Resumo: Este artigo propõe que os problemas hermenêuticos que conduziram Lutero em sua aproximação do texto bíblico têm relação com seu contexto histórico, marcado pelo pensamento místico e pelo medo da condenação eterna que a Igreja Católica inculcava em seus fieis. A Reforma Protestante, portanto, representaria um movimento religioso de ruptura com a tradição católica e inauguração de um modo de religião que privilegiava o indivíduo, sua consciência e sua autonomia, em detrimento da instituição e sua vontade de poder e determinação sobre os fieis. Com isso, tem início um processo de valorização do indivíduo que, posteriormente, resultará na sua emancipação e na autonomização das instituições sociais em relação à Igreja Católica. Esses dois acontecimen-tos posteriormente consolidaram a Modernidade, em que se vislumbra como conquista a liberdade de consciência.
Palavras-chave: BíbliaBíblia,HermenêuticaHermenêutica,IndivíduoIndivíduo,Liberdade de consciênciaLiberdade de consciência,Martinho LuteroMartinho Lutero,Reforma ProtestanteReforma Protestante.
Abstract: This article proposes that the hermeneutical problems that led Luther to his approach to the biblical text are related to its historical context, marked by the mystical thought and fear of eternal damnation that the Catholic Church inculcated in the faithful. Therefore, the Protestant reformation represents a religious movement that breaks with the Catholic tradition, and begins a new way of religion that favored individuality, consciousness and autonomy over the institution and its will power and determination of the faithful. Thus, a process of individual valuation began that subsequently resulted in the emancipation and empowerment of social institutions in relation to the Catholic Church. After that, those events consolidated Modernity, in which liberty of conscience is to be achieved.
Keywords: Bible, Hermeneutics, Individual, Liberty of conscience, Martin Luther, Protestant Reformation.
Articles
Lutero, questões hermenêuticas e a Reforma Protestante
Luther, hermeneutical issue and the Protestant reformation
Recepção: 26 Setembro 2016
Aprovação: 22 Novembro 2016
Sempre que a palavra de Deus é proclamada, ela cria consciências alegres, abertas e seguras diante de Deus, pois é a palavra da graça, do perdão uma palavra boa e benéfica. Mas sempre que a palavra humana é anunciada, cria uma consciência triste, acuada e aflita em si mesma, pois é a palavra da lei, da ira e do pecado, ao mostrar o que não se fez e o quanto se deveria fazer.
A Reforma Protestante do século XVI pode ser considerada um evento histórico relevante para a Modernidade. Ela marcou o rompimento com uma concepção religiosa medieval caracterizada pelo misticismo e deu lugar a certa racionalidade, que em lugar da igreja sacralizou o Estado. Portanto, a Reforma teria representado um movimento que, entre outros aspectos, alinhava-se com a emergente valorização da razão e da individualidade. Dois impor-tantes marcadores da era moderna e secular, que contribuiriam significativamente para o desenvolvimento do espírito capitalista posteriormente consolidado (PIRES, 2003, p.80).
O caráter fundamental da Reforma foi a refutação de algumas doutrinas católicas apoiadas numa interpretação da Bíblia que, segundo os reformadores, favoreceria mais a igreja do que seus fieis. Todavia, inicialmente o movimento da Reforma não teria pretendido a ruptura e a divisão da Igreja Católica Apostólica Romana. Ao contrário, Martinho Lutero esperava debater os entendimentos, segundo ele, equivocados da Bíblia, resultantes da corrupção dos sacerdotes que assessoravam o Santo Papa em favor de causas particulares humanas. Lutero intentou alertar o Papa Leão X quanto aos abusos e espoliações a que os fiéis estavam sendo submetidos pelo alto clero.
Quando, em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero afixou na Igreja de Wittemberg (Alemanha) as 95 teses escritas em latim que criticavam os abusos da Igreja Católica, o reformador cogitava uma disputa intelectual dentro do seio da igreja. Sua motivação para tanto foi a venda de indulgências e o cultivo da adoração às relíquias que a instituição afirmava serem lembranças da história da cristandade. O circo armado de Roma, segundo Lutero, aviltava a mensagem principal do evangelho, a saber: o Cristo crucificado por amor à humanidade.
Martinho Lutero foi um homem marcado por convicções e, paradoxalmente, por dúvidas. Seus pais eram piedosos e seguidores das doutrinas e ensinos católicos. O pai era minerador, e a mãe, membro uma família burguesa. Por volta de 1507, a família de Lutero frequentava os círculos burgueses, e seus dois irmãos eram professores universitários. Naquela época, as pessoas que podiam estudar tinham três alternativas: teologia, medicina e direito. Lutero teve sua carreira acadêmica planejada detalhadamente pelo pai e, depois de ter se tornado mestre nas artes, foi encaminhado para o curso de direito.
Ainda como estudante de direito, decidiu seguir a carreira religiosa após ter passado por uma experiência de assombro. Em 2 de julho de 1505, Lutero foi surpreendido por uma tempestade e - a 6 quilômetros ao norte de Erfurt, em Stotternheim - próximo dele caiu um raio que o aterrorizou. O jovem Lutero invocou a padroeira dos mineiros, santa Ana, prometendo--lhe ingressar num convento caso o salvasse. Depois dessa experiência, em 1507, foi ordenado monge no Mosteiro Agostiniano Eremitas Observantes de Erfurt, onde recebeu suas primeiras instruções sobre teologia. Nesse período, foi grandemente influenciado pelo seu conselheiro Staupitz, que o apoiou até momentos cruciais de sua vida, quando foi confrontado pelos enviados de Roma e excomungado da igreja (DREHER, 1996, p.14).
Vale dizer que Lutero foi profundamente acometido de culpa por não se considerar apto para o exercício do ministério religioso. Sua culpa e inquietação o levaram a longos debates com o demônio, pois se sentia envergonhado pelas dúvidas que o acompanhavam e não se contentava com a imagem carrasca e inquisidora de Deus, corrente no período medievo2. A intensidade das questões de Lutero o encaminhou para o doutorado em teologia. Lutero afirmou ter sido forçado à carreira universitária e ao título de doutor, mas seus superiores na Ordem o designaram para o estudo da Teologia e, posteriormente, para a cátedra de Bíblia em Wittemberg. Na função docente, Lutero aliou pregação e instrução, práticas ligadas ao seu título de doutor nas Sagradas Escrituras e às suas convicções de fé.
A Universidade de Wittenberg era ainda muito recente quando recebeu Lutero. Havia sido criada pelo príncipe-eleitor da Saxônia, Frederico, o Sábio, há apenas 10 anos. Na época concorria com grandes expoentes, como as universidades de Viena, Heidelberg, Colônia, Erfurt, Leipzig e outras. Mas, com a docência de Lutero, o número de estudantes aumentou pouco a pouco, chegando ao número de 600 alunos em 1520. Lá passaram a ser recebidos os alunos das províncias alemãs, da Suíça, da Polônia e da Boêmia (EBELING, 1988, p.13).
No ambiente acadêmico, Lutero teve acesso aos escritos bíblicos nas línguas originais - he-braico e grego - sem a interpretação mediada pelos clérigos. O contato direto com as Escrituras inspirou sua reflexão quanto à pregação oficial da igreja e seus ensinos, e o conduziu ao debate teológico. Por essa época o reformador era professor de filosofia moral da Universidade de Wittenberg. Em sua crítica, destacou o problema da venda de indulgências promovida pelo Papa Leão X para o financiamento da construção da Basílica de São Pedro, em Roma. Seu objetivo inicial com a elaboração das 95 teses foi levar ao público suas ideias, mas as teses do teólogo geraram uma espécie de cisma e, em 21 de janeiro de 1521, foi redigida sua carta de excomunhão, que recebeu algum tempo depois.
Pode-se dizer que o trabalho hermenêutico de Lutero no trato do texto bíblico teria sido o fio condutor do movimento da Reforma. As antigas questões que torturavam Lutero assim como a outros cristãos do período medieval tornaram-se questões de aproximação da Bíblia, isto é, questões hermenêuticas. A sua formação bem como o seu tempo sinalizavam posi-tivamente para ideias que se consolidavam paulatinamente: indivíduo e consciência, assim como outros conceitos que marcaram a modernidade, podem aqui ser entendidos como noções significativas que constituíram as condições de possibilidade para que homens como Lutero fomentassem uma consciência de autonomia. Daí que o contato com a literatura bíblica, não intermediado pelo clero, tornara-se o ponto crucial de sua argumentação no sentido de que se revelasse aos homens um Deus amável e misericordioso.
Somente em 1545 Lutero falou sobre a experiência que o fez (re)descobrir a justificação3. No convento com os monges, ou junto aos alunos como professor de teologia bíblica, Lutero se perguntava "como posso obter um Deus misericordioso?". A ameaça da condenação ao inferno assim como a culpa pelo pecado assolavam os cristãos desde a infância até a juventude. A igreja esforçava-se para inculcá-las em seus fieis e fazia de tais sentimentos, instrumentos de controle que lhes garantia a crença num Deus impiedoso quanto ao pecado. Demônios e duendes faziam parte do imaginário da época. Em razão disso, Margaretha Lude, sua mãe, costumava colocar nas proximidades da casa ervas de toda a sorte com a finalidade de evitar que o mal viesse sobre a família (DREHER, 1996).
Historiadores da Reforma entendem que a exegese de um extrato bíblico específico teria contribuído para uma mudança epistêmica no entendimento teológico de Lutero, que resultou no deslocamento do olhar, antes centrado na Lei, para uma atenção especial à Graça. Essa perícope, Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 1, verso 17, parte a ("[...] a justiça de Deus se revela de fé para a fé"4), primeiramente conduziu Lutero a pensar que, para além do Decálogo (Antigo Testamento), outro conjunto de textos autoritativos contidos nos Evangelhos (Novo Testamento) impunham-se ao fiel como regra para a salvação. Contudo, a atenção para a segunda parte do verso ("o justo viverá pela fé") levou-o a concluir que a justiça de Deus e seu perdão seriam concedidos por meio da fé, cuja origem estaria no indivíduo, e não na igreja.
Resulta desse entendimento que, por um lado, a morte e a condenação se avizinhariam daquele que não tem fé. Por outro, a alegria da vida e da salvação seria dada aos que tivessem fé. Tal entendimento está ilustrado nos versos do hino a seguir. Na primeira estrofe a salvação, fruto do amor divino provado com sua morte na cruz e, na segunda e terceira estrofes, o terror das trevas e a condenação eterna, a despeito de todas as obras realizadas em vista de se obter um pedaço do céu.
Cristãos, alegres jubilai,
felizes exultando;
com fé e com fervor cantai,
a Deus glorificando.
O que por nós fez o Senhor,
por seu divino excelso amor,
custou-lhe a própria vida.
Fui prisioneiro de Satã,
a noite me envolvia.
A minha vida, triste e vã,
nas trevas se esvaía.
Abismo horrível me tragou;
perdi-me no pecado.
As obras nunca poderão
livrar-me do pecado.
O livre-arbítrio tenta em vão
guiar o condenado.
Horrível medo me assaltou,
ao desespero me levou,
lançando-me ao inferno.
Lutero, portanto, entendeu que a justificação ocorre quando Deus aceita o pecador e o justifica de todos os seus pecados. A pessoa tornada justa passa a viver confiando exclusivamente em Deus. Embora a justificação seja necessária, o processo não aconteceria da mesma maneira para todas as pessoas: "a experiência pessoal é dada e marcante [...] [mas] não é ela que importa. Importa, sim, a realidade objetiva da justificação em Cristo" (ALTMANN, 1994, p.84). Por meio da fé - que é concedida pelo próprio Deus, e não pelos recursos humanos -, o indivíduo pode alcançar a salvação. Desse entendimento derivou ainda outra conclusão: há salvação fora da Igreja Católica Apostólica Romana.
Nesse sentido, quando realizada a justificação, não se elimina a experiência diária do fiel, o que significaria que a conversão é um processo em andamento: a conversão segue acon-tecendo. Daí o pedido: "Ajuda, querido Senhor e Salvador, para que permaneçamos pecadores piedosos e não nos tornemos santos blasfemadores" (ALTMANN, 1994, p.87). Esse processo conduz à ética e à ação no mundo, que Max Weber classificou como ascese intramundana5. Isso "Porque o homem não vive somente com e para o seu próprio corpo, mas sim também com os demais homens. Esta é a razão pela qual o homem não pode prescindir das obras no trato com seus semelhantes" (LUTERO, 1983, p.40). Noutras palavras, o justo viverá pela fé, mas não deverá descuidar das suas ações e práticas no mundo. Eis a base da ética protestante. Se, por um lado, a Lei condena, por outro, o Evangelho, que traz a notícia da graça, salva.
Caberia ao fiel viver no mundo, sem deixar-se contaminar por ele. Algo que somente seria possível se permanecesse depositando fé nos méritos de Deus. Daí resultaram alguns princípios basilares para o movimento da Reforma.
Com a Reforma emerge o princípio chamado Sola Scriptura, que se baseia na crítica à autoridade interpretativa e doutrinária da igreja católica sobre a Bíblia, a qual fundou certa tradição que no curso histórico se sobrepôs ao próprio conteúdo bíblico. Lutero recusou essa premissa, a infalibilidade e a interpretação papal.
Num episódio bastante conhecido da vida de Lutero, em 1521, ele foi chamado a se retratar diante a Dieta Imperial em Worms. Na ocasião, foi pedido que renegasse seus escritos teológicos que, segundo o papado, constituíam heresia e afronta à autoridade eclesiástica. Após ter ouvido as condições, Lutero solicitou um dia de reflexão. Passado o prazo, retornou diante seus inquiridores e apresentou seu parecer a respeito de seus escritos, dividindo-os em três partes: 1) fé e doutrinas, 2) contra os papas e papistas e 3) contra os opressores da área privada. Embora não reconhecesse as autoridades eclesiásticas, justificava sua negação com base, segundo ele, na literatura bíblica: "[...] a minha convicção vem das Escrituras a que me reporto, e minha consciência está cativa à palavra de Deus" (LUTERO, 1987, p.145).
Na fala de Lutero, dois princípios parecem evidentes: acima de qualquer outra autoridade estaria a autoridade do texto bíblico e, da leitura e entendimento das Escrituras, resultaria um tipo de consciência esclarecida da qual deveriam derivar as escolhas individuais do fiel6.
Em 1520, Lutero desenvolveu um escrito que alguns pesquisadores consideram emi-nentemente político: "À nobreza cristã da nação alemã, acerca da melhoria do estamento cristão"7. Na ocasião, Lutero declarou que a concepção de que cabe somente ao Papa o ofício de interpretar os textos bíblicos é "uma fábula desaforadamente inventada"8. Assim, sustentava que o sacerdócio universal dos crentes requereria a quebra do monopólio papal sobre a leitura e interpretação das Escrituras. Baseado na Segunda Carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 3, verso 17 ("Pois o Senhor é o Espírito, e onde se acha o Espírito do Senhor aí há liberdade"), Lutero convocou os cristãos a desfrutarem da liberdade que o Senhor concedia a quem buscasse discernimento e orientação diretamente da Bíblia. Segundo entendia, o esclarecimento sobre o seu conteúdo viria do próprio Deus9.
Lutero acreditava que, após ter sido entendido o artigo central da justificação por graça e fé, a Escritura se tornava clara; isto é, no processo de leitura e interpretação gradual da Bíblia, os sentidos dos conteúdos fundamentais se autoevidenciavam com a ajuda do Espírito Santo. Com isso, Lutero não dispensava o estudo criterioso das Escrituras. A clareza da men-sagem bíblica estaria, portanto, ligada ao sacerdócio universal de cada crente e à oportunidade de, mediante o contato com os escritos bíblicos, cada indivíduo receber a graça, ter fé e ser justificado. Para que isso ocorresse era necessário que tais textos fossem traduzidos para a língua do povo.
Lutero foi responsável pela tradução do Novo Testamento da língua original - grega - para o alemão. Com isso, também cunhou a língua alemã moderna10. A tradução se caracterizou pela preocupação de tornar o texto original próximo da linguagem popular. Mas, se por um lado, essa preocupação quanto à tradução para o idioma alemão favoreceu o contato entre povo e Escrituras, por outro, o monopólio da igreja sobre o texto bíblico começou a ruir.
Lutero concedeu grande valor à Escritura e não negou que ela era o registro da voz de Deus por meio da ação humana11. Portanto, os textos bíblicos foram mediados antropologicamente. Contudo, entendeu que somente a leitura que fosse intermediada pela inspiração do Espírito Santo superaria o escrito e desvelaria a mensagem de Deus. As noções de que a Bíblia foi formada também pela ação humana e de que o Espírito era responsável pela vivificação da letra, fizeram com que Lutero adquirisse certa liberdade na leitura e interpretação das Escrituras. Havia textos que, segundo ele, poderiam legitimar desejos humanos; logo, poderiam ser classificados em grau de importância. O resultado desse princípio foi que Lutero sentiu--se a vontade para apreciar alguns textos mais do que outros, e isso explica o seu pouco caso em relação ao Apocalipse, à Epístola aos Hebreus e mais ainda em relação à Epístola de Tiago, que poderia servir de legitimação para as boas-obras que a igreja até então requeria dos fiéis para a salvação. O reformador tinha como critério hermenêutico "aquilo que promove Cristo" e nisso se apoiava para rejeitar a influência dos Pais Apostólicos. Importava apenas que o centro de toda a interpretação bíblica apontasse para Jesus, o Cristo.
Lutero também se empenhou na reforma educacional dos currículos das universidades e na criação de escolas cristãs que ensinassem a Bíblia para todos. O que parece ter caracterizado seu pensamento e que condicionava sua hermenêutica é a questão do embate entre antigo e novo, da era da lei versus a era da graça. Esse confronto foi levado às últimas consequências na fórmula simul iustus - simul peccator (justo e pecador ao mesmo tempo), a qual se reproduziria em outras polaridades correlacionadas e estruturantes de seu pensamento teológico, como "filosofia e teologia, letra e Espírito, lei e evangelho, o duplo uso da lei, pessoa e obra, fé e amor, reino de Cristo e reino do mundo, pessoa cristã e pessoa civil, liberdade e cativeiro, Deus oculto e Deus revelado" (EBELING, 1988, p.19).
Para Lutero, a palavra de Deus deveria ser lida e ouvida segundo o Espírito, que privilegiaria mais a sua voz do que a palavra material e escrita. O papel da letra, portanto, era instrumento para que o Espírito se fizesse ouvir. "O Espírito está oculto na letra" (EBELING, 1988, p.78). Segundo Lutero, a letra não corresponde à boa palavra de Deus, mas sim à ira. Já o Espírito é a boa-nova, o evangelho, porque é a palavra da graça. Nesse sentido, ele entendeu que a palavra da lei é simbólica e que as palavras e acontecimentos bíblicos em si mesmos constituem o objeto que designam. Assim, o Espírito Santo tem a função de atualizar essa palavra constantemente, a fim de que ela não se fixe ou se prenda ao passado. A compreensão da diferença entre letra da lei e espírito da lei tornou-se posteriormente um pilar da distinção entre lei e evangelho. O reformador considerou essas duas realidades contrastantes, reveladoras de dois âmbitos da vida: o carnal e o espiritual e, na perspectiva de Lutero, as oposições do visível e do invisível, do exterior e do interior, do humano e do divino, do agora e do futuro, entre outras, revelavam uma perspectiva histórica de progressiva superação de uma instância pela outra - um entendimento que se consolidaria com a Modernidade e o deslocamento epistemológico típico desse período, do misticismo medieval para a lógica da razão.
Por entender que a lei era tudo que exigia, enquanto o evangelho representava a promessa e a concessão de Deus para quem cresse em Jesus, Lutero concebeu o chamado binômio letra e Espírito, do qual é sinônimo o par Lei e Evangelho. A distinção entre lei e evangelho era fundamental, e não representava uma operação de substituição de uma pela outra, pois seria necessário defender a lei para se assegurar da pureza do evangelho. A lei sempre condenaria o pecador, mostrando-lhe sua situação de perdição. Por outro lado, o evangelho seria a boa-nova que revelava o feito salvífico de Deus para salvar a humanidade. Noutras palavras, a lei era necessária para que a graça fosse revelada. Da mesma forma, o evangelho por si só não bastaria, necessitando da complementação da lei12.
Vale notar que, segundo esse entendimento, quando a Palavra é bem proclamada e a distinção entre Lei e Evangelho é compreendida, haveria um despertamento da consciência. Tal consciência é que tornaria o indivíduo autônomo de si mesmo, algo diferente de uma consciência unicamente humana, que o faria escravo de suas próprias possibilidades e que o obrigaria a apresentar as contas de tudo quanto não fez e onde falhou.
Com a Reforma e as propostas feitas pelos fundadores desse movimento, ficou evidente que o processo interpretativo dos escritos bíblicos pode ser efetuado individualmente e que o texto bíblico se presta a essa atividade. Antes da Reforma não era dado ao leigo o direito de interpretação do texto bíblico, tarefa essa exclusiva do clero e que justificava o entendimento segundo o qual os fieis deveriam ser conduzidos às conclusões necessárias. Lutero inaugurou a era em que cada cristão poderia ter sua Bíblia e, inevitavelmente, poderia elaborar suas conclusões particulares.
Se, por um lado, a proposta de Lutero possibilitou o encontro do fiel com as Escrituras, contribuindo para que a relação com Deus se tornasse mais pessoal e independente da figura do padre, por outro lado, pode-se dizer que essa iniciativa deu-se no âmbito de um anseio generalizado de autonomia que tomava aldeões, comerciantes e artesãos da época. Nesse sentido, a leitura bíblica individual se encaixava num quadro social e histórico que emergia juntamente com um novo tipo de sociedade e, ao mesmo tempo, servia aos propósitos de grupos descontentes com os privilégios do clero.
Provavelmente, o Lutero revolucionário que se conhece não fez mais do que externar os anseios de uma classe emergente, a saber, a burguesia. Por isso, faz-se necessária a percepção de que também a leitura de Lutero foi mediada por circunstâncias socioculturais específicas, visto que sua hermenêutica foi condicionada por esse horizonte que ainda se via em face de traços medievais. O legado protestante do século XVI, as contestações de Lutero ao Papado e seu exercício arbitrário do poder eclesiástico, bem como o posterior pensamento burguês do século XVII, constituíram eventos históricos significativos que favoreceram a multiplicação das alternativas religiosas nos séculos seguintes e possibilitaram, no âmbito religioso, a libertação dos fieis da obrigação de famílias confessionais. Mas não só isso.
As questões hermenêuticas de Lutero tornaram-se o fio condutor de um tipo de lógica que gradualmente se consolidava. Ao questionar a autoridade papal e o monopólio da Igreja Católica na formulação de doutrinas, o movimento reformador afirmava haver outra via de salvação não protagonizada por essa instituição. Com isso dava voz à figura do indivíduo, fortalecendo assim uma concepção segundo a qual a razão individual poderia ser critério para o entendimento da vontade de Deus e de seu plano para a humanidade. Como conse-quência imediata desse entendimento, cada crente poderia ser um sacerdote. Cada crente poderia entender o texto bíblico. A igreja não seria mais fundamental para a humanidade.
Das trevas, então, surgem as luzes da razão, num movimento que teve em Lutero um de seus protagonistas.
* R. José Lourenço Kelmer, s/n., São Pedro, 36036330, Juiz de Fora, MG, Brasil. E-mail: <elisa.erodrigues@gmail.com>.