Fenomenolgia da Religião: conceito, desdobramentos e aplicação analítica

Para uma arqueologia do Espírito na tradição semita: Ruah – Ruha – Ruuh

Toward an archeology of the Spirit in the Semitic tradition: Ruah – Ruha – Ruuh

Marcial MAÇANEIRO *
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil

Para uma arqueologia do Espírito na tradição semita: Ruah – Ruha – Ruuh

Revista Reflexão, vol. 45, e205007, 2020

Pontifícia Universiade Católica de Campinas

Recepção: 23 Junho 2020

Revised document received: 04 Setembro 2020

Aprovação: 05 Novembro 2020

RESUMO: Ao longo dos séculos, no contexto dos povos semitas, as forças atmosféricas se tornaram divindades, com posteriores desenvolvimentos no monoteísmo judaico, cristão e muçulmano. Ainda hoje, ruah em hebraico-aramaico, ruha em siríaco e ruuh em árabe preservam uma conexão direta com os ventos e com as tempestades, vistos como teofania do Deus dos Céus (Il shamê, El shamayim). Este artigo quer rastrear os indícios fenomênicos e perceptivos que estão à origem da compreensão semita dos ventos como divindades, mediante um exercício de arqueologia do Sagrado: análise das narrativas religiosas, a partir da antiga Mesopotâmia, onde assírios, acadianos, hebreus, caldeus e árabes têm suas raízes comuns. Para tanto, foram seguidos três passos: (a) localizar os elementos originários da noção religiosa de sopro-vento, com indicações culturais e terminológicas dos povos semitas; (b) recolher as menções a Vento-Espírito nas fontes judaica, cristã e muçulmana, com análise das ocorrências e sentidos de ruah-ruha-ruuh nos textos sacros e litúrgicos; (c) nas considerações finais, apresentar uma síntese conclusiva sobre a experiência vital que está à origem da compreensão semita de ruah-ruha-ruuh como Espírito divino.

Palavras-chave: Alcorão, Bíblia, Mesopotâmia, Pneumatologia, Povos semitas.

ABSTRACT: Over the centuries, among the Semitic peoples, atmospheric forces have become divinities, with later interpretations in Jewish, Christian, and Muslim monotheism. Even today, ruah in Hebrew-Aramaic, ruha in Syriac, and ruuh in Arabic preserve a direct connection with the winds and storms, seen as the theophany of the God of Heaven (Il shameh, El shamayim). This article seeks to track the phenomenal and perceptual evidence that is at the origin of the Semitic understanding of the winds as deities, by exercising an Archeology of the Sacred – that is, the analysis of religious narratives from ancient Mesopotamia, where Assyrians, Akkadians, Hebrews, Chaldeans, and Arabs have their common roots. We present the theme in three topics: (a) to explain the primitive elements of the religious notion of breath-winds, with cultural and terminological indications from the Semitic peoples; (b) to colect the mentions of Wind-Spirit in Jewish, Christian, and Muslim sources, analyzing the occurrences and meanings of ruah-ruha-ruuh in sacred and liturgical texts; and (c) our final considerations, to present a conclusive synthesis on the vital experience that is at the origin of the Semitic understanding of ruah-ruha-ruuh as divine Spirit.

Keywords: Quran, Bible, Mesopotamia, Pneumatology, Semitic peoples.

Introdução

Judaísmo, Cristianismo e Islã referem-se ao “espírito”, seja como vento e sopro vital presente nas criaturas, seja como atributo divino, com termos correlatos: ruah em hebraico e aramaico, ruha em siríaco, ruuh em árabe. Assim, a noção teológica de “quem” é o Espírito divino nessas religiões levanta a pergunta sobre “o que” é esse mesmo espírito em termos fenomênicos, a partir do sentido originário dos vocábulos e das experiências que estes preservam. De fato, o dado linguístico-semântico não é uma construção arbitrária, nem uma convenção recente: o registro histórico-religioso permite “rastrear” -como diz Ales Bello (2018, p. 101) na esteira de Otto e Husserl – os indícios fenomênicos e perceptivos que levaram os povos semitas a considerar os ventos como espíritos ou divindades do ar. Em termos de Antropologia do Sagrado, trata-se de buscar os elementos originários ou hiléticos – “os objetos culturais e o material sensível” como explica Ales Bello (2018, p. 40) – que estão à origem da linguagem e das narrativas sagradas, ainda remanescentes na interpretação teológica do Vento-Espírito nas religiões abraâmicas.

Esse propósito leva a recortar o tema como circunscrição semântico-vocabular e geo-cultural: de um lado, examinar os textos em que o radical semita r-h constrói palavras e significados solidários entre si (sopro, vento, hálito, ar), nas Escrituras judaica, cristã e islâmica; de outro, escavar a origem desses textos no terreno cultural mesopotâmico, examinando a religião e a mitologia com as quais os assírios, acadianos, hebreus, arameus e caldeus conviveram. Para tanto, organizou-se o estudo em três passos: (a) localizar os elementos originários no terreno circunscrito, com indicações da terminologia de fonte comum aos povos semitas; (b) Vento-Espírito nas fontes judaica, cristã e muçulmana, com análise das ocorrências e sentidos de ruah-ruha-ruuh nos textos sacros e litúrgicos, para recolher os elementos hiléticos ali explícitos ou implícitos; e (c) considerações finais sobre as vivências originárias dos povos semitas em face do Vento-Espírito, manifesto nas potências entre o deserto e o Céu. Desse modo, os tópicos fornecem conteúdos textuais e conexões interpretativas – entre Escrituras, mitologias e vivências originárias – , que permitem compreender o processo hermenêutico que fez dos ventos e das tempestades uma epifania do Espírito Divino.

Em busca dos elementos originários

Partiu-se do exame das fontes textuais, especialmente a Bíblia Hebraica, o Novo Testamento e o Alcorão, lidas em cotejo com as narrativas mítico-religiosas de matriz semita2. Essas fontes permitem situar a análise no campo da terminologia, pelas radicais linguísticas, e no campo geo-cultural, pela circunscrição do território a explorar, com seu epicentro na Mesopotâmia.

No rastro da terminologia

A designação do Espírito de Deus nos textos gregos da Septuaginta e do Novo Testamento é feita especialmente pelo termo pneuma – que significa vento, sopro e ar – seguido de outras metáforas como fogo ou água (Gn 1,2, Sb 1,7, Is 11,2-5, Mt 3,11, Lc 3,16, Jo 7,37-39, At 2,3). O termo pneuma, nesses

2 Para o Antigo Testamento hebraico (= Tanak) usamos: Kittel e Schenker (1997). Para o Antigo Testamento grego: Rahlfs e Hanhart (2006). Para o Novo Testamento grego e latino, usamos a edição bilíngue: Merk (1984). Para o Alcorão, usamos a edição bilingue árabe-italiano: Mandel (2004).

casos, traduz o substantivo hebraico ruah, que tem o mesmo sentido vocabular, porém enraizado no espaço-tempo da cultura semita do Antigo Testamento, de onde brota a compreensão do Espírito Santo no judeo-cristianismo.

O hebraico ruah, por sua vez, equivale a ruha em siríaco e a ruuh em árabe, tendo o mesmo significado de vento e sopro nessas línguas irmãs, como manifestações naturais e metáforas teológicas do Espírito de Deus. A versão siríaca da Bíblia (Peshitta) usa ruha para vento-sopro e ruha de-qudsha para Espírito Santo; o árabe do Alcorão (Quran) usa ruuh para sopro-respiração e ruuh al-quddus para Espírito Santo, compreendido simplesmente como comunicação de Deus, sem nenhuma distinção hipostática, ou como entidade criada, semelhante aos Anjos (AZMOUDEH, 2007).

Longe desse terreno cultural, há a tradução latina spiritus (adotada pela Vulgata) que, estranha à radical semita r-h, deverá recorrer ao sentido original do termo hebraico-aramaico para ser corretamente interpretada toda vez que retratar o Espírito Santo no texto bíblico. Como observa Grollenberg:

A palavra portuguesa “espírito” [e seus correspondentes nas línguas latinas] não equivale à hebraica, que era igual em aramaico – língua falada por Jesus e seus discípulos. O sentido próprio da palavra é vento, sopro. O vento, especialmente o vento tempestuoso, era considerado um dos símbolos mais eloquentes da ação de Deus no mundo. O vento é capaz de se levantar de qualquer parte, desenvolver forças tremendas, agitar águas, transportar dunas e arrancar árvores, sem ser visível

(GROLLENBERG, 1970, p. 320).

Todas as escrituras mencionadas – a judaica (Tanak), a cristã (Novo Testamento) e a muçulmana (Alcorão) – , trazem consigo os indícios da experiência e da compreensão originárias do espírito como princípio vital e potência divina, os quais estão à base das evoluções hermenêuticas e dogmáticas dadas posteriormente nas três Religiões abraâmicas: no Judaísmo, o Espírito é força renovadora e dom profético de Deus; no Cristianismo, é hipóstase divina do Deus Trino, atuante no cosmos e na humanidade; no Islã, é uma entidade espiritual e fidedigna, a serviço do Criador.

Extensão geográfico-cultural

Do ponto de vista geográfico-cultural, há um território que se estende de norte a sul, da Síria à Península Arábica, com o lêmen na extremidade sul; e de leste a oeste, da Mesopotâmia à Península do Sinai, com o Egito a ocidente. Parte desse território coincide com o Crescente Fértil – localizado entre os rios Tigre, Eufrates, Jordão e Nilo – , onde os antigos povos da região encontraram condições de vida sedentária, praticando a agricultura e edificando suas cidades. O epicentro desse território é a Mesopotâmia, ponto de passagem de diferentes rotas comerciais e migratórias ao longo dos séculos, seja rumo à costa mediterrânea, passando pela terra dos Nabateus (capital Petra), seja rumo ao lêmen (capital Sanaa), de onde se acessava a Abissínia. Indo a leste, atravessava-se o Irã, terra dos Medos e Persas, abrindo as portas do Oriente. Por ali, transitaram os soldados de Alexandre Magno (330 a.C.) e, séculos depois, os comerciantes e os diplomatas bizantinos (330 d.C.).

Desde a Idade do Bronze, a Mesopotâmia foi sede de vários povos, que se sucederam no domínio regional e se influenciaram mutuamente: os Sumérios, antes nômades, um dos povos mais antigos da região dos rios Tigre e Eufrates; os Assírios, provenientes do Cáucaso (capital Assur); os Acadianos, vindos do leste (capital Akkad); os Caldeus, tribo árabe vinda do sul (capital Babilônia); os Arameus, tribo pastoril com base em Aram (Síria) e limítrofe com a cidade de Assur; e os Hebreus, literalmente ivrim: aqueles da outra margem do rio, certamente o Eufrates. Com exceção dos sumérios, todos os demais são do grupo étnico-linguístico semita (COTHENET, 1994).

Dessa região, vieram milhares de artefatos religiosos e de inscrições cuneiformes, revelando sua rica literatura religiosa, como observa Díez de Velasco (1998, p. 143):

A primeira literatura da humanidade oferece fascinantes relatos míticos (como a epopeia do herói Gilgamesh em busca da imortalidade, a descrição do paraíso – a Terra de Dilmun – , a descida da deusa Innana-Ishtar ao mundo inferior e o mito do dilúvio), longas orações dirigidas aos deuses (como os hinos a Enlil, a Ishtar ou a Marduk), oráculos e profecias ou rituais (como o rito do Ano Novo ou de restauração de um templo). Esta religião registrada pelos letrados e pelos sábios da época, continuou viva por três mil anos e influenciou inúmeros temas arcaicos e mitológicos que aparecem na Bíblia e que, por seu intermédio, foram transmitidos ao imaginário ocidental.

Dos sumérios até o Segundo Império Babilónico, comandado pelos caldeus, há o longo período de 5000 a 539 a.C., quando Ciro II inaugurou o domínio persa na Mesopotâmia. Desde então, a História testemunhou os domínios persa, grego e romano da região, seguidos pelas conquistas de Alexandre Magno (330 a.C.), pelos califados muçulmanos Omíada e Abássida (661-1519 d.C.), depois sob o Império Otomano (1299-1923 d.C.). Quando este se dissolveu, o Oriente Médio enfrentou o trabalhoso processo de organização dos Estados recentes do Irã, do Iraque, da Síria, da Jordânia e da Arábia Saudita. Ao longo dos séculos, a matriz semita consolidou-se e desenvolveu-se. A rica herança da Antiguidade perdura na formação linguística, religiosa e cultural dessas nações, e há importantes remanescentes aramaicos e caldeus, sobretudo entre os cristãos e os mazdeus. Além disso, o credo islâmico predominante elevou os idiomas árabe (de maioria sunita) e persa (de maioria xiita) a novos patamares da Filosofia, das Ciências e da Mística (SOUZA PEREIRA, 2007).

Sopro-Espírito nas fontes judaica, cristã e muçulmana

O exame terminológico de ruah-ruha-ruuh e de sua versão grega pneuma aqui desenvolvido não é exaustivo, mas obedece ao recorte eleito. A intenção é recolher os dados específicos que permitem individuar, a partir dos textos sacros e de suas conexões com a narrativa mítica, os elementos hiléticos característicos da experiência semita do Espírito e sua interpretação sagrada.

Ruah no Antigo Testamento

A Bíblia Hebraica traz uma pneumatologia de distintos enfoques, chegando até às aproximações com o pensamento grego, na concepção de ruah (pneuma/espírito) como hokmá (sophia/sabedoria), com acentos cósmicos e psicológicos, nos livros de Provérbios, de Eclesiastes e de Sabedoria (Prov 8, Ecl 2, Sb 1-9). Contudo, a filologia e os atributos de ruah preservam os componentes do que se pode caracterizar como experiência arcaica do vento-sopro. Baumgartel (1971) ajuda a elencar os componentes mais sugestivos:

Nesse elenco, encontram-se referências espaço-temporais coerentes com o ambiente mesopotâmico e/ou médio-oriental. A começar pelas indicações atmosféricas e climáticas: vento violento, potente, tempestuoso, furacão, forte, borrascoso, escaldante e cáustico, ardente ou tórrido. Os contrapontos mais evidentes são a secura e o calor, de um lado (tórrido, escaldante, ardente), e as tempestades chuvosas, do outro (tempestuoso, borrascoso, furacão). Assim, os adjetivos denotam uma percepção arcaica, mas real, das estações do ano.

Em seguida, há indicações geográficas, com destaque para os quatro pontos cardeais: vento do Norte, do Sul (= do deserto), do Leste e do Oeste (= do mar). A forma arcaica de nomear os pontos cardeais faz uso dos “quatro ventos, das quatro extremidades do Céu [ha-shamáyim]” – e não da Terra – evidenciando, assim, uma herança da Astronomia suméria e babilónica, que observava os Céus para traçar mapas e rotas terrestres. Um sinal de recepção dessa herança está na semitização do deus solar sumério Utu, chamado Utu Shamê (Sol dos Céus) pelos hititas, depois assimilado como Shamash (deus Sol) em assírio, como Shamesh (astro Sol) em hebraico, e como Shams (astro Sol) em árabe. O Sol antes adorado no Irã, é cultuado pelos semitas mesopotâmicos, depois pelos egípcios, tornando-se “o deus universal por excelência” (ELIADE, 2010, p. 77)3. Note-se que há duas composições a partir da radical semita sh-m para o Céu: combinada com mayim (águas), resultando em shamayim (Céu de Águas), isto é, o firmamento onde residem as míticas águas superiores; e combinada com esh (fogo), resultando em sham-esh (Céu de Fogo), expressão usada para nomear o Sol.

Cabe destacar que a “Epopeia de Gilgamesh” – o herói mesopotâmico do dilúvio, de 3000 a.C. na versão suméria – , também fala dos ventos como espíritos do ar. A versão assíria de Gilgamesh (800 a.C.) nomeia o deus solar Utu na forma semítica Shamash, descrito como justo e favorável à humanidade. Ele se compadece de Gilgamesh e lhe envia, em socorro, as entidades aéreas: “Os [dois] ventos poderosos, o vento do Norte, o furacão, o temporal, o vento gélido, a tempestade e o vento cáustico” (SANDARS, 2001, p. 106). Os “ventos poderosos” podem ser o vento do Leste e do Oeste, somando o total de “oito ventos” (SANDARS, 2001, p. 47). Esses ventos são mencionados no Antigo Testamento e reaparecem no Alcorão, como veremos, com as mesmas características.

Nas referências hebraicas ao vento, há também indicações vitais e corpóreas, como respiração e sopro vital. A expressão “sopro de Deus sobre toda carne” atesta a fé judaica em Adonai como divindade criadora e doadora da vida. Nesse caso, “sopro de Deus” vem expresso com dois Nomes: Yhwh – o Tetragrama impronunciável revelado a Moisés no alto do Sinai, às vezes abreviado como Yah; e Elohê – a forma semita do deus cananeu El, derivado da forma arcaica Ilu, que perdura no árabe Il (Deus) e al-Ilah (O Deus, com artigo indicativo), donde a contração Allah (nominativo). O Pentateuco usa também o plural Elohim; o aramaico bíblico diz Elahá; e o siríaco usa a variante Alahá, presente até hoje na liturgia cristã dos sírios e dos caldeus (ELIADE, 2010; CHABBI, 2016).

O Salmo 104 menciona os melakhim (mensageiros/anjos) como seres literalmente feitos de ruhot (ventos), revelando um procedimento teológico do judaísmo: transformar as divindades atmosféricas do Oriente Médio em simples servos de Yahweh, o Deus Único de Israel. A estrofe apresenta Yahweh como Senhor de todos os elementos da Criação:



Yahweh, Deus meu, como és grande:
vestido de esplendor e majestade.
envolto em luz como num manto,
estendendo os Céus [shamayim] como uma tenda,
construindo sobre as águas celestiais tuas altas moradas;
tomando as nuvens como tua carruagem
caminhando sobre as asas do vento;
fazes dos ventos [ruhot] teus mensageiros [melakhim],
e das chamas de fogo, teus ministros!

Fonte: (Sl 104,1-4).

Como as citações bíblicas mostram, o vento é um fenômeno admirado por seus efeitos climáticos e atmosféricos: sopro vital, vento criador, enviado por Deus sobre toda carne, o qual sopra nos quatro pontos cardeais (totalidade da Terra) e segue o ciclo das estações. Por isso, os ventos eram considerados gênios e espíritos do ar na antiga religião iraniana, mesopotâmica e árabe pré-islâmica. Os sumérios e babilônicos adoravam Enlil, senhor “da terra, do vento e do ar universal; essencialmente, Espírito; o deus que executa as vontades e as funções de Anu [o deus celeste]” (SANDARS, 2001, p. 170). No antigo Irã, Zoroastro admitia a existência de sete amesha spenta (entidades santas) emanadas do divino Ahura Mazda, entre as quais o Spenta Mainyu, Santo Espírito ou Benéfico Espírito. Mediante esse Benéfico Espírito, o supremo Ahura Mazda conduzia a Criação e a defendia contra o Angra Mainyu, o Maligno Espírito (GNOLI, 1995).

Esse dualismo entre os Espíritos benéfico e maligno estende-se aos demais elementos da natureza: fogo, água, terra e ar. Há uma infinidade de ratu (patronos) e de devas (divindades secundárias) associadas aos quatro elementos, vistos de modo dualista: para cada manifestação natural do fogo, água, terra e ar, há uma respectiva entidade transcendente. Disso resulta a forte “tendência à angelização” dos elementos naturais, “característica constante da religião iraniana” (GNOLI, 1995, p. 159). O dualismo entre matéria e espírito levará à separação dos elementos entre densos (terra e água) e sutis (fogo e ar), que devem manter-se intocáveis entre si nos ritos do Mazdeísmo (religião de Ahura Mazda).

Sobretudo, fogo e ar se distinguem: o fogo é mantido aceso em piras sagradas como “símbolo e epifania do eterno poder de Ahura Mazda, da força da vida sobre a morte, da luz da inteligência que aniquila a obscura ignorância” (GNOLI, 1995, p. 144). Por outro lado, o ar e os ventos são considerados um espaço hierofânico, no qual as divindades celestes se manifestam e interferem na vida humana. Acima, está o Sol – representante de Ahura Mazda – , que refulge e domina com seu clarão; abaixo, estão a terra e as águas, elementos densos; no intermédio, estão o ar e os ventos, espíritos sutis que permitem a comunicação entre os deuses e os humanos. Por isso, o Mazdeísmo remete ao alto, observa a abóbada celeste e ergue suas torres do silêncio onde são deixados os mortos para se decompor ao vento (GNOLI, 1995).

Nesse cenário sagrado, o ar e os ventos assumem o papel de mensageiros de Ahura Mazda – melakhim em hebraico, malaika em árabe, angheloi em grego – , pondo em marcha a “angelização” das entidades atmosféricas, que passam a constituir extratos secundários de divindades, logo abaixo dos deuses urânicos do alto firmamento.

O Salmo 104 atesta que essa “angelização” deu-se também no judaísmo, para rebaixar o estatuto dos espíritos do ar. Diante do Deus de Israel, como diz Gazelles, “as antigas divindades cósmicas (ventos) ou locais (Lahai Roí em Gn 16,13-14) não são mais que mensageiros, male’akim ou anjos do Senhor, às vezes portadores de sua Palavra como embaixadores dos tempos ou das divindades inferiores” (GAZELLES, 1994, p. 496). Além do Salmo 104, a “angelização” dos espíritos aparece na experiência de Daniel, um servo hebreu na corte da Babilônia: após ter visões enigmáticas, ele orava diretamente a Deus para que as explicasse, mas quem vinha revelar o significado era o Anjo Gabriel, identificado como espírito de profecia e de revelação, a mando de Yahweh (Dn 8,15-19 e 9,20-23).

Por fim, as citações do Espírito no Antigo Testamento trazem uma reminiscência mítica: sopro divino que “halita sobre o abismo” (Gn 1,2). O verbo rahef (halita) pode ser traduzido como “sopra brandamente” ou “cobre de hálito quente” . É um traço da antiga cosmogonia babilônica, que descreve a criação do mundo como um abismo aquático aquecido pelo hálito de uma divindade superior, geralmente urânica. O poema assírio-acadiano Enuma Elish menciona “a imagem primordial de uma totalidade aquática não diferenciada, em que se distingue apenas o primeiro casal, Apsu e Tiamat” (ELIADE, 2010, p. 77). Outras fontes descrevem “o caos aquático” como um “oceano primordial formado por Apsu e Tiamat: o primeiro personifica o oceano de água doce sobre a qual, mais tarde, flutuará a Terra; e Tiamat é o mar salgado e amargo povoado de monstros” (ELIADE, 1968, p. 167).

O mito prossegue com a separação das águas e com sua posterior união, a qual engendra deuses superiores e deuses inferiores, depois com a luta entre seus descendentes, até a criação da humanidade por ação de Marduk, o deus patrono da cidade de Ur. Semelhante ao relato do Gênesis, a criação começa com a luz e termina com a humanidade; há, nos céus, as águas superiores; na terra, as águas oceânicas; e abaixo da terra ficam as águas inferiores. Em hebraico, as águas abissais são chamadas tehomê, com as mesmas radicais que Tiamat. Já a criação da humanidade a partir do barro remete a uma versão mitológica anterior, testemunhada na “Epopeia de Gilgamesh”, o herói da saga. Seu companheiro de aventura, Enkidu, foi moldado em argila por Aruru (deusa da criação), segundo a imagem e a essência de Anu (deus do Céu), e com os traços de Ninurta, deus da guerra e das nascentes, também descrito como Vento do Sul. O personagem Enkidu “representa o homem selvagem e natural” (SANDARS, 2001, p. 169), semelhante ao terrenal e edênico Adamá (Adão), literalmente o terroso modelado por Deus (Gn 2,7).

Pneuma no Novo Testamento

O Espírito Santo (Pneuma Hagiós) e o espírito em sentido antropológico (pneuma) são tratados na extensão do Novo Testamento, com ênfases distintas nos autores sinóticos, nos escritos joaninos, nas Cartas paulinas, nas outras Cartas apostólicas, em Hebreus e no Apocalipse. É um tema culturalmente rico e teologicamente relevante para a fé cristã, como indicam os estudos de Schweizer (1971), Heitmann e Mühlen (1977), Congar (1995), Moltmann (2010) e Codina (2010). A pneumatologia se desenvolve e se robustece com a releitura das fontes judaicas à luz do evento pascal de Jesus Cristo, professado como Palavra do Deus Salvador (lesoús/Yêshuah) e Messias pleno de Espírito Santo (Christós/Mashiah). Como sugerido no próprio nome do Redentor, o Espírito Santo não é considerado à parte, nem em terceira posição depois do Pai e do Filho, mas em diálogo direto com a Pessoa de Jesus. No Novo Testamento há uma pneumatologia de dimensões cristológicas e uma cristologia de dimensões pneumatológicas, resultando na “mutualidade trinitária entre o Espírito e o Filho de Deus” (MOLTMANN, 2010, p. 76). A partir de Pentecostes, a manifestação do Espírito em Jesus tem sua continuidade no testemunho, na missão e na vitalidade carismática da Igreja: cheios do Espírito Santo, os crentes reconhecem e proclamam o Ressuscitado (At 2,14-36 e 7,1-53). De fato, a teologia neotestamentária do Espírito Santo é um caso fascinante e promissor, que em muito supera as páginas deste artigo.

No presente tópico, buscam-se os elementos hiléticos da experiência pneumática do Novo Testamento, que é o recorte temático. Os primeiros indícios encontram-se na recepção que os textos fazem da pneumatologia herdada de Israel, pois, embora redigido em grego, o Novo Testamento guarda o substrato judaico-arameu do cristianismo nascente, familiar não só ao cenário cultural palestino, mas a Jesus e a seus primeiros discípulos em pessoa. Esse substrato ora se mostra, ora se oculta, nos vários relatos evangélicos e epistolares, dialogando com a cultura helênica dos gentios (como em Paulo) ou elaborando a releitura messiânica da fé de Israel (como em Hebreus):

O trocadilho “o sopro onde quer sopra” (Jo 3,8) cabe também no aramaico falado por Jesus, pois ruah é simultaneamente vento e sopro. Nesse caso, não há adjetivos de poder aplicados ao vento, mas há uma indicação da sua mobilidade percebida por audição: “O sopro/vento onde quer sopra, e ouves o seu ruído; mas não sabes de onde vem nem para onde vai” (Jo 3,8). O trocadilho é intencional, com fim didático ao modo de uma breve mashal (parábola ou comparação usada pelos rabinos): “Assim acontece com todo aquele que nasceu do Vento/Espírito” (Jo 3,8). Desse modo, a percepção teológica serve-se da percepção sensível do vento para descrever a liberdade dos que são regenerados pelo Sopro Divino. A regeneração é expressa como “nascer de novo” ou “do Alto” (Jo 3,3), que são “duas traduções possíveis do grego anóthen” (MOLLAT, 2013, p. 1847). Ambas desembocam no “nascer da água [hydos] e do Vento [pneuma]”, dito logo em seguida (Jo 3,5). Isso é interessante do ponto de vista hilético, porque essas traduções rememoram dois loci de experiências originárias: o abismo, com suas águas inferiores; e a tempestade, com suas águas superiores.

O abismo é o caos profundo, o lugar das águas subterrâneas, sobre as quais paira o Espírito Divino que ativa a força regenerativa desse obscuro oceano (Gn 1,2). Nessa profundeza, os seres mergulham, dissolvem-se e dali renascem. Pela dynamis do Espírito Santo, as águas abissais se tornam útero que gera e regenera. “Nascer da água e do Espírito” é “nascer de novo” do caos e da decomposição, como “nova criatura” (Jo 3,3-5; 2Cor 5,17). Isso indica a passagem originária de todo novo princípio, comparável a uma páscoa primordial, a um recomeço “ab origine” (ELIADE, 1968, p. 170). No mito sumério-babilônico, o abismo é Tiamat, deusa do oceano profundo. Na fuga de Jonas pelo Mar de Társis, ele cai no abismo e é engolido por um monstro marinho, por três dias e três noites; dali ele sai e toma o caminho de Nínive (Jn 2, mais uma vez em terreno mesopotâmico). No judaísmo, a passagem pelo abismo é ritualizada no mergulho de purificação (mikva), em piscinas muitas vezes cavadas na rocha, e os essênios realizavam “abluções” para serem “purificados pelo Espírito de Santidade” (Regra de Qumran: 1QS IV,20-21b, apudPOUILLY, 1992, p. 51). O kerigma de Pedro diz que Jesus desceu às profundezas (hades) e de lá ressuscitou em três dias (At 2,29-36). Os cristãos participam da morte e da ressurreição do Messias, imergindo no “banho da regeneração e da renovação pelo Espírito Santo” (Tt 3,5), efeitos do batismo em total correspondência com o “nascer da água e do Espírito” dito por João. De seu lado, Paulo é ainda mais explícito quanto à passagem da morte à vida, através das águas abissais: “Pelo batismo nós fomos sepultados com Ele na morte, para que, assim como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova” (Rm 6,4). Nessa perspectiva de vida nova incluem-se as metáforas do Espírito Santo como água e torrente (Jo 4,14; 7,37-39); o sentido teológico se desenvolve a partir da necessidade do oásis (wahat em árabe) e dos riachos sazonais (wadi em árabe) para a vida dos povos semitas, que dependiam dramaticamente dos recursos hídricos disponíveis.

A tempestade, por sua vez, remete ao Alto Céu, onde estão represadas as águas diluvianas, de onde caem rumorosas, agitadas pelo Espírito de Deus. Note-se que o dilúvio acontece tempestivamente, com a finalidade de purificar e regenerar a Terra. Enquanto as águas abissais recriam ab origine, as águas diluvianas recriam ab alto a partir da força pneumática do Sopro Divino: “nascer do Alto” (Jo 3,3; cf. também Is 32,15; Lc 24,49. Para os semitas, a tempestade se opera pelo encontro entre o fogo (esh) e as águas superiores (mayim), elementos que se unem no termo hebraico para o céu: shamáyim. Cabe, porém, às divindades atmosféricas administrar o furor que resulta desse encontro: “Enlil, deus do ar e do vento; Ishtar, deusa da tormenta; Gigil, deus do fogo; Adad, deus do clima” (DÍEZ DE VELASCO, 1998, p. 141). No Novo Testamento, o Pneuma Hagíos (Espírito Santo) é o único agente divino dessas manifestações, suplantando teologicamente as divindades atmosféricas dos antigos povos. A exceção dos anjos, que Deus criou dos ares (Sl 104,4), todos os demais aeríou pnêumatoi (espíritos aéreos) são considerados diabólicos pelo Judaísmo da época dos Apóstolos. Paulo, que era rabino, adverte os cristãos sobre as invectivas pecaminosas das exousías tou aéros (poderes do ar), em alerta contra o pnêuma maléfico que conduz à apeitheia (desobediência), como lemos em Efésios 2,2.

Elementos de tempestade estão presentes no Dia de Pentecostes, o quinquagésimo dia após a Páscoa: Lucas diz que o Espírito Santo desceu do Céu com um échos hôster (eco rumoroso) semelhante a um pnôes biáias (sopro forte de vendaval). Então, chovem do Alto as glôssai hosêipyros (línguas como que de fogo), que se espalham sobre os presentes reunidos (At 2,2). Nesse caso, vendaval e fogo são os elementos tempestuosos em destaque, interpretados escatologicamente como “o Espírito divino derramado sobre toda carne” (At 2,17 citando Joel 3,1). O destaque para o fogo – não para a água como no texto joanino (Jo 4,14; 7,37-39) – é um elemento judaico que indica julgamento e purificação (SCHWEIZER, 1971). Em última instância, o fogo é metáfora do próprio Espírito de Deus, que toca os presentes, plenifica-os, capacita-os com a habilidade de falar línguas estrangeiras e, finalmente, envia-os a testemunhar a Nova Aliança (Mt 3,11; Lc 3,16; At 2,5). Todos esses elementos compõem uma teofania, uma manifestação do Divino, identificado como o Deus da Aliança, plenamente revelado por Jesus. Isso se mostra nas reminiscências de Pentecostes com a teofania do Sinai: aos cinquenta dias depois da Primeira Páscoa, Moisés sobe ao monte; o Eterno lhe fala das chamas do espinheiro em fogo, então, Elohim se revela como Yahweh e o envia a testemunhar a Aliança perante o faraó, os demais egípcios e os seus irmãos hebreus (Êx 3,13-14).

Ruha na liturgia siríaca

Os cristãos siríacos atualmente são representados por duas comunidades: a Igreja Sírio-Ortodoxa de Antioquia, com sede histórica em Damasco, na Síria, e a Igreja Assíria do Oriente, com sede histórica em Derbil, no Iraque. Ambas utilizam o siríaco (variante do aramaico) como língua de culto, com traduções em árabe e em outras línguas modernas. Há ainda duas expressões dessa tradição em comunhão canônica com a Igreja Católica: a Igreja Caldeia Católica, formada por assírio-orientais reconciliados com Roma, com sede em Bagdá, no Iraque, sob o título de Patriarcado de Babilônia dos Caldeus; e a Igreja Maronita, tipicamente libanesa, com sede em Bkerke, no Líbano, sob o título de Patriarcado Maronita de Antioquia (DALMAIS, 2007).

Quanto ao presente tema, a tradição siríaca preserva elementos milenares na abordagem teológico-litúrgica do Espírito Santo. Certamente, no contexto geral das fontes, da terminologia e dos usos litúrgicos, há alguma influência grega, em decorrência dos Concílios Ecumênicos e do debate doutrinal com a sede de Constantinopla. Contudo, os elementos semitas são visíveis no rito e na linguagem, em parte graças à já mencionada Peshitta – tradução siríaca da Bíblia.

A começar dos textos bíblicos, enquanto pneuma é de gênero neutro em grego, e spiritus é masculino em latim, o siríaco mantém o gênero feminino para ruha. O Espírito Santo é traduzido como Ruha de-Qudsha, com “adjetivo feminino mais evidente na forma Ruha’k Qaddishta (Sl 50,13), ainda que seja menos usual” (BROCK, 2006, p. 253 101). Nisso se mantém a concordância com o hebraico ruah ha-qodesh e com o árabe ruuh al-qudshu ou al-quddus (substantivo), também no feminino. Aliás, a versão árabe para Espírito Santo é tomada do aramaico (AZMOUDEH, 2007).

Conceber o Espírito de Deus como feminino é coerente com seus efeitos de novo nascimento, de consolação e de doação amorosa (Jo 3,5-7; Jo 14,16-17; Rm 5,5). Nesse sentido, Brock observa que, além da Bíblia, outras fontes da literatura cristã do Norte da Mesopotâmia invocam o Espírito Santo como “Mãe” . Um prestigioso exemplo vem do teólogo e mestre espiritual Afrahat (270-345 d.C.). Nas suas Homilías sobre as Bem-aventuranças, ele exorta os que escolheram seguir a vida monástica, e diz: “[Vossa escolha] é justa e apropriada, meus filhos, pois deixastes para trás tudo o que é temporal, abandonando tudo por causa de Deus: em vez de um pai terreno, buscais o Pai celeste; em vez de uma mãe sujeita à queda, tendes por Mãe o excelso Espírito de Deus” (AFRAHAT apudBROCK, 2006, p. 251). E o apócrifo siríaco Atos de Tomé traz essa invocação ao Paráclito: “Vem, ó Dom supremo, vem ó Mãe compassiva” (seção 27); “Acima de todo nome, vos invocamos como Mãe” (seção 133) (AFRAHAT apudBROCK, 2006, p. 252).

Outro dado interessante é a epíclese, que invoca o Espírito Santo a “halitar” (ruhhapa) sobre as oferendas. O verbo é usado na conjugação rahhep (assoprar calidamente) em correspondência exata com rahef de Gênesis 1,2 em hebraico (BROCK, 2006). Também se pede ao Espírito Santo que “voe sobre” (ttas) para abençoar, evocando o símbolo pneumatológico da pomba (Mc 1,10 e Lc 3,22) que voou sobre Jesus (BROCK, 2006). O rito antioqueno usa ainda o verbo shamli (plenificar), de raiz próxima a shamê (céu atmosférico), com o sentido de preencher-se do Sopro de Deus à semelhança do ar que preenche o espaço em que se respira (BROCK, 2006).

Rih e Ruuh no Alcorão

O ar, considerado como vento, é rih em árabe, com o plural riyah – da mesma radical que ruuh: sopro, fôlego e novamente vento, em alguns casos. Semelhante ao hebraico e ao aramaico, os termos rih (vento) e ruuh (sopro) são substantivos femininos. Os elementos hiléticos são vários, aqui elencados a partir dos estudos de Toelle (2007):

Há também o caso particular dos ventos potentes al-’assifat nas Suras 18,45 e 77,2 precisamente, com o sentido de castigo ou de punição. Esses ventos “prejudicam a navegação e a agricultura e atiçam o fogo, quando se trata de exterminar um povo que, em virtude de sua iniquidade, acaba por esgotar a paciência divina” (TOELLE, 2007, p. 34). Com essas características, o Alcorão narra o castigo divino sobre as tribos de Ad e Thamud (Sura 69,4-8) e sobre “a cidade de Lot” (Sura 9,70: a Sodoma de Gn 19). Exemplo semelhante é o uso pedagógico que Allah faz dos ventos, enviados como sinal de advertência aos orgulhosos que desprezam o favor divino, ou em reação aos ímpios que praticam a injustiça (Suras 3,117; 2,266; 14,18). Há ainda o caso do samum (Suras 52,27 e 56,42): o vento escaldante e fétido que sopra no Inferno, imaginado a partir do vento tórrido e sufocante das tempestades de areia, com mesmo nome em árabe e em dialeto beduíno: samum. Contudo, nos textos corânicos:

[...] a função dominante dos ventos – na sua grande maioria citados no plural [riyah] – é positiva: mover as embarcações e favorecer o bom resultado das empresas humanas; suscitar e transportar as nuvens de chuva às terras sem água, dando de beber às pessoas e aos animais (Sura 15,22); além de fazer eclodir a variedade da flora

(TOELLE, 2007, p. 34).

Como diz o Alcorão: “Allah envia ventos benfazejos como prenúncio de sua misericórdia: esses carregam densas nuvens, que Nós conduzimos até uma terra árida e delas fazemos descer a água, pela qual produzimos toda sorte de frutos” (Sura 7,57).

Os ventos têm ainda “a tarefa de espalhar os detritos da vegetação morta no seio da terra, onde ficam até que as chuvas os revitalizem” (TOELLE, 2007, p. 34). Isso acontece efetivamente quando os ventos tempestuosos varrem o chão, solevam a areia e deixam à mostra o que estava enterrado, como raízes, troncos e ossos ressequidos. Assim, Deus revela a fragilidade das criaturas e suscita vida nova, com a força do seu Sopro-Espírito. É o que ensina o verso 57, numa advertência final: “Meditai! Pois do mesmo modo hei de ressuscitar os mortos” (Sura 7,57: compare-se com Ez 37,1-6).

Outro aspecto a considerar é a teologia islâmica da Revelação: Allah é uma divindade pessoal (al-Ilah), que profere a Palavra (am’r) e propõe uma aliança com toda a humanidade (mitaq). Recordado e invocado por seus 99 “mais belos Nomes” (asma al-husna: Sura 59,22-24), ele é ontologicamente O Uno (Ahadu: Sura 112). Os atributos revelam sua diversidade de ação, sem romper sua unidade de Ser, tal qual o Elohê dos hebreus. Como mencionado acima, a radical semita I-L (pronunciada El pelos cananeus) aponta ao eterno Ilu, que significava essencialmente “deus” para os mesopotâmicos em geral. Esse Nome é assumido pela tradição judaica e muçulmana a partir da fé de Abraão, como um marco histórico-religioso: Abraão representa o crente monoteísta (hanif em árabe), que abandona as centenas de divindades nomeadas e figuradas no culto dos assírios e caldeus para devotar-se ao Único e Eterno El. Há aqui a concepção de um Deus pessoal, que é altíssimo em sua santidade (qedushá em hebraico, qadassa em árabe), porém próximo em sua misericórdia (raham em hebraico, rahma em árabe). Esse é o Deus de Abraão, onipotente, compassivo e fiel (Gn 14,19-20; 17,1-2), invocado como Clemente e Misericordioso no Islã: al-Rahim wa’l-Rahman (Sura 1).

A unidade ontológica de Allah não permite concessões; é uma unidade radical, sem espaço para entidades divinas associadas a Ele. A palavra que dele procede (am’r) não constitui nenhum Verbo por geração intra-divina, mas expressa tão somente Sua vontade e soberania. Os profetas cumprem a palavra divina como “declaração verbal” (kalima) do próprio Allah e, nesse sentido, Jesus é elogiado no Alcorão como Kalima (Pronunciamento de Allah) e Massih (Eleito ou Enviado de Allah), um profeta escolhido e atestado por Allah através do milagre de ter nascido de Maria, sem pai humano (Sura 19,20). No Alcorão, Allah diz que Jesus é uma criatura nascida “mediante nosso espírito” (min ruhina: Sura 66,12): aqui, “o ruuh de Deus que opera a concepção do menino é um sopro intemporal e não o Espírito Santo, terceira pessoa da Trindade do cristianismo” (URVOY, 2007, p. 439).

Na verdade, suplantar qualquer vestígio da Trindade com a afirmação da Unidade (tawhid) de Allah é um procedimento simplificado por Muhammad no Alcorão, pois ele nunca refletiu sobre a doutrina cristã de Deus com as categorias gregas usadas nos Concílios de Éfeso, de Nicéia e de Constantinopla (KÜNG, 2010). As polêmicas monofisitas traziam confusão, mostravam um cristianismo dividido e sugeriam que era melhor aproximar-se do monoteísmo dos judeus de Medina. Esse é o ambiente teológico de Muhammad que, além do mais, parece confundir a Trindade Divina com uma família de três deuses, os quais seriam “Deus, o Pai; Maria, a mãe de Deus; e Jesus, o filho de Deus” (KÜNG, 2010, p. 575).

Já a crença de que existem entidades angélicas a serviço de Deus, denominadas individualmente ruuh (espírito), mostra que o processo de “angelização” deu-se também na formação do monoteísmo islâmico: ruuh pode indicar a respiração natural, dádiva do Criador aos humanos (Suras 15,29; 32,9; 38,72); pode ser o cumprimento de uma ordem divina (Sura 42,52); ou uma comunicação pessoal de Allah, portanto o “sopro santo” (ruuh al-quddus) que acompanha a sua palavra (Suras 2,87; 2,253; 5,110; 16,102); e pode também significar os malaika (anjos), criados a partir do ar (Sura 26,192-194; 70,4; 78,38; 97,3-4). Acima dos humanos e dos anjos está a divindade celeste, Rabb al-samawat – Mestre ou Governante dos Céus (Sura 37,5). Esse título foi incorporado por Muhammad, no Alcorão, como um dos Nomes de Allah, mas remonta a uma “primitiva divindade da região de Meca” adorada pelas tribos locais como “criadora da humanidade, do céu e da terra” (CHABBI, 2016, p. 170).

Quanto à identificação de ruuh al-quddus com o Anjo Gabriel, não é uma afirmação explícita do Alcorão, mas da tradição posterior. Em 800 d.C., a Suna diz: “na noite do Decreto [da Revelação divina a Muhammad] desceram os anjos e o Espírito, ou seja, Gabriel” (AL-BUHARI, 2009, p. 258). Essa interpretação é aceita pela exegese tradicional e pela mística, sobretudo entre os muçulmanos persas: “A Gabriel denominamos Espírito de Santidade” – como dito no “Tratado dos Nomes Divinos III”, Cap. 3, tópico 1 (AL-RAZI, 2009, p. 333); também no “Masnavi III”, tópico 17 (RUMI, 1984, p. 186). Apesar da tradição, essa opinião teológica é criticada pela exegese corânica recente: o Alcorão reconhece um “espírito de santidade” da parte de Deus, mas identificá-lo pessoalmente com Gabriel é uma “leitura que extrapola o corpus corânico” (CHABBI, 2016, p. 69). Ruuh al-Quddus expressa a dádiva objetiva da revelação de Deus a Muhammad: é “o Espírito enviado por Nossa ordem (am’r)” (Sura 42,52), ou seja, “o Espírito de Revelação” que fala “como Voz interior vinda de Deus” – não fruto da imaginação do Profeta – mas “em total alteridade, distinta de sua consciência pessoal no ato da Revelação” (RAHMAN, 2009, p. 98). Não se trata de um anjo, mas do Dom profético concedido por Deus.

Apreciação dos dados colhidos

Do ponto de vista hilético e fenomênico, os dados indicam – como observa Eliade – , que “o altíssimo, o fulgurante e o céu são as noções que têm sido usadas, mais ou menos manifestamente em termos arcaicos, por meio das quais os povos, as civilizações, exprimiam a ideia de divindade” (ELIADE, 1968, p. 48, grifos do autor). Ainda,

A transcendência divina se revela diretamente no inacessível, infinito, eterno, e na força criadora do Céu (a chuva fecundante). O modo de ser celeste é uma hierofania inesgotável. Por conseguinte, tudo o que acontece nos espaços siderais e nos estratos superiores da atmosfera – a órbita ritmada dos astros, a movimentação das nuvens, as tempestades, o trovão, os meteoros, o arco-íris – constituem momentos desta mesma hierofania

(ELIADE, 1968, p. 48).

No passado longínquo das primeiras civilizações, como entre sumérios e semitas, essas manifestações hierofânicas começaram a ser nomeadas e personificadas como entidades sagradas de caráter urânico: o Céu superior e o Sol radiante ganham atributos “de força, de criação, de governo e de soberania” (ELIADE, 1968, p. 48). A divindade altíssima é invocada como Ilshamê (assírio), Elohêshamayim (hebraico), Ilah al-sama (árabe tribal) e Rabb al-samawat (árabe corânico) com o sentido de Governante dos Céus: todos os demais fenômenos do ar se tornam ruiyah (árabe) ou ruhot (hebraico), ou seja, ventos e espíritos intermediários, sob seu divino comando. Por tais ventos, o Altíssimo insufla a vida nos corpos, assegura a fertilidade da Terra e envia sua palavra. Então, ruah-ruha-ruuh se torna sopro vital, vento fecundante e mensageiro divino, de forma que “as divindades atmosféricas constituem uma especialização das divindades celestes” – na variedade dos ventos, furacões, chuvas e brisas – “sem, contudo, perder seu caráter urânico, sempre classificadas ao lado das divindades celestes propriamente ditas” (ELIADE, 1968, p. 80).

Considerações Finais

A compreensão semita do Espírito inclui (na sua origem) e remete continuamente (na sua evolução) ao sopro sutil e ao vento impetuoso como realidades objetivas, de movimento e de efeito reconhecidos no clima, na terra e nos corpos vivos. Não se reduz jamais a um conceito definido por abstração, ou emanação de uma entidade metafísica de fora do cosmos, como entende a Gnose. Mesmo quando atribuem caráter divino ao ar e ao vento, os semitas o fazem a partir das potentes manifestações naturais, cuja força impacta e aponta para o Céu Infinito, com seu extrato superior (o firmamento: shamê, shamayim) e com seu extrato intermédio (a atmosfera: ruhot, riyah). Esse espaço intermédio é habitado pelos ventos brando ou tempestuoso, gélido ou tórrido, fecundante ou devastador, do Oriente iraniano ou do Ocidente mediterrâneo, como se lê na Bíblia e no Alcorão, com várias remissões assírio-babilônicas, como visto na “Epopeia de Gilgamesh” .

Portanto, à sua origem, os termos ruah (hebraico-aramaico), ruha (siríaco) e ruuh (árabe) têm o habitat próprio dos fenômenos atmosféricos médio-orientais que significavam vida ou morte para as populações locais. Enquanto os povos de floresta – como na Índia, África Central e Américas – exaltam as energias da vegetação, dos rebanhos e dos rios caudalosos, que os nutrem sob o raiar do Sol, os povos semitas exaltam a força da luz e do trovão, dos relâmpagos e dos vendavais, os quais se manifestam entre o deserto e o céu. Daí a presença desses fenômenos nas teofanias bíblicas (Êx 19,16-19; 1Rs 19,11-14; Sl 97,1-5).

Na perspectiva semita, a brisa ou a tempestade, e o frescor ou o vento tórrido, incidem diretamente nas possibilidades de chover ou de estiar, de inundar ou de secar, de florescer ou de fenecer, de respirar ou de sufocar. Enquanto potências aéreas acompanhadas de chuva e de relâmpago, os ventos determinam vida ou morte e apontam misteriosamente à Divindade Celeste que os governa (Elohê há-shamáyim, Ilah al-sama, Rabb al-samawat).

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Notas

3 Acrescentamos o interessante caso dos iorubás e nagôs da África, que denominam a divindade universal de Ol, o firmamento estrelado de Orum, e o ar atmosférico de Samó, em plena correspondência com as radicais semitas: e-l(divindade), o-r (luz celeste) e s-m (céu atmosférico): um caso a estudar (PRANDI, 2007).
Como citar este artigo/How to cite this article MAÇANEIRO, M. Para uma arqueologia do Espírito na tradição semita: Ruah – Ruha – Ruuh. Reflexão, v. 45, e205007, 2020. https://doi.org/10.24220/2447-6803v45e2020a5007

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