Artigo
Demonstração metafísica e física em Descartes
Metaphysical demonstration and physics in Descartes
Demonstração metafísica e física em Descartes
Revista Reflexão, vol. 45, e204871, 2020
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Recepção: 23 Março 2020
Aprovação: 28 Maio 2020
Resumo: A partir de uma análise do uso da demonstração na metafísica cartesiana se constrói uma reflexão sobre um pensamento sistemático que se ergueu a partir das “Regras para a direção do espírito”. A metafísica cartesiana, ao formar a base para qualquer tipo de conhecimento, é, sobretudo, uma preparação para o desenvolvimento de um conhecimento sistemático da experiência sensível. Seus princípios determinam a construção de uma física óptica, formando uma base segura para a construção do conhecimento com garantia metafísica. O movimento, então, é a unidade de medida que explica a ação dos corpos e o comportamento da luz no meio transparente, e Deus, como princípio de criação e conservação do movimento, garante o conhecimento a partir das verdades eternas e imutáveis da geometria. Deus, portanto, é o princípio metafísico de todo o conhecimento e validade objetiva das verdades eternas, com as quais a física geométrica constrói um conhecimento da experiência sensível. Os problemas da Física, segundo as regras da razão, se resolvem, então, a partir da ordem invertida para que, na ordem natural, os princípios possam fundamentar o conhecimento.
Palavras-chave: Demonstração, Extensão, Método, Movimento, Verdade.
Abstract: Departing from an analysis of the use of demonstration in Cartesian metaphysics, this article offers a reflection on a systematic thought built from the reading of “Rules for the Direction of the Mind”. By forming a basis for any type of knowledge, the cartesian metaphysics is, above all, a preparation for the development of a systematic knowledge of sensitive experience. Its principles determine the construction of Optical Physics, establishing a secure base for the construction of knowledge with metaphysical guarantees. Movement, then, is the unit of measurement that explains the actions of bodies and the behavior of light in a transparent medium, and God, as a principle of creation and conservation of movement, guarantees the knowledge based on the eternal and immutable truths of geometry. Therefore, God is the metaphysical principle of all knowledge and the objective validity of eternal truths with which geometric physics builds a knowledge of sensitive experience. Thus, according to the rules of reason, the problems of Physics are resolved with an inverted order so that, in the natural order, the principles can base the knowledge.
Keywords: Demonstration, Extension, Motion, Method, Truth.
Introdução
O presente artigo desenvolve uma discussão sobre o uso de demonstrações nas “Meditações” de Descartes para uma compreensão de seu pensamento metafísico e o modo com o qual as ciências naturais encontram validade objetiva e garantia metafísica na produção de conhecimento. Em primeiro lugar, tem-se a noção de como se conquista um princípio: partindo da descoberta, encontrada pelo duplo modo de demonstrar, análise e síntese. Com isso, desenvolve-se uma reflexão sobre o uso das demonstrações nas conquistas obtidas nas “Meditações”, como princípios que garantem a validade objetiva e metafísica do conhecimento nas ciências físicas, apesar de os “Princípios” serem publicados depois. As “Meditações”, portanto, nos mostram como os princípios podem ser encontrados, segundo as regras da razão.
Em segundo lugar, se a experiência sensível deve passar pela redução analítica, o conhecimento verdadeiro nas ciências naturais pode ser conquistado. Aplicando as regras da razão é possível, então, produzir um conhecimento perfeito das coisas materiais, partindo dos atos mentais, intuição e dedução, que revelam a verdade. A Matemática, em especial, é um instrumento poderoso na conquista das coisas mais simples e fáceis de conhecer e de representar a realidade objetiva dos objetos de conhecimento das ciências naturais.
Seguindo as “Regras para a direção do espírito”, o conhecimento dos objetos corpóreos, que nos causam sensações, é obtido pela ideia de extensão, que é objeto da razão mais simples e fácil de conhecer, e que os representa segundo a ordem e a medida. Portanto, essas “Regras” devem ser aplicadas nos fenômenos da física óptica a fim de se produzir um conhecimento que parte da redução das coisas complexas até se chegar às coisas mais simples. Por sua vez, o movimento, como um dos modos da extensão, determina suas leis mecânicas para assim explicar o modo como os corpos se comportam e como eles sofrem a ação um dos outros, bem como para explicar a natureza da luz e sua modificação ao atravessar diversos meios transparentes. A ação da luz e os efeitos que ela produz é objeto de conhecimento do “Tratado da luz”, obra cartesiana que deu origem a este estudo, onde se estabelece uma discussão sobre a estrutura do conhecimento físico e metafísico indissociáveis na ciência cartesiana.
Demonstração metódica na metafísica cartesiana
A Metafísica cartesiana é objeto de grandes discussões entre os intérpretes que questionam o seu lugar na Física, já que o próprio Descartes, através da metáfora da árvore do conhecimento, afirma que os “Princípios” formam a base metafísica de toda ciência. Ele crê que essa obra contém os princípios de todo conhecimento certo e seguro, mas a cronologia da obra cartesiana mostra que os “Princípios” vieram depois de suas obras científicas propriamente ditas. Na verdade, a publicação dessa obra, em 1644, brota da necessidade de Descartes mostrar que toda ciência, conforme a metáfora da árvore, extrai sua seiva da Metafísica, da necessidade de demonstrar o fundamento de tudo o que ele investigou, nas ciências naturais, e da reivindicação de seus interlocutores que questionaram o tipo de demonstração que ele executou em sua obra física.
Antes dos “Princípios”, Descartes publica, em 1641, suas “Meditações”, obra em que ele não só executa o método que inventou, o chamado método de análise e síntese, mas também estabelece o fundamento metafísico das ciências com o objetivo de garantir a certeza e evidência das descobertas científicas. Battisti (2002), em sua tese de doutorado, faz um exame mais minucioso das etapas do método cartesiano e sua origem. Papus e Diofanto, matemáticos da tradição grega, são citados na Regra IV como praticantes da verdadeira matemática. O primeiro traz a referência da Análise Geométrica e o segundo da Álgebra, disciplinas com as quais a correção dos defeitos de uma pela outra se torna fundamental para a composição do método cartesiano. Apesar do método ser mais conhecido como método de análise, podemos dizê-lo que é antes um método de análise-síntese, pois tanto a presença de Papus quanto a de Diofanto mostra que o conhecimento é conduzido pelo caminho de análise e síntese, tipos de demonstração brevemente citadas nas “Segundas Respostas”.
Apesar de Descartes pouco falar de síntese, pode-se encontrar os vestígios desse tipo de demonstração quando ele explica seu uso na construção de um cicloide (roulette) numa carta a Mersenne:
Não mudei de forma alguma o medium em minha demonstração do cicloide, pois consiste na igualdade dos triângulos inscritos, o que sempre contive; mas o encontrei a primeira vez pela analytice, e depois, porque vi que ele [referindo-se aos erros de cálculo de Roberval, após ler seu Traité de mécanique] não soube fazer o cálculo, o expliquei depois pela synthetice. Ele deveria ter vergonha de ter negado minha primeira demonstração, isto é, de não saber calcular os triângulos inscritos nesse cicloide e no círculo (DESCARTES, 1999, p. 1038, grifos do autor).
A síntese, para Descartes, é a via mais fácil, pois o princípio do qual ela depende é uma conquista da descoberta analítica, o caminho mais difícil porque mostra como a coisa buscada foi encontrada. De uma forma geral, pode-se dizer que tais demonstrações são compostas da seguinte forma: (1) análise: consiste no tipo de demonstração que abre o caminho da descoberta e se subdivide em: (1.1) redução - que supõe conhecido o que é desconhecido; (1.2) resolução - que prova como o desconhecido é descoberto pela regra da evidência; (2) síntese: consiste na composição da descoberta de problemas mais complexos para deduzir novas descobertas através da Geometria e se subdivide em: (2.1) construção - que traduz, numa linguagem geométrica, o objeto descoberto pela análise, no caso do objeto descoberto estabelecer relação com problemas muito complexos; e (2.2) prova - completa, com novos resultados quantitativos, o objeto de tradução geométrica. A análise “mostra como uma coisa foi metodicamente descoberta”, e a síntese “arranca o consentimento do leitor obstinado e opiniático” (DESCARTES, 1999, p. 388). Por isso, a análise só é operada após a síntese quando o problema examinado envolve dificuldades que a própria análise sozinha não pode resolver, coisa que Roberval não compreendeu, na medida em que a curva do cicloide não precisa da síntese para ser resolvida. No caso da Metafísica, que trabalha com elementos simples e fáceis de conhecer - a saber, a existência de Deus, a distinção entre espírito e corpo -, não há necessidade de demonstração sintética, embora Descartes o faça para responder às objeções sobre o assunto (DESCARTES, 1999, p. 388).
Em suas “Meditações”, Descartes oferece a sistematização metafísica do conhecimento através da dúvida metódica, que mostra a inseparabilidade entre princípios metafísicos e ciência. Embora ele não tenha estabelecido sistematicamente tais princípios antes de desenvolver sua ciência natural, sobretudo em “O mundo” e nos “Ensaios” que sucedem o “Discurso”, não há como negar a presença de princípios a priori, que são evidentes por si mesmo, em sua obra científica. Nesse caso, devemos considerar que, se ele não sistematizou tais princípios, ao menos se ocupou deles ao abordar assuntos da Física em “O mundo”. Essa obra está dividida em duas partes: “O mundo de René Descartes ou o tratado da luz e o Tratado do homem”. Na verdade, o segundo texto é continuação do primeiro e foi produzido a partir do capítulo XVIII da obra, com o título “O homem de René Descartes”. Como o “Tratado do homem” foi publicado primeiramente numa tradução latina em 1662, em 1664, 14 anos após a sua morte, a obra é publicada em sua totalidade, mas na ordem inversa (BATTISTI, 2002). Segundo Aczel (2007), em 1629 Descartes começa a trabalhar assuntos importantes de Física e Metafísica em “O mundo”, mas desistiu de publicá-lo por causa da condenação de Galileu, pois a obra faz abordagens sobre assuntos que confirmam o sistema heliocêntrico de Copérnico, motivo pelo qual Galileu é obrigado a abjurar mediante as autoridades da Igreja. Descartes então decide suspender a publicação ao temer possíveis acusações por parte da Inquisição.
Em uma carta enviada a Mersenne, podemos identificar o interesse de Descartes em estabelecer os princípios da Física pela Metafísica:
Mas não deixarei de tocar, em minha Física, várias questões metafísicas, e particularmente este: que as verdades matemáticas, as quais denominais eternas, são estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, bem como todas as criaturas. É, com efeito, falar de Deus como de um Júpiter ou Saturno, e sujeitá-lo a Estige ou aos Destinados, do que dizer que essas verdades são independentes dele. Não tema, eu lhe peço, de assegurar e propagar em toda parte que é Deus que estabelece essas leis na natureza, assim como um rei estabelece leis em seu reino. Ora, não há em qualquer delas, em particular que não possamos compreender se nosso espírito se coloca a considerá-las, e são todas elas mentibus nostris ingenitæ, assim como um rei imprime suas leis no coração de todos seus súditos, se tiver muito poder para isso (DESCARTES, 1999, p. 933, grifo do autor).
Nota-se que Descartes, desde essa época, desenvolve o argumento da marca impressa, aquele já pensado nas “Meditações” (DESCARTES, 1999). O argumento nos mostra que, em sua doutrina, existem certas ideias que são inatas e, por serem colocadas em nossa mente por Deus, são necessariamente verdadeiras, inclusive as leis naturais que explicam os efeitos produzidos no mundo físico, seus efeitos que só podem ser vistos na experiência sensível, cuja verdadeira causa é algo que a mente pura e atenta pode revelar ao executar o método de análise.
Mas qual é a natureza das verdades eternas, uma vez que são obtidas através da abstração mental? Segundo Descartes, essas verdades são também denominadas de noções comuns, ou seja, noções expressas por axiomas, tais como a impossibilidade de conceber que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo ou que os raios de um círculo sejam distintos (DESCARTES, 1999). Essas noções só existem dentro do pensamento porque são abstrações mentais que não carecem de demonstração, já que são evidentes por si mesmas.
Nas “Meditações”, a execução do método de análise é fundamental para mostrar que a ciência depende de princípios a priori para a edificação do conhecimento seguro. Na Primeira Meditação, por exemplo, a dúvida metódica levanta o problema do conhecimento, que não está fundado em bases seguras e, por conseguinte, conduz a mente para longe dos sentidos e dão origem a juízos preconcebidos e, portanto, obscuros e confusos1. A dúvida o leva a constatação do cogito, que é a primeira verdade encontrada na cadeia de razões sem, todavia, garantir conhecimento algum, na medida em que é uma constatação sem validade objetiva. O cogito só passa a ter validade objetiva na Terceira Meditação, com a prova a posteriori, isso é, pelos efeitos da existência de Deus, que é a garantia metafísica de que todas as ideias claras e distintas são verdadeiras e operadas corretamente pela mente vazia de conteúdos sensíveis (DESCARTES, 1999). Entretanto, os objetos exteriores ao “eu” não podem produzir um conhecimento seguro, ao passo que Deus, que é também uma existência fora do “eu”, por sua infinita perfeição concede à razão a capacidade de produzir conhecimento verdadeiro quando a mente é dirigida por seus atos puros, intuição e dedução.
Poder-se-á objetar o real ponto de partida do cogito, tendo em vista que ele sequer foi deduzido de uma ideia clara e distinta. De fato, a dedução do cogito deve partir de algum ponto, já que, segundo o preceito da ordem, toda operação dedutiva deve partir da intuição, e não da dúvida, que é apenas um ato deliberativo da mente. Em primeiro lugar, a figura do Gênio Maligno exerce a função de iniciar a dedução, embora tenha o poder de nos enganar, inclusive nas operações mais simples da matemática (DESCARTES, 1999). É necessário supor a existência do Gênio Maligno para dar início à dedução das verdades. Embora seja provada a existência de um Deus soberanamente bom e perfeito, essa hipótese é fundamental para dar início à dedução, introduzindo a análise redutiva, que supõe conhecido o que é desconhecido. Em segundo lugar, apesar de Descartes considerar o cogito como o primeiro princípio da Filosofia, é antes um efeito de Deus, pois se ainda não sabemos qual é a natureza do cogito, não podemos dizer que um conhecimento fundado numa constatação de validade subjetiva seja verdadeiro. Para o cogito ganhar validade objetiva, deve ser antes garantido por um princípio a priori, que é Deus, causa de nossa existência, das ideias claras e distintas e das coisas materiais existentes fora da mente. Portanto, todo princípio a priori é causa de alguma coisa e, como tal, deve produzir e explicar seus efeitos, inclusive em questões que estão no domínio da experiência sensível.
Sabemos, com o argumento da marca impressa, que existem verdades eternas dentro da mente e que são apenas obtidas por abstração, já que não têm relação com objetos fora da mente. Mas existem algumas verdades que se relacionam com esses objetos, pois Descartes não haveria de buscar princípios a priori que não fossem capazes de explicar a existência de objetos fora da mente, dos objetos que estão no domínio da experiência sensível. Se existem objetos mentais auto evidentes, qual é, então, a real natureza da “verdade” e qual sua relação com objetos materiais? Antes de mais nada, a prova a priori da existência de Deus é fundamental para a distinção entre mente e corpo enquanto substâncias, coisa que ocorre na Quinta Meditação. Embora Descartes desenvolva a prova a priori, a que chamamos de prova ontológica, na Quinta Meditação, há, no “Discurso”, uma reflexão sobre a ideia de perfeição que dá origem a esse tipo de prova, reflexão semelhante a que ele desenvolve na Quinta Meditação.
Para sabermos como distinguir mente e corpo, é preciso antes examinar a distinção entre alma e espírito para que depois se esclareça como Descartes concebe as substâncias pensamento e extensão. Depois, é preciso saber por que verdades abstratas se relacionam aos objetos materiais através da noção de verdade como princípio de correspondência para esses objetos.
Descartes, nas “Quintas Respostas”, explica a distinção entre os termos “mente”, que em francês se traduz por esprit e em latim por mens, e “alma”, que em francês se traduz por âme e em latim por anima. Afinal, o esprit não designa parte alguma da alma, mas a alma inteira que pensa (DESCARTES, 1999). Naturalmente, o termo anima evoca a tradição escolástica que, por sua vez, atribui à alma todas as qualidades ou funções que a filosofia cartesiana precisa eliminar, ou seja, a obscuridade das sensações que se produz com a união de alma e corpo. Quando Descartes emprega o termo âme, certamente se refere aos apetites ou funções que a alma desempenha para explicar as sensações ou associações psicofísicas que determinam sentimentos de amor e ódio, tristeza ou alegria por exemplo. Esses sentimentos dependem da ação dos objetos corpóreos que excitam a alma e são causados por movimentos dos espíritos animais2. Portanto, o termo anima traz consigo qualidades subjetivas que confundem o ato puro de pensar, que é um ato exclusivo da mente ou espírito, mas que explica o ato de sentir ou imaginar, que é um ato exclusivo da alma unida ao corpo. Por essa razão, Descartes emprega o termo mens em suas traduções latinas e o termo esprit nas traduções francesas, ao mostrar sua oposição à tradição aristotélico-tomista (DESCARTES, 1987).
Mas o que é o sentir e o imaginar, já que essas faculdades ou funções da alma podem auxiliar a mente na edificação do conhecimento ao passo que dão origem às ideias confusas e obscuras? O imaginar não é outra coisa senão “[...] contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal” (DESCARTES, 1999, p. 277). No uso mais comum do termo, a imaginação recebe as figuras dos sentidos para reter na memória uma cópia delas. Quando nos recordamos da imagem sensível do Sol, por exemplo, sabemos que essa imagem não corresponde ao seu tamanho real, na medida em que o Sol é um astro de quinta grandeza, e somente o percebemos sensivelmente num tamanho bem menor. Portanto, a relação de distância é fundamental para a concepção clara e distinta da imagem real do Sol. Logo, as ideias da imaginação são confusas por que têm sua origem nas sensações, pois dependem dos objetos que estão fora da mente ao guardar na memória imagens desses objetos3. Já o sentir é um modo de pensar confuso, pois depende da existência material e mistura alma e corpo para ocultar da mente a concepção clara e distinta. Vejamos agora o argumento que Descartes utiliza para provar a união entre alma e corpo, na Sexta Meditação:
A natureza também me ensina por esses sentimentos de dor, de fome, de sede, etc., que não somente estou alojado em meu corpo assim como um piloto em seu navio, mas que, além disso, estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo. Pois, se não fosse assim, quando meu corpo é ferido, não sentiria por isso a dor, eu que sou apenas uma coisa que pensa, e só perceberia esse ferimento pelo entendimento, como um piloto apercebe pela visão se alguma coisa se rompe em seu navio, e ainda que meu corpo tenha a necessidade de beber ou comer, simplesmente conheceria isso mesmo sem ser advertido por sentimentos confusos de fome e de sede. Com efeito, todos esses sentimentos de fome, sede, dor, etc., não são outra coisa senão certos modos confusos de pensar que provêm e dependem da união, tal como da mistura de espírito e corpo (DESCARTES, 1999, p. 326, grifo nosso).
Nessa prova, Descartes utiliza o termo “espírito” porque estabelecera antes a distinção entre as substâncias pensamento e extensão, ou seja, mente e corpo respectivamente e, ao que parece, as sensações são consideradas atividades da coisa pensante. Poder-se-á objetar como duas substâncias que se excluem podem se unir para causar na alma sensações? Esse é um problema clássico na Metafísica cartesiana, mas há uma resposta “ocasionalista” para esse problema, como em Malebranche, pois a união entre mente e corpo não é resolvida definitivamente por Descartes a não ser que Deus, por sua onipotência, queira que isso seja assim, já que não é possível compreender todos os seus desígnios (COTTINGHAM, 1995).
O sentir, antes de tudo, é uma sensação que só existe na alma, caso contrário, seria possível discerni-lo da dor, fome, calor, etc. As sensações são tão confusas que se tornam incapazes de produzir juízos falsos, pois a capacidade de julgar é uma faculdade do entendimento, que submete as sensações mais obscuras à análise para assim poder julgar. Afinal, a clareza e a distinção ficam escondidas na mistura das sensações, onde só a redução é capaz de conhecê-las. A causa do erro não é o sentir, mas a vontade, que é concedida tão amplamente por Deus e que muitas vezes confunde a mente humana ao deliberar juízos sem antes submetê-los ao exame4. Não são os sentidos que precisam ser corrigidos, pois eles não são enganosos, mas o concurso da vontade é o que faz com que se tome o falso pelo verdadeiro quando a vontade não é submetida aos limites do entendimento. Segundo Gueroult, os sentidos não são corrigíveis, mas somente o entendimento quando não subordina a vontade aos seus estreitos limites. O fato do sentir ser confuso e obscuro não implica a causa do erro, pois somente a razão tem a capacidade de corrigir a si mesma:
Somente quando, retificando nossos raciocínios falsos, corrigimos nossos falsos julgamentos habituais é que, tocados pela novidade dos julgamentos que sobrevêm, tomamos finalmente consciência da intervenção do entendimento. Dizemos, então, que corrigiu o sentido; porém, o que tem corrigido, na realidade, não é o sentido, mas o mau uso feito previamente no entendimento (GUEROULT, II, 1953, p. 48).
Para a garantia do conhecimento seguro, a separação mente e corpo é fundamental, pois a noção cartesiana de substância é o que torna discerníveis as paixões da alma. Nos “Princípios”, Descartes define “substância” da seguinte forma: “[...] uma coisa que existe de tal modo que apenas há a necessidade de si mesmo para existir” (DESCARTES, 1999, p.594). O único ser que depende de si para existir é Deus, mas a noção de substância, evidentemente oriunda da tradição escolástica, se estende aos demais objetos existentes se for levada em consideração sua causa formal na busca da essência desses objetos, pois Deus é a causa eminente deles.
Existem, portanto, duas substâncias criadas por Deus, mas que não dependem uma da outra para existir:
Pois, quando penso que a pedra é uma substância, ou uma coisa que é capaz de existir por si, e em seguida que sou uma substância, ainda que eu conceba que sou uma coisa que pensa e não-extensa, e que a pedra, ao contrário, é uma coisa extensa e que não pensa, e que entre essas duas concepções se encontram uma notável diferença, todavia elas parecem concordar com as substâncias que representam (DESCARTES, 1999, p. 293).
A prova da existência de Deus se aplica à noção de substância como causa sui e estabelece sua superioridade hierárquica no ato de criação das demais substâncias. O pensamento não pode ser causa do corpo e nem o corpo do pensamento, pois a hierarquia divina compele sua eminência criadora em relação às coisas que se distinguem entre si por sua essência, por pensamento ou extensão.
Mas, ainda que cada atributo seja suficiente para fazer conhecer a substância, há, todavia um em cada uma que constitui sua natureza e sua essência, e que todos os outros dependem. A saber, a extensão em comprimento, largura e profundidade, constitui a natureza da substância corporal; e o pensamento constitui a natureza da substância que pensa (DESCARTES, 1999, p. 595).
Ainda que o principal atributo do corpo seja a extensão, as dimensões em comprimento, largura e profundidade configuram seus modos, embora existam outros modos da extensão, como, por exemplo, a duração, o tempo, o movimento dentre outros. O mesmo ocorre com o principal atributo da substância pensante, que é o pensamento puro, pois o sentir, o imaginar e o duvidar também são modos de pensamento que precisam ser submetidos ao rigor da mente pura e atenta, que elimina a obscuridade desses modos de pensar.
Aliás, a concepção das substâncias pensamento e extensão é fundamental para a distinção radical entre mente e corpo como coisas reciprocamente estranhas e independentes entre si.
A realidade objetiva das ideias
Não há dúvidas de que o conhecimento seguro, em Descartes, deve ser sustentado por um princípio a priori, o que implica a ideia de causa, e dele se deduzem os efeitos que dependem da realidade objetiva neles contida. Antes de Descartes realizar a prova a posteriori da existência de Deus, em sua Terceira Meditação, ele precisa examinar o valor objetivo das ideias que a mente contém. A ideia de um triângulo, por exemplo, é uma verdade eterna, mas sua realidade objetiva se encontra em Deus que a cria, pois o triângulo é um objeto mental que não existe fora da mente, mas sua existência é causada por um ser que está fora dela: Deus. Entretanto, quando dizemos que temos ideia de árvore, por exemplo, associamos essa ideia à sua existência fora da mente, e tudo o que existe fora dela possui realidade formal correspondente. No que consiste, então, a realidade objetiva das ideias? Sem dúvida, em algo existente dentro da mente, mas em relação às coisas que existem fora dela:
Agora, é coisa manifesta pela luz natural, que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lhe comunicar se não a tivesse em si mesma? (DESCARTES, 1999, p. 289).
Certamente, esse é um dos argumentos que, segundo Landim, é surpreendente, pois Descartes emprega a noção de realidade objetiva para a constatação do mundo material que, em si mesmo, é pura realidade formal (LANDIM FILHO, 1992). Em outras palavras, podemos dizer que Descartes desenvolve uma metafísica da matéria, embora as verdades deduzidas nas “Meditações” sejam imateriais e, por essa razão, mais simples e fáceis de conhecer5. Podemos inclusive dizer que a teoria das ideias cartesiana busca representar diversos objetos através de seu conteúdo claro e distinto, na medida em que a metafísica se dedica a estabelecer princípios para isso. A causa da ideia produzida na mente pura e atenta pode vir do objeto material, sendo a ideia um efeito cuja realidade formal está contida no objeto. Isso é uma regra para todo o conhecimento produzido, pois deve-se buscar a realidade objetiva das coisas materiais para compreendê-las clara e distintamente. Como o efeito está contido na causa, ele deve ter tanta realidade objetiva na mente quanto na realidade formal que o produz. Portanto, a realidade objetiva do efeito só se manifesta pela “luz natural” quando ela representa a realidade formal de sua causa e, a partir daí, aplica-se o princípio de causalidade que Descartes necessita para estabelecer a verdade como princípio de correspondência.
Sabe-se agora que a realidade objetiva é um conteúdo mental de origem exterior, mas essa realidade, que pertence ao conteúdo representativo da coisa representada, só é real porque traz consigo a verdade revelada pela “luz natural”. Numa de suas cartas a Mersenne, o significado de “verdade” é colocado como algo que corresponde à coisa conhecida verdadeiramente:
Assim, pode-se explicar quid nominis [dar uma explicação verbal] àqueles que não entendem a língua e lhes dizer que a palavra verdade, em sua própria significação, denota conformidade do pensamento com o objeto, mas que, quando a atribui às coisas que estão fora do pensamento, significa somente que essas coisas podem servir de objetos a pensamentos verdadeiros, seja aos nossos, seja aos de Deus (DESCARTES, 1999, p. 1059, grifo do autor).
Embora Descartes dê uma explicação nominal para o termo “verdade”, na Regra II ele diz que a Aritmética e a Geometria são as ciências mais certas, pois elas se ocupam de objetos simples e fáceis de conhecer, o que torna impossível ao homem cometer erros (DESCARTES, 1999). Esses objetos só são simples e fáceis de conhecer porque são vistos pela intuição, que é a luz natural que ilumina a verdade da qual não se pode duvidar. Se o conhecimento verdadeiro está fundado na intuição, é pela ideia de extensão que se pode produzir um conhecimento perfeito dos objetos fora da mente6. Por outro lado, segundo a teoria das ideias inatas, a intuição é antes um efeito de Deus, a partir do que se crê e não se pode conceber que uma “[...] ideia tire sua origem do nada” (DESCARTES, 1999, p. 290); nem mesmo aquelas que têm sua origem nos sentidos, por mais obscuras e confusas que sejam. Seguindo esse raciocínio, a ideia das coisas exteriores só é verdadeira se puder explicar o ser que a causa, ou melhor, se houver correspondência com o ser da causa.
Na Terceira Meditação, depois que se estabelece o princípio de causalidade, que é fundamental para a relação entre ideia e coisa, a inserção da verdade como princípio de correspondência se deve à realidade objetiva das ideias, que é a forma mais perfeita de representar a realidade formal da coisa, ou enquanto podemos pensá-las verdadeiramente. Se o conteúdo dessas ideias é verdadeiro, portanto real, torna-se evidente para Descartes que o modo de pensar objetivo é mais perfeito do que a realidade formal contida no objeto de conhecimento, pois seu conteúdo representativo depende da aplicação do princípio de causalidade para a ligação entre ideia e coisa:
E ainda que possa ocorrer que uma ideia dê origem a uma outra ideia, isso não pode estender-se ao infinito, mas é preciso chegar ao fim, a uma primeira ideia cuja causa seja como um padrão original, na qual toda realidade ou perfeição esteja contida formalmente e em efeito, a qual só se encontre objetivamente ou por representação nessas ideias. De forma que a luz natural me faz conhecer evidentemente que as ideias são em mim como quadros, ou imagens, que podem na verdade facilmente não conservar a perfeição das coisas de onde foram tiradas, mas que jamais pode conter algo de maior ou de mais perfeito (DESCARTES, 1999, p. 291).
A analogia do quadro ou imagens é útil para ilustrar que as ideias podem não conservar a perfeição das coisas que dão sua origem, na medida em que sua representação contém apenas a realidade formal da coisa representada, e também não se pode dizer que o quadro ou imagem produz ideias mais perfeitas das coisas que representam. Por conseguinte, esse tipo de representação contém em si realidade objetiva ao introduzir a verdade como princípio de correspondência à coisa representada e produzida como conhecimento.
Como a Matemática, em especial a Aritmética e a Geometria, se ocupa de objetos simples e fáceis de conhecer, a aplicação dessa ciência na Metafísica cartesiana se torna edificante, pois a certeza matemática é um modo de representação abstrata mais perfeita dos objetos dentro e fora da mente. Segundo Gueroult, esse tipo de certeza vem sendo utilizado da seguinte forma: “ [...] na Primeira Meditação, a análise regressiva que conduziu ao cogito já tinha colocado as ideias matemáticas, a título de elementos últimos componentes e indecomponíveis, como as condições de possibilidade de todas minhas representações das coisas sensíveis” (GUEROULT, II, 1953, p. 24, grifo do autor).
A análise regressiva da qual Gueroult fala se trata da etapa redutiva do método de análise. Como a ordem natural do conhecimento depende de princípios a priori estabelecidos, Descartes, através da ordem indireta e regressiva explicada na Regra XVII, inverte os passos da ordem natural, supondo conhecido o que é desconhecido. Portanto, princípios a priori são antes conquistados pela ordem invertida, para depois seguirem a ordem natural do conhecimento ao deduzir diretamente outras verdades a partir desses princípios.
Portanto, as ideias matemáticas são realidades perfeitas, pois são objetivas, na medida em que podem entrar em correspondência com a realidade formal das coisas sensíveis. Mais do que isso, são verdades reveladas por atos mentais (intuição e dedução) que iluminam o objeto de conhecimento, embora as ideias matemáticas sejam objetos sem existência exterior. São, entretanto, a condição de representação dos objetos exteriores, que os tornam acessíveis ao conhecimento humano.
A certeza matemática clareia a obscuridade da experiência sensível, objeto da Física geométrica de Descartes, pois a causa das sensações vem dos objetos que se movem e existem fora da mente, que também são objetos de demonstração geométrica, na medida em que pode ser conhecida clara e distintamente (DESCARTES, 1999). Por isso, a prova da existência material se torna necessária para a representação geométrica dos seus componentes que só podem ser conhecidos pela ideia de extensão em seus modos e dimensões. Além disso, só é possível investigar “[...] a veracidade de nossa imagem perceptiva do mundo corpóreo através da dúvida sistemática, e o mundo corpóreo é então reconstruído dos primeiros princípios” (GAUKROGER, 1997, p. 338); os termos geométricos que o objeto material contém em si dependem do que é imediatamente evidente, a extensão. Pode-se então dizer que o princípio metafísico da física cartesiana é a extensão, ideia imaterial da matéria, estabelecido desde as “Regras para a direção do espírito”. Com isso, conclui-se que Descartes se ocupou cuidadosamente de uma física fundada e estabelecida em princípios a priori, manifestos nos modos da extensão, segundo a ordem e a medida, que permitem a utilização da mathesis universalis (disciplina universal) em assuntos que são do domínio da Física, embora a sistematização desses princípios só ocorra nas “Meditações “e nos “Princípios”.
Aplicação das Regras na física cartesiana
Quando se fala da existência de coisas absolutas, imediatamente é possível lembrar que o absoluto é uma terminologia metafísica. Trata-se de uma representação sem matéria. Pode-se dizer que a ideia clara e distinta que se tem de qualquer coisa corpórea é obtida pela ideia de extensão, que é a ideia imaterial que se tem de qualquer objeto corpóreo. Quando se fala de coisas que se aplicam aos sentidos, fica difícil determinar o que há de absoluto nelas, pois toda ideia sensível, por natureza confusa e obscura, é sempre relativa ao sujeito que recebe do objeto suas impressões sensíveis. Além disso, se o objeto da Física cartesiana é a experiência sensível, deve-se dizer que tal objeto envolve a mistura de qualidades objetivas e subjetivas, mas que pode ser conhecido verdadeiramente com a aplicação do método de análise, que separa das coisas complexas as mais simples e fáceis de conhecer.
A mistura entre qualidades objetivas e subjetivas torna a Física cartesiana uma ciência complexa, mas que produz um conhecimento verdadeiro quando submete a ideia complexa do sensível ao rigor da mente pura e atenta:
Todo método consiste na ordem e disposição das coisas sobre as quais é necessário voltar à atenção do espírito para descobrir a verdade. Ora, nós a seguiremos exatamente se reduzirmos gradualmente as proposições complicadas e obscuras às mais simples, e se, em seguida, partindo da intuição das mais simples, tentar nos elevarmos pelos mesmos degraus ao conhecimento de todas as outras (DESCARTES, 1999, p. 52).
Se o objeto de conhecimento é complexo, deve-se antes, segundo a regra da ordem, reduzir o complexo ao simples, ou seja, supor conhecido o que é desconhecido, invertendo os passos da ordem natural do conhecimento. Somente após essa operação é possível chegar ao conhecimento das coisas mais complexas e, assim, edificar o conhecimento em bases seguras. O que há de mais simples num problema complexo, como é o caso dos problemas da Física, é a ideia de extensão e seus modos, de tudo aquilo que pode ser concebido segundo a ordem e a medida. Torna-se, então, indispensável a aplicação da verdade como princípio de correspondência em assuntos que pertencem à Física, o que permite a ligação entre coisas simples e complexas, causa e efeito e, por assim dizer, entre o absoluto e o relativo:
Denomino absoluto tudo o que contém em si a natureza pura e simples que está em questão: assim, tudo o que é considerado como independente, causa, simples, universal, uno, igual, semelhante, reto, ou outras coisas desse gênero; e o denomino o mais simples e fácil, a fim de nos servirmos para resolver as questões. O relativo, ao contrário, é o que participa daquela mesma natureza, ou ao menos de alguma coisa dela, por onde pode ser ligado ao absoluto e ser deduzido seguindo certa ordem (DESCARTES, 1999, p. 53).
Se as coisas complexas se relacionam com as coisas mais simples, naturalmente só se chegará ao conhecimento dos efeitos pelas causas, pois todo efeito depende da causa, embora seja possível chegar ao conhecimento da causa pelos efeitos, quando se tornam indispensáveis demonstrações a posteriori. Em Descartes, as demonstrações a posteriori, em seu sentido lógico, obedecem a ordem invertida do conhecimento (análise), quando se deduzem as causas pelos efeitos; mas esse tipo de demonstração também pode assumir um sentido cronológico quando obedece a ordem natural do conhecimento (síntese), mas que vem depois da conquista de princípios verdadeiros para a composição de construções geométricas que provam como outros efeitos dependem das mesmas.
Também se pode acrescentar aqui que toda dedução é obtida pela intuição, pois aquela depende desta assim como o efeito depende da causa. Faz-se necessário lembrar que intuição e dedução, como atos mentais, enquanto regras da razão, são operações da mente para reduzir o complexo ao simples, em busca das coisas absolutas ou mais simples e fáceis de conhecer, obedecendo, nessa redução, a ordem invertida do conhecimento.
O absoluto, nesse sentido, é utilizado como um termo análogo ao princípio, base fundamental para a construção de todo o edifício do conhecimento. Entretanto, se o termo absoluto estiver na ordem invertida do conhecimento, ele funciona como se fosse um princípio, mas não o é, pois, nessa ordem, o absoluto é análogo à suposição e está em relação ao princípio verdadeiro encontrado somente ao final da redução analítica. Nos “Princípios”, Descartes declara que não importa que as suposições sejam falsas, pois seu uso se torna legítimo quando se deduzem delas efeitos muito verdadeiros (DESCARTES, 1998). O que há de mais absoluto numa cadeia dedutiva é o princípio com o qual se deduz efeitos ou coisas relativas a ele, seguindo as etapas do método para assegurar o conhecimento verdadeiro.
No entanto, poder-se-á perguntar como a Física cartesiana, ciência da experiência sensível, encontra o absoluto nas coisas sensíveis, se no mundo da observação e da experiência só se obtém a percepção de princípios que, em ralação a outros, são mais relativos? A separação entre coisas absolutas e relativas é bastante sutil, pois a sequência dedutiva de uma série remete a relações causais que aproximam e distanciam o efeito da causa de forma contínua:
O segredo de todo método consiste em observar atentamente o que há de mais absoluto. Certas coisas, com efeito, em certo ponto de vista, são mais absolutas que outras, mas, consideradas de outra maneira, são mais relativas: [...] assim, se consideramos os indivíduos, a espécie é alguma coisa absoluta, e se consideramos o gênero, ela é alguma coisa relativa (DESCARTES, 1999, p. 54).
Nessa Regra, Descartes estabelece uma teoria das proporções que, segundo Kobayashi, centraliza reflexões sobre a proporção contínua para determinar a progressão geométrica. No entanto, essa teoria traz consequências importantes: diferentes espécies de grandeza, como a razão, o cubo, o quadrado etc., estão circunscritas no mesmo gênero de linhas e superfície - da mesma forma pode-se conceber, por exemplo, o comprimento, largura e profundidade como espécies de um mesmo gênero: a extensão. Há também a aplicação em diferentes espécies de cálculos, a multiplicação e divisão, que guardam o mesmo gênero: o da proporção algébrica (KOBAYASHI, 1993).
Na “Dióptrica”, por exemplo, Descartes descobre a lei de refração através da constante entre os senos de incidência e refração (DESCARTES, 1999). Essa lei, por sua vez, tem o objetivo de corrigir aberrações esféricas e cromáticas quando a luz atravessa um meio transparente, como é o caso das lentes fabricadas para lunetas, instrumento fundamental para observações de objetos inacessíveis a olho nu. No décimo discurso da “Dióptrica”, Descartes cria uma máquina de polir lentes e mostra que a curva anaclástica é a mais adequada para esse projeto.
Esse tipo de curva, também denominada de hiperbólica, é concebida através da lei de refração que determina a posição dos raios refratados num único ponto da lente para emergi-los na direção do olho. Nesse sentido, ele determina a distância entre lentes côncavas e convexas, que ficam nas extremidades da luneta, definindo a posição dos raios incidentes e emergentes nas partes interna e externa dessas lentes (DESCARTES, 1998).
A lei de refração é absoluta, na medida em que explica os efeitos cromáticos que se produzem quando os raios de luz atravessam um meio transparente, e esses efeitos são relativos a ela, assim como comprimento, largura e profundidade são relativos à extensão. A natureza da luz, portanto, é mais absoluta que a lei de refração, pois não se pode chegar a ela sem antes conhecer essa natureza.
Se há uma proporção contínua entre causas e efeitos, outras proporções podem ser requeridas se colocadas entre coisas mais absolutas que outras, e essas relações só procedem porque existe algo mais absoluto que tudo: Deus, garantia metafísica de todas as relações mentalmente possíveis. Pode-se dizer inclusive que toda relação guarda uma proporção contínua, na medida em que há coisas absolutas e relativas em toda relação.
Sabe-se que, nas “Meditações” e nos “Princípios”, Descartes sistematiza os princípios metafísicos das ciências em geral. A ilustração da árvore do conhecimento se torna bastante didática para o entendimento de que as ciências em geral extraem sua seiva da Metafísica, representada pela raiz que sustenta o tronco e os ramos dessa árvore.
Seguindo o caminho metafísico que Descartes percorre ao longo de suas obras científicas, antes mesmo de sistematizar a Metafísica, existe a tendência em defender que a importância dada a esse tema se torna explícita em “O mundo”, obra capital que mantém uma estrutura teórica bastante hierárquica sustentada por princípios metafísicos.
A metafísica na física mecânica de Descartes
No capítulo VII de “O mundo ou do Tratado da luz”, Descartes faz uma caracterização de um novo mundo regido por leis mecânicas, mas antes define o movimento como natureza da matéria: “[...] sabemos que, entre as qualidades da matéria, supomos que suas partes tenham diversos movimentos desde o início em que foram criadas” (DESCARTES, 1998, p. 37). A suposição de que o movimento é propriedade essencial da matéria não é suficiente para explicar sua gênese, pois o ato de criação divina coloca nos corpos tal propriedade desde o instante em que foram criados. Além disso, é preciso introduzir princípios a priori para explicar matematicamente o processo de modificação da matéria pelo movimento dos corpos em colisão.
No “Tratado da Luz”, Descartes define que o movimento é regido por leis, tais como se seguem: (1ª) todo corpo continua sempre num mesmo estado até o momento em que movimento de outros corpos forçam sua mudança - o corpo permanece em repouso no instante da colisão, depois disso tende ao movimento até que a ação de outro corpo o detenha; (2ª) todo corpo perde parte de seu movimento quando o corpo que o empurra é mais fraco ou, quando é mais forte, aumenta seu movimento - se há colisão entre corpos que se movem, o movimento é determinado pela força dos corpos que se chocam; e (3ª) todo corpo que se move tende a continuar seu movimento em linha reta - o movimento retilíneo é instantâneo, pois todo corpo que viaja em linha reta depende do instante em que seu movimento deixa de ser retardado ou aumentado pelo choque com outros corpos (DESCARTES, 1998).
Onde há corpo, há movimento, e se o mundo é composto de diversos corpos, todos eles dependem da ação de suas partes em movimento. Por isso, a aplicação dessas leis é fundamental para explicar o modo pelo qual os corpos sofrem a ação uns dos outros, uma vez que o mundo é um espaço totalmente preenchido por matéria em movimento. A noção cartesiana de espaço rejeita a existência do vazio, pois não é possível concebê-lo mesmo que seja observado um intervalo entre corpos separados, já que o espaço que se supõe vazio também é preenchido por matéria.
Descartes diz, ainda no “Tratado”: “Para melhor entender isto [referindo-se à natureza da matéria], sabemos que entre as qualidades da matéria supomos que suas partes tenham diversos movimentos desde o início em que foram criadas; e, além disto, que elas se tocam por todos os lados sem que haja algum vazio entre duas” (DESCARTES, 1998, p. 37). Em primeiro lugar, “supor” alguma coisa, no contexto ideológico em que Descartes viveu, significa ter prudência, pois o temor de sofrer algum tipo de acusação por parte da Igreja o faz, muitas vezes, expor suas ideias com cuidado. É por isso que, nesse “Tratado”, Descartes prefere dizer que compôs uma “fábula do mundo”, para evitar confrontos ideológicos. Em segundo lugar, a existência do vazio traz duas consequências importantes para sua Física geométrica: (a) a impossibilidade de representá-lo geometricamente, já que a matéria está circunscrita no limite interior e exterior do espaço que ocupa; e (b) a impossibilidade de identificar matéria e extensão (ARAÚJO, 1990).
Essas leis estão destinadas a explicar não só a colisão dos corpos em movimento, mas também a natureza da luz, tal como ela se comporta nos diversos meios que atravessa. Segundo Gaukroger (1997, p. 256) “[...] as leis do movimento, que explicam e fundamentam as leis de refração e reflexão da luz, justificam fenômenos tais como o arco-íris e o parélio, que estão baseados nisto”.
Ao explicar a natureza da luz, no Capítulo XIII do “Tratado da luz”, Descartes faz um exame prévio da ação recíproca do primeiro e segundo elementos, fogo e ar respectivamente. Partindo disso, ele explica que a ação da luz depende da ação do fogo e do ar e mostra que esse, por ser uma matéria de pouca gravidade, oferece pouca resistência na ocasião da transmissão dos raios luminosos que vêm do Sol.
Numa interessante analogia, Descartes faz uma comparação para ilustrar a força que a luz faz ao viajar em linha reta: “[...] assim como o peso de uma pedra a dispõe [da inclinação de se afastar], não somente de descer completamente reta ao ar livre, mas também de rolar sobre a inclinação da montanha, nesse caso ela não pode descer de outro modo” (DESCARTES, 1998, p. 89).
Assim como a luz, que vem do fogo, representa a pedra, ela também vai encontrar menor resistência do ar para viajar em linha reta. Se, por um lado, o ar é uma matéria de pouca gravidade, ele tem menos força para resistir ao movimento da luz, e pode-se concluir daí que Descartes aplica a segunda lei do movimento para explicar que a luz tem maior força para resistir à ação do ar; por isso perde apenas uma parte de movimento sem, entretanto, ficar impedida de viajar em linha reta, embora a pedra seja um corpo de maior gravidade que a luz. Por outro lado, identifica-se a aplicação da terceira lei para explicar o movimento retilíneo da luz, que ocorre no instante em que ela encontra uma resistência mediana do ar que atravessa.
Percebe-se, então, que há um poder intrínseco no movimento, pois os corpos, segundo o princípio de conservação e criação contínua, derivado da imutabilidade divina, recebem uma quantidade de movimento e repouso, o que permite sua permanência neste ou naquele estado. Todo corpo carece de uma força que o mantenha num mesmo estado:
Ora, essas duas regras [referindo-se às duas primeiras leis do movimento] seguem manifestamente dessa única, que Deus é imutável, e que agindo sempre do mesmo modo produz sempre o mesmo efeito. Pois, supondo que colocou certa quantidade de movimento em toda matéria em geral, desde o primeiro instante que a criou, é necessário que a conserve sempre ou não acredito que ele sempre age do mesmo modo. E supondo com isso, desde o primeiro instante, que as diversas partes da matéria que se movimentam se encontram desigualmente dispersas, começam a detê-las ou transferi-las de uma à outra, segundo aquelas que têm a força, é necessário pensar que lhe fazem a continuar sempre a mesma coisa (DESCARTES, 1998, p. 43).
O conceito de força também aperece na segunda parte dos “Princípios” de forma mais sistemática que no “Tratado da luz”:
[...] a força da qual um corpo age contra outro corpo ou resiste sua ação consiste apenas em que cada coisa persiste o tanto que pode a permanecer no mesmo estado onde se encontra, conforme a primeira lei que expus acima [a primeira lei do movimento]. De modo que um corpo que está junto de outro tem alguma força para impedir que ele esteja separado; e que, quando está separado, há alguma força para impedir que lhe esteja junto. Desse modo, quando está em repouso, há a força para permanecer em repouso e para resistir tudo o que poderia fazê-lo mudar. Da mesma forma, quando se move, há a força para continuar a se mover com a mesma rapidez e do mesmo lado. Mas se deve julgar a quantidade dessa força pela grandeza do corpo onde ela está e da superfície segundo a qual esse corpo está separado um do outro, e assim, pela rapidez do movimento e as formas contrárias das quais diversos corpos se encontram (DESCARTES, 1998, p. 88).
Como se vê, Descartes oferece a proporção entre grandeza, superfície e rapidez dos corpos para encontrar a quantidade da força, razão pela qual se encontra o princípio que permite sua demonstração matemática. Segundo Araújo (1990), Gueroult percebe a ambiguidade desse conceito, pois quando se fala que movimento e repouso conservam o mundo, essas forças são causas da conservação; mas se fala que movimento e repouso estão no mundo, essas forças são imanentes porque são causas e efeitos simultâneos. Gueroult percebe também que as propriedades geométricas revelam apenas seus efeitos porque as forças estão em relação com as variações espaciais no tempo-duração, e não nas variações espaciais dos instantes, o que poderá torná-la geometrizável.
Com isso, conclui-se que a primeira lei do movimento identifica a força, que não só justifica as duas outras leis, mas as fundamenta sob o princípio da imutabilidade de Deus que age sempre do mesmo modo. Essa força, por consequência, identifica-se a Deus, num plano metafísico, embora a matéria se modifique continuamente, mas contém em si mesma esse poder inseparável e justificado pelo princípio de conservação (do repouso ou do movimento, o que permite a persistência da matéria em se manter sempre num mesmo estado). Descartes, quando fala por suposições, sempre se refere ao movimento dos corpos segundo o princípio de imutabilidade divina. O que ele realmente quer é mostrar a estrutura do novo mundo por meio de princípios a priori, pois a essência da matéria consiste na disposição que ela tem em se submeter ao escrutínio da razão, ao se reduzir à extensão e seus modos. As leis do movimento são capazes de derivar demonstrações muito exatas da estrutura desse novo mundo, ao contrário do velho, que jamais poderia conceber sua real estrutura com base na tradição Escolástica. Nesse sentido, pode-se dizer que Descartes oferece uma explicação materialista do mundo sob o qual se encontram princípios metafísicos que garantem seu conhecimento. Sendo assim, esses princípios repousam em verdades auto evidentes, tais como as verdades eternas:
Essas verdades segundo as quais Deus nos ensinou que todas as coisas estão dispostas em número, peso e medida, e das quais o conhecimento é tão natural em nossas almas, digo que não saberíamos julgá-las infalíveis quando as concebemos distintamente, nem duvidar que, se Deus criou vários mundos, elas não fossem totalmente verdadeiras neste (DESCARTES, 1998, p. 47).
Se as verdades eternas são infalíveis, as leis do movimento se justificam pela auto evidência que elas demonstram na estrutura da Física teórica formulada no “Tratado da luz”. Portanto, essas leis têm o objetivo de demonstrar a natureza da luz, o que, na “Dióptrica”, servirá para demonstrar os efeitos que ela produz quando atravessa um meio transparente. Como diz Beyssade, “conhecer os efeitos por suas causas e, definitivamente, os efeitos físicos por princípios metafísicos, é ter ‘demonstrações a priori’, para se explicar em termos da Escola” (BEYSSADE, 2001, p. 190).
Considerações Finais
Ao mostrar a implicação metafísica que o termo absoluto contém no método cartesiano, conclui-se que se Descartes não demonstrou geometricamente a aplicação dos princípios em fenômenos luminosos, sobretudo no “Tratado da luz”, ao menos os estabeleceu como princípios absolutos para que a Física possa deles se servir e realizar demonstrações mais geométricas, como é o caso das demonstrações sintéticas estabelecidas na “Dióptrica”.
Ademais, o duplo modo de demonstrar, partindo dos efeitos às causas e das causas aos efeitos, segundo o que ele diz nas “Segundas respostas”, mostra que a ordem sintética é inseparável da ordem analítica e qualquer tentativa de separá-las resulta no prejuízo de não mostrar como os verdadeiros princípios são conquistados. Nas “Segundas respostas”, Descartes também demonstra a existência de Deus pela via sintética sem antes mostrar o modo pelo qual se conquistam os princípios; essa conquista só é possível pela via analítica e, sem ela, a síntese fica mutilada. Entretanto, a ordem analítica é capaz de seguir sozinha, sem exigir demonstração sintética para se deduzir verdades, como é o caso das demonstrações nas “Meditações”.
Pode-se então dizer que, no “Tratado da luz”, ao seguir a ordem analítica, Descartes mostra como conquistou os primeiros princípios, a saber: as três leis do movimento, que são os princípios mais absolutos quando lidamos com assuntos do domínio da Física, fundamentados pelo princípio divino de criação e conservação, que é o princípio mais absoluto de todos. Só depois de estabelecê-los, Descartes os dispõe segundo as ordens analítica e sintética nos “Princípios”.
Convém ressaltar que o “Tratado da luz”, ao seguir a ordem analítica ou a ordem invertida do conhecimento por assim dizer, busca conquistar os primeiros princípios para estabelecê-los como verdade e explicar os efeitos visuais dos raios luminosos. A partir desses princípios, esses efeitos visuais, por serem mais complexos, se tornam objetos de uma óptica geométrica que requer demonstração sintética.
Referências
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BATTISTI, C. A. O método de análise em Descartes: da resolução de problemas à constituição do sistema do conhecimento. 2002. 420 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
BEYSSADE, J-. L’ordre dans les “Principia”: Descartes au fil de l’ordre. Paris: PUF, 2001. p. 189-210.
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GAUKROGER, S. Descartes: an intellectual biography. Oxford: Clarendon Press, 1997. p. 256-338.
GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons. Paris: Aubier, 1953. Tome I et II, p. 24-48.
KOBAYASHI, M. La philosophie naturelle de Descartes. Paris: Vrin, 1993.
LANDIM FILHO, R. F. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992. (Coleção Filosofia).
Notas
Autor notes
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