Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar as experiências instrutivas formuladas por meio das corridas de cavalos em Curitiba entre os anos de 1873 (momento que um hipódromo é construído) e 1897 (ano em que um novo prado de corridas passa a ser arquitetado). O intuito em específico é investigar os discursos que se apresentaram ao redor dessa dinâmica - sobretudo aqueles relacionados aos posicionamentos que apresentaram indicações da necessidade de adoção de certos comportamentos. Como fontes, foram utilizados jornais publicados na cidade no período em tela. Em termos de conclusão, foi possível considerar que as corridas de cavalos apresentavam instruções de dupla ordem: a prescrição e aquisição de determinadas atitudes e a exigência e fiscalização do aprendizado desses gestos.
Palavras-chave: História dos divertimentos, história da educação, turfe, Curitiba.
Abstract: This article aims to analyze the instructive experiences formulated through horse racing in Curitiba between 1873 (the moment a racecourse was built) and 1897 (the year in which a new racing field started to be architected). Specifically, this study’s goal is to investigate discourses around this dynamic - especially those related to positions that indicate a need to adopt certain behaviors. Newspapers published in the city during the analyzed period were used as sources. To conclude, it was possible to consider that horse racing presented instructions of dual order: the prescription and acquisition of certain attitudes and the requirement and supervision of the learning of these gestures.
Keywords: History of amusements, history of education, horse racing, Curitiba.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar las experiencias instructivas formuladas a través de las carreras de caballos en Curitiba entre los años 1873 (cuando se construyó un hipódromo) y 1897 (año en que comenzó a diseñarse un nuevo campo de carreras). El objetivo específico es investigar los discursos que surgieron en torno a esta dinámica -especialmente aquellos relacionados con posiciones que presentaban indicios de la necesidad de adoptar ciertos comportamientos. Como fuentes se utilizaron periódicos publicados en la ciudad durante el período en cuestión. En términos de conclusión, se pudo considerar que las carreras de caballos presentaban instrucciones duales: la prescripción y adquisición de determinadas actitudes y la exigencia y supervisión del aprendizaje de estos gestos.
Palabras clave: Historia del entretenimiento, historia de la educación, turf, Curitiba.
ARTIGO ORIGINAL
Instruindo-se para e pelo divertimento: as corridas de cavalos em Curitiba (1873-1897)
Education for and by amusement: horse racing in Curitiba (1873-1897)
Educación por y para la diversión: carreras de caballos en Curitiba (1873-1897)
Recepción: 18 Enero 2024
Aprobación: 01 Julio 2024
Publicación: 01 Octubre 2024
Medeiros et al. (2022) detectam que, além da escola, outros ambientes tiveram contribuições na difusão de estratégias para que os sujeitos se ajustassem a determinadas necessidades e interesses sociais. Nesse sentido, diversificados espaços da sociedade podem ser polos prescritores de noções educacionais, inclusive os mais variados momentos e locais de diversão, tema ao qual pretendemos dar atenção no presente artigo.
Conforme ressaltado por Rosa (2021), a história dos divertimentos tem sido objeto de pesquisa principalmente no campo do Lazer. No entanto, no âmbito das produções científicas em Educação, esse tema ainda é pouco explorado, especialmente quando comparado com práticas corporais difundidas no contexto escolar, como ginásticas, esportes, danças, entre outras.
Ao considerar os momentos e espaços de lazer como oportunidades de aprendizado, Silva (2009) detalha a importância dos entretenimentos para a instrução de comportamentos no Rio de Janeiro da década de 1920. Dentre as dimensões relevantes desse processo, incluem-se aprimoramentos na estruturação desses espaços e a implementação de regras para frequentá-los.
Sendo assim, ao percebermos os momentos e espaços de passatempo como oportunidades educativas, podemos compreender que diversas regras eram estabelecidas nesses locais. Essas normas eram cuidadosamente elaboradas com o intuito de organizar de maneira mais eficiente a convivência e as experiências dos frequentadores, por meio de medidas como a fiscalização do público-alvo e restrições ou prescrições relacionadas a aspectos como vestimentas, comportamentos, sexo e idade.
Ao investigar as novas performances públicas que surgiram a partir da formação de clubes atléticos no Rio de Janeiro de meados do século XIX, Melo (2020) corrobora a importância dos momentos de diversão como ocorrências significativas na história da educação. Ele destaca que a análise dessas experiências pode revelar diversas expressões de um determinado contexto, incluindo as tensões sociais, as imposições, resistências e negociações em relação aos comportamentos em público, bem como as possibilidades de exposição corporal e de uso do corpo.
Em Santa Catarina, especialmente na capital Florianópolis, Moraes (2017) sugere que as experiências recreativas marítimas, como o remo e a natação, desempenharam um papel crucial na educação do corpo1 da população local. Isso levou as pessoas a valorizarem ideias e instruções sobre cuidados e fortalecimento corporal por meio dessas práticas físicas.
Conforme observado por Dias (2018), Dias e Souza (2020) e Almeida e Rocha Júnior (2024), além das regiões Sul e Sudeste, outras áreas do Brasil apresentaram um cenário recreativo e esportivo semelhante. Em estados como Goiás, Mato Grosso, e nas cidades de Manaus e Aracajú, como destacado pelos autores, uma ampla gama de atividades de entretenimento se disseminou durante a transição do século XIX para o XX. Isso proporcionou acesso a práticas inéditas e instruções para desfrutá-las, tanto como praticante quanto como espectador.
Tendo em conta essas ideias iniciais, o presente artigo tem por objetivo analisar as experiências instrutivas formuladas por meio de um divertimento comum na sociedade brasileira de meados do século XIX, as corridas de cavalos, especificamente as promovidas na cidade de Curitiba entre os anos de 1873 (momento em que um hipódromo é construído na cidade) e 1897 (ano em que um novo prado de corridas passa a ser arquitetado na capital paranaense). Nosso intuito, em específico, é investigar os discursos que se apresentaram ao redor dessa dinâmica - sobretudo aqueles relacionados aos posicionamentos que apresentaram indicações da necessidade de adoção de certos comportamentos para o momento de recreio em questão.
Dois fatores motivaram a realização deste estudo: a) se quisermos compreender melhor como certos processos educacionais foram construídos, uma abordagem interessante é investigar as práticas cotidianas que foram utilizadas como intervenções. Isso decorre de uma visão ampliada da educação. Segundo Zoppei (2015, p. 50), a educação não escolar é resultado das “[...] relações entre manifestações culturais e educação”. Ancoramo-nos nessa perspectiva para entender a educação como um processo de formação que ocorre no contexto da vida cotidiana, em diversos tempos e lugares, incluindo os dedicados ao divertimento.
O segundo fator considerado é: b) dado que a compreensão dos ideais em torno dos entretenimentos foi diversa e peculiar, entender as especificidades da estruturação dessas iniciativas nos permite lançar um olhar original sobre a história da educação e dos divertimentos. Esses aspectos são relevantes ao considerarmos que as investigações sobre a dimensão não escolar dos processos e práticas educativas vêm se consolidando nos últimos anos (Albuquerque & Buecke, 2019).
Para alcançar os objetivos, utilizamos fontes da imprensa, uma vez que, de acordo com Vieira (2007), os jornais são documentos importantes para a história da educação. Os textos jornalísticos desempenham um papel crucial na produção, veiculação e circulação de discursos que influenciam a formação das representações sobre o mundo. Além disso, segundo Corrêa (2009), durante o período abordado neste artigo, os jornais eram vistos em Curitiba como importantes disseminadores e requerentes de diversos assuntos relacionados ao coletivo da cidade, incluindo ações educativas em várias esferas.
Com efeito, cabe uma breve apresentação dos jornais utilizados. O Dezenove de Dezembro foi o primeiro periódico a ser publicado no Paraná e circulou de 1854 a 1890. Durante esse período, foi o impresso de maior circulação da cidade. Pezzole (2006) discorre que esse jornal nasceu principalmente pela necessidade de prover e consolidar Curitiba como capital. Suas páginas abordavam uma variedade de temas, desde política, economia, saúde até lazer.
Por sua vez, o jornal A República foi fundado em 1886 e encerrou suas atividades em 1930. Foi o primeiro periódico vinculado aos preceitos republicanos da cidade. Nele eram divulgados discursos de natureza política e cívica, abordando temas como embelezamento urbano, desenvolvimento e civilização dos costumes.
Salienta-se que, para a seleção dos respectivos jornais, considerou-se sua importância no período delimitado. O primeiro foi precursor do campo jornalístico da cidade, enquanto o segundo é fundamental para as causas republicanas da capital paranaense. Além disso, foram considerados critérios como a frequência de circulação de notícias ao longo do período em questão e, principalmente, o escopo das temáticas relacionadas às experiências hípicas presentes nas publicações.
As fontes referentes aos jornais foram compiladas por meio da interface online da Biblioteca Nacional Digital. É importante salientar que as buscas não se restringiram a descritores específicos, pois foi realizado o deslocamento entre as páginas das edições encontradas a fim de compreender uma variedade de acontecimentos do período estudado.
Isso posto, vejamos as experiências instrutivas forjadas por meio das corridas de cavalos em Curitiba.
Molina (2020) destaca que a década de 1870 foi fundamental para a melhoria da estrutura de Curitiba. Um dos fatores decisivos para o progresso, de acordo com a autora, foi o aumento da produção agrícola de erva-mate e seu impacto na economia local. Pereira (1996) afirma que entender o desenvolvimento econômico e social de Curitiba exige compreender o papel central da erva-mate nessas conquistas. Nessa linha, Lopes (2002) observa que a urbanização de Curitiba foi financiada pela indústria da erva-mate, uma vez que os lucros da planta possibilitaram a transformação da capital paranaense em uma cidade que buscava seguir os padrões de modernização da época, sobretudo os europeus.
Assim, surgiam novas estruturas na cidade que, como aponta Santos (2001), eram representativas de um discurso que buscava uma capital mais urbanizada, principalmente em relação à arquitetura dessas construções, mas também pela novidade - muitas vezes, eram empreendimentos ainda não vistos em Curitiba. Nesse sentido, como investigado por Lopes (2002), o ideal de urbanização em Curitiba era um conjunto de ações e pensamentos que visavam a uma dinâmica social voltada para a modernização e renovação da cidade e dos costumes de sua população.
De fato, em 1873, a urbe estava em constante progresso, tendo sido concluída a construção da Estrada da Graciosa, que finalmente ligava o planalto ao litoral, tornando mais eficiente o transporte de produtos comerciais pela costa litorânea. No ano seguinte, em 1874, foi construído o primeiro matadouro público, o Mercado Novo, que, segundo as memórias de Carneiro (1980), representava uma das primeiras construções neoclássicas em Curitiba. Nesse mesmo período, a Santa Casa, um hospital ainda em atividade na capital paranaense, estava sendo arquitetada, bem como a primeira igreja evangélica luterana.
De acordo com Osinski e Vezanni (2016), no âmbito da educação formal, algumas medidas foram implementadas nas décadas de 1870 em Curitiba, as quais eram consideradas avanços no ensino por demonstrarem a tentativa de equipar a cidade com instituições educacionais em diversos níveis. A principal dessas medidas ocorreu em 1876, com a criação do Instituto Paranaense de Ensino Secundário. Tratava-se da substituição do antigo Liceu de Curitiba, fundado em 1846 e extinto em 1874, que foi incorporado à Escola Normal.
Conforme explora Gruner (2012), Curitiba passava a comportar, ainda que esporadicamente, eventos promovidos por companhias circenses e de teatros que passavam pela cidade anunciando seus espetáculos. Além disso, havia alguns largos, praças, sociedades dançantes e casas de bilhar. De fato, uma sociedade que ocuparia cada vez mais a cena pública estava em pleno processo de formação.
Nessa perspectiva, devemos considerar que, com uma melhor conformação da malha urbana, como bem destaca Silva (2009), o ato de ver e ser visto, inerente às relações estabelecidas na sociedade, tornava-se um elemento indispensável para a adequação de certas atitudes da população. Além de observarmos a arquitetura das construções que anunciavam um novo tempo em Curitiba, é importante notar que o cenário sociocultural também correspondia a essa mentalidade de atualização. No entanto, os avanços nessa esfera eram evidenciados por meio da exposição corporal, da demonstração de comportamentos e das observações desses costumes que começavam a ser adotados - muitos deles influenciados pela formação de um comércio de entretenimento.
Nessa direção de emergência de novas estruturas e experiências, as corridas de cavalos também tiveram que se atualizar diante dos avanços que estavam se estabelecendo em Curitiba. Em decreto, o então presidente da província Frederico José Cardoso de Araujo Abranches sancionava a formulação de um Clube de Corridas para a cidade:
Art. 1 Fica o governo da provincia autorisado a copceder o auxilio de 3.000$000 ao Club de corridas Paranaense fundado nesta capital.
Art. 2 Essa quantia será distribuída pelo Club em seu favor das pessoas que exhibirem provas de ter melhorado a raça cavalar nesta capital (Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da Província, 1874, p. 69)
Conforme apontado por Marcassa (1989), antes da criação de um clube de corridas de cavalos em Curitiba, esse passatempo era realizado nos arredores da cidade, sem uma estrutura específica para sua prática e organizados por meio de acordos que seguiam os interesses momentâneos dos envolvidos. Essas corridas, que basicamente tinham o objetivo de determinar qual cavalo era o mais rápido, eram realizadas em pistas improvisadas e frequentemente cercadas de gestos ligados à baderna, violência e selvageria. Esse costume, portanto, não estava em consonância com os desejos de urbanização e civilidade que a cidade almejava incorporar. Nesse sentido, a criação de um clube de corridas de cavalos representou a possibilidade de elevar esse passatempo a um patamar distante das dinâmicas rústicas que vinham sendo realizadas, aproximando o entretenimento dos parâmetros de urbanização pensados para a cidade.
A partir de então, um clube para o fomento das corridas de cavalos passava a ser arquitetado em Curitiba. No dia 29 de novembro de 1873, o jornal Dezenove de Dezembro anunciava: “Amanhá, as 6 horas da tarde nos salões da camara municipal. Terá logar uma reunião de todos os habitantes da capital. Sem distincção de nacionalidade. Para a formação de um club de corridas de cavallos” (Dezenove de Dezembro, 1873a, p. 4).
A intenção, nesse sentido, era colocar toda a população da cidade em sintonia com as mudanças que estavam ocorrendo. A criação de um clube de corridas de cavalos parece conter importância para que a capital pudesse adentrar em padrões observados em outros locais. É possível localizar alguns exemplos de situações similares em outras regiões. No contexto sul-rio-grandense, segundo Assmann et al. (2023) e Karls (2017), a criação do primeiro hipódromo teve contribuição direta para colocar a cidade em um patamar considerado mais urbanizado. Pereira (2012), ao se referir a Porto Alegre, é contundente ao afirmar que o prado de corridas de cavalos era uma necessidade sentida pelos governantes como exigência para a capital adequar-se aos novos tempos. Aspectos similares acerca da constituição dos hipódromos como importantes contribuintes para uma melhor organização e burocratização do turfe e da cidade - até mesmo na fiscalização de determinados comportamentos públicos, como modos de cavalgar, disputar e apostar - também são enfocados por Montenegro e Soares (2018) ao explorarem as experiências hípicas em Campinas.
A iniciativa passou a ganhar forma em Curitiba. O jornal Dezenove de Dezembro assim anunciou:
Reunidos na casa da camara um grande numero de pessoas, o Sr. Luiz Jácome, promotor da idéa, em uma succinta e eloquente allocução, declarou o motivo da reunião, fazendo ver a todos as vantagens que proviria da creação de um prado. Comgratulamo-nos pelo impulso que vae tomando a util idéa do distincto hypollogo brazileiro, a quem dirigimos nossas cordiaes saudações (Dezenove de Dezembro1873b, p. 4).
O empreendimento recebeu uma resposta positiva da imprensa, que enxergou utilidade na ação. Devemos considerar que se tratava de uma ação com fortes ligações entre os governantes políticos e com sujeitos de certa influência social, logo não causa espanto o jornal receber a ação de maneira amistosa. A chamada no periódico era feita pelo hipólogo carioca, o capitão Luiz Jácome de Abreu de Souza, sujeito encarregado de promover melhorias na raça cavalar da região e fundar o primeiro clube de corridas da cidade. Com vasta experiência, o militar vinha desenvolvendo atividades em torno das dinâmicas equestres na capital federal - em 1863, participou diretamente na fundação da Escola de Equitação de São Cristóvão, uma instituição marcante na oficialização dos esportes equestres no Brasil (Leal, 2019).
O empreendimento cresceu e se consolidou como o primeiro clube de corridas de cavalos da cidade. Sua localização era nas extensões de uma fazenda, próximo às margens do Rio Água Verde. Atualmente corresponde ao Bairro Boqueirão, mais precisamente na Rua Marechal Floriano Peixoto, no Hospital Nossa Senhora da Luz. O terreno foi comprado e cedido pela própria câmara municipal, conforme adverte a nota jornalística:
De ordem do Sr. presidente da provincia, tenho a honra de passar as mãos de v.s. afim de que se digne fazer presente á assemblea provincial a informação original, que prestou a camara municipal da capital sobre a concessão do terreno para a construção do Prado de corridas (Dezenove de Dezembro, 1874b, p. 3).
É possível notar que o poder público tinha interesse em organizar as corridas, o que se evidencia na concessão de espaço e verba para o empreendimento. Cabem algumas reflexões, embora hipotéticas, sobre essa proximidade do poder público paranaense e o fomento das atividades equestres em um espaço específico para sua prática. Considerando, conforme Pereira (2012), que as corridas de cavalos tradicionalmente estavam vinculadas aos donos dos equinos, que costumavam ser pessoas influentes, essa ação de criar um hipódromo poderia ser uma forma de afastar Curitiba de gestos incivilizados como os que vinham ocorrendo nas disputas aos arredores da cidade, sem, contudo, travar conflitos de interesses com os proprietários e interessados nas disputas de cavalos.
Além disso, provavelmente essa colaboração do poder público na constituição de um espaço hípico seja um indicativo de que o divertimento era visto com bons olhos dentro dos ditames da urbanização que se almejavam para a capital paranaense. Afinal, ao estarem alicerçadas sob os modelos institucionais de um clube, as atividades equestres poderiam contribuir para a urbanização da cidade, uma vez que essas estruturas e os comportamentos difundidos adquiririam significados similares aos encontrados em outros centros urbanos mais avançados. Nessa direção, devemos considerar que a própria lógica de organização por meio de clubes, nesse momento no país, estava relacionada a discursos que viam essas estruturas como úteis para o desenvolvimento das urbes. Melo (2001), ao prospectar sobre a formação do esporte no Rio de Janeiro, demarca que as práticas esportivas promovidas nos clubes foram um importante difusor de estruturas, valores e comportamentos considerados urbanos, sendo as corridas de cavalos uma das dinâmicas inaugurais.
Uma conjuntura similar também é detectada por Agulhon (2009) ao abordar o contexto francês. O autor visualiza características importantes dos clubes para a conformação urbana das cidades e dos costumes da população francesa. Na percepção da autoria, esses ambientes representavam um avanço progressivo da sociabilidade, que caminhava de um estágio informal para o institucionalizado. No caso curitibano, a transição das antigas corridas de cavalos realizadas nas ruas para o clube de corridas, com seu universo de regras, pode indicar aspectos semelhantes.
Por meio de um anúncio de um dia de corridas fornecido pela nova instituição, é possível vermos delineados da organização do divertimento - que trouxesse consigo comportamentos que precisavam ser aprendidos e executados. Tratava-se da chegada de um modelo de competição pautado nos preceitos organizacionais do esporte, exigindo tanto dos praticantes como dos espectadores a aquisição de certos costumes para que pudessem se adaptar e participar adequadamente do evento esportivo. Isso incluía o respeito ao horário por parte de praticantes e espectadores, a identificação de vestimenta considerada adequada para a prática e a inscrição de acordo com a classificação determinada. Essa organização reflete a preocupação em estabelecer normas e padrões para garantir o bom funcionamento e a integridade das corridas de cavalos como uma prática esportiva formalizada.
O anúncio a seguir reforçava alguns desses elementos:
Grande corrida dia 22 de Março futuro ás 4 horas da tarde, em ponto.
Premios
Da 1º turma 200$000
Da 2º turma 100$000
Condições
Para inscrever o cavallo na 1º turma 40$000 e na 2º 20$000.
Peso dos corredores 128 libras; e vestimenta decente (Dezenove de Dezembro, 1874a, p. 4).
Com a formulação do clube de corridas, podemos observar que, além do marco fundamental que a entidade proporcionou para o desenvolvimento da modalidade ao se constituir como um espaço institucionalizado da prática, houve uma sistematização dos anúncios dos páreos em relação às publicações nos jornais que passaram a ser divulgadas com antecedência e constância. Essas características, por exemplo, diferem dos primórdios da atividade, quando os tratos verbais eram predominantes (Marcassa, 1989). As divulgações antecipadas (às vezes, meses antes do evento) ofereciam ao público detalhes sobre como o evento seria organizado - evidenciando uma preocupação com regulamentação e com a compreensão dos participantes sobre a dinâmica, algo também visualizado na fonte anterior.
Ao retomarmos alguns pontos da fonte acima, é perceptível que havia dia e horário definidos, premiações estipuladas, taxas de inscrição e local específico para registro. Esses elementos indicam uma busca pela organização da atividade em torno de um calendário próprio, algo comum em eventos esportivos (Elias & Dunning, 2021). Souza (2014), ao abordar o clube de corridas de cavalos de Curitiba, observa que esse espaço era construído sob a égide de um esforço civilizatório. Era um ambiente pensado como meio de sociabilidade e, principalmente, arquitetado para situar a dinâmica em patamares distantes das antigas provas realizadas nas ruas. Assim, esses conjuntos de instruções representariam aspectos importantes para o avanço da organização da atividade em direção a uma lógica mais estruturada, baseada nos preceitos institucionais do esporte.
Nessa direção, compreende-se que, ao construir um espaço destinado à prática das corridas de cavalos, essa estrutura e os envolvidos deveriam preservar, gesticular e fiscalizar determinados comportamentos esperados em seu interior. Esses gestos, por sua vez, deveriam ser guiados por noções de cordialidade, afabilidade e supressão da selvageria, entre outros princípios de convivência em voga na sociedade da época. A criação de premiações e pesagens, descritas na fonte, enfatiza quais categorias usuais das práticas esportivas estavam estruturadas. Essas ações são mecanismos que reforçam a busca pela honestidade da disputa, sendo, portanto, elementos que contribuem para o controle das experiências esportivas e, em certa medida, podem sinalizar que essas questões também são formuladas para evitar o surgimento de comportamentos prejudiciais.
A presença do uso de “vestimentas decentes” pode indicar certos padrões esperados em relação aos praticantes, que precisavam adquirir determinadas indumentárias. Essa questão reforça um caráter elitista e distintivo rotineiramente atribuído ao universo das corridas de cavalos e aos primórdios das experiências esportivas no Brasil, ainda que em solo nacional, conforme Gois Júnior (2013), os limites entre o popular e o elitizado sejam mais tênues, já que a participação das elites em atividades populares de diversão era comum.
Sevcenko (1992) observa que os esportes eram vistos em todo o país como um importante elemento na estruturação das cidades brasileiras. Nesse sentido, o autor indica que os esportes representavam para a elite governante uma possibilidade para auxiliar no modelamento social do Brasil. Essas práticas se constituíram em um útil meio para tal fim, visto que já estavam difundidas em cidades europeias, centros de referência de desenvolvimento urbano. Mas não apenas por isso, eram compreendidas também como meios de promover a emergência e o refinamento de certos costumes e atitudes, principalmente os ligados à etiqueta, à postura, ao exercício físico, ao movimentar-se, à higiene e à saúde da população - noções das quais o esporte se aproximava na Europa, sendo visto como um importante contribuinte para a constituição de uma sociedade mais forte e saudável (Vigarello, 1999).
Nessa esteira, Silva (2011) detecta alguns aspectos sobre a construção desse local específico para as disputas dos equinos em Curitiba. De acordo com o autor, o hipódromo não apenas proporcionaria novas performances nas corridas, mas também oferecia uma oportunidade para educar os corpos e sentidos de seus frequentadores. Nesse local, deveriam ser seguidos os princípios de civilidade do esporte, a qual prezava vestimenta adequada, proibição de maus-tratos aos animais e gestos corteses em geral. Assim, a existência de normas, taxas e requisitos de vestimenta, por exemplo, pode ser vista como mecanismos para regular e orientar os comportamentos desejados durante os eventos das corridas de cavalos.
Ao final de cada disputa, a imprensa procurava destacar os cavalos vencedores, as premiações e fatos que teriam acontecido no dia. Para aqueles que por algum motivo não conseguissem ir até o prado, e pudessem nos dias seguintes comprar um jornal, o folhetim tornava-se um instrumento útil para saber os ocorridos nas competições:
19 de dezembro futuro, as 2 horas da tarde.
1º Pareo - Todo o prado.
Inscripção de cada cavallo. 100$000
Premio ao 1º vencedor 400$000
Premio ao 2º dito 100$000
2º Pareo - 6 quadras.
Inscripção de cada cavalo 60$000
Premio ao 1º vencedor 200$000
3º Pareo - 4 quadras.
Inscripção de cada cavallo. 40$000
Premio ao 1 vencedor 120$000
Os premios sofferão o abatimento de 10% para a despezas da corrida (Dezenove de Dezembro, 1875, p. 4).
Sobre os preços das inscrições, giravam em torno de cifras que iam de 40$000 a 400$000 réis. A título de comparação, uma caixa de charutos importados numa casa de comércio, no centro da cidade, custava 10$000; uma garrafa de vinho de Lisboa, uma das de maior custo, valia 4$5002, enquanto um arquivista da câmara municipal ganhava de salário mensal 2:400$0003. Os valores das inscrições e das premiações, levando em consideração que as disputas aconteciam semanalmente, podem ser indicativos de que aqueles que inscreviam seus quadrúpedes eram sujeitos de poder aquisitivo considerável.
O clube ganhava notoriedade como o local adequado para a prática das corridas de cavalos. Em uma chamada para as corridas, são salientados alguns aspectos sobre o que se pensava acerca do ambiente e sua utilidade:
Este emphendimento tem por fim reanimar tão util divertimento, que, como elemento civilisador, tende a fazer desapparecer as corridas pelo modo rotineiro, retrogrado e grosseiro, a que estavão affeitos os amadores.
E’ evidente e extraordinario o melhoramento. As corridas em raias diretas e de pequena extensão, conforme a rotina, não só não dão a prova da qualidade e utilidade dos cavallos, como não dão sempre lugar a duvidas e fraudes, que a civilisação não póde tolerar.
Ao contrario, as corridas no Prado servem para aferir a superioridade dos animaes, suscita os estímulos dos criadores para o melhoramento da raça cavallar, e estão fora do alcance de fraudes a alicantinas (Provincia do Paraná, 1879, p. 3).
A concepção era de que o clube representava o ambiente ideal para as competições equestres, preservando a civilidade, a cortesia e a honestidade. Era um espaço que rejeitava as banalizações das antigas disputas realizadas nas ruas, onde hostilidades eram comuns. Santos e Giglio (2017), ao investigarem a Sociedade Jockey Club do Rio de Janeiro, apontam que os hipódromos se materializavam como um ambiente que buscava por competições honestas e exibições corporais pautadas em preceitos ligados às ideias de cavalheirismo, elementos que o esporte procurava promover.
Em terras cariocas, esse cenário foi possível por meio de discursos semelhantes aos encontrados em Curitiba, que enfatizavam a existência de um espaço que instigava e preservava a moralidade e civilidade. Esses elementos discursivos, pautados na lógica de organização esportiva, segundo Santos e Giglio (2017), transformaram as corridas de cavalos em algo incontestável, pois colocavam suas dinâmicas e sua identidade em consonância com os desejos pensados pelas elites administrativas para o avançar das cidades brasileiras.
Com a organização seguindo os modelos do esporte, as corridas de cavalos se constituíram em um verdadeiro mercado de entretenimento, com taxas de inscrição, prêmios em dinheiro, um espaço específico e, principalmente, um público aparentemente disposto a consumir. Concomitantemente a isso, uma série de elementos se materializaram para uma melhor organização dessa cena, como os cavalos que passaram a, progressivamente, competir com animais de linhagem idêntica ou similar, conforme ilustra o anúncio de uma corrida:
1º turma - Premio 500$ Cavallos e eguas de 3 a 4 annos a 4 ‘e meio sangue crioulos da provincia; distancia 1609 metro.
2º turma - Premio 200$ Cavallos e eguas de 2 annos, 4º de sangue, distancia 800 metros.
3º turma - Premio 300$ Cavallos e eguas pelludos; distancia 1609 metros.
4º turma - Premio 100$ Cavallos e eguas pungos; distancia 1609 metros.
Os corredores da 1º. 3º e 4º turmas deverão ter 60kilos de peso e os da 2º turma 52kilos. Até 8 dias antes das corridas serão aceitas inscripções (Dezenove de Dezembro, 1882, p. 4).
A padronização por idades e sangue (requisito de raça) dos animais evidencia uma busca pela regulamentação da “performance” por meios burocráticos - uma tentativa de assegurar a “igualdade” da competição -, características usuais e representativas das práticas esportivas (Guttmann, 2004)4.
Com uma estrutura específica e uma série de elementos organizacionais, o cenário esportivo das corridas de cavalos estava se estruturando em Curitiba. A seguir, veremos quais comportamentos eram julgados acertados ou não durante os momentos de competições, bem como quais eram os mecanismos pedagógicos acionados em tais ocasiões.
A cena das corridas de cavalos, com a formulação de ambiente específico para sua prática em Curitiba, passava progressivamente a exigir dos envolvidos com suas dinâmicas uma série de costumes para um melhor desfrutar dessas experiências. Tratava-se da emergência de comportamentos esportivos que precisavam ser aprendidos.
Nessa direção, Velasquez (2014) problematiza pontos importantes da necessidade de educar certos costumes para a experiência de assistir a uma corrida de cavalos. Segundo o autor, escolher um animal para torcer e principalmente despender dinheiro ao apostar durante um dia de disputas não é uma aventura sem critério, ou dependente propriamente de sorte. Na verdade, exige uma elaboração aritmética, que o pesquisador define como uma “exegese hipológica”. Em outras palavras, seria uma apropriação de uma gama de conhecimentos sobre as raças, velocidade, tração animal, estilo de corrida, peso do jockey etc., que precisavam ser compreendidos e colocados em prática para fazer parte dessa dinâmica, mas que também eram aspectos que se aprendia durante essa cena esportiva.
Nessa esteira, os eventos das corridas de cavalos não só possibilitavam a oportunidade de exercer todo esse discernimento, como também era o local de ensino desses fundamentos. Por meio de divulgações nos jornais locais, a organização do clube publicava as distâncias das provas e o que era considerado nas disputas, assim como boa parte dos itens necessários para se formular uma elaboração hipológica da performance dos cavalos que iriam competir, conforme evidencia o anúncio:
Os cavallos carregarão dous kilos mais que as égoas, sempre competirem com estas no mesmo pareo.
São considerados de meio sangue os animaes filhos de uma pae de sangue puro e outro não, ou de dous de meio sangue; são pelludos os de menos de meio sangue. Ficam considerados de dous annos de idade os animaes que não completarão tres annos; de 3 os que não completarão 4; de 4 os que não tem 5 e assim para diante. O vencedor d’um pareo, sempre que disputar pareo de igual distancia carregará mais dous kilos que os animaes por elle vencidos, si porém, forem inscriptos animaaes que ainda não fossem vencidos por aquelle, carregarão estes peso igual ao vencedor. Guardada a proporção do peso entre a égoa e o cavallo (Dezenove de Dezembro, 1886, p. 3).
Dias antes da corrida, o público era informado sobre o que era permitido para a disputa. Assim como salientado anteriormente, fundamentando-se em Velasquez (2014), esse detalhamento sobre as condições da competição pode ser considerado um elemento instrutivo e de grande valia para que espectadores tivessem condições de compreender e participar conscientemente da prática.
Há aqui a necessidade de refletirmos sobre o hábito de apostar ligado às corridas de cavalos. Como detecta Silva (2011), esse costume sofreu duras críticas ao longo do século XIX e XX no Brasil, e na capital paranaense não foi diferente. Tratava-se de um comportamento duvidoso, geralmente ligado aos jogos de azar, à bebida e à malandragem - um vício, na percepção do autor supracitado, nada condizente com o ideário pensado para cidades que ambicionavam atitudes refinadas. No entanto, apesar das opiniões adversas, devemos considerar alguns pontos em específico dessa praxe quando vinculada às corridas de cavalos no período em tela.
O primeiro ponto é que, se seguirmos as considerações do que se pensava a respeito dos jogos de azar nesse período (práticas que dependessem exclusivamente da sorte), as corridas de cavalos não eram enquadradas nesse tipo de atividade. Diferentemente de jogos do bicho, loterias e atividades do gênero, no turfe há sempre um vencedor; além disso, existe todo um domínio de conhecimentos hípicos que podem promover aos sujeitos maiores ou menores chances de acerto. Logo, uma aritmética é presente, excluindo a dependência exclusiva da sorte.
Outro ponto que afasta as corridas de cavalos dos jogos de azar são os investimentos no estudo e desenvolvimento da raça cavalar. Velasquez (2014) define essas ações em três pilares, que normalmente são analisados a priori das apostas, facilitando a elaboração pautada em preceitos naturalísticos e científicos (zootecnia e genética), são eles:
Ao investigar os primórdios do esporte na Inglaterra, Huggins (2021) destaca que o Iluminismo, que preconizava a busca pela racionalidade, ordem e organização, teve um impacto significativo no hábito de apostar. A premissa pela cientificidade, para o autor, levou o cálculo matemático na direção das apostas esportivas, especialmente nas corridas de cavalos. Ainda, segundo a autoria, os anúncios para o primeiro calendário anual de corridas inglesas, em 1727, já enfatizavam que a leitura das informações nos jornais seriam mais do que uma diversão de inverno, tornaria os cavalheiros capazes de realizar cálculos mais próximos da perfeição e, consequentemente, de combinar e apostar com maior vantagem. Portanto, o risco das apostas ligado à incerteza, nessa circunstância, passava a ser concebido como uma forma de conhecimento enraizada em concepções de probabilidades matemáticas.
Contudo, devemos sinalizar que nenhum resultado esportivo pode ser previsto com total certeza. De fato, a “incerteza” é o ponto de venda do produto esportivo - uma máxima dos economistas esportivos é que, quanto mais imprevisível for uma competição, maior será a probabilidade de participação (Vamplew, 2016). De toda forma, existe todo um processo, ainda que não totalmente exato, que possibilita aos apostadores do turfe maiores probabilidades de acerto, não necessitando, assim, única e exclusivamente da sorte.
Essas características nos possibilitam pensar que existe, nas corridas de cavalos, determinantes racionais para as escolhas, mesmo que, evidentemente, aventureiros pudessem/possam se arriscar sem nenhum tipo de embasamento. Tais experiências em torno das apostas das corridas, inclusive, podem promover aos interessados um processo educacional para participar desse lócus. Nesse caso, ocorre uma espécie de “instrução hipológica”, fiscalizada e controlada por mecanismos burocráticos, em uma instituição que deve prezar a honestidade, evitando a difusão de hábitos relacionados à selvageria e imoralidade. Entretanto, apesar desses mecanismos fiscais e institucionais, devemos sinalizar que o hábito de apostar tornou/torna a modalidade uma combinação híbrida entre esporte e jogo. Essa característica, inclusive, permeia a prática até os dias atuais e gera certos questionamentos quanto ao seu caráter moral.
O fato é que, cada vez mais, os espectadores (sobretudo os apostadores) precisavam se atentar ao maior número de detalhes envolvidos nos páreos. Os cartazes de divulgação nos folhetins da cidade se tornavam verdadeiros quadros de dados para sondagens e instruções hípicas, como ilustra a publicação (Figura 1):

Os jornais, segundo Corrêa (2009), foram um importante instrumento pedagógico para o acesso às informações e aos comportamentos tidos como necessários para a população curitibana estar em sintonia com os parâmetros de civilidade. No que diz respeito à instrução para a experiência esportiva, especialmente as equestres, os folhetins também apresentaram ricas contribuições. Os anúncios como os da imagem acima, contendo descrições das disputas, eram publicados sempre com antecedência, o que, de certo modo, possibilitava o aprimoramento das investigações e instruções hipológicas. Além disso, também se tratava de uma medida planejada a fim de angariar maior visibilidade e número de interessados.
Atentemos aos detalhes sobre as vestimentas dos jockeys, especificando suas cores. Supõe-se que as roupas fossem os primórdios dos uniformes esportivos e que consistiam em uma medida que buscava proporcionar melhor compreensão dos espectadores, que, assim, poderiam diferenciar as “performances” dos cavalos escolhidos. Cabe considerar ainda, conforme detectado por Pereira (2012), que as vestimentas e os uniformes esportivos contribuíam para uma demarcação de classe social desse entretenimento, servindo, até mesmo, como elementos de distinção entre os frequentadores.
É evidente que os jornais forneciam indicações importantes para os espectadores a respeito das competições, sobretudo para aqueles que apostavam. No entanto, era o momento anterior às disputas que continha diversificadas instruções a serem incorporadas por meio da sociabilidade. Esse intervalo de tempo oferecia, para aqueles que participavam, o sentimento de ver e ser visto, além de proporcionar o debate e a troca de informações, principalmente sobre o que se constituía em uma expertise hipológica:
Nesse momento alguns observam o estado do animal: seu caminhar, sua pelagem, a musculatura, seu animo e seu estado de espírito. E o segundo momento é o canter. O canter é o galope de apresentação que os cavalos fazem montados com os jóqueis uns dez minutos, mais ou menos, antes do páreo. E aí se observa além também dos itens anteriores, o seu galope, a posição das orelhas, o rabo, se o cavalo está concentrado, a competência do jóquei na montaria etc. (Velasquez, 2014, p. 10).
Assim, essa exegese ou expertise hipológica se constrói tanto com o auxílio de informações obtidas anteriormente (geralmente por meio da imprensa), quanto a partir da observação realizada antes do páreo. Especulações sobre o galope do equino, sua forma física no sentido mais básico aos mais minuciosos (verificações acerca da orelha, pata e rabo), aos fatores “emocionais” do animal, seu estado de agitação e as noções de montaria do jockey, tudo isso só poderia ser visto nos momentos antecedentes das corridas. Dessa maneira, o hipódromo e a experiência com as corridas de cavalos proporcionam um aprendizado contínuo. Aqueles que quisessem obter maiores êxitos nas suas apostas ou aprender sobre o esporte, certamente utilizavam as informações dos jornais e principalmente as relações e observações anteriores às corridas para se instruir e angariar meios para uma maior precisão das suas sondagens hípicas.
Sendo assim, os momentos de diversão durante as corridas de cavalos em Curitiba possuíam uma dimensão educativa que não dependia exclusivamente de mecanismos formais. Isso ocorria por meio da convivência das pessoas em um espaço delimitado, onde acordos tácitos eram estabelecidos, cumpridos e internalizados. Portanto, o hipódromo se forjava como o local dos aficionados pelos equinos, porém os entusiastas deveriam seguir certos ditames das competições esportivas, nos quais os preceitos da civilidade, honestidade, vestimentas e expertise hípica lhe eram impostos e exigidos nesse ambiente. Tratava-se da concepção de um espectador esportivo - o amante do esporte -, um ator social que deveria ser refinado dentro dos parâmetros educacionais esperados para a cena em questão.
De fato, a aquisição de determinados comportamentos públicos era obrigatória durante as jornadas das corridas de cavalos, algo que era uma constante para todas as esferas da vida social. Aprender a se portar de acordo com as regras do respectivo espaço de entretenimento era uma determinação. O relato de uma ocorrência julgada desacertada nos fornece detalhes dos comportamentos esperados durante o passatempo.
Não é descabido o appelo q’ fazemos a digna Directoria para a observação dos estatutos e codigos de sociedade, afim de evitar os abusos q’ notamos como sejam: pessoas que não sendo socios occupando lugar nas archibancadas reservada aos socios, no ensilhamento e até na casa das apostas onde só podem entrar empregados naquele serviço, o presidente da sociedade e autoridade policial (O Paraná,1888, p. 1).
Ainda que aparentemente banal, o simples ato de sujeitos se sentarem em lugares marcados como pertencentes a outros indivíduos, conforme reforça a fonte, é um equívoco que precisava ser instruído. Dessa forma, a educação dessas atitudes era proporcionada por meio de alertas em jornais, e principalmente pela própria sociabilidade durante o evento. Entre os erros, acertos, conversas e discussões é que o espectador e demais envolvidos na cena esportiva se instruíam.
Nessa e em outras cenas, para além dos divertimentos, cada ator social precisava compreender minimamente seu papel, seu modo de agir e proceder - eram elementos fundamentais a serem aprendidos e devidamente gesticulados. Nem mesmo os proprietários de animais e jockeys escapavam do enquadramento das atitudes requisitadas. As considerações jornalísticas indicam isso:
O pouco capricho da parte dos inscriptores de animaes e a muita tolerancia do director das corridas (sí é que houve) na vestimenta dos seus jockeys, uns com botas, outros sem ellas; aquele de calças pretas, estes de calças pardas, mal ataviados; e bem assim os arreios dos animaes sendo alguns indecentes.
Convictos de que a digna directoria do Club está animada das melhores intenções quanto ao progresso da associação, acreditamos que ella tomará na devida conta as linhas que ahi ficam (O Paraná, 1888, p. 1).
O uso de vestimentas específicas para os jockeys e seus cavalos era uma obrigação. Não raro, os anúncios assinalavam a obrigatoriedade de selas, botas, calças e outros adornos, caso contrário os sujeitos e seus animais não estariam aptos a competir5. Pode ser que o traje inadequado fosse um empecilho para uma melhor escolha de um equino para apostar e, consequentemente, prejudicial para a visualização da “performance” do cavalo, ou até mesmo uma questão elitista para não manchar as predileções de etiqueta pensadas pelos frequentadores. Além disso, poderia ser uma exigência que precisava ser exercida, especialmente para não trazer ares descorteses ao divertimento. Em uma nota de divulgação, uma série de condições para um dia de competições são enfocadas:
Os srs. proprietarios de animaes incripstos no 1º e 2º pareo deverão ter seus animaes ao ½ dia em ponto no Prado.
Dado o signal de ensilhamento os jockeys deverão montar em seus animaes para passeio no picadeiro.
A directoria não consentirá que jockey algum corra sem que esteja vestido a caracter.
Entende se por vestimenta de jockey, blusa de cores, calça branca,1/2 bota e bonet de côr (A República, 1895c, p. 3).
A ênfase nas cores no vestuário pode reforçar a ideia de o traje ser um facilitador para a melhor compreensão da “performance” do cavalo escolhido, além de ser um indício de padrões que passaram a ser estabelecidos. A continuidade da nota nos proporciona observar outros procedimentos do respectivo cenário:
Só darão entrada nos portões do prado os convites officiaes. Os cartões de ensilhamento não dão esse direito.
As senhoras desde que estejão acompanhadas não pagarão entrada.
As entradas dão direito á archibancadas geral e custarão 2$000.
Não só os Srs. socios como convidados deverão apresentar na entrada os seus cartões para evitar duvidas com os porteiros (A República, 1895c, p. 3).
Apesar de o preço cobrado (2$000 réis) para entrar no prado ser relativamente democrático (basta pensarmos nos valores de produtos e salário evidenciados em linhas anteriores), a presença de convites pode ser um mecanismo de seleção de quem era aceito ou não - ideia reforçada pela existência de porteiros encarregados de supervisionar os tickets. Observemos também a entrada franca para senhoras, desde que estivessem acompanhadas. Pode ser que fosse um incentivo para as damas6 frequentarem um espaço comumente descrito como masculino.
No hipódromo de Curitiba, a civilidade deveria pairar para manter a ordem de um espaço que buscava ser considerado um lócus de atitudes polidas. Os diversos mecanismos comuns ao esporte, nesse período, já estavam presentes nas corridas paranaenses e eram dispositivos que tinham contribuição na fiscalização dessa cena - havia um regulamento preestabelecido e um espaço específico para a competição. Devemos salientar que, além desses elementos, os mais variados atores sociais envolvidos com a prática também eram importantes componentes na vigilância do bom funcionamento do esporte e julgamento das ações dos envolvidos. Em um páreo agitado, alguns desses itens são bem destacados:
5º pareo - 1600 metros - Este pareo mereceu do publico bastante interesse e houve animação no jogo do poule. Effectuado a corrida venceo Floreta ao seus competidores Princeza, Italia e Conspirador, mas, verificando-se que o Jockey da Floreta havia trancado Princeza tanto na sahida como chegada, reunio-se a directoria e ouvidos os juízes, determinou que a corrida fosse repetida entre tres animaes que primeiro chegarão ao poste vencedor (Dezenove de Dezembro, 1889, p. 2).
Na fonte acima, ao observarmos o relato de um gesto desacertado por parte de um jockey que atrapalhou outro competidor, alguns dos elementos regulatórios do esporte são acionados: os juízes. Tal acontecimento é uma boa amostra do que Elias e Dunning (2021) descrevem como uma das principais propriedades do esporte: a tentativa de promover certa equidade, pautada em um quadro de regras em constante vigilância pelos envolvidos (praticantes, juízes, funcionários, jornalistas e espectadores, entre outros). Em um cartaz de divulgação, é possível confirmarmos a presença de fiscais para todos os momentos da competição:
Juizes de partida: os Srs. Mathias de Oliveira Mendes e Nicoláo Pinto Rabello.
Juizes de Raia: os Srs. Polydoro Oliveira Cortês, João Pereira da Fonseca, Augusto Silveira, Antonio Joaquim de Barros Barboza
Juizes de Chegada: Os Srs. Julio Gineste e Casimiro Lobo.
Archibancadas de socios: Os Srs. Arthur Loyola e Manoel Miró.
Juizes de Archibancadas geraes: Os Srs. Lufrido Costa e Antonio Ricardo dos Santos.
Juizes de pesagem: o Sr. Ernesto Lima.
Director Geral da corrida: Eurico de Andrade Neves (A República, 1895b, p. 3).
Além de juízes para todas as etapas da corrida, também havia fiscais de passagem e de arquibancadas gerais e exclusivas para associados. Foram realizadas, ainda, competições com juízes responsáveis pelas apostas. É provável que esses mecanismos fiscais de cada momento e espaço fossem importantes componentes de vigia e controle, caso algum comportamento descortês fluísse. Eram eles também que ofereciam um ar de segurança, igualdade e honestidade para a dinâmica, refreando eventuais gestos incivilizados. Nesse sentido, devemos considerar que esses conjuntos de mecanismos fiscais, de certa maneira, reforçam a ideia de que havia a necessidade de que todos os atraídos por esse momento de entretenimento compreendessem os atos julgados como adequados. Ademais, trata-se de indícios que realçam o quanto, nos momentos de diversão, códigos deveriam ser aprendidos e postos em gesticulação, sendo, inclusive, fiscalizados no e pelo próprio momento em questão.
Precisamos considerar também que a presença de juízes para todas as etapas, além de ser um elemento basilar do esporte, buscando assegurar a imparcialidade e o bom funcionamento da modalidade, pode indicar que existiam aqueles que talvez tentassem tirar proveito e/ou então burlar de alguma forma as regras e os padrões de sociabilidade ali estabelecidos. Nesse sentido, devemos refletir que, provavelmente, se faziam presentes sujeitos que não se encaixaram ou que não queriam se encaixar dentro das normas e atitudes estabelecidas nos hipódromos. Portanto, para a efetivação de uma corrida de cavalos, se fazia necessário o aprendizado de certos comportamentos por parte de todo o público envolvido - que iam desde a escolha das roupas, a utilização correta do local do seu assento, a gesticulação de trejeitos comuns aos divertimentos, especialmente os ligados às apostas, e a maneira como se lidava com a competição e, principalmente, com o fato da derrota. Aprender a torcer e, especialmente, perder, era de fundamental importância para resguardar a moralidade do ambiente. Lidar com a derrota deveria ser feito de forma fria, sem atos violentos, especialmente para não aflorar um lado selvagem e baderneiro ao divertimento.
De acordo com Boni (1985), durante esse período, valores morais relacionados à civilidade, bons comportamentos públicos, rejeição à selvageria e violência foram estabelecidos como fundamentais na cidade de Curitiba como um todo. Comportamentos que estivessem associados à bebida, ociosidade, tumulto e brutalidade, que pudessem degradar a moral e os bons costumes, deveriam ser eliminados das ruas da cidade. A autora argumenta que esses aspectos eram considerados contribuintes para uma cidade que buscava melhorias em sua configuração urbana, e que as corridas de cavalos também deveriam seguir nessa direção.
A presença contínua de licenças7 para a realização de corridas, para além das dependências do prado, pode ser um bom indício da realização de disputas fora dos padrões estabelecidos no hipódromo. Há que se considerar, como afirma Adelman (2021), que as corridas de cavalos de ruas nunca desaparecem completamente, são inclusive práticas que se mantêm até os dias atuais, mas realizadas em um mundo afastado dos esportes organizados por mecanismos burocráticos e institucionais. De toda forma, significa uma resistência a uma intenção “modernizadora” que, de acordo com Melo (2021), não é incomum se manifestar no âmbito das diversões - sinalizando que alguns mecanismos também são formulados para burlar padrões impostos.
Sendo assim, as corridas de cavalos demonstram ser pioneiras em promover a institucionalização e burocratização de gestos comuns ao esporte na capital paranaense, bem como são precursoras em formalizar a necessidade da aquisição de certas atitudes ligadas especificamente à cena esportiva. Entre as eventuais sapiências para elaboração de uma exegese hipológica, a escolha da vestimenta para frequentar as corridas, os erros e acertos de se sentar em locais específicos, ou cometer equívocos durante a guia do cavalo na competição, o espectador, competidor, proprietários e demais envolvidos, estavam - ainda que nem sempre cientes disso - imersos em processos instrutivos promovidos para e pelo divertimento em questão.
Em 1897 se iniciava a construção de um novo espaço para corridas de cavalos em Curitiba. Nesse novo ambiente, o turfe, e principalmente seu espaço de prática - o hipódromo - ganhariam novas aparelhagens. Tratava-se do início de um inédito cenário esportivo que se moldava na capital paranaense - no qual o esporte ganharia cada vez mais status de um importante elemento para a transformação social e cultural, difundindo novas noções educacionais, especialmente em torno de ideias relacionadas à higiene, saúde, exercício físico e cuidados com o corpo em geral.
Ao investigarmos experiências das corridas de cavalos em Curitiba, nos parece evidente que a dinâmica e sua estrutura de oferta foram apenas um dos mais diversos locais de passatempos que emergiram no Brasil durante o recorte investigado que podem evidenciar como os momentos e espaços de diversão são prescritores de noções, posições, comportamentos e instruções variadas, conformando-se como um profícuo tópico para inquirições históricas, principalmente as de cunho educacional.
Nessa direção, com base nas fontes consultadas, consideramos que as corridas de cavalos (e possivelmente outros momentos de recreação) eram “laboratórios” que contribuiriam para a organização cotidiana da capital paranaense, de modo que aquilo que fosse experimentado e aprendido nesses momentos encontrasse repercussão e divulgação em outros espaços e tempos sociais.
Sendo assim, os comportamentos em torno das corridas de cavalos nos possibilitaram perceber que momentos aparentemente fortuitos, como os de diversão, podem ser ricos polos prescritores de noções educativas. Acompanhar as corridas exigia todo um domínio de gestos que precisaram ser aprendidos. No caso, costumes específicos do meio esportivo eram instruídos pelos próprios mecanismos dessa cena, mas não apenas, ideias de cortesia, honestidade e afabilidade que deveriam ser seguidas em todas as esferas sociais também eram enfatizadas no e pelo passatempo em questão. Portanto, na mesma medida que o hipódromo era o ambiente adequado para a oferta das corridas de cavalos, o espaço se forjava como um local de ensino de comportamentos esperados em seu interior. As corridas de cavalos, assim, apresentavam instruções de dupla ordem: a prescrição e aquisição de determinados comportamentos, e a exigência e fiscalização do aprendizado desses gestos.
Por fim, é possível constatar, em diversos momentos de lazer, nos mais variados locais e cidades, a oferta e demanda do ensino e aprendizado de costumes, atitudes e regras. Valerá, portanto, mais inquirições acerca do cenário recreativo de Curitiba e de outras cidades. Novas fontes também podem ser ferramentas prósperas para percebermos facetas inéditas desses momentos, abordando seus organizadores, frequentadores, locais de oferta e as representações e discursos vinculados aos mais distintos passatempos, enriquecendo ainda mais os estudos sobre a história dos divertimentos como estratégias educacionais.
R2: dois convites; dois pareceres recebidos.
R3: dois convites; dois pareceres recebidos.
E-mail: eduardo.galak@unipe.edu.ar
*Autor correspondente. E-mail: leonardodocoutogomes@gmail.com
