ARTIGO ORIGINAL
“O começo, o meio e o começo”: trajetórias do Dicionário de autoras(es) de cartilhas e livros de leitura no Brasil (século XIX)
“The beginning, the middle, and the beginning”: trajectories of the Dictionary of authoress (authors) of primers and reading books in Brazil (19th century)
“El principio, el medio y el principio”: trayectorias del Diccionario de autor(es) de cartillas y libros de lectura en Brasil
“O começo, o meio e o começo”: trajetórias do Dicionário de autoras(es) de cartilhas e livros de leitura no Brasil (século XIX)
Revista Brasileira de História da Educação, vol. 25, e351, 2025
Sociedade Brasileira de História da Educação
Recepción: 29 Enero 2024
Aprobación: 19 Julio 2024
Publicación: 01 Octubre 2024
Financiamiento
Fuente: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
Nº de contrato: 30/2023
Descripción del financiamiento: A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 30/2023) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Resumo: Este artigo propõe debater aspectos de uma pesquisa interinstitucional, que resultou na produção do Dicionário de autoras(es) de cartilhas e livros de leitura no Brasil (século XIX), publicado em 2023 pela Editora Cegraf UFG. Objetivamos problematizar o uso da biografia na História da Educação, debatendo os caminhos metodológicos percorridos na constituição dos verbetes biográficos registrados nessa obra. Ao socializar os percursos para o desenvolvimento do Dicionário, apresentamos dados que explicitam os resultados e as lacunas da pesquisa, pretendendo garantir a divulgação das trajetórias de um projeto extenso, com as dificuldades próprias de uma produção que envolveu oitenta pesquisadoras(es) de várias regiões do Brasil e de Portugal.
Palavras-chave: Dicionário biográfico, História da Educação, século XIX.
Abstract: This article proposes to discuss aspects of an inter-institutional research project, which resulted in the production of the Dictionary of authoress (authors) of primers and reading books in Brazil (19th century), published in 2023 by Editora Cegraf UFG. We aim to problematize the use of biography in the history of education, debating the methodological paths taken in the constitution of the biographical entries recorded in this work. In socializing the paths taken to develop the Dictionary, we present data that explains the results and gaps in the research, with the aim of ensuring the dissemination of the trajectories of an extensive project, with the difficulties inherent in a production that involved eighty researchers from various regions of Brazil and Portugal.
Keywords: Biographical dictionary, History of Education, 19th century.
Resumen: Este artículo propone discutir aspectos de una investigación interinstitucional, que resultó en la producción del Diccionario de autor(es) de cartillas y libros de lectura en Brasil (siglo XIX), publicado en 2023 por la Editora Cegraf de la UFG. Nuestro objetivo es problematizar el uso de la biografía en la Historia de la Educación, debatiendo los caminos metodológicos seguidos en la creación de los registros biográficos registrados en este trabajo. Al socializar los caminos para la elaboración del Diccionario, presentamos datos que explican los resultados y vacíos de la investigación, pretendiendo garantizar la difusión de las trayectorias de un proyecto extenso, con las dificultades inherentes a una producción que involucró a ochenta investigadores de diversas regiones de Brasil y Portugal.
Palabras clave: Diccionario biográfico, Historia de la Educación, siglo XIX.
Introdução
“O começo, o meio e o começo”1, trecho da poesia de Nêgo Bispo, pensador quilombola brasileiro falecido em 03 de dezembro de 2023, é um convite para pensarmos acerca dos objetivos deste artigo, que se propõe a problematizar o uso da biografia na História da Educação, apresentando a trajetória de produção do Dicionário de autoras(es)2de cartilhas e livros de leitura no Brasil (século XIX), publicado em setembro de 2023 pela Editora Cegraf UFG3. Longe da linearidade de uma tradição historiográfica europeia, visão combatida por Bispo, propomo-nos a divulgar as ideias que nos levaram a conceber esse projeto de pesquisa, tratar de seus princípios, seu desenvolvimento e outros começos, que a partir dele poderão ser concebidos.
Ao problematizar os caminhos percorridos na pesquisa, pretendemos, neste trabalho, publicizar os aspectos relacionados a uma rede científica de sociabilidade que se dedicou a escrever histórias de mulheres e homens, autoras(es) de impressos pedagógicos e de uso escolar na História da Educação brasileira. A organização desse projeto só foi possível graças às inúmeras investigações realizadas sobre o século XIX no Brasil, um tempo de ambiguidades próprias da história, período que não foi uma lacuna na historiografia educacional, mas constituído de produções, de ideias e de propostas que proporcionaram meios para dar suporte nas continuidades de pensar a instrução e as formas de ensinar no território brasileiro.
O referido Dicionário foi iniciado em 2019, organizado ao longo de quatro anos por quatro docentes e envolveu oitenta pesquisadoras(es) de várias regiões do país e de Portugal, sendo constituído por setenta e três verbetes biográficos sobre autoras e autores de cartilhas e outros livros para o ensino inicial da leitura e da escrita que circularam em escolas e outros espaços no Brasil Oitocentista. A intenção foi promover e visibilizar biografias de pessoas do século XIX que se ocuparam da produção de materiais escolares impressos em lugares não homogêneos, que costuraram páginas de livros para nos contar sobre métodos, práticas, conteúdos e “liturgias escolares”4 para ensinar a ler e a escrever.
É mister destacar que, até meados do século XIX, as crianças brasileiras não conheciam as séries graduadas de livros de leitura. A Constituição do Império, o Código Criminal, os Evangelhos, os Catecismos, os Tesouros, os Parnasos e as Antologias eram praticamente tudo de que dispunham as escolas para o ensino da leitura. Na ausência de livros, os professores utilizavam um conjunto de textos manuscritos, como cartas familiares, documentos de cartório, papéis velhos etc.
Sem dúvida, ao se examinar o conteúdo dos textos escolares ao longo do século XIX, encontram-se diferentes orientações. Inicialmente a leitura para as escolas de primeiras letras apresentava nitidamente cunho religioso, o que, segundo Tambara (2003), decorreu da orientação jurídico-institucional do sistema político do Império brasileiro associado à doutrina religiosa católica que procurava modelar, tanto nos regulamentos do ensino primário quanto nos manuais escolares, mecanismos de controle do processo de leitura nas escolas, submetendo-os a censuras doutrinárias, propondo um sistema que buscava unir os atos de ler e escrever à fé católica e à obediência ao Estado.
Nas últimas décadas do século XIX, ocorreram a intensificação e a consolidação de uma proposta de ensino da leitura, marcada pela dualidade de orientações religiosas católicas e seculares liberais nos textos escolares infantis, bem como discussões abalizadas por novos elementos estruturais que procuravam afastar a leitura escolar de procedimentos rotineiros, baseados no senso comum, para aproximá-la de novas atitudes e comportamentos caracteristicamente do método científico.
Tendo isso em vista, este artigo está organizado em três subitens que abordam de forma sequencial: o reconhecimento de pesquisas anteriores a respeito do tema, outros dicionários publicados que narram histórias privadas, os riscos da história única, as escolhas e os recortes; na sequência, apresentamos as responsabilidades científicas na organização de uma investigação na História da Educação, os percursos interrompidos pela pandemia de Covid-19, as continuidades, a composição das escritas coletivas; por fim, explicitamos os resultados, as lacunas e outros movimentos que fizeram parte da construção do Dicionário.
Esperamos que este texto colabore para outras iniciativas de produção de materiais coletivos, que nos ajudem a compreender o largo, e complexo, processo do uso da biografia na história da educação brasileira, considerando que, por detrás de produções didáticas, de feitos educacionais, dentre outros, há a participação de diferentes pessoas, e sobre as suas vidas há muito o que ser investigado.
O que veio antes: narrar vidas e evitar a “pedagogia do exemplo”
A produção e circulação de dicionários contendo temáticas de verbetes variados ocupou, nas últimas décadas da História da Educação brasileira, um espaço expressivo e relevante. Ao pensarmos o projeto do Dicionário de autoras(es) de cartilhas e livros de leitura no Brasil (século XIX), consultamos como referências alguns dicionários específicos do século XIX, como o Diccionario bibliographico brazileiro (Blake, 1883) e o Diccionario bibliographico portuguez (Silva, 1858), além de outros mais recentes, como o Dicionário de educadores no Brasil: da colônia aos dias atuais (Fávero & Britto, 2002); o Dicionário de educadores e educadoras em Goiás - séculos XVIII ao XXI (Valdez, 2017); o Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado (Schumaher & Brazil, 2000); o Dicionário crítico da literatura infantil/juvenil brasileira (Coelho, 1984), entre outros. Tomamos ainda como referência obras fundamentais nos estudos da história do livro e da alfabetização, tais como Pfroom Netto et al. (1974), Tambara (2003) e Mortatti (2000). Esses materiais discutem acerca das construções e dos usos de diversos escritos escolares, seus sentidos, perspectivas e objetivos, alicerçados em uma historicidade.
Ainda que os livros citados não tenham privilegiado, especificamente, biografias de pessoas que produziram livros escolares, serviram como modelos para estruturar metodologicamente a proposta do Dicionário em questão. Não pretendemos, aqui, fazer um estudo sobre essas obras e advertimos que, no exercício de consulta, a intenção foi de reconhecê-las e nos inspirar para produzir um livro que reunisse verbetes biográficos sobre trajetórias que tinham em comum a escrita de livros de uso escolar para ensino da leitura e da escrita. Nesse ponto, Abreu (1998) assinalou que produzir um dicionário biográfico é organizar um saber com a soma considerável de informações colocada à disposição de pessoas da Academia e fora dela.
Importante refletir a respeito das escolhas dos nomes para compor o material, pois, ao lermos outros dicionários, foi possível identificar um número significativo de pessoas consideradas importantes devido aos espaços ocupados e seus feitos em diferentes áreas da sociedade. Consideramos que as pessoas biografadas devem ter reconhecimento em composições e conjunturas políticas e sociais, superando falseamentos e omissões, no entanto evidenciar outros nomes que contribuíram é fundamental para extrair diferentes sujeitos da anonimidade. Evidentemente, alguns nomes são conhecidos, mas, como afirmou Le Goff (2013), homens e mulheres “famosos” são símbolos e reveladores de um tempo e de uma época. Ainda assim, é válido destacar o afinco em descortinar novas histórias, preferencialmente aquelas que são plurais, inquietantes e raras.
O uso de dicionários biográficos para consultas e produção de outras escritas nos provocou a refletir sobre o valor de uma produção biográfica historiográfica que se caracteriza como uma fonte ao levar para o público conhecimentos não unicamente concernentes aos seus objetos específicos, mas sobre outros alguéns. A respeito de materiais em formato de dicionário que circulam na área da educação, vale ressaltar que podemos encontrar, longe de esgotar o tema, outras obras que abordam temas dessa área. De acordo com Valdez e Alves (2019, p. 06),
Tomados como materiais não confiáveis, os dicionários ou compilações que reúnem verbetes humanos foram, se não recusados por um tempo, criticados por apresentar histórias únicas e inquestionáveis. No entanto, as biografias compiladas sob essa perspectiva têm sido reconsideradas, sobretudo a partir dos anos 1990, por serem elaboradas por especialistas da academia. O número de material dessa natureza é amplo, e, ao investigarmos páginas de sites de editoras, grandes livrarias, sebos reunidos, notamos que a produção de dicionários de pessoas, com verbetes limitados ou extensos, tomou uma proporção considerável.
Os dicionários podem oferecer pistas diversas a respeito da história da educação e aqui, em especial, da história de autoras(es) de impressos escolares, pois, a despeito do tempo e do lugar, trata-se de grupos que atuaram na construção do conhecimento, de saberes que circulavam e eram transmitidos pelas páginas de suas obras. Sabemos que os exercícios e as relações no decorrer da História da Educação não são homogêneos e tampouco harmônicos e, nesse aspecto, vale registrar que em nossos estudos sobre esse tema, nos deparamos com marcada ausência de dados sobre as trajetórias de escritoras(es), visto que boa parte é velado em função do enaltecimento de suas obras.
Aqui, cabe o desejo de trazer histórias de vidas que nos escaparam de conhecer em nossas experiências de pesquisas sobre a história de impressos. Ao buscarmos dados sobre autoras e autores de livros escolares, foi possível perceber que boa parte das(os) responsáveis pela produção de livros possivelmente teve sua trajetória atenuada na história da educação. Ou seja, suas obras circularam, ensinaram, se tornaram conhecidas, enquanto suas vidas foram quase ignoradas.
Pode-se citar como exemplos um pouco do que constatamos na elaboração de nossas teses sobre personagens do século XIX. Rocha (2019) evidenciou Antonio Pinheiro de Aguiar, autor do livro Bacadafá ou methodo de leitura abreviada, obra referenciada como uma produção nacional dos anos de 1850, que consistia numa proposta de historietas sobre quatro indígenas que formavam uma família. De acordo com esse pesquisador, Pinheiro de Aguiar passou despercebido em muitos estudos sobre os livros escolares escritos e publicados no Brasil Imperial, pouco se sabendo sobre sua trajetória pessoal.
O segundo exemplo é o de João Köpke, significativo educador de sua geração a pôr em circulação, na imprensa e nas escolas por onde passou, uma pedagogia considerada moderna e republicana. Sua série de livros de leitura foi definida como referência de um ensino concreto, científico sob a metodologia intuitiva, caracterizada pelas lições de coisas, com aulas seriadas, graduadas e simultâneas, juntando atividades extraclasse, conferências populares noturnas e pelo ensino analítico da leitura. Panizzolo (2006, p. 23) afirmou que Köpke, “[…] embora muito citado, era apresentado com contornos pouco definidos, como que ofuscado pelas pessoas em seu redor ou por suas próprias circunstâncias”.
Abilio Cesar Borges, o Barão de Macahubas, foi autor de uma das primeiras séries de livros de leitura publicadas no Brasil. Apesar de uma intensa propaganda de si mesmo, os dados sobre a vida deste médico/educador se dissolvem no interior de suas obras e de seus escritos. De acordo com Valdez (2006), sua série de livros de leitura circulou por todas as províncias do Império, pois ele a distribuía gratuitamente para divulgá-la. Abilio foi contemplado com o título de Barão pelo Império brasileiro por seus préstimos à instrução e, além de autor, foi proprietário e diretor de colégios privados na Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
No Dicionário, as trajetórias de Borges, Köpke e Pinheiro de Aguiar se juntam às de outras pessoas que têm parte de suas histórias registradas nos contextos de produção de livros e cartilhas para o ensino da leitura e escrita na história da educação brasileira. Assim como os exemplos citados, outras e outros tiveram, por motivos variados, suas biografias esquecidas e, muitas vezes, apagadas na história. Reunir biografias possibilita ampliar o acesso ao conhecimento, pois revelar trajetórias desses grupos pode dar-lhes visibilidade e reconhecimento pelos lugares sociais e políticos que ocuparam. É possível problematizar suas atuações, confrontos e disputas no mercado editorial, nas relações estabelecidas com o Estado, nas estratégias de propagandas para adoção, circulação e manutenção no mercado, além de outras pistas que possibilitam o acesso ao conhecimento da história de materiais impressos na instrução e na educação brasileira.
Cuidamos, com constância, para que os verbetes que compuseram o Dicionário de autoras(es) de cartilhas e livros de leitura no Brasil (século XIX) evitassem as costumeiras exaltações e elevações aos panteões laudatórios e elogiosos que fazem de trajetórias individuais histórias únicas e sem confrontos. Priorizamos as histórias plurais, nas quais os tempos e os lugares ocupados indicam as especificidades de projeções ou de não projeções. Sobre este aspecto, Valdez e Alves (2019, p. 17) registraram:
O movimento recente, que colocou a biografia no centro das produções científicas na área da história, está pautado pelo rigor do método científico que não objetiva enaltecer sujeitos, ao contrário, almeja apresentá-los no contexto histórico, problematizando-o nos meios social e político. Assim, não priorizamos sujeitos ilustres do gênero masculino, no contexto histórico-social apreendemos histórias plurais de homens e mulheres que viveram em tempos e lugares distintos.
Orientamos, por meio de um roteiro, as(os) biógrafas(os) convidadas(os) no projeto a elaborar verbetes em uma perspectiva histórica, evitando escrita memorialística ou laudatória sobre cada autora e autor. O objetivo foi reunir histórias contemplando a pluralidade de nomes e vidas de mulheres e homens que, em seu ofício de publicação de impressos, constituíram saberes educacionais. Nesse sentido, Dias (2023) destaca que o projeto intelectual da biografia inserida no campo da História da Educação consolida-se como um exercício capaz de oferecer e partilhar conhecimentos ainda não encarados em outros formatos de se escrever história.
No final de cada verbete, constam, além das referências bibliográficas, as fontes consultadas que, por mais que sejam variadas, nota-se a permanência de documentos como: impressos diversos (jornais, revistas, periódicos, boletins, almanaques, relatórios etc.); obras escolares das(os) autoras(es); dicionários do período, com destaque para o Diccionario bibliographico brazileiro (Blake, 1883).
Olhar para o passado exige cuidado e paciência, pois os fenômenos educativos de que as pessoas participaram não são previsíveis nem dotados de doutrinas e de verdades prontas, assim como o tempo não é linear nem caminha progressivamente para o futuro. Por isso, é importante não desvincular as histórias de vidas do contexto político, social e cultural do período e do espaço investigado.
No que se refere ao aspecto da história individual ou biográfica, não podemos ignorar que, durante muito tempo, esse foi um dos modelos que se constituíram como a própria história da educação. Era comum encontrarmos biografias que serviram como fonte para a escrita da história, de sujeitos idealizados, movidos pelo caráter missionário da educação, revestidos de posturas salvacionistas. Dessa forma, autores, professores, intelectuais e outros apresentados como grandes pensadores da educação (preferencialmente, homens brancos) foram alçados quase que de forma religiosa como referenciais de abnegação, dedicação e exemplo a ser seguido.
As biografias às quais nos referimos, comuns até os anos oitenta do século XX, apresentam dados que privilegiam, de forma quase exclusiva, a memória em detrimento da história, pois os préstimos desses sujeitos para a instrução configuram o sentido de um passado único e coerente. Embora boa parte delas possa fornecer dados relevantes para a história da educação, muitas, sobretudo, por se tratar de homenagens, devem ser vistas com atenção redobrada e olhar criterioso, cotejadas e problematizadas à luz de condicionantes políticos, econômicos, sociais e culturais, que permitam análise que ultrapasse as manifestações laudatórias.
Não se trata de dispensar o uso da memória na escrita da história. A memória, segundo Le Goff (2003), como propriedade de conservar certas informações, primeiramente nos remete a um conjunto de funções psíquicas pelas quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. Destarte, na representação de trajetórias individuais, pode haver uma tentativa de reconstrução de um conjunto de lembranças com a intenção de reconhecer um sujeito de forma isolada, como expressou Carino (1999, p. 17, grifo do autor) ao se referir à “pedagogia do exemplo”:
Vale observar que a biografia, como arte de narrar vidas, embora trabalhe com cada vida em suas particularidades, extrai de cada uma delas certas características típicas. Essa tipologia é que servirá a uma “pedagogia do exemplo”. Tomadas como exemplo, imitadas, seguidas, integrando um “modelo” de conduta determinado pelo espírito da época, servirão à educação.
Diante do excerto, refletimos que a ação biográfica se estabeleceu em muitas escritas da história da educação como uma espécie de repositório de exemplos educativos, selecionando ações e reações da pessoa biografada, como modelo inconteste a ser seguido, sobretudo exaltando experiências.
Entretanto, a ideia de “pedagogia do exemplo” precisa ser repensada, pois é relevante, na escrita biográfica, levar em conta a preocupação de não se limitar à reconstrução da história individual, mas sim buscar problematizar a respeito da(o) biografada(o) e da coletividade que a(o) cerca, tarefa nada fácil se pensarmos nos confrontos e ambiguidades da escrita de uma história individual, como já apontamos.
Loriga (2011, p. 13), ao discutir a perda da pluralidade na escrita da história, alertou para o que caracteriza história, ou relatos sem sujeito: “Eles tratam de potências, de nações, de povos, de alianças, de grupos de interesses, mas bem raramente de seres humanos”. Em uma pesquisa científica, a historiografia é indispensável para compreender o fazer biográfico, na medida em que contempla pesquisa, documentação, interpretação e recursos narrativos. Por isso, as biografias, sem dúvida, nos indicam importantes vestígios, permitindo-nos formular outras questões para explorar os limites e as possibilidades da vida e da prática da(o) biografada(o).
No que se refere a biografar homens e mulheres no Dicionário de autoras(es) de cartilhas e livros de leitura no Brasil (século XIX), ressaltamos a necessidade de um olhar dilatado, que permitisse reconhecer as pessoas em suas nuanças determinadas pelo tempo e pelo espaço em que atuavam. Como registrou Malcolm (1995), a biografia é uma forma da vida de alguém “ser da conta” de todo mundo, no entanto o aparato acadêmico dado às biografias parece escapar do puro voyerismo, pois, como ressaltou Schmidt (2014, p. 140, grifo do autor),
[…] não há, como sabemos, fatos importantes em si, que precisam ser revelados “doa a quem doer”, mas sim fatos que se tornam históricos se nos ajudam a responder os nossos problemas de pesquisa. Assim, desde o ponto de vista da pesquisa histórica acadêmica, as práticas sexuais de determinado personagem não são em si material a ser incluído em uma biografia, apenas se estivermos perguntando, por exemplo, sobre os padrões morais dos grupos dos quais ele participava.
Schmidt (2017) atesta que a biografia, em seu sentido literal, está ligada ao próprio surgimento da história como forma de conhecimento do mundo e, partindo dessa premissa, evidentemente, movimentar-se em meio a biografias de diferentes autoras(es) pode auxiliar a ampliar a visão para a história da infância, da alfabetização, do ensino da leitura e da escrita, sob diversos aspectos. Desse modo, o recorte de tempo do Dicionário em questão justifica-se pelo fato de os primeiros impressos escolares eminentemente brasileiros, como livros de leitura, séries graduadas, silabários, cartas de ABC, cartilhas e outros, datarem do século XIX, expandindo-se durante o século XX.
Ao seguirmos, e ponderarmos, as contradições próprias da história, salientamos que os verbetes que compõem o Dicionário, considerando as variantes das opções teóricas, atendem à subjetividade da escrita de quem os escreveu e são históricos, uma vez que tratam de vidas que não são únicas e, tampouco, exclusivas, mas que podem compor galerias de práticas educacionais provenientes de diferentes sujeitos, lugares e perspectivas. Ao nos atentarmos para o subtítulo deste item, considerar o que veio antes para narrar vidas pode nos ajudar a desconstruir, a romper, a tão cristalizada “pedagogia do exemplo” que se centra no individual como modelo para o coletivo.
Produção e responsabilidade científica: vias seguidas e interrompidas
Após problematizar a natureza histórica de materiais como os dicionários, os riscos da escrita de trajetórias individuais e tecer considerações a respeito de biografias na história, propomos trazer, ou coletivizar, aspectos acerca da ordenação e organização metodológica definidas e aplicadas no planejamento inicial do projeto em pauta, considerando tal exercício como fulcral em uma investigação científica. Nesse movimento, ainda que tenhamos feito um projeto planejando o processo, vale registrar que no caminho nos deparamos com a pandemia da Covid-19 marcando os primeiros passos de execução da investigação. Durante os primeiros dois anos, os pensamentos e objetivos foram confrontados com medos, perdas, isolamento, dores, descaso por parte do Estado e inseguranças diversas.
Inauguramos, em janeiro de 2020, algo que poucos meses depois se tornaria a única opção nos fazeres acadêmicos, seja na docência, na pesquisa ou na extensão: as reuniões em formato remoto. Em nosso caso, era a única alternativa disponível, pelo fato de vivermos distantes, em Goiás, Minas Gerais e São Paulo. Assim, cruzamos as ideias para a escrita do projeto, sem imposições, pois, diante do passar dos meses e do crescente número de óbitos, não era possível ignorar tudo que acontecia no mundo e no país. Na defesa pela ciência e pesquisa brasileira, escolhemos não desprezar os abandonos, as renúncias e os desesperos que cerceavam especialmente a população brasileira. Dar o tempo foi preciso e, dentro de nossas possibilidades e do coletivo, consideramos inevitáveis as interrupções e atrasos, cientes de que o tempo não pararia.
O primeiro movimento foi um longo debate sobre os nomes que comporiam o Dicionário, ressaltando que, a princípio, o recorte temporal abrangeria os séculos XIX e XX, pois achávamos, de forma empírica, como consequência de nossas experiências em estudos sobre o século XIX, que não encontraríamos um número extenso de autorias desse período a serem biografadas. No entanto, como se passa na maioria das pesquisas, ao realizar um extenso e minucioso processo de consulta sobre o tema na plataforma da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), bem como em outras publicações já anotadas, nos deparamos com um número elevado de pessoas que se encaixavam nos objetivos do projeto. Assim, decidimos organizar dois volumes: Volume I: Século XIX e, posteriormente, o Volume II: Século XX.
Vale registrar ainda a relevância das consultas, durante todo o percurso do projeto, assim como para a escrita de boa parte dos verbetes, na Hemeroteca Digital Brasileira, portal de periódicos que integra a Biblioteca Nacional, espaço público que presta enorme serviço para pesquisas, manutenção e escrita da história e memória da educação. Em tempos de pandemia, de isolamento, de arquivos fechados, esse repositório digital foi fundamental para manter a proposta em pauta.
Manifestamos a importância desse espaço digital e de tantos outros, em prol do crescimento de uma ciência aberta, plural, a serviço de todas as pessoas e inerente à valorização particular e coletiva de cada pesquisadora e pesquisador. Como registrou Dias (2018), o levantamento bibliográfico, para nós, dialoga diretamente com a qualidade de uma pesquisa, pois, além de expandir o conhecimento sobre um determinado tema, fornece exemplos dos elementos constitutivos de uma pesquisa, como a problemática, hipóteses, objetivos, metodologia etc. Logo, abastecer-se de condições teóricas por meio dessa ação é um ato que exige responsabilidade científica, uma vez que se trata não somente de produções de outrem, como também representa a base fundamental na efetivação de uma pesquisa, norteando-a e atualizando-a diante das discussões presentes no campo estudado. Caracteriza-se como um mapeamento com propósito de reunir referências sobre um ou vários temas específicos. Na busca realizada nos meses de março a junho de 2020, priorizou-se desvelar autoras(es) de livros e cartilhas para o ensino da leitura e da escrita e foi empregada a combinação de palavras-chaves como: autor; autora; livro de leitura; cartilha; século XIX; ensino de leitura; ensino de escrita; alfabetização; história da educação; biografia; história biográfica.
Organizamos, então, uma tabela com dados representativos de cada biografada(o), contendo: nome; locais e datas de nascimento e falecimento (quando identificadas); impressos produzidos; recortes da produção; trabalhos acadêmicos que tiveram as(os) escritoras(es) como objeto de pesquisa.
Sobre o último item, trata-se de teses, dissertações, artigos científicos e trabalhos de conclusão de curso. Insistimos na importância de compartilhar, valorizar e reconhecer trabalhos produzidos no Brasil. A partir dessa consulta, elaboramos um levantamento ilustrado com imagens de livros e cartilhas das(os) autoras(es). Posteriormente, foram listados nomes e contatos de pesquisadoras(es) de todo o país e do exterior, especialistas nas(os) escritoras(es) listadas(os), e enviamos cartas convidando essas pessoas para participar do Dicionário com a escrita de um ou mais verbetes. Vale destacar a ausência de pesquisas e referências acerca de muitas autorias que foram citadas em teses e dissertações, inventariadas na etapa da revisão bibliográfica, fato que reitera a necessidade de continuidade de investigação que revelem histórias encobertas.
Concernente à seleção das(os) biógrafas(os), esclarecemos que foram priorizados dois cenários: primeiramente pesquisadoras(es) dos campos da história biográfica, história da educação e/ou da história da alfabetização, assim como intelectuais que anteriormente haviam construído algum tipo de escrita sobre determinada(o) biografada(o) que estava presente no escopo do projeto. Para a produção da escrita dos verbetes, organizamos um roteiro que foi enviado antecipadamente para cada pessoa convidada, respeitando sua concepção metodológica, com dados para orientar a elaboração da escrita científica, em que se reitera a importância da análise histórica de confrontos e problematização das fontes. Compreendemos que dispor de recortes é, sobretudo, indispensável, em virtude do quantitativo de fontes que podem ser recolhidas e utilizadas, assim como tais recortes são essenciais na percepção e seleção de fatos, pessoas e coisas. Na constituição dos verbetes biográficos, para além de uma proposta biográfica histórica, também se objetivou apresentar, em um esforço coletivo, conhecimentos reunidos em uma espécie de fonte de consulta para investigações posteriores.
Quando nos propomos a apresentar a precaução metodológica de um dicionário humano, tencionamos oferecer dados de pessoas que não foram, exclusivamente, escritoras ou escritores de livros escolares, pois, neste período, não existia essa exclusividade, como ocorreu no século XX. As(Os) autoras(es) exerciam profissões diversas, como professoras(es) e outros cargos em escolas, colégios e outros, ocupantes de cargos públicos, médicas(os), advogadas(os) e outros ofícios em meio a aceitações e aversões. Explanar sobre a metodologia proposta e efetivada vai além de uma concepção inflexível e, comumente, defendida em trabalhos acadêmicos, pois a ideia é incentivar outros percursos na constituição de escritas biográficas que cooperam para divulgação do conhecimento da história nacional.
No processo investigativo, constatamos que uma parte substancial de nomes foi localizada devido, unicamente, a sua produção de impressos, pois há um movimento científico e historiográfico que se dedica aos estudos referentes aos livros escolares, muitas vezes, afastando-se das(os) responsáveis por suas produções. Na história da alfabetização, por exemplo, são facilmente identificáveis trabalhos que analisam o conteúdo, métodos de alfabetização, cultura material, ilustração, adoção e circulação do material, dentre outras possibilidades. Acerca disto, destacamos a prioridade investigativa de estudos biográficos históricos, sem perder de vista as produções das(os) biografados(os), destacando os confrontos enfrentados pelas pessoas que se dedicaram a escrever obras para o ensino inicial da leitura e da escrita.
Escritas coletivas: resultados, lacunas e promessas
Após quatro anos, ao concluir a produção do Dicionário de autoras(es) de cartilhas e livros de leitura no Brasil (século XIX), nos deparamos com a sensação de inacabamento, como todo sentimento final de uma pesquisa, mas também de muito contentamento por trazer à tona setenta e três histórias de vidas oitocentistas, escritas pelas mãos de oitenta pesquisadoras(es) advindas(os) de diferentes regiões do Brasil e de Portugal5. Além da satisfação registrada e vivida, visualizamos as ausências e as promessas de, em outras produções, contemplar nomes que precisam de tempo para serem investigados, pois, em virtude do encerramento e publicação do Dicionário, confirmamos a impossibilidade de incluir mais de uma dezena de escritores6, por desistência de pessoas convidadas ou por só termos identificado essa ausência no final da produção da obra.
Registrar os nomes não biografados é importante para rememorar que o fazer histórico científico também é constituído por lacunas, que ao mesmo tempo impõem-se como possibilidades de escritas futuras. Compreendemos, ademais, que as fontes dispostas são escassas no que concerne às histórias de mulheres, negras(os) e povos originários, no entanto devemos lembrar que é na (quase) ausência que encontramos as maiores necessidades de se registrar a história.
Aqui, explanaremos algumas proposições e problematizações em torno de personagens biografadas(os), especialmente no que compete às origens de tempo e do espaço. Justificamos a ausência de um gráfico que registrasse a data de edição dos impressos, sobretudo pela dificuldade de localizar esses anos de forma segura. O que podemos afirmar é que a grande maioria dos impressos, cerca de 90%, foi publicada na segunda metade do século XIX, com destaque para as décadas de setenta e oitenta.
A respeito das especificidades nacionais e regionais, ou seja, as origens e os espaços geográficos em que circulou o grupo de biografadas(os), seja a origem de nascimento nacional e internacional, seja a circulação no interior do Brasil, verificamos as concentrações nos gráficos 1, 2 e 3 a seguir.

Nota-se que em torno de 78% dos nomes biografados são de autoras(es) nascidas(os) no Brasil, em diferentes províncias, sendo o restante composto por pessoas nascidas na América (Uruguai) e Europa (Portugal, Espanha, e Alemanha, denominada na época de Prússia). O quadro 1 a seguir apresenta a origem nacional do grupo estrangeiro:

A maioria provinha de Portugal, no entanto percebe-se ainda que muitas pessoas desse quadro, apesar de não terem nascido no Império brasileiro, viveram boa parte de sua vida em terras brasileiras. É o caso de Adelina Amélia Lopes Vieira, Romão Puiggari, Augusto Emílio Zaluar, João Vicente Martins e outros que nasceram em outros países e vieram, ainda criança, ou jovem, para o Brasil, permanecendo até a morte, chegando alguns a se naturalizarem brasileiros. Já outros, como João de Deus e António Castilho, estiveram no Brasil para dar cursos, divulgar suas obras, com passagens pontuais.
A presença de autores estrangeiros no Dicionário nos remete à reflexão sobre materiais escolares advindos do exterior para serem inseridos no sistema educativo brasileiro do período. Esses materiais eram considerados modelos para o ensino da leitura e da escrita, pois se originavam de lugares, sobretudo países da Europa, reconhecidos como civilizados e modernos. Por isso, oficializava-se e indicava-se a adoção deles em espaços educativos por intermédio da legislação educacional do período.
Ainda que tenham vindo de outros países, esses autores produziram obras para o ensino da leitura e da escrita inseridas em um cenário de afirmação da construção da identidade nacional brasileira. É sabido que a história da educação brasileira sofreu com a imposição e influências educacionais de nomes internacionais, mas, a despeito disso, nota-se uma tentativa extenuante de nacionalizar os impressos escolares, visto que a grande maioria de autores era brasileira.
Essa conjuntura reitera a importância de se observar os impressos não somente como auxílios metodológicos, mas também como projetos de construção de educação, de país, de cidadão, a partir da apropriação de propostas, bem como de circulação de ideias dos dois lados do oceano. Ao seguir os discursos produzidos por pessoas nascidas em outro espaço social, econômico, histórico e geográfico, adotaram-se em território nacional, nos impressos escolares, modos de ensinar distantes da realidade de um país escravocrata e agrário, com a maior parte da população analfabeta.
A respeito da organização de autorias por regiões, vale ressaltar que utilizamos divisões diferentes das que havia no tempo do Império brasileiro quando o país se organizava por províncias e não por regiões, como hoje. Adotamos a última disposição do país elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1970, que compreende as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Ainda que as fronteiras das províncias contemplem proximidades históricas e geográficas após os anos setenta, os limites sofriam constantes alterações tanto no interior do Brasil Imperial como em seus limites com outros países vizinhos. A divisão era movida por motivos políticos, econômicos, sociais e, sobretudo, pela tentativa de o Império organizar, e controlar, as províncias. Justificamos essa espécie de “anacronismo” para não nos estender na complexa divisão regional do século XIX, que se desdobrou por boa parte do século XX.
Tentamos, com insistência, contemplar autorias de todas as regiões do Brasil, um país plural, grande e nada homogêneo e, a despeito das diferenças de nomenclatura, os estados correspondem ao lugar ocupado nos Oitocentos. A intenção foi a de estender, e compreender, o Brasil para além das regiões consideradas, erroneamente, avançadas ou atrasadas. No que concerne à origem, ou circulação, regional das pessoas biografadas, no quantitativo nacional, destacamos uma profusão de autorias advindas da região Sudeste, somando 51%, seguido da região Nordeste com 30%, como se constata no gráfico a seguir.

O que temos, nessa conjuntura, é um movimento político e social que deve ser visto com zelo e criticidade. Assumimos o empenho na busca por autoras(es) em todas as províncias, no entanto a lacuna admitida manifesta a importância de elaborar produções subsequentes que respondam a essa inquietação. Levamos em conta os estudos localizados em realidades regionais diversas, evitando, como já foi registrado, concentrar em regiões consideradas referências, que, pelo perfil histórico, não devem ser estendidas ao restante do Brasil, pois corre-se o risco de desconsiderar as especificidades regionais.
A ausência de autoras(es) na então região Centro-oeste, considerando as províncias de Mato Grosso e Goiás, pode ser justificada pela composição das duas regiões que tiveram o processo de ocupação diferente devido à exploração do ouro e escravização de povos indígenas ter ocorrido somente no século XVIII, enquanto nas outras províncias esse processo se iniciou no século XVI. Essa é uma circunstância que pode ser conferida, e confrontada, com pesquisas sobre o tema, contudo, quando se trata de Goiás, nossas buscas por provas de que havia produções locais, sobretudo no interior das pesquisas acompanhadas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação da Universidade Federal de Goiás, grupo que privilegia as produções sobre história da educação local, têm sido constantes. Não encontramos pistas que apontem autorias locais, pois a adoção desses materiais provinha de outras localidades do país, como foi constatado em artigos, dissertações e teses consultadas.
Para além do recorte de origem e espaço, cabe dizer a respeito do gênero dos(as) biografadas(es). O resultado desse cálculo não nos surpreendeu, pois a imensa maioria, 90%, é do gênero masculino e 10% do feminino.

A profusão especificada atesta para uma inquietação, a porcentagem pequena de mulheres autoras, principalmente pelo fato de que, embora a instrução, em especial a primária, que na época se encarregava do ensino da leitura e da escrita, fosse exercida por mestras, por professoras, ou seja, por mulheres, quem produzia, de forma majoritária, os materiais de ensino, eram os homens.
Tomemos como exemplo a situação em São Paulo, capital. Segundo levantamento das escolas isoladas de 1895, Felipe (2023) afirmou que havia trinta e uma escolas regidas por homens e cinquenta e cinco escolas regidas por mulheres. Ao analisar os índices de escolas isoladas regidas por professores e por professoras entre 1907 e 1919, o autor constatou, ainda, que houve uma vantagem numérica constante do número de professoras sobre o de professores. Portanto, o número reduzido de homens em comparação ao quantitativo feminino no exercício de atividades docentes é comprovado.
A respeito dos lugares que os homens escritores ocuparam, podemos apontar a diversidade de ofícios, classes sociais e posições políticas. Afirmamos, de forma genérica, que eram poucos os que atuavam na instrução primária pública, sendo a grande maioria composta de homens brancos, que viviam em centros urbanos e não eram pobres. Diferente das autoras, ocuparam espaços públicos considerados relevantes, alguns eram médicos, ocupantes de cargos das forças armadas nacionais, advogados, engenheiros, religiosos, jornalistas e outros ofícios que lhes davam destaque no período.
Esses homens e mulheres não somente produziram materiais para o ensino da leitura e da escrita, mas também foram escritoras(es) de livros relacionados a outras áreas de conhecimento, como a literatura, administração, matemática, geografia, agricultura etc. A impressão dessas obras ocorria em tipografias/editoras/livrarias estrangeiras e brasileiras. Notamos também que, inicialmente, a impressão era custeada pelas(os) próprias(os) autoras(es) ou por pessoas ligadas à política, autoridades públicas etc. Aspecto comum entre essas vidas foi a divulgação das obras por meio da abertura de salas de aulas, cursos, exposições para testagem de propostas metodológicas ou até mesmo a publicação, na imprensa, de anúncios ou notas que atestavam a eficiência dos métodos e seus diferenciais.
Por fim, observamos que as narrativas sobre as vidas biografadas no Dicionário se entrecruzaram em vários momentos da história, ocuparam os mesmos espaços, disputando-os ou se aliando para conquistá-los. Tal como Tambara (2023, p. 13) explicitou, nosso desejo é que essas “[...] narrativas sirvam de ponto de partida para novas investigações com muito maior viço”.
Considerações finais
Os resultados aqui apresentados foram organizados com o objetivo de compartilhar um processo de pesquisa que resultou em um material que está disponível, de forma democrática, para consultas, assim como para a produção de outras pesquisas. Os gráficos e o quadro aqui inseridos dão pistas da quantidade de temas que podem ser ampliados, tomando como referenciais diferentes recortes sobre as(os) autoras(es) e suas obras, como: região de origem, nacionalidade, gênero, métodos, disputas, circulação, editoras, ocupações, classe social etc.
A seleção de biografadas(os) no Dicionário de autoras(es) de cartilhas e livros de leitura no Brasil (século XIX) teve como filtro principal a organização de um panorama de mulheres e homens que escreveram impressos escolares para o ensino inicial da leitura e da escrita nas escolas e em outros espaços do Brasil Oitocentista. A investigação ensejou que as vidas dessas pessoas se sobrepusessem às suas obras propriamente. Ademais, longe de enaltecer seus feitos, o intento foi problematizar as trajetórias pessoais e profissionais, circunscrevendo as obras publicadas a contextos e tempos diversificados.
Sabemos que um verbete biográfico tem seus limites devido à própria estrutura do gênero. É evidente que há lacunas nos verbetes, o que é próprio da historiografia, e nem mesmo a extensão de suas páginas pode expropriá-los da característica de escrita histórica biográfica. Desde o princípio, o objetivo foi de desvelar essas vidas, sem a preocupação de esgotar fontes e informações sobre as(os) escritoras(es).
A escrita dos textos do Dicionário ocorreu, maiormente, no período da pandemia de Covid-19, um tempo devastador em que o país estava sob os desmandos de um governo negacionista. Acreditamos ser imprescindível, novamente, deixar esse registro, já que participantes da pesquisa, cujo processo de execução foi aqui explicitado, demonstraram haver um modo de fazer a pesquisa historiográfica naquele momento tão adverso.
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Notas
R2: três convites; um parecer recebido.
R3: dois convites; dois pareceres recebidos.
Notas de autor
E-mail: raqueldiscini@uol.com.br
*Autora correspondente. E-mail: divaldez@ufg.br