Editorial

Fenomenologia da religião: teoria e aplicação

Paulo Sérgio Lopes Gonçalves *
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil
Márcio Luiz Fernandes
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil

Fenomenologia da religião: teoria e aplicação

Revista Reflexão, vol. 45, e204953, 2020

Pontifícia Universiade Católica de Campinas

Recepção: 13 Maio 2020

Aprovação: 13 Maio 2020

Status quaestionis

A sentença nietzscheniana da “morte de Deus” (NIETZSCHE, 1993, p. 121) constitui um marco fundamental para o advento de processos de compreensão e intepretação acerca da religião e da própria questão de Deus. Visualizava-se, de um lado, que a religião teria chegado ao seu limite e estaria fadada ao desaparecimento; que a questão de Deus, fundamentada no teocentrismo medieval e já reconfigurada pelos deísmos modernos, perderia a sua relevância; e que o ateísmo contemporâneo seria hegemônico. De outro lado, essa sentença era compreendida não só como uma crítica à metafísica teísta que configurou a revelação divina como isenta de historicidade e da realidade existencial do ser humano, mas também como uma crítica à própria ciência moderna, que emergia positivistamente e com caráter messiânico para trazer ordem e progresso à humanidade (GONÇALVES, 2018).

Dessa tensão referente à religião e à questão de Deus surgiram esferas reflexivas denotativas de que a análise da religião não seria mais exclusividade da teologia e que seria possível abordar historicamente as religiões, visualizá-las como eixo de integração social (DURKHEIM, 1989) e até mesmo concebê-las como “ilusão” (FREUD, 1978), além de compreender a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo (WEBER, 2004).

Nesse clima, surge também a análise fenomenológica da religião. O fundador da fenomenologia, Edmund Husserl, ocupou-se também da questão de Deus. Tomando como objetivo o acesso à verdade do mundo e do homem, realizou uma escavação arqueológica na estrutura das vivências para compreender o fundo dos fenômenos culturais e, assim, superar o positivismo científico e efetivar o programa de uma fenomenologia filosófica (HUSSERL, 2006). Para percorrer o seu caminho, o autor não só se apropriou da herança de Franz Brentano, interessado em analisar cientificamente os atos psíquicos de modo qualitativo, como também integrou à sua análise as contribuições recebidas do idealismo cartesiano, da concepção kantiana de fenômeno, das inquietações espirituais de Agostinho e da noção de “história oriunda do conceito diltheyniano de experiência como erlebnis – experiência de vida vivida ou simplesmente vivência. Dentre várias elaborações fenomenológicas, inseriu-se analiticamente na questão de Deus e da religião (ALES BELLO, 2004, 2016).

Por ser fenomenológica, a análise de Husserl utilizou-se de suas categorias fundamentais: intencionalidade, intuição categorial, mundo da vida, consciência, objetividade, subjetividade, intersubjetividade e a fundamental distinção entre hylé e noesis. Por isso, a questão de Deus, por mais metafísica que pudesse parecer, teria, na fenomenologia da experiência religiosa, uma esteira de cunho hylético (material) e noético (conteúdo), em que se tem o significado da referida experiência, efetivada tanto no âmbito pessoal quanto comunitário.

No clima dessa fenomenologia, a religião foi concebida em consonância com a concepção de sacro, propiciando que se elaborasse uma teologia fenomenológica em que o sacro é o mysterium tremendeum et fascinans que provoca no ser humano tremor, arrepios, temor e, também, atração e fascinação (OTTO, 1979). Esse sacro foi também concebido como hierofanias, mediante a análise morfológica das religiões, no campo da história fenomenológica das mesmas, trazendo à tona uma concepção que caracteriza as diversas formas de constituição da experiência religiosa (ELÍADE, 1965). Em esteira semelhante e com aprofundamento histórico e antropológico, encontra-se a fenomenologia da religião desenvolvida por Van der Leeuw (1992). Esse autor concebe a religião como um fenômeno relativamente escondido, que se revela progressivamente, é relativamente transparente e possui três etapas como experiência: a vivida, a de compreensão e a de testemunho. A alusão a essas etapas levou o autor a alargar o campo da fenomenologia da religião, mediante uma análise histórica e antropológica das religiões, compreendidas na relação entre singularidade própria e universalidade de atitudes e constructos sociais e culturais.

Ainda em uma esteira de fenomenologia filosófica aberta, situam-se Martin Heidegger e Edith Stein, ambos originariamente discípulos de Husserl e cada qual tendo sido capaz de trilhar um caminho próprio na fenomenologia. Assim sendo, Heidegger analisou a religião mediante uma fenomenologia hermenêutica da facticidade – faktische Lebenserfahrung –, pela qual se concebe o mundo de forma tripartida: mundo de si – Selbstwelt; mundo circundante – Umwelt; e mundo dos outros – Mitwelt. Nesse sentido, a análise fenomenológica se concentra na experiência religiosa do sujeito individual, situado em seu contexto vital e em relação com outros sujeitos. Ao analisar a experiência religiosa presente na mística medieval, nas cartas paulinas e no livro X das Confessiones de Santo Agostinho, Heidegger mostrou fenomenologicamente que a experiência fática da vida é o espaço de “como” – “Wie” –, a experiência religiosa é efetivada pelo ser humano (HEIDEGGER, 1995). No desenvolvimento de seu pensamento, especialmente pela iluminação da analítica existencial, presente em Sein und Zeit (1976), esse filósofo apresentou a fenomenologia como filosofia que contribui para que a teologia se assente em seu positum e se efetive como ciência ôntica (HEIDEGGER, 1976). Posteriormente, ao realizar a meditação sobre Ereignis¸ identificando a fenomenologia com a ontologia, Heidegger se pôs a refletir sobre o deus divino como um acontecimento em que o ser se dá ao ser humano, sendo a linguagem a “casa do ser”, e o homem o “pastor do ser”, resultando ser esse encontro a experiência do divino pensada de modo meditativo (HEIDEGGER, 1976).

Nessa esteira de uma fenomenologia aberta situa-se Edith Stein, que havia sido assistente de Husserl. Tendo aprendido o método fenomenológico, especialmente as reduções eidética e transcendental, e tendo realizado a passagem do judaísmo ao cristianismo, buscou conhecer, aprofundar e articular a fenomenologia com a filosofia cristã, principalmente o que fora apropriado de Tomás de Aquino. Por isso, a fenomenologia steiniana ocupou-se da concepção de ser humano compreendido em sua singularidade e em sua relação com os outros, desenvolvendo os conceitos de pessoa e de comunidade, e, dentro desta, as concepções de massa, sociedade e Estado, vindo inclusive a pensar em comunidade estatal. Ao conceber o ser humano como pessoa, Stein conceituou-o na distinção e unidade entre corpo e alma, de modo a compreender a pessoa como espírito de transcendência, capaz de unir-se a Deus. Além disso, ao refletir sobre a relação do ser humano com Deus – relação entre o finito e o eterno –, essa filósofa pensou a mística por meio da análise do castelo interior de Santa Teresa D’Ávila, meditando sobre todas as suas moradas e elaborando a concepção de “alma da alma”. Sobre a scientia crucis, a autora se debruçou a respeito da mística presente em São João da Cruz, principalmente as concepções de “noite escura” e da relação do ser humano com o seu amado, que é Deus (FARIAS; SANTOS, 2014).

Conforme o exposto, a fenomenologia da religião é um campo acadêmico que articula filosofia com antropologia, história, psicologia, sociologia e teologia, de modo a possibilitar que a análise da religião seja concebida a partir da experiência religiosa realizada pelo ser humano, em suas estruturações históricas, sociais e culturais (o que inclui os símbolos, os ritos e as narrativas mitológicas, doutrinárias e espirituais) e em sua singularidade própria, pela qual ele se relaciona com o divinum. Resultam então fundamentalmente dois modos de fazer fenomenologia da religião, cuja descrição se esboça abaixo: a fenomenologia arqueológica e a fenomenologia do divino.

A fenomenologia arqueológica do sacro

A fenomenologia arqueológica tem sua síntese consolidada nas obras de Angela Ales Bello (1998) filósofa italiana, fundadora do Instituto Italiano de Fenomenologia, docente emérita da Universidade Lateranense, coordenadora do departamento de investigação sobre Edith Stein e membro da Comissão Teológica Internacional. Trata-se de uma autora que se apropriou da fenomenologia husserliana, da fenomenologia de Edith Stein, da filosofia cristã e da arqueologia histórico-antropológica de Gerardus van der Leeuw e que investiu em um programa fenomenológico de vida, capaz de analisar “as coisas mesmas” e de colocar os saberes em um movimento dialógico. Por isso, ainda que seja uma religiosa cristã, a sua fenomenologia da religião é fundada no diálogo da filosofia com as áreas de saber supracitadas, de modo a realizar um processo de escavação arqueológica da religião. A autora analisa as religiões em suas respectivas estruturas fundamentais, que denotam a relação com a produção cultural, com os condicionamentos sociais e com um movimento propriamente religioso, cuja origem está no que se denomina de Potência (SHAHID, 2011).

Verducci (2011) recorda, por exemplo, que a especificidade da obra filosófica da autora está na forma de abordar os historiadores da filosofia a partir da valorização – como se nota em muitos dos seus escritos –, dos temas da subjetividade, da empatia e do sagrado, bem como da capacidade de traduzir e fazer o leitor viver a herança fenomenológica na pós-modernidade. De fato, será com esse “lugar mágico onde se realizava o sonho de Husserl e de Stein de fornecer às ciências humanas uma base filosófica, fenomenológica” (ALES BELLO, 2013, p. 11) que a pesquisadora italiana estabelecerá profícuos laços de amizade intelectual para a difusão do pensamento fenomenológico. Os temas abordados na sequência elucidam, na sua brevidade, uma série de questões de grande relevância teórica e, além disso, sinalizam para o significado de como o conhecimento pode acontecer no exercício concreto de uma amizade (FERNANDES, 2017).

De acordo com o exposto, ao realizar a sua escavação fenomenológica, Angela Ales Bello analisa o sacro arqueologicamente e em sua complexidade. Assumindo o espírito filosófico dialógico, a autora realça a experiência religiosa efetuada mediante a relação entre a hylética e a noética, compreendidas respectivamente como instâncias fundamentais da materialidade e da significação da experiência religiosa. Nesse sentido, a religião é um fenômeno singular de cada cultura, realizado por pessoas que estão histórica e socialmente situadas, e abertas à ação autocomunicativa da Potência (ALES BELLO, 1998).

Para a autora, a experiência religiosa, em sua diversidade cultural que se efetiva nos ritos, símbolos e narrativas religiosas, denota o sentido do sacro. Realça-se que a experiência religiosa é a experiência do vivido humano na relação com a Potência, que se manifesta como sacro mediante determinada materialidade – hylé –, e com a correspondente significação – noesis –, que dá sentido ao que é vivido enquanto experiência religiosa (ALES BELLO, 2104b).

Essa análise arqueológica conduz às formulações religiosas arcaicas, assim denominadas por constituírem arché de sua respectiva cultura, as quais, por vezes, são frutos de um profundo processo de sincretismo. Nessas configurações, a religião identifica mito e rito, narrativa e transmissão da palavra como formas de produzir um processo de comunicação entre o sacro e o humanum. Nesse processo, as narrações concernem às ações tanto do sacro, também concebido como Potência, quanto do ser humano, conotativas de uma relação entre ambos, cuja rememoração vitaliza o passado e o presente, e otimiza o futuro. Salienta-se aqui a relevância da corporeidade das pessoas que estão envolvidas nos ritos, pois é no corpo que o caráter hylético do fenômeno religioso se efetiva. Assim sendo, a voz pronunciada na narrativa é fruto de um conjunto de elementos corpóreos vivificados, que estão unidos à sua própria significação. Exemplo disso vê-se quando, em uma narrativa, o tom da oralidade se alterna conforme o significado dos acontecimentos narrados. A própria feição dos narradores e ouvintes das narrativas varia conforme falam, escutam, compreendem e interpretam o que está sendo narrado. Emergem as reações gestuais, que são efetivos canais dessa experiência do encontro do ser humano com o sacro, e, também, sinais manifestam-se nos objetos sagrados (vasos, estátuas, altares, aparadores e outros) que servem para denotar a presença explícita ou implícita do sacro (ALES BELLO, 2014b).

Os ritos sacrificais (ALES BELLO, 2014b) são fundamentalmente relevantes nas religiões arcaicas, pois denotam que aquilo que foi feito tornou-se sagrado – sacro faccere: a expiação redentora, a comunhão, o banquete fraterno. Por isso, os sacrifícios rituais são a hylética da noesis, mediante a materialidade do que é sacrificado como forma de apresentar a relação entre o sacro e o ser humano. Assim, por exemplo, na etnia dos índios Yurok, o salmão era considerado um peixe sagrado, que, sendo pescado, era contemplado, cozido e compartilhado com os comensais, os quais, ao dele comerem, se sentiam fortalecidos e compreendiam a necessidade da partilha das coisas ao longo da vida. Outros dois exemplos são encontrados no judaísmo antigo e no cristianismo. No primeiro, os animais sacrificados pelo sacerdote, nos cultos realizados no templo, serviam ora para expiar os pecados do povo (os chamados “sacrifícios de expiação”), ora para a comunhão entre Israel e Javé (os denominados “sacrifícios de comunhão”), de modo que, não obstante a crueldade presente na morte dos animais, o seu uso hylético servia para dar sentido à morte como algo sagrado, praticado por um sacerdote que os imolava em prol da relação entre o povo e seu Deus. No segundo caso, a morte de Jesus Cristo na cruz é concebida como sacrifício na celebração da eucaristia (eucharistein significa “ação de graças”), que, mediante as espécies do pão e do vinho – que, pela oração de consagração, denotam ser o corpo e o sangue de Cristo –, rememora o caráter social, histórico e teológico de sua morte e prospecta escatologicamente o banquete fraterno da eternidade.

Em suas narrativas mitológicas, as religiões arcaicas ainda buscam compreender o significado do mal no universo e na vida humana, uma vez que a Potência se apresenta ao ser humano. Em termos interrogativos: qual é a origem do mal: está na Potência que se manifesta ao ser humano, ou ele possui uma origem própria? A resposta se encontra nas narrativas míticas, tais como aquela de Gênesis 3, 1-13, em que o mal não se origina na Potência, mas no desejo humano de “querer ser como deus”, deixando a sua identidade humana para assumir uma identidade divina, que não é sua. Desse modo, encontra--se na própria narrativa a plausibilidade explicativa acerca da origem do mal, da condição humana e, principalmente, das ações da Potência em sua misericórdia e direção dada ao ser humano (ALES BELLO, 2014b).

Nas denominadas religiões complexas, o ponto alto dessa análise se situa em compreender a ação reveladora de Deus na história. Na concepção judaica, Deus age na história mediante a ação de sua palavra – dabar –, criadora, profética e sapiencial, e de seu Espírito – ruah –, também criador e iluminador para que a aliança – berit –, com o seu povo seja mantida e levada a cabo por todo o sempre. No cristianismo, o próprio Filho de Deus se encarnou, assumindo a condição humana em tudo, exceto no pecado. Desse modo, o próprio Deus em seu Filho se situa no interior dos seres humanos, com corpo e alma, com integralidade espiritual, fazendo-se presente, e na história com a hylé corpórea e a noesis em seu modo de pensar, de agir e ser com as pessoas neste mundo. Esse Filho de Deus, morto e ressuscitado deixa discípulos, por meio dos quais comunidades cristãs são formadas e desenvolvem sua experiência religiosa, mediante ritos, narrativas rememorativas e ensinamentos que incidem no comportamento ético e moral de quem professa tal fé (ALES BELLO, 2014b).

Da manifestação da Potência, brota a interpelação aos seres humanos, que, pela experiência de fé religiosa, respondem positivamente a ela. Essa resposta encontra na oração um meio eficaz de relação do ser humano com a Potência, envolvendo corporeidade, estrutura psíquica e espírito de abertura e entrega ao mistério absconditus que se revela. Na experiência oracional, o ser humano se exprime ao sacro com seus gestos corpóreos – fechar os olhos, ajoelhar-se, sentar-se para escutar as narrativas da palavra sagrada, estar em pé para responder às interpelações –, e com suas reações psíquicas e espirituais, presentes em seus sentimentos e em sua concentração para escutar e falar com a Potência (ALES BELLO, 2014b).

Nessa direção, outro elemento fundamental que a filósofa italiana colocou em evidência em suas pesquisas foi uma interpretação do pensamento de Stein a partir da categoria de “harmonia”. No livro Edith Stein o dell´armonia, parte-se da tese de que a palavra “harmonia” representa uma ótima chave de leitura para compreender o sentido profundo da própria pesquisa de Stein. A sua capacidade de perceber a unidade na diferença e estabelecer harmonia entre os polos opostos – como fé-razão, hebraísmo-cristianismo, corpo-alma, indivíduo-comunidade, masculino-feminino –, passa a ser um critério útil para “compreender em termos culturais a fragmentação do saber que caracteriza diversos setores de nossa cultura ocidental” (ALES BELLO, 2009, p. 240). Ressalta-se que a postura de Stein é nova dentro da história da filosofia porque o resultado que extrai de suas análises nasce a partir de uma radical disponibilidade em ver e escutar “através da qual é possível captar aquilo que se apresenta essencialmente [...] e permite uma série de investigações que não pressupõem nenhum sistema” (ALES BELLO, 2000, p. 266). A reflexão sobre a experiência religiosa, na vertente fenomenológica, tem como pressuposto uma análise das vivências no nível antropológico em confronto com as manifestações religiosas historicamente identificadas, e consiste na busca pelos elementos característicos – essenciais –, que expressam o desejo do ser humano de encontrar o sentido, a potência, o mistério.

Esse movimento da Potência ao ser humano se apresenta na experiência mística, que, segundo a ótica steiniana, é a experiência do encontro do ser humano com a Potência, descrita na análise das moradas do castelo interior de Santa Teresa D’Ávila: o aguçamento da sensibilidade (primeira morada); a passagem para o interior, “a alma” (segunda morada); a unidade da vontade humana com a vontade de Deus, “a obra da fé” (terceira morada); o percurso da alma no âmbito das consolações, das “doçuras” e outros sentimentos (quarta morada); a aquietação da alma no âmbito da compreensão mais ampla do “outro” (quinta morada); o noivado da alma com Deus (sexta morada); e a união duradoura, no âmbito da “alma da alma”, que é o mais profundo do mistério da existência humana (última morada do “castelo interior”). Nessa mesma esteira situa-se a análise da mística em São João da Cruz, em que se realça o sentido da interioridade e das dimensões fundamentais do ser humano para trazer à tona o caminho de seu acesso a Deus, mediante a esfera afetiva e imaginativa em que se reduzem as potências da alma à imobilidade e ao silêncio, a fim de que Deus possa falar. Nesse sentido, são aguçados os sentidos do ser humano, que experiencia a noite escura, a crucificação e a purificação pela mortificação, pena e tormento, além da experiência profunda do próprio amor, que identifica a relação mística entre os amantes – Deus e o ser humano (ALES BELLO, 2014a). A mística “representa algo especial, a saber, o ponto de chegada da união com Deus” (ALES BELLO, 2014a, p. 117).

Por meio da experiência mística, o ser humano sente em sua corporeidade e em sua estrutura a presença da Potência, desenvolvendo os mais diversos sentimentos e a certeza radical do encontro com o Outro, “totalmente Outro”, em quem o ser humano sente prazer, alegria, satisfação e realização de sua existência.

A fenomenologia da religião arqueológica é fundamentalmente marcada pelo diálogo entre filosofia, história, psicologia, antropologia e teologia, pois envolve o ser humano em sua estrutura psíquica, em sua convivência social, em suas tradições históricas, constituídas na articulação entre oikós e ethos próprios dos povos e sedimentadas em suas elaborações culturais e no movimento de transcendência pelo qual o ser humano se encontra com Deus, mediante as mais diversas experiências religiosas (FERNANDES, 2019).

A fenomenologia da religião do “divino”

A fenomenologia da religião do divino é desenvolvida por meio da esteira heideggeriana, que, a despeito da tradição religiosa cristã católica presente em Heidegger – que era filho de sacristão católico, havia estudado junto aos jesuítas e pleiteado a condição de docente de filosofia católica e incorrido à esfera da teologia luterana no final da década de 1910 –, assumiu o caminho de uma religião do divinum ou o de uma religião “sem religião” (PAIVA, 2015).

Uma das expressivas pensadoras dessa forma de levar a cabo a fenomenologia é Irene Borges Duarte, docente e pesquisadora portuguesa da Universidade de Évora, membro da Associação Portuguesa de Fenomenologia e do Centro de Investigação Filosófica de Lisboa e coordenadora do projeto “Heidegger em português”, financiado pela Fundação de Ciência e Tecnologia de Portugal.

Nessa forma de analisar fenomenologicamente a religião, o ponto de partida é a preocupação com a crítica heideggeriana feita à metafísica por ter-se esquecido do ser, ao se ocupar intensamente com o ente, principalmente com o ente supremo, tendo se desenvolvido como ontoteologia. Essa crítica já havia se manifestado quando foi assumido por Heidegger o caminho da fenomenologia hermenêutica da facticidade na análise da religião, com o objetivo fundamental de compreender o “como” – “Wie” –, se efetiva a experiência religiosa. Um dos resultados desse caminho foi a emergência da categoria curare, compreendida como forma de cuidar para que o ser humano realize a sua experiência religiosa efetivamente mergulhado na própria vida (GONÇALVES, 2012).

Para a pensadora portuguesa, é dessa forma de pensar o curare em articulação com a faktische Lebenserfahrung que Heidegger começa a pensar o ser em articulação com o tempo. O esboço de Sein und Zeit se encontra na conferência Der Begriff der Zeit (2003), realizada por Heidegger em 1924, cujo público era constituído por estudantes de teologia, alunos de Rudolf Bultmann. Para a filósofa, que também foi a tradutora dessa conferência para a edição portuguesa, o tempo é horizonte de compreensão e resposta concreta da questão do ser, pois nele se situa a historicidade do Dasein, a partir do enquadramento do exercício do cuidado no quotidiano do estar ocupado do homem, tanto no sentido impessoal quanto no que é mais profundamente próprio da compreensão antecipada da morte como porvir. Por isso, tempo e ser-aí se identificam, de modo que o tempo é o ser-aí, e o ser-aí é o tempo. Nessa perspectiva, a obra de Sein und Zeit, que é a publicação de duas partes da primeira sessão do projeto homônimo, concentra-se em apresentar uma ontologia fenomenológica hermenêutica da existência humana, compreendida em sua transcendência horizontal ek-stática. Por isso, a religião é a vida do ser do ente humano, lançado no mundo, que vê a morte como um porvir que encerra o horizonte de possibilidades e, por isso, enquanto projectum, antecipa-se no interior da própria vida, tornando autêntica a sua existência (BORGES DUARTE, 1997).

Essa fenomenologia não deve ser concebida sem o desenvolvimento posterior da obra de Heidegger (VON HERMANN, 1997), em que apresenta a “virada” – Kehre –, em que há Ereignis, traduzida por “acontecimento-apropriativo” ou “acontecimento propício” ou ainda “evento”, em que o ser se dá ao homem, habita na linguagem (casa do ser), e o homem, por sua vez, se torna o “pastor do ser”. A categoria “cuidado”, evocada como Sorge em Sein und Zeit, torna-se importante à medida que o homem é chamado para ater-se ao ser que lhe advém para habitar na linguagem. Nesse sentido, Irene Borges Duarte visualiza a obra de Heidegger como um todo, incluindo o advento do ser como algo que já apresentava nas fases anteriores, de modo que se debruça sobre textos fundamentais denotativos dessa entrega do ser ao homem (BORGES DUARTE, 1997). Em sua análise, dois textos merecem destaque: “Der Armut” de 1988 (HEIDEGGER, 2006) e “Nur noch ein Gott kann uns retten: Já só um deus pode salvar“ (HEIDEGGER, 1989).

O primeiro texto foi escrito como conferência pronunciada no Castelo de Wildenstein, no alto Danúbio, aos 27 de junho de 1945, quando a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial já estava a ter lugar. A pergunta fundamental lançada a Heidegger era: como há de ser o mundo depois da guerra? Ao meditar a pergunta, Heidegger escolhe o tema da pobreza, concebida como “experiência e fenomenologia de recondução ao centro e meio de todo o esforço de todo o projecto” (BORGES DUARTE, 2017, p.15). Utilizando-se de Hölderlin, que asseverava que a riqueza só é possível mediante a pobreza à medida que tudo repousa no espiritual, Heidegger afirma haver uma experiência espiritual da pobreza, que serve como um existenciário para que o homem coloque a descoberto e a coberto o encoberto acontecimento originário: o novo início, a abertura de novas possibilidades, aquilo que se oculta no processo de efetividade e configuração concreta do que é possível. Resulta então quão importante seja o tempo vivido da experiência fática e o tempo poético, impregnado na linguagem que articula pobreza e riqueza, colocando tudo no espiritual. Essa linguagem se efetiva por nomear dando sentido ao que existe na dinâmica do encontro entre o ser e o homem. Por isso, a pobreza é fenomenologicamente a experiência do ter sido desprendido, da indigência, da carência, da privação, do esquecimento do ser e da necessidade de se ater ao advento do ser. Nesse sentido, emerge outra aproximação fenomenológica da pobreza, concebida como “tônica fundamental” (BORGES DUARTE, 2017, p. 24), de que tudo se concentra no espiritual, em que o ser se dá ao homem, que, por sua vez, é interpelado a acolhê-lo mediante o cuidado. Nisso reside a nova relação entre o ser e o homem: “um ‘liberar’ (freien) do ‘aí’ ele mesmo para cuidar, para ‘zelar’, pelo Ser” (BORGES DUARTE, 2017, p. 27). A pobreza é um status espiritualis de zelo, acolhimento, abertura existenciária ao ser efetivada na liberação, cuja essência é o amor – também tornado experiência na “nostridade” (BORGES DUARTE, 2019), que leva ao ato de proteger, de contemplar, de falar e silenciar diante do Ereignis.

A exposição heideggeriana da pobreza se manifesta no segundo texto, que é uma entrevista concedida por Heidegger ao jornal alemão Dr Spiegel em 1966 e publicada somente em 1976, após sua morte. Conforme o filósofo, o “deus que salva” não é o que remete à ontoteologia, e o ente supremo se impõe ao homem, em um processo de entificação do homem e do mundo, sem que o ser tenha espaço para manifestar-se ao homem. Trata-se então da emergência de uma ontologia fenomenológica hermenêutica denotativa de que o ser se dá ao homem, e o locus desse encontro é a linguagem que exprime um novo pensar (BORGES DUARTE, 2014).

Esse novo pensar já vinha sendo anunciado por Heidegger em diversos textos: em “Vom Wesen das Wharheit” e “Vom Wesen des Grundes”, ambos de 1929 (HEIDEGGER, 1976); em “Was ist der Metaphsik?” (HEIDEGGER, 1976), escrito em 1930; na conferência sobre a Técnica (HEIDEGGER, 2002), escrita em 1938 e aprofundada em outra conferência intitulada “Gelassenheit” (HEIDEGGER, 2000), em 1959, a qual, por sua vez, já havia sido apresentada nas lições de 1951-1952 intituladas “Was heisst Denken” (HEIDEGGER, 1997). Trata-se de meditar sobre a técnica que na concepção moderna se impõe ao mundo e ao homem, mediante a forma de ciência aplicada ou tecnologia. A técnica, em sua essência, não é algo que o homem inventa, mas algo que lhe advém para compor a própria existência humana no “aí do ser”. Por sua vez, a ciência aplicada e a tecnologia são invenções que, porém, podem ser concebidas ou pela racionalidade instrumental – também denominada de “pensamento de cálculo” – ou pelo pensar meditativo, pelo qual a Ereignis é pensada e o ser advém e é acolhido pelo homem.

O pensar meditativo conduz o homem à serenidade – Gelassenheit –, para acolher o ser, sem esquecê-lo e rememorando-o ao realizar o movimento de desencobrimento e encobrimento. Esse pensar se identifica com o deus que salva, manifesta o divino acolhido pelo homem, mediante a recuperação do vínculo salvador que há de se realizar na experiência da falta desse deus, para que sua chegada seja preparada (BORGES DUARTE, 2014). Por isso, ao se referir ao encontro entre o ser e o homem, a linguagem emerge não apenas na palavra verbalizada, mas também na linguagem em que a arte é apresentada como instância de elevação e culto ao divinum ou sacro.

Nessa esteira fenomenológica, o pensar meditativo em sua condição de “outro pensar” está a levar a cabo a questão do sacro ou do divinum mediante a experiência que se exprime como realidade do doar-se o ser ao homem, abordando o cuidado como forma de atender, zelar, proteger e dar abrigo a esse encontro, mantendo uma postura de espera serena e de abertura para a chegada ou a falta do deus. Por isso, a linguagem (“casa do ser”) poética – entenda-se aqui a arte como um todo –, é tão importante para que a religião do divinum ou do sacro seja experienciada na humanização do homem em seu “aí ser” aberto, iluminado, que desencobre e cobre simultaneamente, com a entrega do homem ao mysterium do sacro (BORGES DUARTE, 2014).

Considerações Finais

Ao propor um dossiê sobre “Fenomenologia da religião: conceito, desdobramentos e aplicação analítica”, pressupõe-se que a abordagem fenomenológica da religião é uma perspectiva real nas pesquisas em diversos programas de pós-graduação stricto sensu, tanto na área de Ciências da Religião e Teologia quanto em outras áreas acadêmicas. Por isso, as investigações têm aumentado quantitativa e qualitativamente à medida que apresentam pertinência e relevância à compreensão da religião como experiência religiosa, analisada fenomenologicamente nas dimensões da história, da antropologia fundamental e cultural, da psicologia e da teologia, especialmente no âmbito da espiritualidade e da mística.

Pretendeu-se aqui apresentar brevemente duas vertentes da fenomenologia, a que se intitulou “fenomenologia arqueológica” e “fenomenologia do divino”, representadas por duas pesquisadoras que têm construído o seu legado e trazido aos estudiosos a possibilidade de analisar a religião na pluralidade de olhares analíticos, na construção do diálogo entre os diversos saberes acadêmicos e na humildade de que o espírito necessita para compreender a religião a partir da experiência que o ser humano realiza – tanto em sua interioridade pessoal própria quanto em sua construção comunitária –, efetivando tradições religiosas e posturas de sentido da existência que apontam a busca do sacro pelo humanum em seu caminho de vida.

Referências

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Como citar este artigo/How to cite this article

GONÇALVES, P. S. L.; FERNANDES, M. L. Fenomenologia da religião: teoria e aplicação. Reflexão, v. 45, e204953, 2020. https://doi.org/10.24220/2447-6803v45e2020a4953

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* Correspondência para/Correspondence to: P. S. L. GONÇALVES. E-mail: paselogo@puc-campinas.edu.br.

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