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Secularização como embate político e teológico: apontamentos a partir da contraposição entre Carl Schmitt e Ernst Kantorowicz
Secularization as a political and theological controversies: Notes from the contrast between Carl Schmitt and Ernst Kantorowicz
Revista Reflexão, vol. 42, núm. 2, pp. 183-200, 2017
Pontifícia Universiade Católica de Campinas

Artigos


Recepção: 30 Julho 2017

Aprovação: 15 Setembro 2017

DOI: 10.24220/2447-6803v42n2a3998

Resumo: O presente artigo tem como objetivo demonstrar o contraste, tanto político quanto teórico, entre as obras de Carl Schmitt (em especialmente a “Teologia Política”) e Ernst Kantorowicz (“Os dois corpos do rei”), as quais incidem diretamente sobre o problema da secularização. O texto discute breve e criticamente uma certa tradição intelectual que acabou por naturalizar o significado da palavra “secularização”, remetendo-a ao sentido histórico de constituição da modernidade e seus processos de racionalização – e, consequentemente, à constituição da laicidade na esfera pública. A partir disso, destaca-se a tese schmittiana sobre a secularização e aponta-se como ela revela uma dimensão política ampla, num contexto histórico marcante. Em contraste com a obra de Kantorowicz, revela-se como as reflexões sobre a relação entre o teológico e o político demonstram a complexidade e atualidade do tema da secularização e, em específico, sua articulação com o problema da constituição e natureza da esfera pública.

Palavras-chave: Carl Schmitt, Ernst Kantorowicz, Política, Secularização, Teologia.

Abstract: The aim of this study is to discuss the contrast between the political and theoretical works of Carl Schmitt (in particular, Political Theology) and Ernst Kantorowicz (The King’s Two Bodies), both of which focus on the problem of secularization. We will briefly and critically address certain intellectual traditions that have finally naturalized the meaning of secularization, referring to the historical idea of the constitution of modernity, its processes of rationalization, and consequently, the constitution of secularity in the public sphere. Therefore, we will highlight the Schmittian thesis on secularization and point out how it reveals a broad political dimension in a remarkable historical context. By contrasting with Kantorowicz’s work, we will reveal how the reflections on the theological and political relation demonstrate the complexity and the timeliness of the theme of secularization and, in particular, its connection with the problem of the constitution and nature of the public sphere.

Keywords: Carl Schmitt, Ernst Kantorowicz, Politics, Secularization, Theology.

Introdução

Secularidade, cristianismo e racionalização jurídica

Com este trabalho, pretende-se promover uma breve análise dentro da temática “secularização”, ainda não muito presente no campo historiográfico, mas já bem consolidada na sociologia e herdada de uma longa tradição alemã, típica da virada para o século XIX, e que se tornou um eminente problema não apenas teológico, mas filosófico (MONOD, 2002). O objetivo central será destacar a contraposição entre as apropriações feitas pelo jurista alemão Carl Schmitt e pelo historiador alemão e naturalizado estadunidense Ernst Kantorowicz acerca da noção de corpus mysticum – O Corpo Místico ou Corpo de Cristo, cuja genealogia vem de Paulo, em I Cor. 12.12-14, que designava a Igreja como o corpo de Jesus Cristo, sendo o próprio Cristo a cabeça.

Do mesmo modo que o corpo é um e tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, embora sejam muitos, são, contudo, um só corpo, assim é também Cristo. Com efeito, num mesmo Espírito fomos batizados todos nós, para sermos um só corpo, ou sejamos judeus ou gentios, ou servos ou livres; e todos temos bebido de um só Espírito. Efetivamente, também o corpo não é só um membro, mas muitos

(BÍBLIA SAGRADA, 1977, p.1258).

Sobre o termo corpus mysticum, cabe ressaltar antes de qualquer coisa o papel que teve o teólogo católico francês Henri de Lubac, numa época histórica – a primeira metade do século XX – em que o mundo moderno assistiu à ascensão dos regimes políticos totalitários. O conceito de corpus mysticum elaborado por De Lubac trazia um sentido teológico voltado para a realidade histórica e social da graça divina, sendo que sua formulação motivava-se tanto pela confrontação com o conservadorismo dentro da igreja, quanto pelo contexto histórico vivido por seu país sob o impacto do nazismo. Assim, ainda que a formulação de de Lubac se dê no campo estrito da teologia, a motivação política é evidente.

Carl Schmitt abordará as noções tais como o de corpus mysticum e complexio opositorium nos termos de uma progressiva defesa da autoridade, em contraposição ao legado liberal, em que a igreja católica, como instituição, é apropriada como forma analógica para sua teorização sobre o político. Nesse sentido, embora haja na obra do autor uma dimensão de defesa da mediação política, seus textos darão corpo a uma defesa da autoridade e da decisão soberana. Assim, a apropriação, feita pelo jurista no âmbito do teológico, desaguará numa defesa do decisionismo – soberano é aquele que decide sob um Estado de exceção – e de uma noção de secularização enquanto transferência de conceitos teológicos para a esfera política.

Já Kantorowicz, em sua famosa obra “Os dois corpos do rei”, desenvolverá uma interpretação em torno da noção de corpus mysticum, inspirada na obra de de Lubac, mas configurando uma apropriação da mesma. No início da modernidade, a transformação do conceito que, do âmbito do rito, passa a designar a comunidade cristã, se dá simultaneamente a um processo que limita a autoridade do papa diante do concílio. Ao mesmo tempo, a noção de corpus mysticum, que designava um rito do altar, passa a designar a comunidade cristã, no interior de um mesmo processo histórico em que eram criados mecanismos que limitavam a autoridade do papa. Nesse sentido, apontará o autor, a noção de corpus mysticum passaria a ser usada por juristas para, por analogia, elaborar as primeiras noções modernas de um direito público a limitar a autoridade do rei. Pode-se apreender essa leitura de Kantorowicz no sentido do início de uma autonomização do direito público, no âmbito de uma teoria política moderna.

Tema praticamente ausente dos debates historiográficos, o problema da secularização incide diretamente sobre o campo da história das ideias políticas, da história da religiosidade na época moderna e da própria teoria da história, na medida em que leva, necessariamente, a discussões sobre o processo de constituição da modernidade (da era secular). Na contraposição entre Schmitt e Kantorowicz, fica evidente a disputa pela própria legitimidade da política em termos modernos/seculares; segundo, porque o próprio debate sobre o processo da modernidade não deixa de ser, mesmo que implicitamente, um debate sobre o processo da secularização. A seguir, faz-se uma apresentação dessa questão.

Como argumentou Pierucci (1998) sobre o conceito de secularização, em um artigo em que debate as apropriações da obra de Max Weber, a secularização não deve ser confundida com o processo que este descreve como desencantamento do mundo. Pierucci considera que tais teses se baseiam numa leitura evolucionista da obra de Weber, e deve-se ter em conta que, no início do século XX, havia a percepção de uma desvalorização da religião, devido a seu descentramento em meio a um campo de transformações objetivas.

Além disso, decorrente de tal tipo de leitura problemática da secularização, há uma outra derivada, que se dá pela constatação de que não houve o fim da ou das religiões: trata-se das afirmações ou leituras a respeito do fim da secularização, da dessecularização ou da pós-secularização; ou revitalização, retorno do sagrado etc. Tais leituras, entende-se aqui, acabam ganhando coerência devido ao impacto das teses pós-modernistas que, com razão, criticam o parâmetro eurocêntrico de interpretação da história moderna.

Cabe observar que essa tese, ou pressuposto sobre a secularização, é aquilo que Taylor (2010), em seu “Uma era secular”, denomina de narrativas da subtração, nas quais a era moderna seria justamente o romper dos grilhões que limitavam as potências racionais. Antes dele, Hans Blumenberg (1999a), em “A legitimidade dos tempos modernos”, dirigiu sua crítica à noção de secularização exatamente porque ela implicava um pressuposto, uma categoria não problematizada que servia para interpretar fatos e contextos históricos. Tanto Blumenberg como Talyor, recentemente, partem dessa crítica para destacar os tempos modernos como uma época em que, sem que a religião seja eliminada, são configurados novos parâmetros, saberes e fundamentos, num contexto de expansão e complexificação do mundo que caracteriza tais tempos modernos. Daí que, no caso de Taylor, ele prefira assumir o termo como “era secular”, sem com isso recair nas narrativas da subtração.

Da mesma forma, Pierucci (1998), no âmbito dos chamados processos de secularização, quer chamar a atenção para a diferenciação das esferas culturais e institucionais. Atenha-se, nesse sentido, ao que o autor procurou destacar: “Com uma exagerada ênfase no significado psicossocial das adesões religiosas [...] está em alta e a conversão religiosa tem estado na moda”, observa o autor, “foi ficando fora do foco dos sociólogos (e a fortiori dos antropólogos) a dimensão verdadeiramente hard da secularização, aquela que se instala na esfera da normatividade jurídico-política” (PIERUCCI, 1998, p.13).

A atenção maior ao registro factual da multiplicidade de modos de viver religiosamente a que Weber se dedica como cientista vai resultar, como nunca dantes, numa imagem bem mais matizada e complexa dos diferentes ritmos da secularização [...]. E vai permitir o que de mais precioso, a meu ver, existe na contribuição weberiana à tese da secularização, a saber, a capacidade de pôr à mostra de modo convincente a interface entre racionalização religiosa e racionalização legal. A racionalização religiosa, que desencadeia, desdobra e acompanha no Ocidente o desencantamento do mundo, implica ou supõe, embora não se identifique com a racionalização jurídica, que de seu lado perfaz o desencantamento da lei, a dessacralização do direito, e põe de pé o moderno Estado laico como domínio da lei

(PIERUCCI, 1998, p.17).

É por isso que, na obra weberiana, como observa o autor, destaca-se não o termo “secularização”2, mas sim “desencantamento”, implicando a racionalização no seio da religião, como a eliminação da magia como meio de salvação – e sem desconsiderar que os processos de racionalização serão mais amplos que o de desencantamento. O termo secularização, por seu turno, denotaria a perda de espaço da religião ou a saída da religião na sociedade moderna.

Segundo (PIERUCCI,1998, p.21), para Weber, o decisivo “é o fato de que no Ocidente, e só no Ocidente, ocorreu um desenvolvimento da racionalidade jurídica que veio dar no conceito (moderno) de ordem jurídico-legal formalmente legítima e legitimamente revisável”. Assim, “interessa ressaltar que foi crucial nesse desenvolvimento o fato de a igreja cristã e as leis sagradas terem se tornado cada vez mais nitidamente diferenciadas e separadas da jurisdição secular”. Para o autor, a “nitidez com que se apresentava, já no início da modernização capitalista3, esta específica separação de esferas normativas desobstruiu o caminho para a imposição de leis emanadas legitimamente apenas da autoridade secular e, além disso”, completa,

[...] pavimentou a estrada para o desenvolvimento lógico do formalismo jurídico, em íntima afinidade eletiva com os ‘interesses ideais’ (ou, para usar jargão ainda mais marcadamente weberiano, com as ‘intrínsecas necessidades intelectuais’) dos juristas teóricos e seus discípulos nas Faculdades de Direito, em voga já na Baixa Idade Média. Não por acaso Weber salienta como traço essencial da racionalidade do direito moderno seu caráter sistemático, e isto em função de ser o direito moderno, mui particularmente, ‘um direito de juristas’

(PIERUCCI, 1998, p.21).

Assim, em síntese, trata-se de um rompimento com a tradição no sentido da adoção, na prática jurídica, de procedimentos e técnicas racionais que implicam, por sua vez, a diluição da necessidade de se recorrer à santidade da tradição ou às forças suprassensíveis. Para esse processo é necessário abstração e preparo intelectual: “na sociologia de Weber, racionalização teórica significa e implica intelectualização” (PIERUCCI, 1998, p.25).

Em suma, pode-se entender a secularização da administração da justiça enquanto secularização e autonomização do pensamento jurídico. Historicamente, tal racionalização não pode deixar de ser compreendida também pela importância que terão as universidades e pelo desenvolvimento de uma classe ou grupo social que adotasse e se apropriasse de tais procedimentos. O direito natural, como observa Pierucci, sendo um misto de racionalidade formal e substantiva, cumpre (pela sua segunda dimensão) o papel da legitimação metajurídica, num contexto em que a racionalização estava presente no próprio campo religioso cristão.

Tal aspecto de legitimação metajurídica, para Taylor (2010), acaba por configurar, historicamente, uma inversão, já que se trata de uma legitimação imanente – que ainda não deixa completamente de ser sagrada, apesar da afirmação de Pierucci, já que seu fundo teológico ainda não rompe com o fundo sagrado do qual a própria razão é derivada, segundo a filosofia da época –, e baseia-se, também, na autolegitimação da/pela razão, e o próprio direito natural acabará sendo absorvido nesse processo.

Por fim, interessa apontar, portanto, que, esse aparato jurídico, como coloca Pierucci (1998), funciona como uma máquina técnico-racional, tratando-se, pois, de uma racionalidade técnica que faz do direito um meio, e não um valor. Essa caracterização do direito leva não apenas à categorização weberiana, mas à fundamentação do pensamento schmittiano, que se dirige contra essa tecnização não apenas do direito, mas do próprio Estado e também contra a suposta neutralidade da técnica. Essa crítica, por sua vez, se coloca no interior de um embate de Schmitt contra o legado liberal, que se articula com sua defesa do político (que implica valor) e da autoridade (como princípio vertical de mediação).

Como colocou Monod (2002), apoiando-se bastante na leitura crítica elaborada por Hans Blumenberg4, no que diz respeito ao problema da secularização, Schmitt balança entre duas abordagens: uma que trata da secularização enquanto transposição de conceitos teológicos para o arcabouço jurídico do Estado moderno: “O Deus todo poderoso se transformou no legislador onipotente”; e outra que estabelece uma relação que é mais de sentido analógico, no sentido de que “a situação excepcional tem para a jurisprudência a mesma significação que o milagre tem para a teologia”5. Tais sentenças, entre aspas, ambas tiradas de “Teologia Política”, demonstram que, a despeito da ênfase pretendida por Schmitt, a questão é muito mais complexa – inclusive, Monod enfatiza que Kantorowicz, em outros estudos, busca demonstrar que o nascimento do direito público ou razão de Estado modernos não implicam apenas o caminho de secularização de conceitos teológicos cristãos, mas também de apropriação de noções da religião civil romana, isto é, do culto imperial da Roma antiga.

Nesse sentido, sem desconsiderar a complexidade do tema, pretende-se aqui demonstrar a disputa em torno de uma teologia política que representa a disputa pela fundamentação do político: a ênfase na autoridade vertical ou na autoridade da própria esfera pública autonomizada.

Carl Schmitt e a teologia política conservadora

O termo corpus mysticum foi título de uma das obras do jesuíta Henri de Lubac (Henri-Marie Joseph Sonier de Lubac, 1896-1991), um dos teólogos mais influentes no século XX. Nessa obra, publicada em 1944, de Lubac desenvolve a relação não excludente entre a invisibilidade e a visibilidade da Igreja, através do elo entre a Eucaristia e a Igreja. Como já estaria expresso no pensamento dos Padres dos primeiros mil anos da Igreja, a Eucaristia é o sacramento da unidade, a unidade eclesial. A Igreja foi vivenciada de forma mais fundamental como o corpo místico de Cristo, e as conexões analógicas entre os elementos do pão, do vinho e da igreja como o corpo de Cristo eram claras e fortes. De Lubac teve enorme influência no desenvolvimento da noção de communion ecclesiology, que seria marcante no Concílio Vaticano Segundo. O termo é ainda utilizado por várias correntes cristãs, entre círculos católicos, ortodoxos e protestantes. Dizer que a Igreja é uma “comunhão” é enfatizar que, embora certas estruturas institucionais permaneçam essenciais, ela encontra sua base fundamental nas relações entre os seres humanos com Deus através de Cristo e no Espírito Santo. De Lubac, dessa maneira, desenvolve uma interpretação sobre a natureza da Igreja enquanto um mistério profundo que, por outro lado, só se realiza em sua revelação na dimensão social e histórica. É um jogo de paradoxos que enfatizam termos que não se excluem, como a natureza mística da revelação e do mistério, que, não sendo apreensível pela pura lógica, não elimina a lógica em si mesma; o sobrenatural não elimina o natural; o corpus mysticum é simultaneamente transcendente e imantente, e assim por diante (DOYLE, 1999).

Bem antes, num curto ensaio intitulado “A Visibilidade da Igreja”, publicado em 1917, Carl Schmitt fazia breve menção ao termo corpus mysticum. No caso de Schmitt, a menção era feita de forma desdenhosa, como já observou Rust (2012). Nesse ensaio, Schmitt procura defender um conceito de visibilidade da igreja no sentido primordial de que, em primeiro lugar, Deus se fez carne para viver entre os homens; segundo, que isso não implica cair num dualismo entre visível e invisível, mas que, pelo contrário, significa uma mediação entre o mundano e o transcendente; terceiro, tal mediação ainda guarda um sentido vertical, daí a passagem em que desdenha da noção de corpus mysticum como ligado a uma sublimação do conceito de igreja para além da comunidade visível feita por algumas seitas que acabam por desconsiderar o caráter da encarnação do Filho de Deus (SCHMITT, 2011).

Vê-se, pois, como, em torno de um mesmo conceito – corpus mysticum – há apropriações diversas de um sentido teológico, a partir de um fundo de disputa política. Para ficar mais claro o contraste, deve-se entender por vertical, no caso da reflexão schmittiana, não apenas a relação entre, de um lado, o mundano – o social e o histórico, nos termos de de Lubac –, e, de outro, o divino ou sagrado, mas também no sentido hierárquico, e tal sentido é algo que ficará claro ao longo da obra schmittiana no período, especialmente entre as décadas de 1920 e 1930.

No ensaio de 1917, já se pode vislumbrar temas que serão retomados, desenvolvidos ou mesmo reformulados na década seguinte, e já se adianta que não se pretende aqui fazer uma abordagem exaustiva, mas apenas destacar alguns pontos – a começar pela relação entre a crítica à “era da imediatez” e ao dualismo que se ligava à defesa do decisionismo, como apontou Alexandre Franco de Sá (Sá, 2006). Como mostra o autor, a própria concepção de secularização, presente na obra de Schmitt na segunda metade da década de 1910, ligava-se ao âmbito do domínio da técnica no mundo moderno, do domínio de procedimentos meramente descritivos que absorviam a própria vida humana em tais processos fáticos. Essa ênfase no mundo fático, por sua vez, implicava dualismos, tais como entre o mundo fático e a dimensão do transcendente, e, com isso, perdia-se a própria capacidade (política) da mediação.

É nesse sentido que, no ensaio citado, Schmitt procura colocar a Igreja Católica como uma instituição pública e visível que pode contrariar o domínio de uma esfera do racionalismo econômico moderno, que ele associa à religiosidade privada, interiorizante e protestante (SCHMITT, 1996; RUST, 2012). Schmitt se põe em diálogo, portanto, com “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, de Max Weber de 1999, concordando com ele que a ética protestante, com seu ethos imanente dirigido às iniciativas no mundo, abre o caminho para o reino do racionalismo econômico, para a hegemonia da esfera econômica na modernidade, desenvolvendo o potencial político da Igreja Católica como contrapeso (RUST, 2012).

A seguir, o presente estudo apontará como, em algumas de suas obras, Schmitt desenvolve sua própria teologia política, de caráter conservador, a partir de sua crítica a uma noção de corpus mysticum que, como se verá, será de certa forma retomada por Kantorowicz em contraposição à tese autoritária de Schmitt.

Em “Catolicismo romano e forma política”, de 1923, - Schmitt afirma que o princípio de representação das democracias liberais, uma “expressão técnica” em si mesma, seria uma delegação em que o povo, supostamente a instância primeira, se vê representado pelos parlamentares e políticos eleitos, de tal forma que, na prática, ela se torna a instância secundária de um “consórcio de gente interessada no econômico” (SCHMITT, 2011, p.31). No caso dos soviets, a “totalidade do povo” seria não mais que uma ideia, sendo a realidade, na verdade, a totalidade do processo econômico; e tal princípio seria incontestável, o princípio de uma imanência de “coisas que se regem por si mesmas”, ao qual é negada a contestação de que seria ele mesmo um princípio ideal (SCHMITT, 2011, p.33).

Nesse sentido, o pensamento técnico-economicista apresenta uma contradição: a de se afirmar como o princípio social por excelência, mas, ao mesmo tempo e no máximo, reduzindo o Direito a Direito Privado, calcado na propriedade privada e no contrato comercial. A opinião pública, por sua vez, é também fundamentada na esfera privada, ou seja, na imprensa. Dessa forma, segundo Schmitt, a Igreja se tornaria a única instituição propriamente política, tendo um monopólio como nunca antes tivera, nem mesmo na chamada Idade Média. E isso não apenas pelo fato de que, como coloca o autor, sua conformação jurídica se mova no âmbito do Direito Público, mas pelo que Schmitt denomina de seu complexio oppositorum (SCHMITT, 2011).

Como já adiantando, o sentido político que Schmitt atribui ao termo, também utilizado por de Lubac, será oposto – ainda que, nesse caso (diferentemente da noção de corpus mysticum) sua definição seja mais semelhante àquela de De Lubac.

Segundo observa Schmitt (2011), o impulso anticatólico romano se manifesta nos embates político-ideológicos, seja na forma de uma oposição franca, seja nas reivindicações de um catolicismo mais liberal. A própria igreja demonstrou uma variedade de disposições políticas, colocando-se a favor da Santa Aliança, após 1815; assumindo o lado reacionário antiliberal ou reivindicando, em outros países, as mesmas liberdades, sobretudo de imprensa e de ensino; defendendo monarquias e alianças entre trono e altar; fazendo-se presente em sociedades democráticas. E em outros casos esteve presente, como os franciscanos irlandeses na luta dos trabalhadores em greve. Segundo Schmitt, o que pareceria, assim, contraditório, seria na verdade a expressão de um “universalismo político” decorrente do fato de a igreja católica ser a continuidade do Império romano, enquanto conjunto histórico e aparato administrativo. Daí que todo império universal supõe um certo relativismo frente ao conglomerado heterogêneo, unindo uma superioridade diante de particularidades a uma tolerância frente a coisas que não tenham importância central, algo que aproximaria o Império romano do império inglês à época, segundo o autor. Assim, todo imperialismo absorve determinados antagonismos, tais como entre conservadorismo e liberalismo, tradição e progresso, militarismo e pacifismo.

Até mesmo a igreja, segundo Schmitt, manifesta essa complexidade, como por exemplo aquele aspecto democrático no interior da própria aristocracia dos cardeais, na qual até o último dos pastores pode se tornar o soberano autocrático, com a igreja oscilando entre posições intransigentes ou de uma “indulgência feminina”. Tais ambiguidades se dão também no interior da própria teologia: com a convivência de princípios do Velho e do Novo Testamento; com as concepções do homem bom ou mau por natureza, abstendo-se a igreja de definir a questão com um simples sim ou não; com a própria dualidade entre o Papa como pai e a Igreja como mãe dos fiéis; e, no mais, com essas próprias ambiguidades convivendo com o dogmatismo mais preciso e firme que culmina na doutrina da infalibilidade papal (SCHMITT, 2011).

É assim, pois, que para Schmitt esse complexio oppositorum configura verdadeiramente um princípio de representação, em contraste com o pensamento técnico-econômico. Como já apontado, Schmitt indicará o caráter mistificador da representação liberal, que, na prática, trata-se de uma delegação de poderes para um “consórcio” preocupado apenas com a realização econômica. Para além disso, Schmitt aponta seu alvo para o que vê como época marcada pelo princípio da oposição dualista, criticando tanto sua pretensa forma ideal dialética, na filosofia pós-kantiana, como também a oposição que foi estabelecida entre a natureza e o mundo mecânico, mediante o ímpeto técnico-econômico. Segundo o autor, a natureza como signo da selvageria e simultaneamente como material para a realização técnico-econômica estaria totalmente ausente no catolicismo (SCHMITT, 2011).

Pode-se questionar se o destaque do complexio oppositorum não seria contradito pelo próprio Schmitt em seu posterior “O conceito do político”, em que o fundamento do político é definido pela polaridade amigo versus inimigo. Contudo, na parte final de “Catolicismo romano e forma política” (SCHMITT, 2011, p.46), Schmitt aponta o que seria, segundo ele, um fundo de rivalidade nacional, ou propriamente civilizacional, que teria motivado o conflito entre Karl Marx – no fundo, ainda representante da cultura europeia ocidental –, e o russo Bakunin. Trata-se de um conflito expresso não só na antipatia pessoal quanto no campo do ideário teórico-político, qual seja, a preferência de Marx pelo operariado organizado e marginalização do lumpemproletariado, em confronto com a posição crítica de Bakunin. Schmitt aponta o fato de que a Revolução de 1917 tenha acabado por unir dois elementos que tendiam à polarização – o obreirismo combativo dos grandes centros urbanos da Europa e o “russianismo” –, mas afirma que não se trata isso de uma casualidade da história universal, que permaneceria, segundo ele, incompreendidoa pela teoria marxista. Para Schmitt (2011, p.48), no “ódio russo contra a cultura de cunho europeu-ocidental”, subjaz o catolicismo, ou seja, estaria manifesta novamente sua característica mediadora, lembrando ainda que a oposição dos “grandes católicos” sempre fora maior com relação ao liberalismo que ao próprio socialismo abertamente ateu. Schmitt finaliza dizendo que, de qualquer forma, a Igreja acabaria tendo que tomar posição, como um século antes havia feito a favor da contrarrevolução, e lembra que o “conceito católico de humanidade” sempre estivera ao lado da civilização europeia ocidental, e não do socialismo ateu ou do anarquismo russo.

Assim, tem-se em Schmitt essa capacidade retórica de formular um projeto político que, por um lado, reconhece o fundamento do político na oposição amigo versus inimigo, expressa nas oposições nacionais, ideológicas e civilizacionais; e, por outro, ao estabelecer uma concepção de governo capaz de absorver certas contradições em favor de uma ordem, reestabelece um princípio vertical de legitimidade: a mediação entre os governados e um princípio transcendente. Daí que a igreja católica serve como modelo.

Um ano antes de lançar “Catolicismo romano e forma política”, Schmitt tinha lançado sua mais famosa obra do período, “Teologia Política”. Nessa obra, o princípio vertical da autoridade se une mais radicalmente a um outro, que será marcante na teoria schmittiana: o decisionismo. Veja-se como, nessa obra, decisão e soberania não só se articulam como também se ligam à reformulação do conceito de secularização.

“Teologia Política” inicia com a famosa definição de que soberano é quem decide sobre estado de exceção. A defesa dessa figura do soberano se fundamenta na crítica ao normativismo jurídico, tendo em vista especialmente aquele contexto conturbado por que passava a Alemanha. A situação excepcional não pode ser prevista pela norma, o que exige, portanto, o reconhecimento daquilo que não pode ser simplesmente subsumido por ela: se a exceção “escapa de toda formulação geral”, ela simultaneamente “revela um elemento formal específico de natureza jurídica, a decisão, em sua absoluta pureza” (SCHMITT, 1988, p.23).

Schmitt dirige uma crítica direta ao pensamento jurídico de Hans Kelsen, de grande influência à época: se por um lado este interpreta a unidade da ordem do direito como um ato livre do conhecimento jurídico, por outro lado, o que é mais importante, ele reivindica a objetividade, reprovando todo aspecto personalista e subjetivista (como o pensamento hegeliano) para trazer a ordem do direito ao curso impessoal de uma norma impessoal. Já a decisão soberana, que por um lado é um “elemento formal” e, por outro, algo “em sua absoluta pureza” (SCHMITT, 1988, p.39), não deixa de soar como paradoxo. Mas para Schmitt (1988, p.23) “o caso de exceção revela com a maior clareza a essência da autoridade do Estado”, pois é “aqui que a decisão se separa da norma jurídica, e (para formular paradoxalmente) aqui a autoridade demonstra que, para criar o direito, ela não precisa estar no direito”. Assim, é a ação soberana, decidindo sob um estado de exceção, que põe e repõe o direito, e, nessa lógica, como foi destacado por Agamben (2004), exceção e norma estão intrinsicamente ligadas. A ação soberana define ou redefine o que deve estar dentro ou fora da lei.

Nesse sentido, o antagonismo político é posto, por Schmitt, numa posição fundamental, já que é a partir da delimitação do inimigo e do adversário intelectual que se dá a base para a definição da própria identidade (inclusive jurídica) de uma coletividade, ao mesmo tempo que se reconhece que se deve posicionar-se em face do caso crítico, em face da possibilidade-limite da morte (FERREIRA, 2004).

Esses são os fundamentos sobre os quais se erige a soberania. Para Schmitt, ela é a “potência suprema, juridicamente independente, deduzida de nada”, e o problema fundamental é “a ligação dessa potência suprema factual com a potência suprema jurídica” (SCHMITT, 1988, p.28).

Como essa questão, formulada por Schmitt, é por ele respondida? Para ele, todos os conceitos que constituem a teoria moderna do Estado “são conceitos teológicos secularizados”, e não apenas no sentido de “seu desenvolvimento histórico”, mas também “porque eles foram transferidos da teologia para a teoria do Estado”. Para o autor, “o ideal de Estado de direito moderno se impõe com o deísmo, com uma teologia e uma metafísica que rejeitam o milagre fora do mundo e recusam a ruptura das leis da natureza”, ruptura esta que se dá pela intervenção direta na forma de exceção e no entanto, a decisão se coloca homologamente ao poder sagrado como milagre, mistério e autoridade. “A situação excepcional tem para a jurisprudência a mesma significação que o milagre para a teologia” (SCHMITT, 1988, p.46).

Schmitt relata que durante muito tempo tem-lhe atraído atenção a “significação fundamental, sistemática e metódica” das analogias entre teoria política e teologia. Segundo ele, é com os filósofos católicos contrarrevolucionários Bonald, de Maistre e Donoso Cortés que elas surgem no pensamento sociológico dos conceitos jurídicos. Em suas obras, para Schmitt, há pela primeira vez uma abordagem sobre a analogia conceitualmente clara e sistemática, em vez de “efervescências místicas, como aquelas da filosofia da natureza e mesmo do romantismo” (SCHMITT, 1988, p.47). Para ele, a enunciação mais clara dessa analogia se acha na obra “Nova methodus pro maximis et minimis”, de Leibniz, que “recusa a comparação da jurisprudência com a medicina e as matemáticas para sublinhar o parentesco sistemático com a teologia” (SCHMITT, 1988, p.47). Para Leibniz, diz Schmitt, tanto o modelo teológico quanto o domínio jurídico possuem um duplo princípio, “a ratio (é por isso que há uma teologia natural e uma jurisprudência natural) e a scriptura, isto é, um livro com as revelações e disposições positivas” (SCHMITT, 1988, p.47). Além da analogia que toma de Leibniz, e mencionando a obra de Adolf Menzel, de 1912, sobre direito natural e sociologia, Schmitt destaca que, embora a abordagem sociológica queira dar aparência científica à política, o Estado intervém em toda parte. Por vezes, como um deus ex machina que liquida uma controvérsia de forma que não é possível fazer pelo simples recurso ao conhecimento jurídico; por vezes, encarnando a bondade e a misericórdia, e promovendo graças e anistias. “A ‘onipotência’ do legislador moderno que invoca todos os manuais não é somente uma retomada literal da teologia. Mesmo nos detalhes da argumentação se reconhecem reminiscências teológicas” (SCHMITT, 1988, p.48).

No presente artigo, sem desejar ater-se ponto por ponto e autor por autor com quem Schmitt dialoga, importa destacar que o jurista traça uma espécie de genealogia do decisionismo, em opsição ao racionalismo da Aufklärung (o iluminismo alemão), que “condena a exceção sob todas as formas” (SCHMITT, 1988, p.46). Schmitt opõe, de um lado, o vazio apriorístico da forma transcendental, a precisão técnica e a forma da figura estética, coisas que remetem à filosofia kantiana, e, de outro, a ênfase no concreto jurídico e a decisão “essencialmente material, impessoal, em vista de um fim” (SCHMITT, 1988, p.45). O autor se apoiará também nas reflexões do pensamento contrarrevolucionário de Bonald, de Maistre e Donoso Cortés, cuja filosofia do Estado se distinguiria justamente pela consciência da exigência de uma decisão, o que se põe em oposição à essência do liberalismo burguês de constituir uma “classe discutidora” e sempre adiar a decisão (que é efetiva numa ditadura). Opõe-se também à concepção rousseauniana da vontade geral, que pressupõe para a forma jurídica do Estado uma “totalidade estática orgânica” (SCHMITT, 1988, p.58). Nessa genealogia e jogo de contraposições, não poderia ficar de fora Hobbes, de cujo “Leviatã” Schmitt tira a frase emblemática: “Auctoritas, non veritas facit legem” (“É a autoridade, e não a verdade, que faz a lei” – tradução minha) - Hobbes, como se sabe, teorizou o poder do Estado que se põe acima dos conflitos morais – isto é, religiosos –, que rasgavam o tecido social em sua época. Na apropriação schmittiana, Hobbes “recusa todas as tentativas de erigir uma ordem de tipo abstrato em lugar da soberania concreta do Estado” (SCHMITT, 1988, p.43).

Assim, vê-se em Schmitt uma polaridade entre, de um lado, a ação que decide e põe a ordem e, de outro, a lei burguesa abstrata e “discutidora”. A legitimidade da ação soberana é garantida não só horizontalmente, pela contraposição com o pensamento jurídico positivista e neokantiano, como verticalmente, pela analogia da ação soberana com o milagre religioso, via teoria da secularização.

Porém, cabe ressaltar: para Schmitt, tal contraposição não significa uma polaridade entre um poder imanente e o nómos, mas o contrário; o poder soberano é aquele que põe (não só depõe) o direito, e Schmitt não nega o papel mediador do Estado, que, para ele, é análogo ao papel mediador da igreja. Sua ênfase se dá como defesa não só da ordem – contra as correntes mais radicais que lutavam no interior da república de Weimar –, mas também como defesa (à sua maneira) do Ocidente contra o anarquismo e o socialismo6.

Como coloca Sá (2006), no pensamento de Schmitt a defesa da decisão se dá de forma entrelaçada com a defesa da mediação, ambas como defesa da autoridade e da ordem. Schmitt alude à autoridade da Igreja Católica, na sua mediação da verdade, na sua visibilização da realidade invisível de Deus, como paradigma da autoridade que o Estado constitui, na sua mediação da ideia de direito. “Nesse papel referencial e paradigmático que a Igreja Católica desempenha diante do Estado, o tipo de decisão que nela ocorre, fundamentado pela sua essencial função de mediação, serve também de paradigma à decisão que deve ser própria da autoridade do Estado” – e, nesse sentido, é “para a caracterização desse tipo de decisão que Schmitt evoca a possibilidade de o Papa falar ex cathedra, ou seja, o dogma católico segundo o qual o Chefe da Igreja pode reivindicar para si a autoridade de uma decisão infalível” (Sá, 2006, p.98). Como diz o autor, a referência à doutrina da infalibilidade papal já se fazia presente em 1914, na obra “Wert des Staates” (Valor do Estado). “O Papa não tem então a autoridade de decidir enquanto homem singular, mas enquanto mediador, enquanto servo de uma ideia que através dele se torna presente” (Sá, 2006, p.99). Nessa apropriação política da teologia, exposta por Schmitt, importa destacar que:

Não é o reconhecimento individual por parte dos cristãos que constitui a Igreja como tal; é antes a Igreja, enquanto mediação da figura mediadora de Cristo, que constitui, no seu reconhecimento de Cristo, os próprios cristãos. Não é o Estado, no seu papel mediador, que pode ser construído pelos indivíduos, mas passa-se exatamente o contrário: os indivíduos são construídos pelo Estado que lhes está subjacente e só nele veem a sua individualidade ganhar valor. Como escreve Schmitt: ‘O Estado não é então uma construção que os homens fizeram, mas, pelo contrário, ele faz de cada homem uma construção’

(Sá, 2006, p.101).

Ou seja, a teologia política de Schmitt se liga a uma crítica ao fundamento liberal que localiza o poder constituinte na figura do sujeito individual. Como mostrou Bernardo Ferreira, o liberalismo é para Schmitt um sistema metafísico diante do qual ele visa a elaborar sua própria concepção contraposta de uma ordem política baseada no poder soberano. Ou seja, sua defesa teórica do antagonismo como fundamento do político corresponde à sua contraposição entre decisionismo e “imobilismo”. No que diz respeito à analogia entre exceção e milagre, no pensamento de Schmitt “o soberano pode ser visto como o antípoda da absolutização do indivíduo no mundo liberal burguês” (FERREIRA, 2004, p.127). A remissão do pensamento político à teologia cristã, em contraposição ao normativismo jurídico, é a defesa de que a racionalidade católica tem a “capacidade de transcender o imediato da realidade e incorporá-la em uma ordem que pressupõe algum tipo de princípio de totalização” (FERREIRA, 2004, p.256).

O poder precisa ser a mediação entre, de um lado, os indivíduos e a contingência, e, de outro, o princípio transcendente. Essa crítica da redução do transcendente ao imanente se liga à crítica da redução do direito à mera realidade fática do poder, ambas formuladas na década de 1910; nos anos 1920, a crítica se expande em direção da ficção da redução da política ao jurídico, do direito à norma, ou da ordem à ordem jurídica, assim como do político ao âmbito econômico e técnico:

[...] é também na continuação de um tal combate que, nos anos 30, o livro de 1938 acerca do Leviathan de Hobbes surge assente na verificação de uma redução da pessoa constitutiva do Estado moderno a uma simples máquina. [...] A figura de um legislador motorizado surge assim, no pensamento schmittiano, como a alusão a um processo de aceleração crescente, sob cujo crescimento imparável a decisão pessoal cada vez mais desaparece e se dissolve na imanência de um funcionamento técnico e mecânico

(Sá, 2006, p.609).

Portanto, a teoria schmittiana sobre a secularização configura-se como uma “teologização do político”, e cabe abordá-la não apenas em seus termos como também a partir de seu horizonte político e histórico em que se dá a crítica aos fundamentos liberais, implicando a busca por um princípio de ordem e totalização. Não por acaso, uma de suas obras no período será “A ditadura”, de 1968, em que defende a ideia de que somente um ditador, ou um elemento ditatorial presente na Constituição, poderia garantir mais efetivamente a representação da vontade popular.

Como vem expresso nessa obra, e como aponta Kervégan (2006), trata-se muito mais de uma questão de ênfase, já que Schmitt se dedica, explicitamente, a estabelecer a oposição (ao mesmo tempo teórica e histórica) entre normativismo e decisionismo7.

Assim, se Schmitt retira do catolicismo sua teorização sobre o político, na forma de uma teologia política, Ernst Kantorowicz fará sua própria incursão no período cristão medieval para recuperar a noção de corpus mysticum, tal como rejeitada por Schmitt, para referendar sua defesa de um legítimo espaço do Direito republicano moderno.

Do Corpus Ecclesiae Mysticum ao Corpus Reipublicae Mysticum: Kantorowicz

Como apontou Hammil (2012), Schmitt esforçou-se em tomar a analogia entre a igreja católica e o Estado moderno mais no sentido da transposição literal que propriamente enquanto um processo de ficcionalização, sendo que, como visto, Schmitt contrapõe-se à “abstração” da concepção de corpus mysticum, que é atribuída a “seitas protestantes”. Hammil faz um apontamento precioso ao informar que o artigo de Blumenberg “Uma aproximação antropológica sobre a atualidade da retórica”, escrito em 1971, tinha Schmitt como interlocutor, embora não o nomeasse no texto. Nesse artigo, Blumenberg destaca o campo da retórica no horizonte de uma era moderna em que, como época de profundas transformações, implicava o recuo de certas tradições, incapazes de responder a novas perguntas. A retórica, então, cumpriria uma função técnica destinada a um assentimento, à persuasão, à busca do consentimento onde recuam verdades e morais definitivas: “onde faltam evidências, a retórica cria instituições” (BLUMENBERG, 1999b, p.121).

É nesse sentido que, como bem destacou Hammil (2012), Blumenberg prefere colocar o problema do que foi convencionado chamar de “secularização” não em termos de transposição (aquela de conceitos teológicos para a teoria do Estado, como defendeu Schmitt), e sim em termos de reocupação. Blumenberg, também ele, traça sua própria releitura do passado, para nele buscar os elementos para a compreensão política do presente.

Como já adiantado, seguindo Rust (2012), Kantorowicz apropria-se da noção de corpus mysticum de de Lubac para seu próprio objetivo – contrapor-se à teologia política conservadora schmittiana – e, nesse sentido, acaba por se aproximar de uma concepção contra a qual o próprio de Lubac, teólogo, havia se posicionado: o destaque da dimensão ficcional enquanto ficção normativa, a partir da qual o próprio direito público, ou seja, secular, pôde ser configurado. Essa diferença, pois, incide no âmbito da apropriação da teologia pela esfera da disputa política e jurídico-normativa.

De ascendência eslava e judia, nascido na Posânia (terra de origem polonesa, que passara ao domínio da Prússia em 1793 e depois ao II Reich), Kantorowicz começa a adquirir notoriedade em 1927, quando publica uma biografia do imperador Frederico II, tendo antes atuado na Grande Guerra de 1914-1919, compondo as forças armadas alemãs. Quando retorna à Alemanha, ingressa no círculo literário que se reunia em torno do poeta Stefan George, que se configurava em um dos vários movimentos de direita que desejavam uma renovação nacional, à época, no interior da cambaleante República de Weimar. É nesse contexto que a biografia sobre Frederico II é escrita, obtendo sucesso em sua recepção pelo público a que se dirigia, tendo Kantorowicz, inclusive, ido visitar o túmulo do imperador em Palermo, na Itália.

O sucesso do livro possibilita-lhe a entrada na Universidade de Frankfurt, em 1930, mas, ao mesmo tempo, sua condição judia acaba sendo um problema devido à ascensão nazista. Em 1939 Kantorowicz migra para os Estados Unidos, instalando-se na Universidade de Berkeley, Califórnia. Em 1949, recusa a prestar sermão de juramento contra os comunistas, em meio à onda macarthista.

“Os dois corpos do rei” é publicado originalmente em inglês, em 1957. Nessa obra, como observa Rust (2012), Kantorowicz dedica-se a reconstruir uma teologia política que, de formas cruciais, contradiga as teses de Schmitt. Kantorowicz será empenhado em mostrar que o aspecto teológico do político deve residir não no instante “milagroso” da decisão, na esfera da exceção, mas, na verdade, deve ser entendido como residindo na perpetuidade, na longue durée (longa duração), na dimensão da norma. Segundo o estudo que Kantorowicz faz do corpus mysticum, à medida que a noção vai se configurando no âmbito de corpos institucionais relativamente estáticos, os tropos teológicos atenuam-se cada vez mais em ficções abstratas, bom que se diga, ficções no sentido jurídico da coisa. O autor, portanto, e como se verá, produz uma narrativa do declínio da dimensão sacramental do corpus mysticum e da simultânea emergência de uma teologia política imanente.

Enfim, se para Schmitt o corpus mysticum se articula mais ao imanentismo mundano do protestantismo, Kantorowicz se apropria do estudo de De Lubac para retornar aos primórdios da época moderna e para destacar sua progressiva transmutação em um conceito ficcional, ideal e abstrato, que marcará a transição para o direito e o Estado secular moderno. No presente trabalho, procura-se focar mais diretamente o trecho de “Os dois corpos do rei” em que Kantorowicz enfatiza a transmutação do conceito em questão.

Segundo Kantorowicz, em 1302, o Papa Bonifácio VIII expressa a doutrina corporativa da Igreja, que pretendia contrapor-se à incipiente autossuficiência dos corpos políticos seculares, redefinindo uma concepção hierárquica segundo a qual “os corpos políticos deveriam ter um caráter meramente funcional dentro da comunidade mundial do corpus mysticum Christi, que era a Igreja, cuja cabeça era Cristo e cuja cabeça visível era o vigário de Cristo, o pontífice romano” (KANTOROWICZ, 1998, p.126). No entanto, como aponta o autor, importa destacar que essa concepção de “corpo místico”, embora pretendesse uma espécie de restauração, representava uma novidade, por não ter correspondência na tradição bíblica. Significa, antes, uma inversão em que o significado do “corpo místico” deixa de ser estritamente litúrgico ou sacramental para adquirir uma conotação sociológica.

Pela tradição paulina, o corpus mysticum era a hóstia consagrada, enquanto corpus Christi era a Igreja e a comunidade cristã. Entre os séculos XI e XIII, devido a polêmicas em torno da Eucaristia – em que concepções heréticas tendiam a espiritualizar e mistificar o Sacramento do Altar –, a Igreja decidiu ressaltar a presença real tanto do Cristo divino quanto do Cristo humano na Eucaristia. Nesse sentido, o pão consagrado passou a ser chamado de corpus verum ou corpus naturale, ou simplesmente corpus Christi e, inversamente, corpus mysticum passou a significar a Igreja enquanto comunidade organizada. Daí a expressão “corpo místico cuja cabeça é Cristo”. Ou seja, tem-se aqui uma definição para Igreja em seus aspectos institucionais, corporativos e eclesiológicos, enfim, numa concepção mais propriamente política da Igreja. “Era o começo da assim chamada secularização da Igreja medieval, um processo contrabalançado por uma interpretação ainda mais deliberadamente ‘mística’, mesmo do corpo administrativo e do aparelho técnico da hierarquia” (KANTOROWICZ, 1998, p.127). Mas, importa destacar que:

[...] o novo termo corpus mysticum – glorificando, por assim dizer, simultaneamente o Corpus Christi Juridicum, isto é, a gigantesca administração legal e econômica na qual se apoiava a Ecclesia militans – vinculava o edifício do organismo visível da Igreja à esfera litúrgica anterior; mas, ao mesmo tempo, situava a Igreja como um corpo político, ou como um organismo político e legal, no mesmo nível dos corpos políticos seculares que estavam então começando a se confirmar como entidades autossuficientes. Nesse sentido, a nova designação eclesiológica de corpus mysticum entrava em harmonia com as aspirações mais gerais da época: glorificar os governantes seculares, bem como suas instituições administrativas

(KANTOROWICZ, 1998, p.127).

É nessa época, enfim, que teólogos e canonistas passam a distinguir entre o corpus verum individual do altar, a hóstia, e o corpus mysticum coletivo, a Igreja – distinção essa que, por sua vez, como destaca o autor, é de natureza diversa da antiga distinção cristológica das duas naturezas de Cristo (humana e divina). É esse também, por exemplo, o caso da formulação de Simão de Tournai que, por volta do ano 1200, em Paris, distingue o corpo material de Cristo e seu corpo colegiado espiritual enquanto colégio esclesiástico (KANTOROWICZ, 1998).

Essa ênfase sociológica irá coincidir, à época, com a vinda ao primeiro plano das concepções corporativistas e organicistas no âmbito da teoria política. Nesse entrecruzamento, Tomás de Aquino também contribuirá para a “secularização”, na medida em que, em sua formulação, o corpus verum ou naturale do Cristo no Sacramento, o corpo natural individual de Cristo, passa a ser “compreendido como um organismo que adquiria funções sociais e corporativas: com a cabeça e os membros, servia como o protótipo e a individuação de um coletivo superindividual, a Igreja como corpus mysticum”, uma formulação em que o “Doctor angelicus, em diversas ocasiões, julgou adequado substituir, sem rodeios, o jargão litúrgico por um jargão jurídico” (KANTOROWICZ, 1998, p.130). Se o termo “corpo” (de Cristo) ainda evocava o sacrifício consagrado, esse último elo com a esfera do altar “foi cortado quando Tomás de Aquino escreveu: ‘Pode-se dizer que a cabeça e membros, em conjunto, são como uma única pessoa mística’. Nada poderia ser mais surpreendente que essa substituição bona fide de corpus mysticum por persona mystica”, observa Kantorowicz. “Nesse ponto, a materialidade misteriosa que o termo corpus mysticum ainda abrigava”, diz o autor,

[...] foi abandonada: ‘O corpus Christi foi transformado em uma corporação de Cristo’. Foi trocado por uma abstração jurídica, a ‘pessoa mítica’, uma noção reminiscente – na verdade, sinônima – da ‘pessoa fictícia’, a persona repraesentata ou ficta, que os juristas haviam introduzido no pensamento legal e que será encontrada a base de grande parte da teorização política da Baixa Idade Média

(KANTOROWICZ, 1998, p.131).

Tem-se agora, em suma, um corpus mysticum enquanto organização (ou corporação, ou governo, ou regnum) encabeçada pelo Papa. É nesse sentido que Guilherme de Ockham podia negar ao papa o direito de alienar propriedades da Igreja, pelo fato de elas pertencerem “a Deus e seu corpo místico que é a Igreja” (KANTOROWICZ, 1998, p.132), repetindo, assim, argumentos jurídicos da época.

Naquilo que foi apontado, seguindo Kantorowicz, de entrecruzamento de influências, o nascente Estado territorial também estava influenciado por conceitos decorrentes da invasão, na Igreja, de conteúdos seculares, corporativos e legais, ou seja, um Estado dotado de uma exaltação e glorificação quase religiosa:

O conceito nobre do corpus mysticum, após haver perdido grande parte de seu significado transcendental e ter sido politizado e, em muitos aspectos, secularizado pela própria Igreja, foi uma presa fácil do mundo do pensamento dos estadistas, juristas e acadêmicos que estavam desenvolvendo novas ideologias para os Estados territoriais e seculares nascentes. Barba-Ruiva8, como se sabe, santificou seu império pelo glorioso título de sacrum imperium – um termo para-eclesiástico perfeitamente legítimo, emprestado do vocabulário do Direito Romano e não do da Igreja. Os esforços para dotar as instituições do Estado de certa auréola religiosa, contudo, além da adaptabilidade e utilidade geral do pensamento e linguagem eclesiásticos, levaram rapidamente os teóricos do Estado secular a uma apropriação mais que superficial dos vocabulários não só do Direito Romano, mas também do Canônico e da Teologia em geral. O novo Estado territorial e quase nacional, autossuficiente, segundo suas proclamações, e independente da Igreja e do papado, extraía a riqueza das noções eclesiásticas, de manipulação tão conveniente, e, por fim, continuava a afirmar-se colocando sua própria efemeridade no mesmo nível da sempiternidade da Igreja militante. Nesse processo, a ideia do corpus mysticum, bem como outras doutrinas corporativistas desenvolvidas pela Igreja, passariam a ser de capital importância

(KANTOROWICZ, 1998, p.133).

Se Tomás de Aquino já havia utilizado o termo persona mystica como alternativa a corpus mysticum, passou a ser difundida especialmente entre os advogados uma interpretação organológica que “acompanhou-se ou amalgamou-se com conteúdos corporativos e que, consequentemente, a noção de corpus mysticum foi utilizada como sinônima de corpus fictum, corpus imaginatum, corpus repraesentatum e outras similares”, designando assim a “pessoa jurídica ou corporação. Os juristas chegavam, dessa forma, como os teólogos, a uma distinção entre corpus verum – o corpo tangível de uma pessoa individual – e corpus fictum, o coletivo corporativo intangível e existente apenas como uma ficção ou jurisprudência” (KANTOROWICZ, 1998, p.134).

No jogo das influências, foi nesse sentido que, na metade do século XVIII, Vicente de Beauvais, “para designar o corpo político do Estado, empregou o termo corpus reipublicae mysticum, ‘corpo místico da república’” (KANTOROWICZ, 1998, p.134). Além disso, o termo foi imediatamente transferido para outros âmbitos seculares, tais como a definição de “corpo místico” para o populus (o povo), feita por Baldus, que afirmava

[...] que populus não era meramente a soma de indivíduos de uma comunidade, mas ‘homens agregados em um único corpo místico’ (hominum collectio in unum corpus mysticum), homens constituindo quoddam corpus intellectuale, um corpo ou corporação a ser captado apenas intelectualmente, uma vez que não era um corpo real ou material

(KANTOROWICZ, 1998, p.135).

Outra influência é aquela verificada nas definições do “corpo político” enquanto “corpo moral” ou “ético”. À parte o peso da influência aristotélica, trata-se mais de reapropriação, pois importa destacar que, a partir da época aqui em questão, o Estado ou “qualquer outro agregado político” era “compreendido como decorrente da razão natural”, como “instituição que possuía seus fins morais em si mesma e tinha seu próprio código de ética. Juristas e escritores políticos obtiveram uma nova possibilidade de comparar ou contrapor o Estado, como corpus morale et politicum, ao corpus mysticum et spirituale da Igreja” (KANTOROWICZ, 1998, p.135).

Enfim, a antiga metáfora do casamento do monarca com seu reino será feita agora, em analogia com a mencionada relação do papa com a inalienabilidade do fisco ou propriedades da Igreja, como definição da relação do rei com o reino. Kantorowicz, destacando as formulações do jurista napolitano do século XIV Lucas de Penna, que por sua vez inspirava-se no modelo dado pelo Decretum de Graciano (século XII), explicará que

A Igreja como corpo coletivo supraindividual de Cristo, do qual ele era tanto a cabeça como o marido, encontrava seu paralelo exato no Estado como corpo coletivo supraindividual do Príncipe, do qual ele era tanto a cabeça como o marido – ‘O Príncipe é a cabeça do reino, e o reino o corpo do Príncipe’. Em outras palavras, o jurista transferia ao príncipe e ao Estado os elementos sociais, orgânicos e corporativos mais importantes, que normalmente serviam para explicar as relações entre Cristo e a Igreja –, isto é, Cristo como o noivo da Igreja, como a cabeça do corpo místico e como o próprio corpo místico

(KANTOROWICZ, 1998, p.138).

Para Kantorowicz, trata-se aqui de uma “teologia política” (KANTOROWICZ, 1998, p.139) que se desenvolve nos séculos XV e XVI e cujo caráter era o de limitar o absolutismo real, tendo em vista, tanto na França quanto na Inglaterra, o papel do Parlamento, ou seja, “a ideia era de que o rei e seu conselho não podiam agir contra o Parlamento, porque esse ‘corpo místico’ representava ou era até idêntico à pessoa do rei” (KANTOROWICZ, 1998, p.140). É importante enfatizar também a fusão da noção de corpo místico com a noção organológica que traçava a analogia do reino com o corpo humano e seus membros. É assim que o importante jurista inglês John Fortescue, no século XV, usava termos tais como “cabeça”, para representar o governo, e “nervos”, para designar as leis que unificam um reino. “Aparentemente, Fortescue visualiza o corpus mysticum como o último estágio de perfeição de uma sociedade humana que começava como uma simples multidão (cetus) de homens, adquiria, em seguida, o status de um ‘povo’ e, finalmente”, observa Kantorowicz, “culminava no desenvolvimento de um ‘corpo místico’ do reino, um corpo incompleto sem uma cabeça, o rei” (KANTOROWICZ, 1998, p.142).

Assim, no caso inglês, fica mais evidente o processo que tornava análogas as instituições seculares e eclesiásticas, sem que tal analogia implicasse um reforço da verticalidade da autoridade, pelo contrário.

Vê-se, portanto, que Schmitt e Kantorowicz traçam caminhos completamente contrários, tendo em vista suas respectivas motivações políticas: o primeiro dedica-se a recuperar da tradição o princípio vertical da autoridade para legitimá-la na atualidade, enquanto o segundo volta ao passado como forma de esconjurar o espectro do autoritarismo. Mas tal oposição se dá em torno da afirmação de uma teologia política enquanto objeto de reflexão e, mais precisamente, objeto de disputa heurística no sentido de traçar os fundamentos genealógicos do político.

Considerações Finais

Após o choque da experiência histórica do fascismo – e hoje, diante de um contexto em que espectros de fascismo reaparecem no cenário nacional e global –, a recente valorização e expansão da recepção da obra de Blumenberg pode ajudar a frisar e a fundamentar que a busca pela desnaturalização de certos princípios é fundamental para a sobrevivência do que ainda resta dos ideais de democracia e talvez da própria liberdade. Cabe ressaltar também que, no artigo mencionado sobre a retórica, Blumenberg coloca (como aponta Hammil) a dimensão da retórica em contraposição não apenas ao decisionismo, mas também (como menciona o autor, nesse caso diretamente) à tradição racionalista ocidental de favorecer sempre os fatores de aceleração e condensação dos processos.

Diante dessa dimensão onde a própria técnica é mobilizada pela intenção de ganhar tempo (e, por conseguinte, obter lucro, pode-se completar), a retórica, como aponta Blumenberg, tem um caráter dilatório, em contraste com a estrutura temporal das ações. Ou seja, cabe retomar o pluralismo não apenas como dimensão de tolerância recíproca ou da defesa de que “cada um tem sua opinião”, como é moda dizer hoje em dia, mas como espaço de reflexão e confrontação de ideias, em que a fundamentação do argumento seja o pilar para que a confrontação de ideias não implique o desejo de eliminação do diferente. Contudo, diante do avanço do fundamentalismo religioso e político e da quebra do pacto social pelas reformas trabalhistas, seria a “disputa de opinião” justamente uma maneira de criar uma máscara de acordo, enquanto decisões arbitrárias são tomadas pelas instâncias do poder instituído?

Seja como for, diante da atual pressão sobre a laicidade do Estado diante das “revivências” religiosas e sua presença no político, cabe fazer a defesa do caráter pluralista, entendendo-o não como uma ameaça à crença, mas como sua garantia. E, como se procura ressaltar, um caminho de estudos deve ser agora enfatizar que “era secular” não se trata da simples constituição de uma linha diacrônica, como superação da religião, mas sim de que o religioso deixa de ser o fundamento da coletividade e, mais ainda, uma religião específica. A modernidade trouxe novos fundamentos e novas perguntas, que demandam por sua vez respostas que podem implicar mediações metafóricas, no sentido dado por Blumenberg.

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SCHMITT, C. État, Mouvement, Peuple: L’organization triadique de l’unité politique. Paris: Éditions Kimé, 1997.

SCHMITT, C. O guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

SCHMITT, C. Catolicismo romano y forma política. Madrid: Tecnos, 2011.

TAYLOR, C. Uma era secular. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010.

WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 13. ed. São Paulo: Pioneira, 1999.

WOOD, E. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001.

Notas

2 Segundo Pierucci (1998, p.21) “a maior parte das poucas vezes que Weber usou a palavra ‘secularização’ está concentrada em sua Sociologia do direito, contida no [...] capítulo VII da 2ª parte do primeiro tomo de Economia e sociedade, intitulado Rechtssoziologie [...]. À cata da palavra secularização, foi possível localizar neste capítulo pelo menos oito passagens, muito ricas nos diferentes aspectos e níveis em que referem a coisa. E concentradas todas num espaço de aproximadamente 40 páginas, quando na verdade o capítulo todo tem mais de 120 páginas de extensão”.
3 O termo “início da modernização capitalista”, para o autor deste artigo, guarda também um equívoco, dado o que é exposto por Ellen Wood sobre a origem rural do capitalismo na Inglaterra (na figura central do arrendantário dependente unicamente de suas rendas, e, por isso, de sua produtividade), sendo tautológicas as teses que identificam o capitalismo como forma em potência nas cidades e no comércio – e, pode-se acrescentar, como racionalização (WOOD, 2001).
4 Ver em especial o capítulo “La rhétorique des sécularisations”, em La légitimité des temps modernes (BLUMENBERG, 1999a, p.112).
5 Ver capítulo “Théologies politiques médiévales et modernes: perspectives historiques (Kantorowicz, Schmitt)”, em La querelle de la sécularisation (MONOD, 2002, p.121).
6 “[...] só a percepção de que o Ocidente se encontraria diante da urgência de um combate último contra a sua total negação, só a percepção de um combate definitivo entre a cultura ocidental (a determinação da vida pela Bildung) e a barbárie que radicalmente a rejeita (a negação da Bildung pela vida), pode fornecer ao desenvolvimento do pensamento schmittiano, ao longo dos anos 20 e 30, o pano de fundo que o justifica e lhe dá consistência. E é justamente em função dessa sua percepção, em função da sua auto-interpretação como situado no momento de um combate definitivo e derradeiro entre o Ocidente e a barbárie, que ele pode encontrar o percurso do pensamento político contrarrevolucionário, na sua progressiva separação do vínculo político à legitimidade, como o desenvolvimento de uma tradição política que culmina no seu próprio pensamento” (Sá, 2006, p.208).
7 Na sua busca por fundamentar o político pelos princípios da autoridade e da decisão, Schmitt reivindica o legado de autores tais como Donoso Cortés (BUENO, 2015) e dá sua ênfase decisionista na leitura que faz de Hobbes.
8 Kantorowicz se refere aqui a Frederico I, Imperador Romano-Germânico e Rei da Itália de 1155 até sua morte.
Como citar este artigo / How to cite this article COELHO, V.O.P. Secularização como embate político e teológico: apontamentos a partir da contraposição entre Carl Schmitt e Ernst Kantorowicz. Reflexão, v.42, n.2, p.183-200, 2017. https://doi.org/10.24220/2447-6803v42n2a3998


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