Religião e Linguagem
Providência divina: até as últimas consequências1
Divine providence: Until the last consequences
Providência divina: até as últimas consequências1
Revista Reflexão, vol. 44, e194648, 2019
Pontifícia Universiade Católica de Campinas
Recepção: 30 Maio 2019
Aprovação: 31 Julho 2019
Resumo: A providência divina e seu desdobramento mais delicado, a dupla predestinação, têm uma história de reflexãoteológica dentro do cristianismo. Em cada período, autores específicos dentro de contextos sociais únicos sededicaram a entender os mistérios dessa doutrina. Entretanto, é no protestantismo calvinista que os impactospráticos da predestinação podem ser percebidos de forma mais acentuada. Quais seriam as consequênciasde se interpretar a predestinação até suas últimas consequências lógico-teológicas? O presente cristalizado,a justificativa do absurdo, a ausência de uma voz profética, a incoerência da oração, o desprezo pela vidaintelectual, a transformação da vida em um discurso, o desprezo pela causa do pobre e a ansiedade diante dadúvida acerca da própria salvação, são algumas possibilidades que este artigo abarca para responder à referidaquestão. Em forma de alerta, destaca-se aqui o impacto prático dos desdobramentos reflexivos de se encarar aproposição doutrinária de forma radical.
Palavras-chave: Calvinismo, Predestinação, Providência.
Abstract: Divine providence and its most delicate unfolding, the double predestination, has a history of theologicalreflection within Christianity. In each period, specific authors within unique social contexts focused onunderstanding the doctrine’s mysteries. However, it is within Calvinist Protestantism that the practical impactsof predestination can be perceived more clearly. What would be the impact of interpreting predestination upto its ultimate logical-theological consequences? The crystallized present, the justification of the absurd, theabsence of a prophetic voice, the incoherence of prayer, contempt for intellectual life, the transformation oflife into discourse, contempt for the cause of the poor, and anxiety regarding the insecurity of salvation aresome possibilities that this article raises. As an alert, the article highlights the practical impact of such reflexiveunfolding to face the doctrinal proposition in a radical way.
Keywords: Calvinism, Predestination, Providence.
Introdução
A doutrina da providência divina e seu desdobramento mais sensível, a “predestinação”, tem sido motivo de discussões teológicas há séculos. Nomes como Agostinho (e Pelágio), Lutero, Zwínglio, Calvino, Beza e Armínio são indispensáveis para uma compreensão equilibrada desse desenvolvimento doutrinário, cuja análise histórico-contextual de cada pensador cristão é condição sine qua non para uma aproximação do tema menos tendenciosa. Esse empreendimento de reconstrução dos caminhos teológicos percorridos ao longo dos séculos, que torna evidentes as ênfases e as preocupações particulares de cada pensador, é essencial para evitar uma “romantização” sobre a maneira de se interpretar a soberania de Deus dentro da história humana. É possível perceber o grau de variação de possibilidades e tensões que pairam sobre essa doutrina. Sendo assim, fornecer de forma introdutória esses elementos é a primeira tarefa que este artigo propõe.
Após sinalizar o panorama histórico-teológico sobre a doutrina, que visa evitar a desconsideração do leitor quanto à tradição da Igreja e, por consequência, fazê-lo pensar que este texto pretende apenas desconstruir o argumento apaixonado de muitos que tem na eleição soberana de Deus a “pedra angular” de sua teologia, o objetivo central do artigo será apresentado. Para tanto, surgem as questões: quais serão os desdobramentos de se levar “até as últimas consequências” o argumento teológico em favor de uma defesa radical da providência e da predestinação divina? Se Deus, de fato, predestinou na eternidade os salvos para salvação e os perdidos para condenação, tudo visando glorificar a si mesmo, quais os desdobramentos dessa assertiva? Como deveriam se comportar os cristãos que assim creem – levando em consideração a consequência lógica de tal argumento – em seu dia a dia, repleto de uma linguagem que atesta a presença permanente da realidade de que “tudo” está predestinado?
Este artigo pretende vislumbrar as possíveis consequências lógicas da doutrina da predestinação divina, defendida de forma apaixonada por calvinistas desde o século XVII. A relevância em expor tais possibilidades é acentuada diante da crescente adesão de evangélicos brasileiros do século XXI a um “cristianismo reformado”, o qual é entendido como calvinista.
Panorama histórico-teológico da doutrina da predestinação
Agostinho, o notório bispo de Hipona, é um nome que emerge quando se pensa sobre a questão da predestinação. Um de seus textos mais importantes acerca do assunto é De praedestinatione sanctorum (A predestinação dos santos), escrito em 429. É evidente, na leitura, que a posição defendida compreende a graça de Deus como a causa tanto do crescimento da fé na vida do homem como o “início” dessa fé, não podendo ser atribuído ao livre-arbítrio humano esse passo inicial. Agostinho infere de forma categórica que “ninguém é capaz por si mesmo ou de começar a ter fé ou de nela crescer, mas nossa capacidade vem de Deus” (SANTO AGOSTINHO, 1999, p.153), ou seja, a graça para ser graça não pode conter nenhum tipo de elemento meritório por parte do homem, mas apenas a vontade soberana de Deus.
Não se pode desprezar o contexto em que Agostinho está inserido e reconhecer a presença de um processo hermenêutico na leitura desse filósofo cristão. É sabido que Agostinho, embora tenha sido acolhido de forma calorosa pelos advogados da predestinação – a começar por Calvino, que o chamou de “nosso” (McGRATH, 2004) –, enfrentou duas grandes “heresias”3, sendo elas o maniqueísmo e o pelagianismo. O maniqueísmo representava uma forma de fatalismo, posição que sustentava a total soberania de Deus, mas negava a liberdade humana (algo que atraiu, a princípio, o próprio Agostinho). O pelagianismo, por outro lado, defendia o total livre-arbítrio do ser humano ao mesmo tempo em que negava a soberania de Deus. Assim, quando se lê Agostinho, é sempre necessário se perguntar: qual Agostinho está falando? O que luta contra o maniqueísmo, argumentando em prol do livre-arbítrio ou o Agostinho que luta contra o pelagianismo, defendendo apaixonadamente a graça de Deus e reprimindo toda tentativa de mérito humana?
Outro elemento que deve ser considerado é a experiência de vida do bispo de Hipona. Quando ele fala sobre graça em seus escritos, nota-se que, especialmente em razão de suas “Confissões”, Agostinho é alguém que experimentou o pecado de forma intensa. Ele mesmo descreve sua vida como algo deplorável, afirmando: “Oh, podridão! Oh, vida monstruosa! Oh, abismo da morte! Como pude achar prazer no ilícito somente por ser ilícito?” (SANTO AGOSTINHO, 2011, p.55). Desde o seu famoso furto das peras e a prática da luxúria, o filósofo cristão descreve a si mesmo de forma quase neurótica, percebendo o pecado em sua vida de maneira tão profunda e em situações tão peculiares que “somente a graça de Deus” pode tirá-lo de tal situação. Certamente, sua própria perspectiva de vida influenciou sua teologia.
Ainda em relação a Agostinho, deve-se notar que ele, “fundamentado em sua visão neoplatônica, defende que a mente humana deve ser considerada o ápice da humanidade” (McGRATH, 2010, p.387). Compreendendo que a razão humana possui tal relevância, embora esteja distante do racionalismo de Descartes, percebe-se a influência de sua perspectiva racional em seu método para obtenções de respostas acerca da revelação divina. Em seu texto sobre a predestinação dos santos, está presente uma apropriação da razão na forma de se compreender as Sagradas Escrituras. “A verdade” e “inteligência” são termos usados por Agostinho que, sempre devido à graça de Deus, compreende-se como alguém apto a desvendar os mistérios da predestinação, descobrir “a verdade” e fornecer a resposta definitiva nesta matéria doutrinária. Certamente ele tem a expectativa de que outros possam chegar à mesma interpretação (se a graça de Deus assim permitir), em especial dos textos paulinos.
As Sagradas Escrituras são utilizadas como texto-prova de seus argumentos. Dentro da perspectiva agostiniana, não há espaço para uma compreensão do caráter pastoral e contingencial de Paulo (a crítica textual está muito distante de Agostinho). Inclusive, é bastante provável que Paulo esteja pouco interessado na confecção de um tratado teológico. De qualquer maneira, a leitura de Paulo que Agostinho realiza desvenda o mistério acerca da forma como Deus age na vida do ser humano, o predestinando para salvação eterna.
Ainda merece destaque o fato de a Igreja Católica nunca ter, na prática, adotado uma postura monista, em que somente Deus atua na fé humana; diferentemente, essa instituição sempre cedeu a uma espécie de sinergismo, visto que dificilmente levaria a compreensão agostiniana “às últimas consequências”. Além disso, Agostinho nunca escreveu suas conclusões lógicas acerca da predestinação, como bem sinaliza McGrath no seguinte trecho:
É importante observar que Agostinho destacou que isso não significava que alguns eram predestinados à condenação. Significava que Deus havia escolhido alguns dentre a massa da humanidade caída. Os poucos escolhidos foram certamente predestinados à salvação. O restante não foi, de acordo com Agostinho, efetivamente condenado à perdição; eles meramente não foram eleitos para a salvação
(McGRATH, 2010, p.531).É interessante perceber cautela semelhante em Lutero e em Calvino quando o assunto é a doutrina da predestinação. Lutero, de forma incisiva, fala acerca dessa doutrina com muito cuidado e com tom de alerta ao seu leitor, destacando as consequências da reflexão dessa questão na vida do crente. Trata-se do seu prefácio da carta aos Romanos:
Mas aqui é preciso colocar um limite aos sacrílegos e espíritos arrogantes, que primeiramente dirigem sua atenção a essa questão e querem começar por investigar o abismo da predestinação divina e se ocupam inutilmente com a questão se são predestinados ou não. Estes cairão sozinhos, ou por desesperarem ou por colocarem tudo em jogo.
Quanto a ti, porém, segue esta epístola na sua ordem. Ocupa-te acima de tudo com Cristo e com o evangelho, para que reconheças o teu pecado e a graça dele. E que depois lutes com o pecado, como ensinam aqui os capítulos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8.
Depois, quando tiveres chegado ao capítulo 8, debaixo da cruz e do sofrimento, isso te ensinará a entender como é consoladora a predestinação nos capítulos 9, 10 e 11. Pois sem sofrimento, cruz e aflições de morte não se pode entender a predestinação sem prejuízo e sem alimentar uma ira oculta contra Deus. Por isso é que antes Adão precisa estar morto para poder suportar essa coisa e beber o seu forte vinho. Assim, guarda-te para que não bebas vinho se ainda és bebê no aleitamento. Todo ensinamento tem sua medida, época e idade
(LUTERO, 2017, p.202, grifo nosso).A compreensão de Lutero e sua forma de argumentar acerca da predestinação são distintas de outros reformadores. Enquanto Zwínglio, por exemplo, argumentaria que essa doutrina seria algo deduzido racionalmente do caráter de Deus, Lutero compreendia a predestinação como o “resultado e a expressão de sua experiência de sentir-se impotente diante de seu próprio pecado e ver-se obrigado a declarar que sua salvação não era uma obra sua, mas de Deus” (GONZÁLEZ, 1995, p.94). Lutero não utilizaria uma argumentação que partisse de atributos do próprio Deus, mas sempre retorna para a “impotência do ser humano para libertar-se de seu próprio pecado” (GONZÁLEZ, 1995, p.94), o que tem relação com a doutrina da justificação somente pela fé, muito cara para o reformador alemão, especialmente pelo contexto relacionado aos abusos da Igreja Romana. Um tipo de argumentação que não partisse da experiência do evangelho certamente seria considerado “porca razão” para o monge agostiniano (GONZÁLEZ, 1995). Tillich contribui ao descrever um Lutero que convivia bem com paradoxos, ao contrário de Zwínglio, que, ao defender a predestinação, alinha-se com um determinismo racional (TILLICH, 2015).
Calvino, por sua vez, faz uma famosa afirmação sobre a predestinação em suas Institutas: “Certamente confesso ser esse um decreto espantoso. Entretanto, ninguém poderá negar que Deus já sabia qual fim o homem haveria de ter, antes que o criasse, e que ele sabia de antemão porque assim ordenara por seu decreto” (CALVINO, 2003, p.415, grifo nosso). Na tradução em latim, consta decretum horribile, que, incorretamente, é traduzido por “horrível decreto”, quando, na verdade, significa “inspira temor” ou “terror” (McGRATH, 2004, p.194). Esse “espanto” significa que a doutrina “inspira temor” ou “terror”. Tillich, abordando o pensamento do reformador de Genebra sobre essa doutrina, faz um comentário sobre as ênfases de Calvino: “É impressionante o pouco que Calvino tem a dizer a respeito do amor de Deus” (TILLICH, 2015, p.266). É certo, contudo, que Calvino percebe o teor polêmico que a predestinação produz e o sinaliza em seus escritos.
A distinção entre Calvino e o calvinismo é imprescindível, pois a ênfase na doutrina da predestinação acontece no calvinismo desenvolvido após a morte do referido autor. O calvinismo se consolidou como “a melhor alternativa ao Catolicismo Romano” e o seu desenvolvimento, chamado de “escolasticismo Calvinista” por McGrath (2004), carece ser analisado. A mudança de ênfase para a doutrina da predestinação é importantíssima de ser discutida. Duas explicações são fornecidas por McGrath, sendo uma de ordem sociológica e outra de ordem teológica.
Em relação à questão sociológica, McGrath (2004) aborda a relação entre doutrina e definição social de um determinado grupo. A identidade religiosa dos séculos XVI e XVII acontecia por meio de questões de ordem doutrinárias. O luteranismo, por exemplo, teve na doutrina da “justificação pela fé” aquilo que o distinguia dos católicos na Alemanha. A Contra-Reforma católica, que tem no Concílio de Trento seu momento mais importante, foi obrigada a rediscutir a identidade católica e não somente condenar as “heresias” luteranas. Todo esse processo da Europa do século XVI acaba por distinguir socialmente católicos de evangélicos, tendo na doutrina o critério de demarcação social em certas regiões geopolíticas. A tensão posterior entre luteranos e calvinistas seguiu uma lógica semelhante.
No final do século XVI, surgiu o processo de “confessionalização”, que servia como elemento decisivo para distinguir luteranos de reformados. Havia um problema, porém, no fato de que luteranos e reformados tinham aspectos bastante semelhantes. A doutrina da predestinação foi o elemento que distinguiu cada grupo protestante, tendo McGrath concluído o seguinte acerca do papel sociológico da doutrina da predestinação:
A doutrina da predestinação, dessa forma, fornecia uma diferença teológica expressiva (e fácil de compreender) entre os dois grupos. E assim, a necessidade de diferenciá-los como entidades sociais levou, naturalmente, a que se atribuísse um certo grau de prioridade a essa doutrina, não necessariamente em razão de qualquer ênfase particular nela posta pelos calvinistas, mas devido à sua utilidade como um meio que permitia que dois grupos, sob outros aspectos semelhante, pudessem ser diferentes
(McGRATH, 2004, p.240).Em relação ao motivo teológico, McGrath reafirma que Calvino não criou um “sistema” no sentido estrito a que o termo se refere. A questão está relacionada ao pensamento reformado posterior a Calvino e seus herdeiros das ideias religiosas. Teodoro Beza4, além de Lambert Daneau, Pietro Martire Vermigli e Giralmo Zanchi, “[...] estavam dispostos a usar toda arma que possuíssem para assegurar, ao menos, sua sobrevivência, se não uma vitória completa, em face de tamanha oposição. A razão, vista por Calvino com certa reserva, era agora acatada como uma aliada” (McGRATH, 2004, p.241).
Tendo em vista a importância em se posicionar doutrinariamente em relação a luteranos e católicos, demonstrar coerência e consistência era algo importantíssimo ao calvinismo. A ênfase relacionada aos métodos do final do Renascimento aumentou, e buscou-se estabelecer uma “base racional” para sustentação teológica. Dentre as características desse novo enfoque teológico, McGrath (2004) ressalta, em primeiro lugar, a presença de um “sistema logicamente coerente e racionalmente defensável”; logo depois, destaca o “papel decisivo da razão humana na investigação e defesa da teologia cristã”; sublinha ainda a “influência da filosofia aristotélica, principalmente em relação à natureza do método”; e, por fim, ressalta a “preocupação com questões metafísicas e especulativas, principalmente em torno da predestinação”.
Essa nova ênfase em métodos escolásticos e no aristotelismo5, que acentua a função dos silogismos, ocorreu pouco tempo após a morte de Calvino, que era reticente em relação a este tipo de “escolasticismo aristotélico”. Assim, devido à mudança intelectual da Europa, questões inerentes ao método passaram a ser privilegiadas, e a teologia desse contexto passou a ter como ponto de partida “princípios gerais” (McGRATH, 2004). McGrath esclarece a diferença entre Calvino e Beza:
Enquanto Calvino adota um enfoque teológico indutivo e analítico, concentrando-se no evento histórico específico de Jesus Cristo e prosseguindo na investigação de suas implicações, Beza adota um enfoque dedutivo e sintético, partindo de princípios gerais e prosseguindo na dedução de suas consequências para a teologia cristã. [...] Esses princípios gerais – os decretos divinos – são determinantes com relação à doutrina da predestinação, que assume, dessa forma, um status de princípio determinante, afetando o posicionamento e a discussão das mais diversas doutrinas, como a Trindade, a das duas naturezas de Cristo, a da justificação pela fé e a natureza dos sacramentos. A existência da predestinação é tida como algo que implica em um decreto ou decisão divina de predestinar, e é esse decreto divino de predestinação que assume uma posição predominante dentro do contexto da doutrina de Deus, de Teodoro Beza
(McGRATH, 2004, p.243).McGrath complementa e acentua as diferenças entre Calvino e Beza:
Uma nova preocupação com o método. Reformadores como Martinho Lutero e João Calvino tiveram um interesse relativamente pequeno em relação ao método. Para eles, a teologia voltava-se, sobretudo, à explicação das Escrituras. Na verdade, as Institutas, de João Calvino, podem ser consideradas como uma obra de ‘teologia bíblica’, que reunia as ideias básicas das Escrituras com uma apresentação sistemática. Entretanto, nos escritos de Teodoro de Beza, o sucessor de João Calvino na direção da Academia de Genebra (uma organização que treinava pastores em toda a Europa), pode ser vista uma nova preocupação com as questões metodológicas, como observamos acima. A organização lógica do material e sua fundamentação em pressupostos assumiram uma importância extraordinária. O impacto dessa postura talvez seja mais evidente na maneira como Beza lidou com a doutrina da predestinação [...]
(McGRATH, 2010, p.115).É importante conhecer Beza, pois ele tem papel fundamental nessa discussão. McGrath faz uma síntese biográfica dele, evidenciando as características e as divergências de interpretações de sua obra:
Teodoro de Beza (1519-1605), notável escritor calvinista, professor de teologia na Academia de Genebra, de 1559 a 1599. Os três volumes de sua obra Tractationes theologicae [Tratados teológicos], de 1570 a 1582, apresentam uma descrição racionalmente coerente dos principais elementos da teologia reformada mediante o uso da lógica aristotélica. O resultado é uma descrição que apresenta argumentação consistente e defesa racional da teologia de João Calvino, na qual algumas das tensões não resolvidas dessa teologia (principalmente em relação às doutrinas da predestinação e da expiação) são esclarecidas. Alguns escritores sugeriram que a preocupação de Beza com a clareza lógica levou-o a uma distorção de vários pontos críticos da teologia de João Calvino; outros alegaram que ele simplesmente aperfeiçoou a teologia de João Calvino, amarrando alguns dos pontos que estavam soltos (McGRATH, 2010, p.115).
É interessante reafirmar a perspectiva de Calvino em relação a essa doutrina, a qual tinha caráter secundário, principalmente quando comparada a Beza. A mudança cultural interfere diretamente na forma de se construir a teologia, especialmente no que se refere a essa doutrina delicada. Em decorrência da mudança de ênfase, questões seriam suscitadas, como, por exemplo, pensar por quem Cristo morreu, não tendo Calvino sugerido que ele morreu apenas pelos eleitos (McGRATH, 2004).
Calvino passa a discorrer sobre a doutrina da predestinação apenas no seu terceiro livro das Institutas, após um longo capítulo sobre oração, com o objetivo de “explicar porque alguns indivíduos respondem ao evangelho, enquanto outros não o fazem.” Em outras palavras, “a doutrina da predestinação [...] deve ser considerada como uma discussão a posteriori sobre os dados da experiência humana [...] em vez de algo que é deduzido a priori, com base em ideias preconcebidas” (McGRATH, 2004, p.195), como a onipotência de Deus.
O desdobramento natural da doutrina, a dupla predestinação, acabaria dividindo os calvinistas. Jacó Armínio argumentou que o método de Beza, que partia da predestinação, era dedutivo e sintético, muito inapropriado, e que o correto seria a utilização do método indutivo e analítico (McGRATH, 2004). Armínio, que é o pai do que seria conhecido como arminianismo6, discorre sobre a doutrina também usando muita cautela e preocupação: “É, portanto, muito desejável que os homens não prossigam mais neste assunto, e não tentem investigar os juízos insondáveis de Deus; pelo menos, não além do ponto em que esses juízos têm sido claramente revelados nas Escrituras” (ARMÍNIO, 2015a, p.229, grifo do autor).
Sobre a questão do método da teologia, Armínio afirma:
Por muito tempo, tem sido uma máxima dos filósofos, que são os mestres do método e da ordem, que as ciências teóricas devem ser transmitidas numa ordem sintética, enquanto que as práticas, numa ordem analítica. Por esse motivo, e uma vez que a teologia é uma ciência prática, ela deve ser tratada segundo o método analítico
(ARMÍNIO, 2015b, p.16).De forma contrária e muito pouco cautelosa, deixando claro a despriorização das Escrituras como livro de testemunho,
Beza enfatiza que os decretos divinos não são especulações construídas pela imaginação humana, mas devem ser derivados das Escrituras, porém a maneira como eles devem derivar implica em tratar as Escrituras como um conjunto de proposições, a partir das quais os decretos divinos possam ser deduzidos, e não como um livro testemunho ao evento central de Jesus Cristo, a partir do qual a natureza da predestinação possa ser inferida
(McGRATH, 2004, p.243, grifo nosso).McGrath, em sua teologia sistemática, enfatiza novamente o ponto de partida e metodologia teológica de Beza:
Portanto, quais são os princípios gerais que Beza utiliza como um ponto de partida para sua sistematização teológica? A resposta para essa pergunta é que ele baseou seu sistema nos decretos divinos da eleição – isto é, na decisão divina de eleger certas pessoas para a salvação, e outras para a condenação. Todo o restante de sua teologia se preocupa com a investigação das consequências dessas decisões. Assim, a doutrina da predestinação assume a posição de um princípio determinante
(McGRATH, 2010, p.534).Existe um fluxograma em que Teodoro Beza representa sua sequência lógica da redenção humana, mostrando como ele compreendeu os decretos divinos da eleição. Algo é evidente para Beza: tudo é mostrado como se fosse a “execução lógica” no tempo do “eterno e imutável propósito de Deus”, que seria a “causa de todas as coisas”. O mundo dos protestantes, que interpretam a predestinação de forma semelhante a Beza, em um primeiro momento, parece dualista ao trazer oposição entre “crentes e ímpios”, “eleitos e rejeitados”, “vida eterna e morte eterna”. Porém, uma análise mais detida revela que há, na verdade, um mundo extremamente monista, determinista e fatalista. O presente está cristalizado em Beza no sentido em que ele define sinteticamente que Deus tudo determinou, inclusive os salvos e perdidos, para “Glória de Deus pelo eterno decreto, muito misericordioso e muito severo” (McGRATH, 2004. p.243).
A conclusão a que McGrath chega, assim como outros estudiosos, é de que essa teologia sintética, que ficará ainda mais evidente nos documentos da ortodoxia calvinista, especialmente na TULIP (Total Depravity; Unconditional Election; Limited Atonement; Irresistible Grace; Perseverance of the Saints), resultado do Sínodo de Dort, não é idêntica a de Calvino. Muito cuidadoso na escolha das palavras, McGrath (2004, p.247) afirma que “não estamos sugerindo que o Calvinismo posterior tenha distorcido as perspectivas de seu fundador. Antes, estamos chamando a atenção para a variedade de fontes sobre as quais o Calvinismo posterior foi capaz de se inspirar”. Em outras palavras, o calvinismo não seria fruto exclusivamente de Calvino, mas de outros, como Teodoro Beza. Tillich vai ao encontro dessas ideias, ratificando que a doutrina da predestinação não é central para Calvino; ela é uma tese facilmente refutável, pois nem mesmo fora desenvolvida na primeira edição das Institutas, vindo a ocupar espaço somente em edições posteriores (TILLICH, 2015).
Finalizando a primeira parte deste artigo, destaca-se a forma como teólogos reformados têm refletido sobre os decretos de Deus, produzindo um grau de variação de possibilidades sobre como ocorre a eleição divina na eternidade. Com essas possibilidades, torna-se possível “amenizar” o impacto lógico da doutrina da predestinação. Millard Erickson (ERICKSON, 2015), por exemplo, explica que existe o “supralapsarianismo”, em que Deus, antes de qualquer decreto, escolhe os salvos e os perdidos. Somente depois dessa primeira decisão, Deus decretaria a criação dos homens eleitos e dos homens condenados, permitiria a Queda da humanidade e decretaria a provisão de salvação aos eleitos que foram escolhidos no primeiro decreto. Essa é uma posição mais radical, como se pode ver. Uma possibilidade intermediária é o “infralapsarianismo”. Nessa acepção, Deus decreta a criação da humanidade, permite a Queda do homem, decreta a salvação de alguns e a condenação dos demais e, por fim, decreta a provisão de salvação aos eleitos que foram escolhidos no terceiro decreto. O terceiro decreto, dessa maneira, é amenizado, pois é subsequente à criação e à permissão da Queda. Enfim, há o “sublapsarianismo”, em que Deus, antes de tudo, decreta a criação, permite a Queda, decreta a provisão de salvação para toda a raça – nessa acepção, Jesus não morre apenas pelos eleitos, como nas últimas duas opções –, e decreta, por fim, a salvação de alguns.
Todos os aspectos sociais e teológicos, com suas diversas tensões e maneiras interpretativas que permeiam a doutrina da predestinação, precisam ser considerados para evitar, como já dito, a “romantização” de uma proposição teológica. Trazer à tona a introdução de diversos elementos de debate acadêmico que cercam a predestinação foi o primeiro objetivo do presente artigo.
Até as últimas consequências
Neste segundo momento, o objetivo é inferir as consequências últimas de se aferir a doutrina da predestinação em sua forma lógica radical. Quais seriam as possíveis consequências práticas para aqueles que aderem uma compreensão da predestinação “até as últimas consequências” lógicas? Como já visto, existem diversas atenuantes que podem amenizar o desdobramento lógico de tal compreensão de Deus. Inclusive, o calvinismo advoga, em favor de Deus, a não obrigatoriedade de salvar todos, pois já estão condenados. Logo, quando Deus decide eleger e predestinar alguns, cria-se um ato gracioso e misericordioso. Entretanto, no imaginário do fiel, que não poucas vezes possui repertório teológico limitado para tais construções e elaborações, qual o impacto de tal doutrina? Rubem Alves (1933-2014) tem muito a contribuir com sua análise do Protestantismo da Reta Doutrina7 (PRD).
A cristalização do presente
Sugere-se a “cristalização do presente”, que, de certa forma, torna possível os demais itens que serão propostos. A doutrina da providência divina, que se desdobra na doutrina da predestinação, colabora com a construção da visão de mundo do cristão que a assimila. Nesse mundo não existe espaço para a pergunta “por quê?”; além disso, o presente é um lugar estagnado, fixo, sólido e imutável, pois a doutrina da providência divina é invocada quando os questionamentos da realidade surgem, sempre apresentando a resposta: “É a vontade de Deus”. No calvinismo extremo, essa doutrina é defendida com a intenção primária de expressar o “caráter soberano e absoluto de Deus”, não a graça salvadora de Deus, como em Lutero (TROELTSCH, 1981). Em um mundo dualista, haja vista “O Peregrino” de Bunyan, em que existe caminho largo e estreito, ímpios e crentes, perdição e salvação, essa doutrina revela uma visão de mundo monista. De toda forma, como essas duas visões podem ser harmonizadas? Através da doutrina da dupla predestinação, em que:
Deus, de forma sábia, bondosa e eficaz, predestinou alguns homens para a salvação e outros para a perdição, de sorte que ninguém que tenha sido predestinado para a salvação se perde, e ninguém que tenha sido predestinado para perdição se salva. Assim, caminho largo e caminho estreito e todas as dualidades que se seguem, são efeitos de uma causa única: o decreto de Deus
(ALVES, 1979, p.143).Rubem Alves compreende que a doutrina da providência é a mais alta categoria explicativa de que se vale a racionalidade protestante. Na mentalidade protestante, para qualquer que seja o acontecimento, seja alegre, seja trágico, essa doutrina é invocada (ALVES, 1979). Todas as explicações analíticas para os acontecimentos da vida são reduzidas a “causas secundárias” e consideradas inúteis, uma vez que a “causa primária” e real é obtida com base na providência divina, a qual é “invisível, irresistível, misteriosa, não-analisável” (ALVES, 1979, p.145). Max Weber (1864-1920), no clássico “A Ética Protestante e o Espírito Capitalista”, faz uma descrição acerca do espírito da doutrina calvinista da providência:
O Pai no céu do Novo Testamento, tão humano e compreensível, que se alegra tanto ao ver o arrependimento de um pecador como quando uma mulher encontra uma peça de prata que havia perdido, vai-se embora. Seu lugar fora tomado por um ser transcendental, para além de onde se pode chegar o entendimento humano, que, com Seus decretos completamente incompreensíveis, decidiu o destino de cada indivíduo e regulou os mínimos detalhes do cosmos da eternidade. A graça de Deus é, uma vez que Seus decretos não a podem mudar, tão impossível de perder para aqueles a quem Ele as concedeu quanto irrealizáveis àqueles a quem Ele a negou
(WEBER, 2013, p.134).A justificação do absurdo
Existe um problema a ser resolvido dentro da lógica deste protestante: como é relacionada essa causalidade divina com os fenômenos da vida cruéis e desumanos, como, por exemplo, a fome, a pobreza, a dor, a injustiça, as guerras, os genocídios, a crueldade? Como relacionar essa causalidade divina com mortes estúpidas, como, por exemplo, um pai que assassina a própria filha? Os padrões éticos válidos para os homens não seriam válidos para Deus? Rubem Alves ajuda a iluminar o paradoxo em que o PRD se coloca:
ou Deus não é a causa do mal, não sendo, portanto, onipotente, ou ele é a causa do mal, não sendo, portanto, amor. Os crentes não levantam tais questões críticas, mas ‘se humilham perante a potente mão de Deus’. Há, evidentemente, uma suspensão do ético. A ética vale para os homens, mas não vale para Deus. A expressão ‘os mistérios da Providência’ enunciam exatamente a perplexidade e o espanto ante o absurdo que, pela doutrina da Providência, é afirmado como ‘bom e justo’
(ALVES, 1979, p.145).A experiência não tem nenhuma função cognitiva dentro desse protestantismo; o aprendiz nada sabe. Com a doutrina da providência, nem mesmo o senso moral é capaz de produzir crítica em relação à fórmula doutrinária. Todos os fenômenos, sejam experiências religiosas, sejam quaisquer experiências da vida, ocorridos no tempo presente, são “cobertas pela sombra misteriosa e bondosa da Providência”. A experiência é compreendida como “aparência” e habita o nível da “falsidade”, pois o que é vivido e sentido não possui significação. Assim, o trágico, que é categoria da experiência, é sacralizado, transformando--se em teofania. Essa doutrina garante o final feliz, justo e bom, e dispensa a invocação ética, que fica suspensa em nome de uma eternidade de felicidade (ALVES, 1979). Diante da visão de mundo construída, Rubem Alves cita a irônica fala de Hegel na qual ele diz que os cristãos “amontoaram tantas razões para confortá-los na desgraça [...] que nós poderíamos ficar tristes, afinal, porque não podemos perder um pai ou uma mãe uma vez por semana” (KAUFMANN, 1966, p.32).
Quando, diante da ocorrência de um fato trágico, a visão de mundo desse protestantismo afirma ser isso “a vontade de Deus”, é revelada sua impotência diante do irreparável e se manifesta a esperança de que haja um sentido diante da tragédia na vida. Trata-se de um “protesto contra o irracional”, porém, quando não é a dor que protesta contra o irracional, mas sim aquele que não sofre, “a linguagem sobre a providência deixa de ser confissão de uma esperança e se transforma numa justificação lógica do absurdo”. Quem não sofre, pode, de maneira racional e fria, oferecer aos desgraçados os argumentos para explicar a desgraça. Dentro dessa racionalidade protestante, justifica-se a realidade como “fatalidade”, absolutizando as coisas como elas são e impedindo o “dizer ético que afirma que o que é não deveria ser”. Assim, mantêm-se fora do olhar de mundo protestante a desorganização e o caos, já que a dúvida não pode se estabelecer (ALVES, 1979, p.148).
Ausência de voz profética
Apresenta-se no mundo protestante uma doutrina que não é condicionada pela história, mas é conhecimento absoluto. “O que foi dito no passado é a voz da eternidade. Vale para sempre” (ALVES, 1979, p.151). A consciência do homem diante dos fatos pode se recusar a aceitá-los, revelando que, emocionalmente, os fatos não são dotados de estatutos morais. Esse tipo de consciência produz uma força de transformação da realidade, motivada por questões emocionais, “valores brotados de desejos”. A doutrina da providência, ao contrário dessa lógica, transforma os fatos em valores, impedindo que a consciência do crente se rebele contra os fatos, ou seja, a mentalidade do sujeito não transforma a realidade, mas a aceita como decreto divino. “Isto é, ela interdita o exercício crítico das emoções” (ALVES, 1979, p.153).
A experiência religiosa, se não devidamente racionalizada dentro da lógica dessa cosmovisão, pode se apresentar como um grande perigo e desconstruir toda a visão de mundo desse tipo de protestantismo, introduzindo incerteza e dúvida. Esta era a vocação do profeta hebreu, “[...] que se dedicava, com paixão sem paralelo, a ver, compreender, anunciar e denunciar o que ocorria no presente” (ALVES, 2013, p.101), gerando dúvida e acabando com as certezas de quem oprimia o pobre, o órfão e a viúva.
O que se apresenta como visão de mundo, tendo em vista a doutrina da providência, é a perspectiva de que tudo o que ocorre são “flechas de Deus” dentro da realidade. Em todos os acontecimentos na história existe sempre uma intenção. Existe aqui uma combinação de “fatalismo” e “otimismo”, pois o crente sabe que a vida é um problema o qual não depende dele para ser resolvido. Na verdade, o referido problema já está resolvido, pois causas eficientes, nas quais está o poder da intenção, combinam-se com a causa final, que possui a intenção do poder. Nessa teoria do universo, que não deixa de ser a doutrina da providência, toda causa eficiente se subordina à causa final. Rubem Alves conclui que não existem nessa cosmovisão problemas que demandam esforço e a aflição por parte dos homens. A única coisa que cabe à raça humana é compreender, e nessa dificuldade de compreensão reside o problema, não na maneira de transformar a realidade (ALVES, 1979).
Logicamente, torna-se muito complicado conciliar a responsabilidade do homem com a providência. É estabelecido aqui um paradoxo em que esse protestantismo eleva a condição de “mistério”. “Ora como se tudo dependesse de Deus”; “Age como se tudo dependesse de ti”. A contradição é evidente, e o “como se” revela a ficção da fórmula, em que a inteligibilidade não se encontra (ALVES, 1979).
É interessante observar que teólogos calvinistas famosos compreendem esse fato e agem intelectualmente exatamente como Rubem Alves descreve. Por exemplo, cita-se R. C. Sproul, que, em seu famoso livro “Eleitos de Deus”, realiza uma argumentação em prol da doutrina da providência e responde à pergunta “por que Deus salva somente alguns?” da seguinte maneira: “[...] não sei. Não tenho ideia porque Deus salva alguns e não todos. Não duvido por um momento que Deus tenha o poder de salvar todos, mas eu sei que ele não escolhe salvar todos. Realmente não sei por quê” (SPROUL, 2009, p.27).
Embora existam variações nas aparências do mundo dos protestantes, a providência estabelece um mundo fixo e acabado, em que uma realidade “processual” não é possível. As aparências são até desenvolvidas processualmente, mas a realidade não está sendo formada. Rubem Alves ressalta a relação desse protestantismo com os tempos, pois
[...] o real se constituiu num só momento cosmogônico originário, antes do tempo histórico. O futuro é apenas a revelação do que já estava presente, no passado. No presente, o que já existia de forma seminal no passado, se torna atual. Não existe lugar para o novo, o novo como uma síntese inesperada. O futuro não pode surpreender o passado. Admitir o inesperado é duvidar da Providência, é fazer lugar para o fortuito e para o acaso. Mas, ao fazer assim lugar para a operação da liberdade, como criação do novo, destrói-se a certeza do ‘happy end’. O preço da liberdade é o fim das certezas. E isto é terrível
(ALVES, 1979, p.159).Liberdade e conhecimento absoluto são opostos, não podem se harmonizar. É importante perceber nessa concepção a influência do pensamento grego, na contramão do pensamento hebraico do Antigo Testamento. O profeta israelita observa o passado sem a intenção de encontrar ali um plano definido para o futuro inevitável (ALVES, 1979). Martin Buber destaca que o Deus de Israel não colocava suas mãos em um livro que continha todo o futuro escrito e determinado, convidando a todos para ouvirem seu conteúdo. Esse era tipo de prática dos falsos profetas, que tinham sua falsidade exatamente no fato de que sua profecia não dependia de um questionamento e de uma alternativa (BUBER, 1960apudALVES, 1979). A intenção divina para mentalidade hebreia é revelada na história, transformando as relações dos homens. Dentro dessa perspectiva, Rubem Alves entende intenção divina como uma forma de “utopia”, em que uma nova ordem histórico-social implica na “abolição” da ordem presente (ALVES, 1979).
O pensamento grego, ao contrário, elimina os elementos utópicos em seu conceito de tempo, pois o tempo é circular, com o fim desembocando no princípio. O problema nessa lógica é transcender o tempo, salvando-se dele na eternidade. Dessa forma, o propósito do tempo é a sua abolição. Uma vez que esse arranjo prevaleceu em relação à vertente hebraica do pensamento cristão, em que o tempo tem um início e um fim, tornou-se impossível o aparecimento de uma mentalidade utópica. Como consequência, a função profética da religião também se dissolveu; não existe espaço para criação do novo, pois tudo é resultado da causalidade divina e não das escolhas dos homens. “A questão não é criar o que não está pronto, mas simplesmente ver o que já está pronto” (ALVES, 1979, p.162).
A oração como neurose
Outro elemento contraditório em relação a essa visão de mundo influenciada pela providência é a oração. A linguagem da oração exprime um desejo daquele que ora. Diante de Deus são derramadas as angústias, tristezas e sentimentos mais profundos da alma humana. Desse modo, compreende-se que o sentido da oração seria destituído se a pessoa que ora não cresse que o seu desejo é capaz de modificar o curso dos eventos. Existem argumentos que buscam harmonia entre a doutrina aqui destacada e a oração, como, por exemplo, a ideia de que há subordinação àquilo que se deseja com a “vontade de Deus”. Mas, nesse caso, questiona-se: não bastaria o crente apenas pedir pela vontade soberana de Deus, sem referência àquilo que se deseja? A oração não se tornaria supérflua e desnecessária? Há outro possível argumento no qual a oração é essencialmente comunhão com Deus, não um esforço para mover Deus. De toda forma, esses argumentos não esgotam a oração, que é petição, súplica, luta com Deus (ALVES, 1979).
Dentro do universo fixo e determinado, o mesmo homem que crê nessa visão de mundo coloca entre parêntesis a linguagem indicativa da providência. A esposa, devido à doutrina da dupla predestinação, ora para que Deus converta seu marido incrédulo; a mãe ora que seu filho retorne à Igreja e deixe os caminhos do mundo; o pai ora para que a filha seja curada; e o empresário ora para que os negócios sejam bem-sucedidos. Existe, claramente, uma expectativa de que, misteriosamente, os desejos de quem ora possam mover a vontade suprema, que permaneceria inalterada caso a oração não fosse anunciada.
A oração, portanto, revela algo surpreendente: um crente que não crê na Providência como causalidade de ferro, e um outro Deus que acolhe os desejos humanos e altera o curso dos eventos. Num universo rigorosamente determinista, em que as emoções são impotentes frente ao real, a oração é uma impossibilidade
(ALVES, 1979, p.164, grifo do autor).Como se explica essa contradição? Crê-se na providência e se pratica a oração? Para Rubem Alves é na psicanálise que se encontra uma resposta factível. Diante do “princípio da realidade” desse universo protestante, universo rígido e definido pela providência, existe outro princípio que milita contra, sendo ele o “princípio do prazer”. Segundo Freud, existe semelhança entre a vida psíquica dos homens que lançam mão da magia para alcançar seus objetivos e a vida psíquica dos neuróticos. Ele entende que são os desejos dos homens que os motivam a fazer uso da magia (FREUD, 1996); existe neles uma recusa do seu ego em relação ao veredito final dos fatos. No caso dos neuróticos, existe a “crença de que seus desejos são capazes de abolir o mundo real e poderoso para criar os desejos a que eles aspiram”. Nesse sentido, a oração para esse protestante é um protesto, uma evidência de que o “rebelde ainda não morreu”, de que a “consciência ainda não se curvou, de forma total, à Providência”, de que a “alma ainda é capaz de dizer os seus desejos, em oposição à fatalidade” (ALVES, 1979, p.165).
Uma vez que não existe uma síntese entre razão e sentimento, a racionalidade desse Protestantismo permanece fria e o seu calor permanece amorfo (ALVES, 1979). Nesse contexto, orar é sintoma de uma neurose.
O desprezo pelo esforço intelectual
Na teoria do conhecimento protestante, o lugar do novo está no passado. O conhecimento absoluto já foi descoberto, submetido à engrenagem na qual o sistema de pensamento protestante está baseado e toda a verdade está devidamente documentada nas “confissões”. Assim, tudo está devidamente organizado de forma coerente e sistematizada. Importante notar novamente o modo como esse protestantismo se relaciona com os tempos: “A verdade do presente e do futuro já foi revelada no passado. Assim, presente e futuro são destituídos de significação. Nada contém de novo. Nada existe neles que possa surpreender ou inovar” (ALVES, 1979, p.112).
É um cenário em que o empreendimento intelectual está limitado a “repetir” e “deduzir”. “Se o passado é a norma absoluta, podemos estar certos de que amanhã será igual hoje, e qualquer tempo futuro será igual amanhã” (ALVES, 1979, p.113). A situação em que este tipo de protestantismo se coloca é enfadonha, pois é importante pensar: como a vida poderia ser interessante em um mundo sem novidades? Trata-se de um mundo monótono, isto é, um presente cristalizado, como foi sinalizado anteriormente.
Diante disso, costuma-se fazer a seguinte questão: como amenizar este estado emocional de enfado, em que a expectativa é sempre da impossibilidade da surpresa? Rubem Alves (ALVES, 1979, p.113) diz que a “função tranquilizante da repetição” compensa esse estado. Repetir, para esse protestante, tem o sentido de afirmar que o conhecimento construído no passado ainda é válido. A atitude de repetição aqui implica na confirmação de que não há necessidade de se repensar; da mesma maneira, sermões em que o pregador deixa de fornecer respostas acarretam desconforto nos ouvintes. A falta de um discurso dogmático significa a presença da dúvida, e ela é expelida neste sistema construído, seja pelos teólogos do PRD, seja pela própria comunidade religiosa desse contexto protestante. Portanto, entende-se que o essencial nessa lógica é apresentar o que já se está acostumado a ouvir.
Existe uma zona de conforto na qual todo o sistema de pensamento protestante está alojado, sejam os pastores-teólogos, sejam os próprios fiéis das comunidades religiosas. A preservação desse conforto depende da repetição, que sustenta a imutabilidade da verdade anunciada, produzindo a sensação de “senhores da verdade”. Em um contexto assim, a tarefa do teólogo não consiste em criticar, explorar e criar, pois isso não é possível. O grande objetivo teológico é justificar o “conhecimento velho”, sendo a “dedução” o esforço deste teólogo. Ele se empenha na tarefa de compreender os processos dedutivos aos quais o texto foi submetido para se tornar doutrina. A ortodoxia preza para que a doutrina não contenha nada de novo (ALVES, 1979), ela deve colocar luz em verdades que já estão contidas no passado. Rubem Alves aproxima este protestantismo com o catolicismo; ele cita o Papa Paulo VI e diz que se trata de um discurso que poderia ser feito por qualquer protestante ortodoxo: “Como a árvore é o desenvolvimento da semente, a história da Igreja é o processo que aprofunda e alarga os elementos seminais de origem evangélica, sem alterá-los, sem corrompê-los, sem modifica-los, conduzindo-os, à perfeita realização” (ALVES, 1979, p.115).
A crítica pessoal de Rubem Alves a todo este processo não é pelo fato de se ter escolhido um ponto de partida no passado, mas de que a teologia e a confissão não são produto de uma hermenêutica particular e de caráter provisório. A falta de uma hermenêutica como expressão de uma perspectiva relativa impossibilita que existam novas interpretações do passado, o que não permite a abolição e nem a instauração de chaves hermenêuticas (ALVES, 1979). Essa lógica abriga dentro de si um perigo que Rubem Alves chama de “orgulho intelectual”.
Esse orgulho intelectual torna surdos os ouvidos para escuta. Ele, inclusive, impossibilita qualquer diálogo ecumênico ou inter-religioso. Quando se fala de escuta, deseja-se ir além da polidez de um falar entre pessoas educadas; é importante uma atitude humilde, em que o falar não diz tudo; em que a verdade de uma pessoa não é a completude e o ápice do conhecimento (ALVES, 1979). Christine Lienemann-Perrin, teóloga reformada e citada por Cláudio de Oliveira Ribeiro em seu livro “Pluralismo e libertação”, ao falar sobre diálogo inter-religioso e missão, discorre sobre a importância de se praticar um cristianismo capaz de refletir e aprender com os erros do passado, buscar compreender visões diferentes e submeter os conteúdos da fé a uma nova reflexão (LIENEMANN-PERRIN, 2005apudRIBEIRO, 2015). Essa forma de dialogar, como se pode perceber, implica em humildade, o que não é possível ocorrer nesse protestantismo onde não há espaço para esse tipo de atitude; ele possui a verdade, e os outros estão nas “trevas” (ALVES, 1979).
Consequentemente, percebe-se o “desprezo pela atividade intelectual”, que é, curiosamente, o oposto do orgulho intelectual do PRD. Essa atitude de desprezo é resultado daquele que se percebe detentor do conhecimento absoluto. Se o conhecimento já foi obtido, todos os passos na direção de conquistá-lo não são necessários, o que resta é apenas a “proclamação” da verdade. Rubem Alves faz referência a um trecho de um sermão citando Barth que está dentro do contexto de comemoração do Centenário da Igreja Presbiteriana do Brasil, em 1959: “Os pastores brasileiros não são como Karl Barth, que gasta o seu tempo fazendo teologia diante da lareira, em meio às nuvens de fumaça do seu cachimbo. Nossos pastores são homens de ação” (ALVES, 1979, p.116).
É possível notar o desprezo pela atividade intelectual quando ela é associada com a ociosidade. Afinal, se a atividade intelectual está encerrada, a tarefa teológica é inútil, pois se busca apenas demonstrar de uma forma lúdica o que já está consolidado (ALVES, 1979).
A vida se torna discurso
A conclusão a que se chega até aqui é a de que o protestante que leva “até as últimas consequências” a doutrina da predestinação (providência) habita um “discurso”. Partindo da premissa de que esse protestantismo é detentor da verdade absoluta, pode-se afirmar que qualquer dúvida em forma de crítica e questionamento que a vida impor, inclusive as experiências religiosas, são, a priori, falsas. Existe, portanto, uma desconexão entre a vida e o conhecimento absoluto deste protestantismo. Mais do que isto, a vida é reprimida dentro desse sistema (ALVES, 1979).
A questão que Rubem Alves levanta neste momento é: como se justifica para os indivíduos e comunidades essa repressão da vida e submissão a um tipo de conhecimento que é absoluto e que não permite que a vida se exprima? Ou então: por que se substitui a vida por palavras? Por que experimentar o “pensamento sobre a experiência” e não a experiência em si, que somente a vida pode proporcionar? A resposta que ele nos fornece é: o “temor da vida” (ALVES, 1979).
A vida é imprevisível, sempre mutante, não permite certezas; ela sempre problematiza, destrói absolutos, força reorganizações, é complexa (ALVES, 1979). Nicholas Taleb, em seu livro “Antifrágil”8, trabalha com este aspecto contingente da vida. Ele afirma que “a vida é muito mais labiríntica do que lembramos em nossa memória – nossa mente está ocupada em transformar a história em algo suave e linear, o que nos faz subestimar a aleatoriedade” (TALEB, 2015, loc.533). A linguagem, ao contrário da vida, torna possíveis definições estáveis, receitas prontas e um ambiente mais seguro do que a vida. Esse processo de absolutização da linguagem acaba por colocar as emoções em um estado inconsciente, transformando-as em racionalidade (ALVES, 1979).
Desprezo pela causa do pobre
Dentro da construção de mundo elaborada pela doutrina que é chave (a predestinação), um evangelho que se preocupe com questões sociais, especialmente os pobres, não faz sentido. Embora Rubem Alves não faça essa associação, quando ele aborda o Evangelho Social, existem aproximações com as Teologias Latino-Americanas – Teologia da Libertação, cujo teórico inicial fora o próprio Rubem Alves9, e até mesmo com a Teologia da Missão Integral10. A leitura realizada por essas teologias acerca do Evangelho privilegiam o imperativo em detrimento do indicativo. Nesse sentido, os ensinos morais do Evangelho ganham ênfase.
Fundamentado nos ensinos de Jesus, o Evangelho Social busca estabelecer no presente princípios básicos para uma ordem justa e fraterna. Assim, o Evangelho, que para o ortodoxo se refere à salvação da alma do indivíduo para depois da morte (predestinação), para o Evangelho Social se trata de “uma utopia político-social que deveria se realizar num futuro histórico” (ALVES, 1979, p.266). Mendonça, referindo-se a Roger Bastide, retrata com maestria este aspecto quando compara a religião com a política. É possível perceber de forma bastante evidente o quanto seu argumento corrobora para a assertiva acerca de como este protestantismo interpreta os tempos e o quanto o Evangelho Social se caracteriza como um inimigo.
Tanto em religião quanto em política há, como diz Bastide, um vivido congelado que é a palavra – o discurso. Na religião, o vivido congelado são as doutrinas, os dogmas, as confissões de fé que surgiram como resposta da fé a situações histórico-sociais bem definidas que, superadas pela dinâmica da história, permanecem latentes e inoperantes em situações novas; na política, são discursos operantes no passado, mas que, repetidos no presente, não têm sentido algum. Assim, a esperança retroage ao passado e deixa sempre em aberto o futuro. Na religião, abandona o presente em favor de um apocalipse renovador e, na política, acontece o mesmo quando os políticos prometem um futuro próximo transformado, mas com conceitos antigos. Prometem o que já deviam ter feito
(MENDONÇA, 2007, p.24).Enquanto o protestantismo tradicional considera que o presente está interditado, sem possibilidade de mudança, o Evangelho Social faz uma leitura da Bíblia que exige uma “transformação das estruturas da sociedade” para que ela se transfigure numa ordem “justa e fraterna” (ALVES, 1979, p.268). O protestantismo aqui sinalizado nunca deu ênfase a uma ética social; na verdade, todo seu esforço está direcionado para a alma de indivíduos. Neste protestantismo, cujo paradigma é a “eternidade”, pode-se dizer tudo o que precisa ser dito sem mencionar a necessidade de transformar o mundo (ALVES, 1979). Quando esse protestantismo se viu pressionado a falar acerca das questões sociais, falou com o propósito de desqualificar suas pretensões, mantendo sua posição fatalista acerca do presente e impedindo a articulação entre a vida e a economia (ALVES, 1979).
Max Weber relaciona a visão desse protestantismo sobre a pobreza com sua visão de mundo baseada na doutrina da providência. A conclusão a que ele chega sobre a distribuição desigual de bens no mundo diz respeito a uma “especial distribuição da Divina Providência, que, nessas diferenças, assim como na graça particular, perseguia fins secretos, não conhecidos pelo homem”, o que é uma “confortante segurança” (WEBER, 2013, p.177) – ou “certeza”.
Em suma, o Evangelho Social
[...] transforma a fé, de um conhecimento metafísico absoluto, em um programa de ação política. Perde-se, assim, o que é mais central para a cosmovisão protestante: a mensagem da salvação eterna da alma depois da morte. O Evangelho Social nega o problema central em torno do qual se estrutura o universo protestante. Nega seu equacionamento da questão do conhecimento, ao privilegiar o imperativo sobre o indicativo. Nega a sua estruturação de mundo. E finalmente nega a centralidade da ética de perfeição individual, tornando-a totalmente secundária em relação à ética de transformação da sociedade
(ALVES, 1979, p.268).Aceitar essa proposta não faz sentido para quem leva a doutrina da predestinação – providência –, até as últimas consequências.
Salvação e ansiedade
Levando o raciocínio lógico da doutrina até o seu limite, Max Weber conseguiu captar sua face mais delicada na vida do indivíduo: a “ansiedade diante da salvação”. Uma leitura adequada de sua principal obra, a já citada “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, sinaliza que o grande dilema daqueles calvinistas/puritanos analisados diz respeito ao problema prático que a doutrina da predestinação gera: a dúvida se o crente é ou não é salvo. Nota-se uma ausência da experiência subjetiva que resultaria em convicção de fé (ênfase de Lutero), pois neste contexto religioso específico a convicção é resultado da crença na confissão doutrinária. Parece que, ao menos em parte, os fiéis calvinistas do período da escolástica protestante tendiam a uma busca incessante por “certeza” e uma “rejeição à dúvida”, inclusive sobre sua eleição. Para tanto, não é sem razão o surgimento de teses como a de Weber, que encontrou no ascetismo calvinista um ponto de contato com o capitalismo, pois, devido à crise da certeza de fé provocada pela dúvida acerca da predestinação, o crente, visando ter uma fisionomia do salvo, engajou-se no trabalho secular com excelência para glorificar o seu Deus e atestar que era, de fato, um eleito.
Nesse sentido, é coerente afirmar que a doutrina em si provoca este tipo de crise – tanto para Calvino como para seus sucessores –, e que, como resultado, a busca pela “certeza” está sempre sendo discutida – tanto em Calvino como em seus sucessores, inclusive na Confissão de Westminster. A busca pela certeza para resolver o problema da dúvida é parte, portanto, da discussão calvinista como um todo.
A dualidade dos dois caminhos – largo e estreito –, dá lugar a um mundo em que tudo está definido: ou Deus te “predestinou” ao céu ou te “predestinou” ao inferno. As palavras de Weber são, no mínimo, razoáveis, quando ele pensa na dúvida do fiel em relação ao seu destino eterno, especialmente o puritano que ele analisa:
No lugar dos humildes pecadores, a quem Lutero prometia graça caso confiassem-se a Deus, por meio de uma fé penitente, foram criados aqueles santos autoconfiantes, a quem podemos redescobrir nos rijos mercantes puritanos da era heroica do capitalismo, e em instâncias isoladas do presente. Por outro lado, para se conseguir chegar àquela autoconfiança, a atividade mundana era recomendada como o meio mais adequado. Isso, e somente isso, dispensaria as dúvidas religiosas e daria a certeza da salvação
(WEBER, 2013, p.141, grifo nosso).O que resta ao crente que leva a lógica da dupla predestinação a sério? Ansiedade. Afinal, quem pode aferir, com total certeza, que Deus o predestinou para salvação? Aquilo que Weber percebe é uma realidade quando se pensa as consequências práticas de tal doutrina. Ninguém está apto a aferir o que se passa na misteriosa providência divina. Na época analisada pelo sociólogo, o trabalho secular fora o caminho que os pastores utilizaram para amenizar o impacto psicológico de uma elaboração teológica que, na prática, produz um desconforto grande à alma humana. Nessa perspectiva, se o crente está na dúvida se o seu nome consta na lista de Deus, basta que trabalhe e glorifique a Deus, o que configura um eco com o espírito do capitalismo. Uma vez que o crente não gastava seu dinheiro com divertimentos “mundanos”, pois sua espiritualidade era ascética (paradigma da eternidade), o acúmulo e o reinvestimento de lucro eram inevitáveis.
O mundo mudou. Porém, ainda é atual a tese weberiana, na qual a ansiedade acerca da dúvida da predestinação permanece. Novas definições em busca de uma fisionomia do salvo, que elimine a ansiedade do fiel, ainda são elaboradas nas comunidades religiosas. Mas convém questionar: quem garante ao crente se Deus o elegeu para o céu ou para o inferno? Quem garante que o cristão “desviado” dos caminhos religioso-institucionais não seria eleito? Quem garante que o ateu, cheio de crise de fé, não estaria predestinado ao paraíso? Da mesma forma, quem garante que o piedoso que faz suas orações, frequenta assiduamente encontros religiosos, não seria um “vaso para desonra”? Acredita-se que ninguém, apenas Deus. Levar “até as últimas consequências” é, na verdade, direcionar-se para um determinismo. Cabe ao crente tão somente “torcer” para que seu nome esteja na lista de Deus.
Há uma grande contradição, pois, dentro da lógica instituída, nem mesmo a “proclamação” da verdade religiosa faz sentido. Em um presente estagnado e impossibilitado de mudança, a própria prática missional da Igreja não se justifica. Proclamar, na expectativa de uma resposta real do indivíduo à fé, sendo que este tem o seu futuro escatológico determinado na sombra da providência e da predestinação, é uma tarefa ilógica. A argumentação tradicional afirma que proclamar é um privilégio para a igreja anunciar a verdade, possibilitando que os “já” eleitos/predestinados “respondam” à graça que já determinou seu futuro. Se este tipo de soteriologia fatalista for levado às últimas consequências, o próprio papel da Igreja, dentro dessa lógica prosélita11, pode ser questionado. A inércia “missiológica”, nessa perspectiva, deveria ser a consequência mais óbvia.
Conclusão
A providência divina e o seu desdobramento mais delicado, a predestinação, possuem seus gradientes de possibilidades interpretativas e seus locais específicos na história da tradição teológica. Se levada “até as últimas consequências”, certamente o tipo de espiritualidade construída, a visão de mundo do fiel e a própria comunidade religiosa serão afetados grandemente. Haverá uma materialização de várias consequências: o presente estará estagnado, tornando-se espaço consolidado, imutável e cristalizado; os absurdos da existência serão justificados dentro de uma lógica fatalista, tornando Deus o autor do mal; a voz profética será silenciada; a oração se tornará uma estupidez; a vida intelectual, criativa por si só, será desprezada; a vida será reduzida a um discurso; os pobres serão obra do acaso divino; e, por fim, o Deus da bíblia, que tem interesse de salvar, estará nas periferias da alma humana, alma que terá como capital a crise de ansiedade diante da dúvida permanente acerca da própria salvação.
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Notas
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