pertinente ao tema do ensino técnico, embaralhada entre a legislação federal e as locais. Seu propósito era criar instituições mistas, ou seja, com objetivos tirados de ambas as fontes legislativas, de forma a dar às escolas profissionais o mesmo prestígio social e público que desfrutava o ensino secundário. Segundo a autora, a escola secundária técnica atenderia aos anseios da Escola Nova.
Mendonça (2002, 2003) aprofunda esse debate ao analisar duas experiências diferenciadas de formação de professores para a escola secundária durante os anos 1930 no Rio de Janeiro: a Escola de Educação da Universidade do Distrito Federal (UDF), criada em 1935 por iniciativa de Anísio Teixeira, na época Secretário de Educação da Prefeitura do Distrito Federal, e a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, criada em 1939 por Gustavo Capanema. A autora demonstra que, mais do que o confronto entre essas duas experiências e que resultou no encerramento da primeira, estavam em disputa concepções radicalmente diferentes do papel e da destinação do ensino secundário. Tais concepções condicionavam as distintas propostas de formação de professores e se vinculavam a projetos divergentes de reconstrução nacional, via educação.
Outro documento investigado, escrito provavelmente entre 1937 e 1941, ou seja, entre o contexto de implementação e os primeiros anos de duração do Estado Novo, é de autoria de Jurandir Lodi5, membro do Gabinete Ministerial, ou de uma comissão por ele chefiada. Tal documento, considerado sigiloso pelo Ministro e encontrado no CPDOC/ FGV, contém uma abordagem da questão do Registro dos Professores e uma denúncia de que o Colégio não possuía material didático e instalações escolares em boas condições, o que provavelmente interferia no trabalho docente e, consequentemente, no processo de aprendizagem dos alunos:
As instalações escolares, se boas em determinadas cadeiras, em outras é inexistente por completo. Quanto ao material didático, abundante em cadeiras como a de Geografia, onde funcionavam até cursos da UDF, em outras cadeiras absolutamente não existia (Lodi, [1940])
Lodi se refere à precariedade e à insalubridade das instalações físicas e critica a acústica e a localização do prédio, que ficava próximo da Estação Central de trens, de indústrias e ruas movimentadas no centro do Distrito Federal, o que causava muito barulho e afetava o desenvolvimento das atividades escolares. Embora as salas estivessem pintadas e dotadas de quadro-negro, a iluminação, a salubridade, a acústica, o tamanho e o formato das mesmas não eram considerados ideais. Nesse sentido, constatou que o Colégio Pedro II não satisfazia nem à lei, nem às necessidades e aos imperativos da didática.
Os problemas não paravam por aí. Conforme Barros (2009), em 1937, ano de comemoração do centenário do Colégio Pedro II, a direção e os professores fizeram algumas reivindicações ao governo, mostrando que os problemas não eram poucos. Solicitavam a correção dos vencimentos, a ampliação do quadro docente, a solução de um problema considerado crônico, que era a situação dos ‘Professores Suplementares’ que passaram a ser chamados também de ‘Extranumerários’, isto é, professores contratados precariamente e que não faziam parte do quadro efetivo, além de verbas para obras de reparo urgentes. Contudo, o autor aponta que tais reivindicações não foram atendidas.
Segundo Barros (2009), em grande parte, o Colégio conseguiu manter o prestígio adquirido no período entre 1837, data da criação da instituição, até 1937 graças ao mérito dos professores que por ali passaram. Entretanto, parece que tal prestígio já não pesava para que o governo atendesse a tais reivindicações.
Foi possível constatar que, naquela época, dos 219 professores suplementares6 do Colégio Pedro II, 127, ou seja, mais da metade deles, não possuíam o registro; 77 encontravam-se registrados, mas o relator da fonte analisada não soube informar a situação de 15 professores com relação ao registro. Catedráticos e docentes livres, os quais totalizavam 50, eram isentos por lei de se registrar.
Observamos, portanto, que existia uma grande quantidade de professores, considerada ‘inexplicável’ pelo autor do documento investigado, mas indispensável para ocupar a atenção dos milhares de alunos matriculados no Colégio Pedro II naquela época. A situação se apresentava sob diversos aspectos, considerados ‘muito graves’ por Jurandir Lodi, para os quais era indispensável a atenção da administração, principalmente pelo fato de os professores suplementares serem selecionados por indicação dos diretores do Colégio.
Com relação à primeira metade dos anos 1940, analisamos as mudanças na legislação sobre o ensino secundário e sobre o corpo docente do Colégio Pedro II. Em 8 de março de 1940, o Decreto-Lei nº 2.075 (Brasil, 1940a) promoveu novas mudanças que impactaram o Colégio Pedro II, uma vez que abordava a regência de turmas suplementares nos estabelecimentos federais de ensino superior e secundário, dentre outras providências. Com o Decreto, tanto os diretores dos estabelecimentos federais de ensino superior quanto os do ensino secundário passaram obrigatoriamente a propor ao Ministro da Educação e Saúde, no decurso dos vinte dias anteriores ao início do primeiro período letivo, o trabalho que cada professor catedrático deveria realizar no ano escolar. Em tal proposta, deveria constar o nome do professor catedrático, o padrão de seu vencimento, a disciplina que ensinava e o número de alunos das turmas que iria lecionar.
Por sua vez, o Decreto-Lei nº 2.924 (Brasil, 1940b), de 30 de dezembro de 1940, determinou que o disposto no Decreto-Lei nº 2.779 (Brasil, 1940c), de 12 de novembro de 1940, referente à realização de concursos no ensino superior, fosse aplicado também aos estabelecimentos de ensino secundário. Assim, a Congregação do Colégio Pedro II, bem como as dos demais estabelecimentos de ensino secundário que não dispusessem de dois terços de professores catedráticos efetivos, deveria indicar professores catedráticos de estabelecimentos congêneres ou profissionais ‘de notório saber’ para fins de composição do mínimo legal para os atos relativos ao provimento de cátedras vagas. As indicações, em listas tríplices, todas justificadas, seriam feitas ao Ministro da Educação e Saúde, encarregado de fazer as designações para cada concurso a ser realizado. Dessa forma, os nomes designados participariam, com direito de voto, das sessões da Congregação relativas ao processo do concurso para o provimento da cátedra vaga.
Encontramos documentos datados do início dos anos 1940 que demonstram que a questão relativa aos vencimentos, que tanto incomodava os professores do Colégio, agravou-se ainda mais por conta de um episódio envolvendo o Ministro Gustavo Capanema.
O professor catedrático Nelson Romero, em carta encaminhada ao Ministro, a pretexto de uma conferência realizada em 7 de janeiro de 1941 no Palácio Tiradentes, sobre as realizações do Ministério da Educação e Saúde no decênio 1930-1940, referiu-se ao modo carinhoso como o Ministro sempre atendia os professores do Colégio Pedro II, prestigiando e honrando o Colégio na comemoração do seu centenário, acompanhando-o nos dias de suas alegrias, festas e auxiliando-o em suas dificuldades. Ressaltando a boa vontade do Ministro para com os professores do Colégio Pedro II, afirmou que as atenções recebidas nunca seriam esquecidas.
Entretanto, o verdadeiro motivo da carta era a necessidade de, tendo contribuído há 27 anos para formar gerações sucessivas de adolescentes, expressar o que considerou ‘um desabafo’. Afirmou Romero que não compreendia o ‘professor não-educador’ em seu magistério e que sempre procurara fazer com que seus alunos melhorassem, esforçando-se por lhes indicar ‘o caminho da retidão e da dignidade’, um aspecto da ‘identidade para si’ que norteava sua própria prática, enquanto professor do Colégio Pedro II. Pediu então licença para expor ao Ministro a estranheza com que tinha ouvido do mesmo, no Palácio Tiradentes, no dia anterior, a declaração pública de que os vencimentos dos professores secundários federais teriam sido aumentados.
Depois de reforçar sua estima pelo Ministro, afirmou que não entendera tal declaração, já que os Professores do Colégio Pedro II não haviam sido aumentados em seus vencimentos; pelo contrário estes teriam sido diminuídos. Os que estavam classificados na letra ‘L’ permaneceram na mesma posição, com um aumento desproporcionado de horas de serviço: de 6 horas semanais obrigatórias de aulas em 1939, tinham passado para 12 horas semanais em 1940 e a 18 de abril em 1941. Isso, com a mesma retribuição, como se o professor não tivesse necessidade de se preparar, além do trabalho da correção das provas escolares. Os cinco professores do Colégio Pedro II que estavam classificados na letra ‘K’7 e que haviam sido promovidos à letra ‘L’, também obtiveram aumento de 2 horas diárias de aulas. No regime anterior, com o desdobramento de turmas, conseguiam, se quisessem lecionar as suplementares, obter mais ou menos 1 conto e quinhentos mil réis, nessas duas horas de serviço acrescido; no regime de então, havia-lhes sido imposta a obrigatoriedade da prestação do trabalho, com a ‘simples remuneração’ de quatrocentos mil réis.
Finalizando a carta, Nelson Romero reiterou sua admiração pelas virtudes de Capanema, esperando que a declaração do Ministro houvesse de produzir o efeito desejado de corrigir a injustiça com que os Professores do Colégio Pedro II tinham sido tratados no que diz respeito ao aumento de vencimentos do magistério.
Foi encontrado no CPDOC/FGV um relatório (Lodi, [1940]), considerado sigiloso na época, provavelmente elaborado por algum funcionário ligado ao governo, no qual a situação do Colégio Pedro II foi classificada como ‘caótica’. Tal quadro vai de encontro às noções de ‘ordem’, ‘excelência’ e de ‘padrão’ construídas historicamente por professores, alunos e funcionários. Relatando fatos considerados de natureza grave, o autor do documento sugeriu medidas que poderiam contribuir para melhorar a situação do Colégio, uma vez que este, em suas palavras, ‘de padrão de ensino’ quase estava se transformando em ‘padrão de desordem e da desmoralização’.
Para o autor do relatório, o Colégio era naquele momento histórico ‘um ninho de descontentes com o Governo’. Nele se falava em alto e bom som contra o regime de ‘renovação do Brasil’, contra seus governantes, especialmente contra o Presidente Vargas e sua esposa. Qualquer fato servia aos professores para essa finalidade. O decreto do Governo sobre o aumento dos vencimentos provocara o que o delator classificou como ‘uma reação formidável e uma indignação inconcebível’ por causa do aumento de seis horas de serviço.
A efetividade nas cátedras gerava, em sua opinião, uma espécie de ‘independência absoluta’, de maneira que os catedráticos, ao invés de ser ‘instrumentos da juventude’ tornavam-se ‘elementos de dissolução e de desordem’. Segundo ele, “[...] bastava conviver dias no meio dos professores do Colégio-padrão (regiamente pagos pelo próprio Governo) para sentir, imediatamente, a repulsão deles por tudo quanto se diz respeito ao Governo”. Tal fato não aconteceria se os professores fossem contratados enquanto bem servissem em vez de submetidos aos concursos (nos quais nem sempre eram demonstradas as capacidades pedagógicas e didáticas), e, além disso, fossem submetidos a um regime de fiscalização efetiva. Continuava o autor:
Cumpre notar que o professor pode ser um dos grandes bens do Brasil, como também um dos grandes males do Brasil. O Colégio-padrão deveria ser o modelo absoluto de moralidade educacional, de patriotismo e de disciplina. No entanto, longe, muito longe está ele de tudo isso (Lodi, [1940]).
Ele denunciava também que os alunos frequentavam as aulas quando bem entendiam. Esse ato era chamado de ‘paredes’ e ocorria quando, por qualquer motivo, “[...] os alunos resolviam deixar de comparecer às aulas e assim o faziam sem que a direção do Colégio tomasse a menor providência, nem mesmo a de marcar ausência na pauta dos faltosos”. Havia professores que promoviam essas ‘paredes’, ameaçando os alunos com notas baixas para se livrar, em determinados dias, do serviço de aula. No turno da noite, essas ‘paredes’ atingiam o máximo, ou seja, provavelmente 100% de ausência e, no ano anterior, os alunos desse turno não tinham comparecido às provas parciais. Afirmava que, embora a lei fosse taxativa quanto à frequência, todos esses alunos haviam feito exames orais como se tivessem frequentado com regularidade. O resultado desse ‘nefasto’ relaxamento era, em sua opinião, ‘fácil de se conceber’.
Diante de tais fatos, o delator afirmou que havia a necessidade de se fazer uma distinção entre o Externato e o Internato8 do Colégio Pedro II, pois, neste último, onde o diretor era considerado um “[...] homem de responsabilidade e de moral funcional inatacável [...]”, a ordem era absoluta. Assim, nada do que dissera anteriormente se referia ao Internato do Colégio Pedro II, exceção feita aos ataques ao governo e ao regime, que eram considerados um mal geral de quase todos os catedráticos.
Com relação ao cotidiano escolar, o autor afirma que raramente o Diretor do Externato comparecia ao Colégio e que, quando comparecia, jamais fiscalizava as aulas. Isso gerava nos subalternos um descanso natural por seus próprios deveres de inspetores e professores. Havia também Professores Catedráticos que sistematicamente não davam aulas. No entanto, a direção não lhes atribuía faltas, de maneira que, no fim do mês, eles recebiam o ordenado integral, o que era “[...] um verdadeiro rombo nos cofres públicos e um desestímulo aos que cumpriam religiosamente com os próprios deveres”.
Para legitimar sua denúncia, o autor se referiu aos próprios alunos: “Os alunos do curso complementar9 de Direito, no ano de 1940, passaram às vezes, semanas inteiras com pouquíssimas aulas”. Compareciam às aulas quase que somente os professores catedráticos interinos e os contratados, chamados ‘professores suplementares’. Os exames, que, em outros tempos, eram levados a sério, passaram a ser ‘uma verdadeira palhaçada’, segundo o autor. Nos últimos exames orais, quase todas as bancas haviam aprovado sistematicamente até mesmo os alunos que tinham ‘completa ignorância da matéria’. Raras bancas tinham funcionado completas. Sempre algum dos componentes faltava ou chegava na hora que bem entendia. As provas parciais eram, para o autor do documento, ‘fatos de desmoralização’. O ‘regime de cola’ era o normal. O autor criticou também o que chamava de ‘influência dos judeus no Colégio’, determinando a suspensão dos trabalhos escolares nos dias de festas de israelitas, o que ia de encontro à lei que vigorava naquele momento histórico. Por fim, denunciou outro foco de desmoralização: ‘a falta de moral de alguns professores’. Segundo o autor, existia no Colégio um número relativamente grande de professores que abusavam dos alunos, abertamente conhecidos. O Diretor do Externato, segundo o autor, sabia muito bem disso e não tomava providências porque alguns dos que praticavam os abusos eram detentores de grande influência em seu gabinete.
Tudo isso teria culminado em um fato público gravíssimo, que demonstrava as consequências do que chamou de ‘pequenas desordens diárias’. Referiu-se o autor a uma vaia pública, dada das janelas do Colégio-Padrão-Oficial, a um Batalhão de Cadetes do Exército, em formatura com a bandeira nacional à frente. Mais uma vez, ele acusou o Diretor do Externato de, apesar da gravidade, não tomar providência eficiente: o professor que tinha faltado à aula não fora suspenso, o inspetor que deveria estar tomando conta dos alunos foi apenas transferido de uma sala para outra e os alunos, que puderam terminar o ano no Colégio, foram impedidos de voltar no ano seguinte.
No mesmo relatório, o autor encaminhou sugestões ao Ministro para ‘extirpar’ os ‘males’, que já estariam ‘bastante enraizados’. Algumas de suas sugestões podem ser consideradas rígidas, rigorosas, reacionárias e antidemocráticas, mas devem ser analisadas conforme o contexto histórico em que o documento foi redigido.
Da perspectiva do autor, seria necessário, em primeiro lugar, aposentar de maneira forçada alguns elementos para os quais não havia ‘esperança ou remédio’. Depois, mudar a direção no Externato: sem tal medida, qualquer outra seria inútil, pois a direção, que seria a única responsável por todos os fatos mencionados, não se preocupava em fiscalizar coisa alguma. A Congregação também deveria ser extinta, pois era um ‘ranço de política velha e uma verdadeira inutilidade’. Outra sugestão foi a abolição dos concursos. Em primeiro lugar, o professorado, principalmente o secundário, que era formador da juventude, deveria ser entendido quase como um cargo de confiança do Governo; não podia, pois, ser preenchido efetivamente por um indivíduo que, firmado na própria efetividade, aproveitava a cátedra para fazer guerra ao Governo. Em segundo lugar, segundo ele, estava “[...] provado pelos fatos que os professores catedráticos efetivos, uma vez conquistada a cátedra, jamais se preocupam com os estudos ou com as aulas, salvo naturalmente honrosas exceções”. Verídica ou não, esta última denúncia permite-nos cogitar que, pelo menos para alguns catedráticos, o trabalho burocrático realizado dentro e fora das reuniões da Congregação teria se tornado uma estratégia para se livrar do trabalho em sala de aula. A linha tênue entre a possibilidade de o trabalho burocrático impedir os catedráticos de dar aulas naquela época e a de ser uma fuga deliberada da sala de aula por parte desta categoria precisa ser mais bem investigada.
O único regime eficiente, na opinião do autor, seria o de estágio por contratos renováveis de cinco em cinco anos, como ocorria na América do Norte: ‘por contrato enquanto bem servir’. Entretanto, não bastaria contratar elementos capazes; seria necessário o que chamou de ‘fiscalização verdadeira e não platônica’. Além disso, nesses contratos, o Governo deveria exigir do professor, no primeiro quinquênio, em que a fiscalização seria rigorosa, a apresentação de dois trabalhos, um didático e outro científico sobre a matéria que o professor ensinasse. Isso resultaria no aumento do ‘patriotismo literário’ e seria ao mesmo tempo um estímulo e uma obrigação de estudo contínuo para o professor contratado. A efetividade era, segundo o delator, ‘a morte do bom professor’.
Em sua sugestão, a fiscalização rigorosa dos catedráticos a ser feita pelo Diretor abrangeria os seguintes pontos: a) pontualidade e assiduidade nas aulas; b) modo como as aulas seriam dadas; c) execução do programa e dos exercícios escolares; d) moral do professor dentro e fora do Colégio Pedro II; e) notas atribuídas aos alunos, quer nas avaliações mensais, quer nas provas parciais e orais. O autor sugeria também a criação de um quadro de professores suplementares para evitar que estes fossem recrutados anualmente, muitas vezes, entre elementos ‘sem moral e sem competência’, como ocorria nos ‘concursos de títulos’. Tais professores suplementares deveriam ser fiscalizados efetivamente pelos professores catedráticos.
Portanto, se estabelecermos uma comparação entre este relatório e o de Jurandir Lodi, discutido anteriormente, percebemos visões distintas. Enquanto Lodi combatia o número excessivo de alunos matriculados, criticava o elevado número de professores suplementares e preferia que todos os alunos ficassem a cargo dos professores catedráticos para que o Colégio retornasse aos padrões do bom funcionamento, no último relatório analisado, de autoria anônima, encontramos críticas às cátedras, a sugestão da adoção do regime de estágio por contratos renováveis e a defesa de um quadro de professores suplementares.
O autor anônimo acreditava ainda que era necessário descontar em folha de pagamento toda e qualquer falta às aulas, tanto a dos catedráticos. quanto a dos demais professores e inspetores. Só assim se poderia conseguir a moralidade necessária, pois a direção perdoava todas as faltas, principalmente a dos professores catedráticos.
Desejava também que fosse criado um cargo de Diretor em comissão, com um ordenado compensador e sem obrigação de aulas, caso fosse eleito um professor do Colégio, para que esse Diretor fiscalizasse de fato os trabalhos escolares. Todas essas modificações e organizações sugeridas caberiam ao Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP)10.
Não foram encontrados documentos específicos sobre a repercussão desse relatório junto ao Ministério. O referido relatório também pode ter sido elaborado por pessoas interessadas em prejudicar a imagem da instituição por algum motivo, mas é necessário ressaltar que existem documentos que vão no sentido contrário ao da exaltação ao Colégio Pedro II e narram fatos que podem ter contribuído para a crise de seu programa institucional.
Foi observado que o Colégio Pedro II não é citado no texto da Lei Orgânica do Ensino Secundário, também conhecida como Reforma Capanema, promulgada em 1942 (Brasil, 1942). Para Massunaga (1989, p. 135 e 136), do ponto de vista legal, o Colégio não era mais considerado padrão, embora isso não significasse que o Ministro Gustavo Capanema tivesse abandonado um de seus principais objetivos, qual seja, o de uniformizar o ensino secundário. Não havia lugar para manter o Colégio como referência no contexto em que se desejava implementar uma nova ordem política e social fundada em um regime autoritário, centralizador de poderes e de decisões. Massunaga (1989, p. 147), tendo entrevistado um professor que vivenciou esse período, revela que “Capanema mostrava uma certa má vontade com relação ao Colégio”. Entretanto, essa situação parece ocorrer nos bastidores: “[...] no plano das relações formais e no trato público, [...] durante o tempo em que se mantém à frente do Ministério, Capanema conserva relações respeitosas, de formal cordialidade e comparece ao Colégio em diversas ocasiões” (Massunaga, 1989, p. 147).
Na reunião da Congregação realizada em 17 de agosto de 1945, Nelson Romero leu o esboço de um projeto para que os catedráticos do Colégio tivessem tratamento igual ao dos catedráticos das Escolas Superiores. A luta por esse status também é um indício da crise, pois aponta para a desvalorização dos catedráticos do Colégio em relação aos do ensino superior. Um desdobramento dessa última questão só foi encontrado na ata da reunião de 5 de outubro, quando o Presidente Raja Gabaglia comunicou que ele e o professor Aciolli tiveram um encontro com o General Mendes de Moraes, cuja visita havia trazido ‘ótima impressão’ acerca do que se pretendia realizar em termos de aumento de vencimentos do funcionalismo público. Com relação ao desejo de equiparação dos professores do Colégio Pedro II aos do magistério superior, o General se ofereceu para encaminhar aos ‘poderes competentes’ o memorial que os membros da Congregação achassem conveniente endereçar. Clóvis Monteiro, Nelson Romero, George Sumner, Roberto Aciolli e Raja Gabaglia foram designados para escrever o memorial (Colégio Pedro II, 1934-1946).
Considerações Finais
As tensões referentes à produção discursiva que tentou edificar o programa institucional socializador do Colégio Pedro II foram percebidas tanto nos discursos dos diretores presentes nos relatórios quanto nas atas das reuniões da Congregação que foram examinadas. Como aponta Dias (2008), a estratégia de produzir as atas, cumprindo o Regimento Interno do Colégio, pode ter sido uma maneira de ocultar a existência, nas reuniões, de procedimentos estranhos às regras. Entretanto, ainda que nem tudo tenha sido registrado nas atas, encontramos indícios e pistas de resistências que mostram que o programa institucional não estava isento de conflitos, contradições e tensões. As tensões entre o programa institucional que se desejava instituir e o que se desejava deixar como memória, bem como os conflitos e as relações de poder aparecem de diferentes formas nas reuniões da Congregação, seja na falta de apoio dos diretores em determinadas questões, se na daqueles que se retiraram e preferiram não participar das votações, nas moções, nos votos, dentre outras manifestações.
O programa institucional começou a ser contestado e a entrar em crise à medida que alguns dos poderes que os professores do Colégio detinham na segunda metade dos anos 1920, como os de elaborar os programas e de definir as bancas de concurso, foram retirados por determinação do Estado ao longo da década de 1930. No entanto, a insatisfação dos professores com as condições de trabalho, com os vencimentos, com o aumento de carga horária e com o próprio governo, potencializaram esse processo. No quadro da Reforma Capanema, o poder do Colégio diminuiu ainda mais, provocando muita resistência interna, pois, como a instituição deixou de ser padrão, desapareceu o dispositivo da equiparação e os programas do Colégio deixaram de ser referência, passando a ser elaborados pelo Ministério da Educação e Saúde.
Outro indício da crise no programa institucional reside no fato de que o quadro docente, ou seja, os professores do Colégio Pedro II organizados coletivamente, não era mais convocado a colaborar para as reformas e definir os programas ou questões gerais. Em vez disso, convocava-se este ou aquele professor, individualmente e alinhado ao governo.
Embora defendamos que houve uma crise no Programa Institucional do Colégio Pedro II, que se inicia, principalmente com a retirada de prerrogativas dos professores pela Reforma Campos, o que gerou muitas discussões internamente, consideramos que, sobre esse aspecto, é necessário continuar e aprofundar a pesquisa. Alguns trabalhos, como os de Massunaga (1989) e de Ferreira (2005), defendem respectivamente que, nos anos 1950, o Colégio Pedro II teria vivido novamente uma fase positiva e que, até os anos 1960, teria permanecido como padrão. Cabe questionar se a condição de ‘padrão’ ocorre de fato, se o sentido do termo ‘padrão’ nesse período é resultante da tradição ou se o período posterior ao que investigamos se caracteriza pela luta e pelo resgate do padrão e do prestígio que existia antes da crise no programa institucional.
Trata-se aqui de um processo amplo que, segundo Dubet (2011), perturba fortemente a identidade dos atores, no caso, os professores, e vai além dos problemas específicos com os quais eles se deparavam. O Colégio encarregado de formar a elite intelectual e de ser referência para as outras instituições do país perdeu espaço gradativamente. Dubet (2011) afirma que, com o declínio do Programa Institucional, resultante não apenas de ameaças externas, mas também de problemas endógenos, o ‘trabalho sobre o outro’ também sofre mudanças profundas. Isso gera um sentimento de crise nos atores envolvidos, já que assistem ao esfacelamento daquilo que lhes confere legi timidade e autoridade e os torna despossuídos da maior parte das consolações que dão ao ‘trabalho sobre o outro’ uma coerência pouco comum. O autor aponta para a necessidade de ir além desse sentimento de crise e desvelar as profundas transformações da própria natureza do ‘trabalho sobre o outro’. Dubet (2011, p. 303) as descreve da seguinte forma: “[...] as dimensões da ação sobre o outro, que eram altamente integradas no programa institucional, não cessam de se separar progressivamente: relações definidas em termos de controle, em termos de serviço e em termos de relações centradas unicamente nas pessoas”.
Se, por um lado, a Congregação do Colégio foi um lugar de conflitos e de disputas que interferiram, em momentos diferentes, na manutenção e na crise do programa institucional, por outro, percebemos que foi também um espaço de convivência, de partilha de saberes e, principalmente, de resistência. Percebemos nela um tipo de solidariedade ou de corporativismo que se expressava nos votos de ‘apoio moral’ ao professor que passava por algum problema particular e nas comissões nomeadas para visitá-lo; nos ‘votos de louvor’, quando um membro publicava uma obra, atingia uma meta, prestava trabalhos relevantes ou era nomeado para algum cargo dentro ou fora do Colégio, e mesmo nos ‘votos de pesar’, quando das perdas de professores e familiares, dentre outros tipos de votos. Essa solidariedade demonstrada entre os membros da Congregação e, vez ou outra, para com os professores que, embora não fossem catedráticos, eram antigos no exercício do magistério no Colégio, parece que estava à margem dos professores suplementares. Isso ocorreu provavelmente pelas dificuldades na construção de uma identidade sólida por parte desses professores ou pela ausência de um espaço que proporcionasse uma relação de maior convivência e proximidade entre os professores suplementares, os professores das categorias mais elevadas hierarquicamente e o Colégio. Provavelmente, para os professores suplementares, a sala dos professores não se constituiu nesse espaço.
Moreira e Macedo (2002) afirmam que a origem das questões relacionadas à identidade não é recente e que está associada aos períodos de crise. Conforme acentua Dubar (1997), elas aparecem na incerteza quanto ao futuro, no desconforto diante das transformações em que os padrões do passado não convêm e os próximos não estão ainda estabelecidos.
O debate sobre as ‘instruções’ para os concursos às cátedras, realizado nas reuniões da Congregação em 1943, quando o catedrático Enoch da Rocha Lima defendeu que tais instruções eram ultrapassadas e, portanto, não atendiam às ‘modernas finalidades educacionais’, pode ser considerado outro fator que contribuiu para a crise no programa institucional do Colégio. Lembramos aqui que, na maioria dos embates travados nas reuniões da Congregação, as questões mais polêmicas giravam em torno da elaboração dos programas e dos concursos. As instruções ‘ultrapassadas’ para os concursos podem ser consideradas um exemplo que denuncia a ‘modernidade tardia’, apontada por Dubet (2002) como fator endógeno que introduz o ‘declínio do programa institucional’.
O ambiente de confronto observado nas reuniões da Congregação realizadas entre os anos 1930 e 1940 e cada uma das medidas tomadas ou propostas de reforma parecem demonstrar o aumento, a frequência, a intensidade e a extensão das disputas entre os diferentes protagonistas no interior do Colégio, em virtude da crise em seu programa institucional (Dubet, 2002).
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Notas
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