Artigos: Temática Livre

A moral lockeana entre a razão e a revelação 1

Morality in Locke between reason and revelation

Ramiro Marinelli DUARTE *
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil

A moral lockeana entre a razão e a revelação 1

Revista Reflexão, vol. 43, núm. 1, pp. 109-123, 2018

Pontifícia Universiade Católica de Campinas

Recepção: 08 Janeiro 2018

Revised document received: 21 Maio 2018

Aprovação: 11 Junho 2018

RESUMO: Neste artigo analisa-se a questão da moral dentro da relação entre razão e revelação. Em um certo momento do “Ensaio”, Locke propõe, en passant, que a moral poderia ser conhecida racionalmente. Porém, apesar de explicitamente nunca ter abandonado essa tese, ele não a desenvolveu suficientemente em nenhum lugar, dedicando-se, antes, a explorar outras vertentes para a fundamentação da moral. Uma delas seria buscar apoio para as verdades morais em textos tidos como revelações genuínas. Essas últimas – e, novamente, em particular, a revelação cristã –, forneceriam diretamente ao homem um corpo consistente de regras morais que orientam o homem a ser feliz nessa vida e na vida futura. No livro II do “Ensaio”, Locke desenvolve em razoável detalhe – e de forma um tanto inesperada, visto que ele é dedicado à questão epistemológica específica da origem das ideias –, a perspectiva da vida futura como relevante para a moralidade. Nota-se nesse ponto a possibilidade de uma interpretação que se poderia, em certo sentido, classificar como “utilitarista” da moral. Mesmo neste caso, o papel da razão diante de uma revelação com conteúdo moral continua sendo, se esse caminho for seguido, o de constatar a procedência divina da revelação.

Palavras-chave: Locke, Moral, Razão, Revelação.

ABSTRACT: The aim of this paper was to examine, in a somewhat exploratory way, the issue of the foundation of morality, given Locke’s theses about the relationship between reason and revelation. At a certain point in the “Essay”, Locke proposes, en passant, that morality can be known rationally. Although he never explicitly abandoned this thesis, he has not developed it anywhere else. Instead, he devoted himself to exploring other possibilities to establish the grounds of morality. One of them would be seeking support for the moral truths in texts considered genuine revelations. These texts – and, again, particularly the Christian revelation – would provide man with a consistent body of moral rules capable of guiding man to be happy in this life and hereafter. Also, in Book II of the “Essay”, Locke develops in some detail the argument that takes the prospects of a future life as relevant to the issue of the foundation of morality. We suggest, here, that this line of argument is akin to utilitarianism. Even in this case, the role of reason before revelation with moral content, if this alternative is chosen, would still be to verify the divine origin of revelation.

Keywords: Locke, Morality, Reason, Revelation.

Introdução

As questões morais são temas recorrentes nos vários escritos de John Locke. A sua principal obra, “Ensaio sobre o entendimento humano” (1690, a partir de agora citada como “Ensaio”), é permeada de temas relacionados à moral. Alguns estudiosos postulam que as questões que inspiraram a pesquisa lockeana sobre as capacidades do entendimento humano se referem à religião revelada e à moral. Também na “Razoabilidade do Cristianismo” (1695, a partir de agora citada como “Razoabilidade”) se encontram muitas passagens que abordam temas morais.

Na visão lockeana, a observação das regras morais é imprescindível para a felicidade do homem seja nesta vida ou em uma provável vida futura. Para garantir segurança na escolha das leis morais que devem guiar a ação humana, Locke flertou, no “Ensaio”, com a proposta ousada de que a moral, em princípio, poderia estar dentro do conhecimento humano. Porém, ele não argumentou satisfatoriamente a favor dessa tese. Outra possibilidade para se ter uma fonte segura de leis morais é que a moral seja “revelada”. Essa segunda proposta pode ser encontrada tanto no “Ensaio” quanto na “Razoabilidade”. Segundo a estrutura do entendimento humano que Locke propõe no “Ensaio”, as regras morais reveladas seriam um tipo específico de crença em geral. Na epistemologia lockeana a razão exerce um papel de diferentes níveis de atuação dentro da crença em geral. Então, a tentativa de compatibilização entre razão e revelação que Locke procura estabelecer no “Ensaio” estaria ligada também às questões morais. A revelação não teria apenas uma utilidade religiosa imediata, mas propiciaria a possibilidade de respaldar a ciência moral.

Neste artigo, objetiva-se colocar em relevo esse aspecto prático do diálogo entre razão e revelação. A obra lockeana que orienta essa pesquisa é o “Ensaio”, mas será considerada também a “Razoabilidade” e algumas correspondências de Locke que podem ajudar a esclarecer os seus posicionamentos sobre a moral. Como a moral é um tema amplo no “Ensaio”, não há a pretensão de esgotar todas as questões e possibilidades interpretativas. Além disso, como já mencionada acima, grande parte dos escritos de Locke trata, ainda que não de maneira sistematizada, desse tema. Por isso, não é uma tarefa simples a apresentação e estruturação do seu pensamento moral. O fato de Locke não ter escrito uma obra específica sobre o assunto dificulta uma visão orgânica da sua filosofia moral. Alguns comentadores e estudiosos do pensamento lockeano sustentam que se encontra na sua filosofia muito mais uma sugestão do que deveria ser a moral do que uma posição completa e positiva sobre a questão.

Examinando o “Ensaio”, pode-se individuar três correntes de fundamentação da moral que estão presentes na obra. Propõem-se que essas três correntes se reforçam, pois, faltando condições ou capacidades ao entendimento humano para fundamentar a moral em uma delas, pode-se recorrer a outra. As três correntes presentes no “Ensaio” são: a moral racional, que poderia ser demonstrada, como a matemática; a moral de tipo “utilitarista” 3, que é exposta, principalmente, porém não exclusivamente, em E II.xxi 4 (Ensaio, livro II, capítulo xxi); e a moral revelada, que é uma fonte segura para que o homem oriente a sua vida em direção à felicidade e à vida eterna.

A sugestão que aqui se faz é que a moral subsidiada pela revelação ocupa um lugar de destaque na doutrina moral lockeana. Como já se notou, Locke não demonstrou nenhum postulado moral significativo; ele apenas sugeriu essa possibilidade, mas não a concretizou de maneira sistemática: “Apesar da moral claramente ocupar uma posição de alta consideração no seu sistema epistemológico, a sua promessa de uma ciência moral demonstrável nunca se realizou no Ensaio ou em escritos posteriores” ( SHERIDAN, 2014, p.6). A moral “utilitarista” também é pouco desenvolvida fora do contexto, um tanto inadequado, da discussão da origem das ideias (livro II do Ensaio). Resta, portanto, a moral revelada, que é apresentada, em razoável detalhe, no “Ensaio”, como uma via segura para se obterem as regras que devem orientar a vida do homem. A moral revelada é aprofundada por Locke na “Razoabilidade”, que é uma obra de cunho religioso. Nesse sentido, toda a discussão de Locke sobre a importância da revelação para o entendimento humano ganha um horizonte mais amplo. A crença religiosa no pensamento lockeano tem como uma das suas finalidades apresentar um conjunto de regras morais acessíveis a todos os homens mediante a revelação.

As três correntes de fundamentação da moral presentes no “Ensaio” serão analisadas. Inicia-se com o “utilitarismo” lockeano. Depois, apresenta-se a sua tese de uma moral demonstrável e, por fim, de uma moral revelada, sendo que a análise desta última ajudará a compreender em que sentido a moral é um prolongamento das discussões sobre razão e revelação.

Moral e realização humana: o “utilitarismo” lockeano

No capítulo xii do livro IV do “Ensaio”, Locke trata do aperfeiçoamento do conhecimento humano. Nesse contexto, há uma citação sobre a ligação que existe entre a moral e a realização da vida humana. No parágrafo 11, ele sustenta:

É razoável concluir que nossa ocupação própria seria o tipo de investigação e conhecimento que mais convêm a nossas capacidades naturais e embutem nosso primordial interesse, a condição de nosso estado eterno. Conclui-se, assim, que a moral é a ciência, a ocupação própria do gênero humano, tão interessado quanto predisposto para buscar seu summum bonum; e que as muitas artes que versam sobre as muitas partes da natureza são o lote, o talento individual de cada homem para o uso comum da vida humana e para sua própria subsistência neste mundo

( LOCKE, 2012, p.710, grifos do autor).

Aquilo que deveria interessar mais ao homem é a busca de meios pelos quais possa viver uma vida plena, harmônica e feliz. Os outros conhecimentos, apesar de serem relevantes, são acessórios em comparação à realização daquilo que é específico da natureza humana. Nesse sentido, a ciência moral é caracterizada por Locke como a ocupação “própria” do ser humano; pois, ela possibilita ao homem, na sua perspectiva “utilitarista”, encontrar a felicidade nesta vida e tem como recompensa a vida eterna. No último capítulo do “Ensaio”, a ética é definida como a ciência que nos fornece as “regras e medidas das ações humanas” ( LOCKE, 2012, p.793) que conduzem à felicidade. Schneewind (1994) argumenta que, para realizar essa função, as regras devem se apresentar como guias efetivos.

Locke era um hedonista acerca da motivação, sustentando que somente as perspectivas de prazer e de dor podem motivar-nos. A partir da segunda edição do Ensaio em diante, ele forneceu uma versão sofisticada dessa concepção. O desejo é despertado unicamente pela perspectiva da própria felicidade ou prazer do agente. Mas nós não somos mecanicamente movidos por desejos. Somos agentes livres, e nossa liberdade consiste em nossa capacidade de suspender a ação, na medida em que consideramos os diferentes desejos e aversões que sentimos, para decidir quais deles satisfazer e, então agir de acordo com a nossa decisão

( SCHNEEWIND, 1994, p.203).

Sheridan (2014) também entende que uma das propostas de Locke para a moral está ligada a um sistema hedonista de motivação da ação. Ou seja, cumprir uma determinada lei moral proporciona ao homem uma satisfação. Na sequência serão desenvolvidos os principais pontos desse sistema.

A análise deste tema começa em E II.xxi, capítulo em que Locke trata da ideia de “poder”. Esse capítulo do “Ensaio” se insere em uma discussão mais ampla sobre as “ideias” complexas de modo misto simples. A discussão da ideia de poder suscita questões relevantes para a compreensão da proposta utilitarista da moral.

A ideia de poder seria, segundo Locke, formada pela experiência de mudança perceptível de ideias. O homem faz constantemente a experiência de que certas coisas são passíveis de mudança e outras são capazes de fazer com que essa mudança ocorra, conforme diz a citação de E II.xxi.1: “[A mente] refletindo sobre o que acontece em si mesma, observa que suas ideias mudam constantemente, seja pela impressão de objetos de fora nos sentidos, seja por determinação de sua própria escolha” ( LOCKE, 2012, p.240). De maneira geral, sustenta-se que Locke define a ideia simples de poder como capacidade de pôr em movimento. Partindo da ideia simples de poder, originam-se outras ideias complexas de modo simples que são relevantes para a ciência moral.

No parágrafo 5 desse mesmo capítulo XXI, há uma primeira definição de vontade 5: “O poder de ordenar ou de impedir, em cada instância particular, a consideração de uma ideia, de preferir ou não um movimento de uma parte do corpo a seu repouso, chama-se vontade” ( LOCKE, 2012, p.243, grifos do autor). Quando o homem reflete sobre o seu poder de pensar ou não em uma determinada ideia, ou no seu poder de movimentar ou não partes do seu corpo, surge a ideia de vontade. Na teoria lockeana esta ideia é classificada como ideia complexa de modo simples.

Ostrensky (2006) nota que a primeira definição de vontade do parágrafo 5 será depois aperfeiçoada:

Mais adiante, no parágrafo 15, Locke aprimora essa definição mecânica de vontade (ou volição): ato da mente que exerce domínio consciente sobre qualquer parte do homem, seja empregando-a em alguma ação, seja impedindo-a de agir. E no parágrafo 40 a vontade adquire uma definição mais moral que mecânica, ainda que baseada nesta, e passa a indicar o poder de orientar nossas faculdades operativas para algum fim

( OSTRENSKY, 2006, p.370).

A ideia de liberdade também é uma variante da ideia de poder e, portanto, uma ideia complexa de modo simples. Em E II.xxi.8 há a seguinte definição: “ Liberdade é, portanto, a ideia do poder, num agente, de executar ou evitar uma ação particular, segundo determinação ou pensamento da mente, que prefere uma coisa a outra” ( LOCKE, 2012, p.245, grifos do autor). Segundo Locke, o homem é livre somente quando pode exercer a sua preferência de pensar sobre determinada coisa ou não pensar, mover-se ou não se mover. Assim, uma determinada ação pode ser voluntária e não ser livre, pois, se falta o exercício da preferência, falta a liberdade. Quando o homem age segundo pensamento, vontade e volição, mas não está exercendo a preferência, ele é necessitado e não livre. Para a filosofia lockeana pode existir pensamento, vontade e volição quando não existe liberdade, mas a liberdade existe somente quando existe pensamento, vontade e volição com o exercício da preferência. Nesse sentido, liberdade é a inexistência de limites que impeçam o exercício da escolha; uma vez que a escolha é exercida, o sujeito deve ter condições de implementar a ação desejada.

Locke apresenta em E II.xxi.9 um de seus exemplos para explicitar sua concepção de liberdade: um homem que está caindo na água após a ponte em que estava se quebrar não é livre para cessar o movimento de queda, apesar de ter volição e preferir não cair ( LOCKE, 2012). Conclui, sustentando que a liberdade não está propriamente na volição ou preferência em si, mas na possibilidade de agir, segundo a escolha e direção da mente, realizando ou evitando certas ações. Esse homem que cai da ponte não tem a liberdade (possibilidade) de agir segundo a sua vontade e preferência nessa circunstância.

Sobre a definição de liberdade, Ostrensky faz a seguinte observação:

Nesse sentido, ao que parece, Locke fornece uma definição bivalente de liberdade: é a ausência de oposição ao movimento, por um lado, mas por outro, pertence apenas a agentes livres, isto é, que não estão submetidos à vontade de um outro. Assim, um homem é livre se e somente se (i) não há impedimentos objetivos ou externos a seu movimento, e (ii) não há impedimentos subjetivos ou mentais à sua vontade livre

( OSTRENSKY, 2006, p.370).

A liberdade tem várias implicações no campo moral e religioso. Reflete-se sobre uma corrente que sustenta o determinismo das ações humanas, ou seja, o homem não escolheria realizar suas ações, mas elas seriam determinadas pela sua natureza. Isso limitaria a liberdade do homem e, ao que parece, consequentemente a sua responsabilidade. Caso o homem não escolhesse livremente realizar suas ações morais, ele poderia ser cobrado por realizar tais ações? Já foi tratada acima a moral como um conjunto de leis, mas se essas leis são infringidas por determinismo das ações do homem, ele poderia ser penalizado? No âmbito religioso, se o cumprimento de um conjunto de leis garante a plenificação na vida eterna, o homem pode ser considerado digno de mérito ou culpa se não age livremente? Acredita-se que essas questões foram consideradas por Locke quando ele escreveu sobre a liberdade e posicionou-se contra um determinismo rígido. A sua posição privilegia a visão do homem como um agente moral livre em grande parte de suas ações 6.

Para Locke, as ideias complexas de modo simples de vontade e liberdade surgem a partir da ideia simples de poder. Portanto, vontade e liberdade são poderes que como tais devem ser atribuídos a agentes. A vontade é o poder de realizar ou não uma determinada ação ou considerar ou não um determinado pensamento. A liberdade é o poder de agir ou não segundo a escolha ou preferência. Como se trata de dois poderes distintos, se se utiliza um destes poderes para caracterizar o outro se estaria os equiparando.

Locke inequivocamente nega que a vontade é livre, isso implica, de fato, que é um erro de categoria colocar essa questão. Isto porque, na sua visão, tanto a vontade quanto a liberdade são poderes de agentes, e é um erro pensar que um poder (a vontade) pode ser uma propriedade de um segundo poder (a liberdade) (E II.xxi.20). De fato, Locke pensa que a questão justa a se fazer é se um agente é livre ( WALSH, [2016?], online).

As definições de vontade e liberdade e a correlação existente entre elas são necessárias para a compreensão da moral “utilitarista” lockeana. Em muitos casos da vida humana, as paixões influenciam muito mais as ações do que a razão. A influência das paixões pode guiar à vontade e limitar a liberdade do homem.

Locke propõe que muitas das ações do dia a dia do homem são determinadas pela vontade para responder a um estado de incômodo ( uneasiness). Em E II.xxi.31 encontra-se:

O incômodo é o que sucessivamente determina a vontade e nos leva às ações que desempenhamos. Podemos chamar de desejo o incômodo da mente na ausência de um bem. Toda dor do corpo, de qualquer tipo que seja, e toda inquietação da mente provoca um incômodo; a este junta-se um desejo, igual à dor ou ao incômodo experimentado, que mal se distingue dele

( LOCKE, 2012, p.258, grifos do autor).

Por exemplo, a sede é um estado de incômodo causado pela falta de água no organismo. Esse estado de sede pode determinar a vontade do homem a agir e aplacar a sua sede. Esse caso, proposto dessa maneira simples, não levanta questões morais significativas. Porém, se pensarmos que todo o incômodo presente poderia determinar a vontade humana, primeiro se colocaria em risco a liberdade e, em segundo lugar, poderia ser trocado um bem maior por algo de menor valor. E, nesse caso, as questões morais começam a ficar mais relevantes e complicadas.

Ostrensky (2006) argumenta que Locke percorre um caminho “acidentado”, defendendo que a ideia de bem move as ações do homem, porém negando que seja sempre o bem maior que atua nessa perspectiva. Em certas situações, existe uma dificuldade de identificar qual é o bem maior e, às vezes, este pode não produzir uma satisfação imediata e presente capaz de guiar a ação do homem. Muitas vezes, para satisfazer um bem imediato, o homem abre mão de um bem maior que está mais distante.

Tratando desse assunto da moral lockeana, Schneewind (1994, p.204) sustenta que:

[…] a vontade não é determinada por nossas crenças sobre qual o curso de ação poderia nos trazer a maior quantidade de bem. Se ela fosse assim determinada, argumenta Locke, ninguém pecaria, uma vez que a perspectiva da felicidade ou do tormento eterno superaria todas as outras. Nós podemos sentir mais intranquilidade por causa de uma falta presente de comida do que por causa de um desejo de transcendência, e a vontade incita-nos a agir para aliviar o incômodo mais forte.

Pode ser utilizado o exemplo que o próprio Locke dá, do tabaco. O homem que tem o costume de fumar o faz para satisfazer um incômodo presente. O tabagismo produz uma satisfação e realização momentâneas. Porém, em uma perspectiva futura, pode acarretar certas doenças e males para a pessoa que fuma. O homem que se recusa a satisfazer o incômodo que a falta do fumo traz, está renunciando um bem menor em troca de um possível bem maior futuro que é a saúde. A questão é que um bem, por maior que seja, somente moverá a vontade se for objeto de desejo; a falta desse bem deve causar, na mente, incômodo. Caso isso não se verifique, a vontade não se moverá em direção a esse bem maior, mas sim em direção à satisfação dos incômodos que atualmente experimenta.

Certamente que se prefere que todas as nossas ações sejam orientadas para o bem maior. O próprio Locke, na primeira edição do “Ensaio”, propõe essa tese. Já na segunda edição, ele muda o seu posicionamento e deixa isso declarado na “Epístola ao leitor”. A mudança é decorrente de questionamentos que ele recebeu e de uma maior reflexão sobre o tema. Ostrensky (2006, p.371) considera que “Locke foi mais persuadido pela experiência do que por argumentos”. Ou seja, refletindo mais atentamente sobre a questão, ele percebeu que não é sempre o bem maior que move as ações do homem.

Na parte final do capítulo xxi do livro II do “Ensaio”, fica sempre mais claro que o bem maior que o homem deve almejar é a vida eterna de felicidade, concedida pelo Criador. Essa vida eterna é uma recompensa àqueles homens que guiam a vontade pelo uso reto da razão. E, segundo Locke em E II.xxi.70, não há desculpas para não procurar orientar as ações nesse sentido, pois: “Se o homem bom estiver certo, será eternamente feliz; se estiver errado, não será aflito, pois nada experimentará. Se acertar, o homem perverso não será feliz; se errar, será infinitamente aflito” ( LOCKE, 2012, p.290). Locke vislumbrou essa possibilidade “utilitarista” para a moral. Apesar de não a ter desenvolvido sistematicamente em outras obras, deu uma contribuição que pode ter ajudado na evolução dessa corrente de pensamento moral, nas mãos de diversos filósofos que o sucederam, nos séculos XVIII e XIX.

A moral demonstrável

A Filosofia Moral poderia ser demonstrativa, assim como a Matemática (E III.xi.16; E IV.iii.18 e 20; E IV.iv.7 e E IV.xii.8). Essa é a proposta intrigante de Locke. Pensar a moral no mesmo patamar de certeza do conhecimento matemático parece um tanto quanto audacioso e essa proposta já é explicitada em E I.iii.1: “É suficiente que regras morais sejam demonstráveis: é nossa culpa se não as conhecemos com certeza” ( LOCKE, 2012, p.48). Se em princípio a moral pode ser demonstrada, a falta de consenso em relação às verdades morais entre os homens é uma falha na utilização do aparelho cognitivo. Em E IV.iii.18, Locke propõe que, por meio da existência de um ser supremo e da nossa própria existência como seres racionais, pode-se obter os fundamentos das regras que orientam as ações:

São claras para nós a ideia de um ser supremo, infinitamente poderoso, bondoso e sábio, do qual recebe-mos nosso ser e do qual dependemos, e a ideia de nós mesmos, como criaturas racionais dotadas de entendimento. Essas ideias, se devidamente consideradas e observadas, parecem oferecer fundações para o nosso dever e as regras de nossa ação, permitindo que se conte a moral entre as ciências que podem ser demonstradas

( LOCKE, 2012, p.602, grifos do autor).

Sobre essa perspectiva da filosofia lockeana, Schneewind diz: “Algumas de suas observações indicam, além disso, que ele pensou que possuía uma teoria ética compreensiva capaz de explicar como a razão pode mostrar quais as exigências morais que devemos satisfazer” ( SCHNEEWIND, 1994, p.244). De fato, os textos do “Ensaio” deixam evidente essa expectativa lockeana.

Forde (2006) sustenta que a proposta de Locke de uma moral demonstrável está ligada ao seu ataque ao inatismo. No século xvii, era aceito por grande parte da comunidade acadêmica que as ideias e princípios inatos eram as fontes seguras da moralidade. Para contrapor esse parecer, Locke sugere uma moral demonstrativa. A base da moral demonstrativa não são as ideias inatas, como já se verifica em uma obra de 1664, “A lei da natureza”. “Parece, portanto, que não exista nenhum princípio, nem prático e nem especulativo, que esteja inscrito por natureza nas almas dos homens” ( LOCKE, 2007, p.38). Os argumentos contra os princípios práticos inatos, usados no capítulo III dessa obra, são praticamente os mesmos de E I.iii. Apesar de uma moral demonstrável ser muito mais interessante, do ponto de vista racional, do que uma moral inata, Forde conclui: “Mas o fato é que nem no Ensaio e nem em qualquer outra obra Locke produziu a demonstração filosófica que ele sugeriu” ( FORDE, 2006, p.235).

Note-se, portanto, que a tese de Locke não é apenas apresentar uma moral “razoável”: esta qualificação se encaixaria muito bem tanto com o “utilitarismo” lockeano quanto com a moral revelada, como será visto. Uma moral razoável seria mais fácil de se obter, ainda que não gozasse de unanimidade entre os homens. A moral razoável é aquela que se estabelece em concordância com a razão (embora não seja dela “derivada”). Por exemplo, o princípio moral: “devemos fazer ao próximo o que gostaríamos que ele nos fizesse”. Os homens podem discutir as razões que levariam à aceitação desse princípio: considerações de tipo utilitarista, por exemplo; ou o fato de haver sido proposto por Jesus, entendido como o messias. Mas isso não é suficiente para que seja aceito por todos. Apesar de poder ser considerado razoável, ele não é demonstrado, pois uma vez demonstrado deveria necessariamente ser aceito racionalmente por todos. O papel da razão para discernir se um princípio moral é ou não é razoável não causa problemas. Porém, a razão enquanto produtora de demonstrações morais é um tema controverso.

O caso das demonstrações matemáticas é um exemplo. A maior parte dos homens não tem em mente, nem são capazes de acompanhar, todos os passos da demonstração do teorema de Pitágoras. Porém, isso não é um impedimento para se aceitar a sua verdade. Caso surgisse alguma dúvida, seria suficiente habilitar-se para seguir os passos da demonstração para comprovar a verdade do teorema. Dentre os princípios teóricos, existem também aqueles que são autoevidentes e não necessitam de demonstração: “o todo é maior que as partes”, por exemplo. Entendidos os termos dessa proposição, ninguém poderia negar a sua verdade. Para os princípios morais, parece não existir nada equivalente a isso. Por mais que se possa acreditar que um princípio prático será aceito por todos os homens, percebe-se que, na realidade, isso não ocorre.

Partindo da divisão das “ideias” que Locke propõe no “Ensaio”, um caminho poderia ser sugerido para entender em que sentido a moral seria demonstrável. Essa tese também é defendida por Russo (2001). Na taxionomia lockeana, as ideias morais são classificadas como ideias complexas de modo misto. A característica das ideias de modo é que a essência nominal coincide com a essência real. Grande parte das ideias matemáticas também são classificadas como ideias complexas de modo simples. Como a matemática é uma ciência reconhecidamente demonstrável, existiria um paralelo com a moral na classificação das ideias que formam cada uma dessas ciências.

Uma característica importante das ideias de modo é que elas possuem uma realidade conceitual independente de qualquer existência real 7. No caso da matemática um triângulo pode ser estudado mesmo que não exista nenhum triângulo no mundo real. Isto vale também para ideias com caráter moral. Em E III.v.5, Locke sugere o exemplo do adultério. Essa ideia de modo misto pode ser moldada na mente “mesmo não tendo nenhuma existência fora do entendimento” ( LOCKE, 2012, p.465). Pode-se considerar o adultério, ainda que ele nunca tivesse sido praticado por ninguém. Uma vez que se define uma ideia moral, pode ser sustentando que “se conhece” todas as suas características, pois elas são a própria definição dessa ideia. Partindo desse “conhecimento”, uma ideia pode ser conectada com outra para apresentar uma demonstração da moral. É o que sugere E III.xi.16 e 17 e E IV.iii.18:

Nessa base é possível, como na matemática, demonstrar a moral. A essência real exata das coisas representadas por palavras morais é perfeitamente cognoscível, e pode-se descobrir com certeza, congruência ou incongruência entre nomes e coisas

( LOCKE, 2012, p.563, grifos do autor).

Se eu menciono isso, é para mostrar como é importante que os homens definam nomes de modos mistos, ou seja, palavras que ocorrem em todo discurso moral. A definição permite alcançar grande clareza e certeza no conhecimento moral

( LOCKE, 2012, p.564).

A relação entre outros modos é, certamente, tão perceptível quanto a relação entre modos de número e de extensão; e, não vejo por que não seriam demonstráveis, com os devidos métodos para examinar e detectar concordância ou discordância entre modos morais

( LOCKE, 2012, p.602, grifos do autor).

O problema é que a definição dos termos morais é passível de ser questionada, enquanto os termos matemáticos são inequívocos. Russo (2001, p.101) comenta que: “As ideias morais são, frequentemente, mais complexas do que as ideias matemáticas, e isto faz com que seus nomes tenham um significado mais incerto”. Assim, as ideias constituintes dos termos morais não têm a mesma precisão das ideias matemáticas. Enquanto a ideia de triângulo não causaria nenhum equívoco para quem compreendesse os termos que a constitui, a ideia de bondade poderia causar discussões e disputas. Mesmo que alguém compreendesse os termos com os quais uma corrente filosófica define a bondade, objeções poderiam ser feitas sem causar estranheza. O que é bondade para uma pessoa pode não ser para uma outra. Sobre isso Wilson (2007) sustenta:

Além disso, falta clareza de como o homem pode saber que as ideias morais que ele mesmo concebeu não são, afinal, fracas, imperfeitas e inadequadas. Se não existem ‘arquétipos’ para os conceitos morais, é difícil entender como o conhecimento moral pode falhar. Se existem ‘arquétipos’, é difícil entender como conseguir ter acesso a eles. Locke nos oferece inúmeros exemplos de como ele pensa que a relação e a conexão entre ideias nos forneça esse conhecimento

( WILSON, 2007, p.396).

A falta do “arquétipo” moral permite que cada homem conceba a sua ideia moral sem que possa ser questionado sobre a sua procedência. Existindo o “arquétipo”, haveria o problema de acessá-lo para não correr o risco de se ser enganado.

No livro IV do “Ensaio”, Locke apresenta dois exemplos de demonstrações morais. A base dessas demonstrações morais é a possibilidade de se estabelecer relação entre ideias de modo. O primeiro exemplo lockeano está em E IV.iii.18: “sem propriedade não há injustiça” ( LOCKE, 2012, p.602). A ideia de propriedade é a ideia do direito a alguma coisa. A ideia de injustiça é a violação ao direito a alguma coisa. Portanto, segundo Locke, existe um acordo entre propriedade e justiça, e em um mundo sem propriedade não há injustiça. O segundo exemplo é: “nenhum governo permite liberdade absoluta” ( LOCKE, 2012, p.603). A ideia de governo é o estabelecimento de leis que compõem uma sociedade. A ideia de liberdade absoluta é a possibilidade de se agir como se quer e sem nenhuma restrição. Existe, então, um desacordo entre as ideias de governo e liberdade absoluta. Os leitores de Locke não se satisfizeram com esses dois exemplos de demonstração moral. Talvez nem o próprio Locke tenha ficado suficientemente convencido, pois não prolongou a discussão além de poucas linhas.

O fato é que a moral não pode ocupar-se apenas da definição dos seus termos. Isso seria um reducionismo da moral em um jogo de linguagem: “Desde que uma proposição é composta de signos (ideias, é como ele [Locke] frequentemente as chama), cada demonstração de proposições é uma demonstração de conexão conceitual entre signos” ( YOLTON, 1970, p.164). Mas a demonstração que Locke quer oferecer da moral não poderia ficar apenas no nível conceitual. A virtude ou o vício são muito mais complexos do que a descrição que qualquer pessoa possa fazer deles. E a demonstração moral não pode se sustentar apenas na classificação das ideias morais como ideias complexas de modo.

O projeto lockeano de uma moral demonstrável parece ter se redimensionado na sua filosofia depois da constatação dos limites do conhecimento humano. Apesar de não terem sido encontradas evidências explícitas do abandono do projeto de uma moral demonstrável no “Ensaio”, a correspondência com Molyneux pode indicar algo nessa direção.

Molyneux escreveu várias correspondências pessoais para Locke insistindo na possibilidade deste último fazer um tratado sobre a moral. Na sequência, dois trechos de duas cartas que tocam sobre esse tema:

Sobre uma coisa devo insistir com você: quero que pense em fazer um serviço para o mundo com um Tratado de Moral, traçando segundo as linhas referidas frequentemente no seu Ensaio, sobre a possibilidade de uma moral demonstrável nas bases do método matemático

( LOCKE, 1976, online, grifos do autor) 8.

E agora que os seus pensamentos estão livres do Ensaio, você me deixará, com todo o respeito, sugerir que se ocupe com aquilo que uma vez me disse que pensaria: a demonstração da moral

( LOCKE, 1976, online, grifos do autor) 9.

Nas respostas de Locke, percebe-se que ele reconhece a dificuldade de realizar esse empreendimento:

Embora, quando estava considerando o assunto, com a visão que eu tinha das ideias morais, pensei que a moralidade fosse demonstrável; mas ser capaz de uma tal demonstração é uma outra questão ( LOCKE, 1976, online) 10.

Quanto a um ‘tratado de moral’, devo admitir que você não é a única pessoa (você e Mr. Burridge, quero dizer) que tem me pedido para fazê-lo e não tenho pensamentos totalmente claros sobre isso. Estou inclinado a satisfazer esse seu desejo, tanto que aqui e ali recolho algum material para isso assim que eles ocorrem ocasionalmente nos devaneios da minha mente. Mas quando considero que um tratado, como o chama, não deveria ser feito de qualquer maneira, especialmente por mim, depois do que disse no meu Ensaio. […] Estou em dúvida se é oportuno para alguém da minha idade e saúde, para não falar da minha limitação, tratar desse assunto. O mundo quer uma regra, eu confesso que não teria um trabalho tão necessário e tão louvável. Mas o Evangelho contém em modo perfeito um corpo ético que a razão pode ser desculpada dessa investigação, do momento que ela pode encontrar o dever do homem mais clara e facilmente na revelação do que em si mesma. Não pense que essa é a desculpa de um homem preguiçoso, ainda que seja a de um homem que tendo uma regra suficiente para as suas ações está satisfeito com elas. Este homem pensa que pode, com maior proveito para si mesmo, empregar o pouco tempo e força que tem em outras investigações, nas quais se encontra mais na escuridão

( LOCKE, 1976, online, grifos do autor) 11.

Locke, portanto, não só se esquiva da tarefa de apresentar um tratado de moral demonstrável, como a matemática, como também sugere que isso nem seria tão necessário, pelo fato de haver uma regra moral segura na revelação. No “Ensaio”, existe essa preocupação de Locke sobre a salvação do homem, e o aparente reconhecimento de que esta salvação não pode depender apenas da razão.

A moral revelada

Independentemente de ser ou não possível demonstrar a moral, Locke sustenta em E I.iii.6 que é Deus “[…] a verdadeira base da moral: ou seja, a vontade e a lei de um Deus que vê os homens na escuridão, que tem nas mãos recompensas e punições, e com poder de cobrança, até do mais orgulhoso dos homens” ( LOCKE, 2012, p.52). Locke argumenta que a moral depende de um legislador divino capaz de recompensar e punir os homens que estão sob a jurisdição da lei moral. Ou seja, mesmo sendo demonstrada, a lei moral deveria estar em consonância com a “lei moral divina”. Elas coincidem, pois têm o mesmo legislador.

Forde (2006, p.238) sustenta que, na epistemologia lockeana, “a lei natural é uma espécie de lei divina”. Essa é uma indicação de que a suposta moral demonstrável não competiria, nem conflitaria, com uma moral revelada, pois, em última instância, o fundamento único da moral é Deus. Em E II.xxviii, Locke defende que as regras morais e leis podem ser de três tipos, e a cada uma está ligada uma recompensa ou uma punição. Os três tipos são: lei divina, lei civil e lei da opinião. Neste momento, a lei divina é a que mais interessa:

Por lei divina, entendo a lei que Deus promulgou para as ações dos homens por luz natural e por voz de revelação. Penso que ninguém seria tolo a ponto de negar que Deus deu uma regra para que os homens governem a si mesmos. É seu direito fazê-lo, posto que somos suas criaturas; é bondoso e sábio se direciona nossas ações ao melhor; e tem o poder de impô-lo por recompensas e punições de infinito peso e duração numa outra vida. Ninguém nos poderia tirar de suas mãos. Essa é a única verdadeira pedra de toque da retidão moral

( LOCKE, 2012, p.373, grifos do autor).

A lei divina é garantida por Deus e acessível ao homem tanto por luz natural (razão) quanto por revelação. O discurso moral de Locke tem sempre Deus como fundamento, independentemente se for obtida por razão ou revelação. No “Ensaio”, essa função de Deus como legislador da moral é clara. A dificuldade é a falta de um tratado de moral que desenvolva melhor essa proposta para que se pudesse compreendê-la.

Segundo Yolton (1970, p.169), “Locke diria, tenho certeza, que a conclusão que Deus deu-nos regras provém da análise das ideias de Deus e homem: este é o primeiro passo para a demonstração”. Ou seja, partindo das ideias de Deus e de homem se poderia concluir que Deus, enquanto criador, estabeleceu regras às suas criaturas. O homem enquanto ser racional é capaz de descobrir essas leis de Deus. Essa seria a base tanto de uma moral demonstrável quanto de uma moral revelada.

Em um escrito intitulado “Da ética em geral”, que estava previsto para compor o “Ensaio”, encontra-se outros elementos que corroboram essa interpretação da filosofia lockeana: “a moralidade tem sido geralmente classificada como uma ciência distinta da teologia, religião e direito; e que tem sido a legítima província dos filósofos, uma espécie de homens diferentes dos teólogos, sacerdotes e advogados, cuja profissão tem sido explicar esse conhecimento ao mundo” ( NUOVO, 2002, p.9). O problema de os filósofos explicarem a moralidade é quando não apresentam o fundamento desta, ou seja, o próprio Deus: “Mas esses filósofos frequentemente não derivam essas regras de seu original e nem as apresentam como mandamentos do grande Deus do céu e da terra, e é de acordo com essas regras que Deus recompensará os homens depois dessa vida” ( NUOVO, 2002, p.9). Para Locke, a razão pode conhecer as leis morais; contudo o que fundamenta essa lei, de um ponto de vista metafísico, é o legislador, Deus. Sobre esse ponto Yolton (1970, p.172) sustenta que: “Ele [Locke] em nenhum momento duvidou da sua firme crença de que as leis da natureza eram idênticas com as leis de Deus”.

Na “Razoabilidade do cristianismo”, que foi publicada quando o “Ensaio” já estava na sua terceira edição, Locke apresenta Jesus como o Messias, ou seja, como o filho de Deus enviado aos homens. Essa tese reforça o aspecto religioso e teológico de Deus como o legislador moral, pois por meio dos ensinamentos de Jesus o homem teria recebido uma lei moral claramente definida. Locke dedica algumas páginas para apresentar uma lista de regras morais que Jesus pregou e que estão contidas principalmente nos Evangelhos de Lucas e Mateus 12. A prática dessas regras morais ajuda o homem a realizar o seu desígnio neste mundo.

Como a lei moral tem um papel importante tanto para a vida presente do homem quanto para a vida futura, Schneewind propõe que, na “Razoabilidade”, Locke sustenta:

[…] a razão unicamente não poderia ter prevalecido na maioria das pessoas, de modo suficiente, para ensinar-lhes a existência de Deus, enquanto a presença pessoal de Cristo permite a difusão da crença. Outra [razão], é que a raça humana necessita de um conhecimento da moral mais claro do que a razão humana sozinha tem sido capaz de oferecer

( SCHNEEWIND, 1994, p.218).

Nesse sentido, a vinda do Messias auxiliaria a razão tanto no conhecimento de Deus quanto no conhecimento da lei moral. Nota-se que, na “Razoabilidade”, Locke admite que “A experiência nos mostra que o conhecimento da moralidade, por meio somente da luz natural (por mais que isto seja desejado), se desenvolve e progride bem pouco neste mundo” ( LOCKE, 1823, v.7, p.140). Locke não nega a possibilidade de uma moral deduzida totalmente da razão, mas reconhece os limites dessa proposta. Na mesma passagem citada acima, apenas algumas linhas depois, ele confirma isso com as seguintes palavras: “a razão humana sem ajuda falha na sua grande e própria função de moralidade” ( LOCKE, 1823, v.7, p.140).

A partir desse ponto da “Razoabilidade”, Locke começa a sugerir que a revelação supre a razão nas questões de moral. Isso se pode notar nos escritos do Novo Testamento que não contradizem em nada o que os filósofos podem alcançar com o uso da razão, não obstante esses livros terem sido escritos por homens de pouca cultura. Por meio dos ensinamentos de Jesus nos Evangelhos, o homem tem acesso a um corpo ético que está em conformidade com a razão e é acessível a todos.

Uma das dificuldades de uma proposta somente racional de um conjunto de leis morais são as falhas a que a razão está sujeita. Um filósofo pode eventualmente falhar em uma passagem da demonstração, e isso compromete toda a lei moral. Sem contar que o filósofo não pode fundamentá-la na sua autoridade pessoal, enquanto Jesus, o Messias segundo as Escrituras, pode fazê-lo.

Qualquer coisa, para ser universalmente útil, como regras com as quais o homem deve moldar o seu comportamento, deve receber a autoridade ou da razão ou da revelação. Não há nenhum autor de escritos morais, ou compilador que recolhe escritos de outros, que possa apresentar-se como um legislador da humanidade, um fundador de normas que sejam válidas em qualquer lugar, somente porque estão escritas nos seus livros, ou pela autoridade deste ou daquele filósofo

( LOCKE, 1823, v.7, p.142).

Locke propõe que o Evangelho fornece uma lei moral que pode guiar seguramente as ações do homem. A fonte dessa lei é a revelação feita por Jesus. A sua principal característica é ser facilmente acessível a todos os homens que têm contato com esses escritos. Ela não necessita de erudição para ser compreendida. Por isso, a religião, segundo Locke, deve ser o mais simples possível, atendo-se ao essencial, ao Evangelho. Mesmo que antes de Cristo a moral tivesse sido demonstrada como as verdades matemáticas, a sua utilidade seria restrita, pois muitos teriam dificuldade de atingir esse conhecimento acompanhando os seus passos demonstrativos. Nestas citações, Locke parece sugerir que uma moral demonstrável seria até desnecessária, pois já há uma fonte segura na revelação:

A filosofia gastou todas as suas forças e deu o máximo de si: e se tivesse ido além, o que percebemos que não se verificou, e nos tivesse dado princípios éticos em uma ciência como a matemática, demonstrável em todas as suas partes, nem mesmo assim teria sido eficaz e adaptada para as necessidades do homem que vive em um estado imperfeito

( LOCKE, 1823, v.7, p.146).

Deus, na infinitude da sua misericórdia, trata o homem como um Pai compassivo e terno. Ele deu ao homem razão e com esta uma lei que não pode ultrapassar o que a razão pode estabelecer; a menos que se pense que uma criatura racional possa conceber uma lei irracional

( LOCKE, 1823, v. 7, p.157).

Conclusão

A apresentação das três correntes de fundamentação da moral, existentes no “Ensaio”, de maneira específica, e no pensamento de Locke em geral, tem por intuito destacar a relação que existe entre a razão e a revelação nesse tema específico. A grande questão que permanece é a relevância da razão em um contexto de uma moral revelada acessível a todos os homens. Locke percebeu os grandes limites da razão humana para realizar a demonstração da moral e ao mesmo tempo reconhece que o homem tem acesso na moral revelada a um corpo de regras completo para orientar a sua vida.

Então, qual o papel da razão nesse contexto? Para que essa pergunta seja respondida, devem ser considerados dois fatores. O primeiro é o que se deve aceitar como revelação, pois na filosofia lockeana, a revelação para ser considerada deve passar por critérios racionais. Portanto, o primeiro papel da razão será o de avaliar a autenticidade da suposta revelação com conteúdo moral. Uma vez aceita a autenticidade de uma revelação, há de se passar a considerar a interpretação dessa revelação com conteúdo moral. Esse é o segundo papel da razão nesse contexto de discussão da filosofia lockeana, interpretar racionalmente os postulados morais que a revelação fornece aos homens.

A razão é a fonte segura e natural de conhecimento para o homem. Como existem limites na capacidade humana de produzir conhecimento, deve-se recorrer à crença em geral (probabilidade e revelação). A probabilidade é resultado da razão. A revelação é ação divina, mas passa por uma avaliação da razão humana. A relação presente em todo o “Ensaio” entre razão e revelação é significativa também para a questão da moral.

No último capítulo do “Ensaio”, Locke apresenta a divisão das ciências: a física (Filosofia Natural), a prática (Ética) e a doutrina dos signos (Filosofia da Linguagem). A ética auxilia o homem a realizar o desígnio de sua vida, ou seja, a felicidade, seja neste mundo que em um mundo possível futuro. Para realizar esse projeto, o homem dispõe da razão que, apesar de não possibilitar o conhecimento de tudo o que o homem gostaria de conhecer, é suficiente para as necessidades básicas desta vida. Porém, quando a razão se mostra muito duvidosa nos princípios práticos, o homem tem à sua disposição a revelação. Esta última é capaz de orientar o homem na busca dos princípios morais. O fato interessante é que nem a razão e nem a revelação são suficientes sozinhas. Todo o empreendimento epistemológico lockeano é fundado tanto na razão quanto na crença (probabilidade e revelação). Isso não é diferente nas questões morais, quando razão e revelação interagem e se integram são grandes os benefícios para o homem.

Agradecimentos

À todas as pessoas que me incentivaram no meu trabalho de pesquisa, de maneira especial agradeçoao professor Silvio Seno Chibeni pelo acompanhamento e dedicação a esse trabalho de pesquisa.

Referências

FORDE, S. What does Locke expect us to know? The Review of Politics, v.68, n.2, p.232-258, 2006.

FORDE, S. Mixed modes in John Locke’s moral and political philosophy. The Review of Politics, v.73, n.1, p.581-608, 2011.

LOCKE, J. The works of John Locke. London: Thomas Tegg, 1823. 10v. p.140-157. Available from: <http://socserv.socsci.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/locke/index.html>. Cited: May 2, 2018.

LOCKE, J. The philosophical works and selected correspondence of John Locke. Oxford: Clarendon Press, 1976. 8v. (Past Masters). Available from: <http://socserv.socsci.mcmaster.ca/econ/ugcm/3ll3/locke/index.html>. Cited: May 2, 2018.

LOCKE, J. La ley de la naturaleza. Madrid: Editorial Tecnos, 2007. p.38.

LOCKE, J. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p.48-793.

NUOVO, V. John Locke writings on religion. Oxford: Oxford University Press, 2002. p.9. Introduction.

OSTRENSKY, E. John Locke entre o céu e o inferno. Integração, ano XII, n.47, p.369-376, 2006.

RUSSO, R. Ragione e ascolto: L’ermeneutica di John Locke. Napoli: Guida editori, 2001. p.101.

SCHNEEWIND, J.B. Locke’s moral philosophy. In: CHAPPELL, V. (Ed.). The Cambridge companion to Locke. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. p.199-244.

SHERIDAN, P. Locke’s moral philosophy. Palo Alto: Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2014. p.6. Available from: <http://plato.stanford.edu/archives/sum2014/entries/locke-moral>. Cited: Apr. 5, 2016.

WALSH, J. Locke: Ethics. [S.l.]: Internet Encyclopedia of Philosophy, [2016?]. Available from: <http://www.iep.utm.edu/locke-et>. Cited: Apr. 5, 2016.

WILSON, C. The moral epistemology of Locke’s Essay. In: NEWMAN, L. (Ed.). The Cambridge Companion to Locke’s “ Essay concerning human understanding”. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p.381-405.

YOLTON, J. Locke and the compass of human understanding. Cambridge: Cambridge University Press, 1970. p.164-172.

Notas

1 Artigo elaborado a partir da dissertação de R.M. DUARTE, intitulada “Temas religiosos na epistemologia de Locke: diálogo entre razão e revelação”. Universidade Estadual de Campinas, 2016.
3 Com o termo “utilitarista”, a referência é feita à corrente moral do utilitarismo que surgiu no século XVIII, na Inglaterra. Essa corrente moral propõe que as ações humanas são boas ou más na medida em que promovem a felicidade ou infelicidade do homem. Acredita-se que essa doutrina, surgida posteriormente a Locke, tenha sido expressa de maneira embrionária no “Ensaio”, principalmente no capítulo xxi do livro II. Por isso, o termo “utilitarista” será utilizado para expressar essa corrente de fundamentação da moral presente no “Ensaio”, mas não se deseja com isso identificar completamente o pensamento lockeano com essa doutrina posterior, que é muito mais desenvolvida e articulada, como uma corrente de fundamentação da moral.
4 O sistema de citação da principal obra filosófica de Locke, “Ensaio sobre o entendimento humano”, seguirá o padrão internacional. Nesse sistema a letra “E” faz referência ao “Ensaio”, na sequência há um numeral romano escrito em letras maiúsculas que indica um dos quatro livros em que a obra é dividida, depois, existe um numeral romano escrito em letras minúsculas que indica o número da seção dentro do capítulo e, por fim, observa-se a presença de um numeral arábico que indica o parágrafo dentro da seção. Assim E II.xxi.1 faz referência ao Ensaio, livro dois, capítulo vinte e um e parágrafo primeiro. Todas as referências citadas nesse artigo são tiradas da versão de estudo Locke, J. An essay concerning human understanding. Edited with an Introduction, Critical Apparatus and Glossary by Peter H. Nidditch. Oxford: Clarendon Press, 1975. A tradução brasileira dessa obra é de Pedro Paulo Garrido Pimenta, São Paulo: Martins Fontes, 2012.
5 Notando que vontade, nesse contexto, não se refere a uma paixão, mas a uma deliberação, é uma escolha. A palavra “ will” é utilizada para significar uma ação intencional do homem. A palavra frequentemente utilizada para traduzir “ will” é “vontade”, mas corre-se o risco de perder a noção de deliberação que existe no termo original. Em português, vontade e desejo são quase sinônimos e isso pode ser fonte de equívocos na utilização do termo na teoria moral de Locke. Portanto, quando se utiliza o termo “vontade” a referência é a essa deliberação do homem em relação a uma determinada ação.
6 Esse vínculo entre determinismo e não-imputabilidade moral foi objeto de crítica incisiva por parte de Hume e de vários filósofos posteriores a ele. Mas o aprofundamento desse ponto não cabe no escopo do presente artigo. O texto central de Hume é o capítulo 8 da “Investigação sobre o Entendimento Humano”, intitulado “ Of liberty and necessity”.

Reflexão, Campinas, 43(1):109-123, jan./jun., 2018

7 Sobre esse tema consultar também Forde (2011)
8 Trecho da carta datada de 20 de agosto de 1692.
9 Trecho da carta datada de 15 de janeiro de 1694.
10 Trecho da carta datada de 20 de setembro de 1692.
11 Trecho da carta datada de 30 de março de 1696.
12 Ver página 115, volume 7 de “Razoabilidade”: Locke (1823).
Como citar este artigo/How to cite this article DUARTE, R.M. A moral lockeana entre a razão e a revelação. Reflexão, v.43, n.1, p.109-123, 2018. http://dx.doi.org/10.24220/2447-6803v43n1a4135

Autor notes

*R. Professor Doutor Euryclides de Jesus Zerbini, 1516, Parque Rural Fazenda Santa Cândida, 13087-571, Campinas, SP,Brasil. E-mail: <ramiro.duarte@puc-campinas.edu.br>>..

HMTL gerado a partir de XML JATS4R por