Artigo

A ecologia e a antropologia no Papa Francisco: uma leitura à luz de Habermas acerca da tolerância religiosa

The ecology and the anthropology in Pope Francis: a reading in the light of Habermas about religious tolerance

Nelson Maria Brechó da SILVA
Faculdade João Paulo II, Brasil
Agnaldo COSTA JUNIOR
Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Brasil

A ecologia e a antropologia no Papa Francisco: uma leitura à luz de Habermas acerca da tolerância religiosa

Revista Reflexão, vol. 46, e215152, 2021

Pontifícia Universiade Católica de Campinas

Recepção: 05 Novembro 2020

Aprovação: 27 Janeiro 2021

Resumo: O presente artigo analisa a dimensão teológica da cultura ecológica na carta encíclica Laudato Sí. O objetivo é propor uma teologia da ecologia cristã a partir da denúncia do progresso tecnológico em diálogo com as Ciências da Religião e com a Filosofia a respeito da tolerância religiosa no Estado liberal. A reflexão se dará em quatro momentos. No primeiro, propõe-se examinar os nº 106-14 da Laudato Sí no tocante ao paradigma tecnocrático, mostrando os limites da tecnologia. No segundo, elucida-se a teologia cristã sobre a ecologia presente na ideia da cultura ecológica. No terceiro, averígua-se a análise do antropocentrismo moderno, segundo a leitura que o Papa Francisco realiza, a partir do pensamento de Romano Guardini de que a razão técnica se encontra acima da realidade e do meio ambiente como “casa comum” nos nº 115-121 da Laudato Sí. No quarto e último momento, explora-se a união da Ecologia com a Antropologia no âmbito da preservação da “casa-jardim”, especialmente na obra “Vida após a pandemia”, de 2020, de autoria do Papa Francisco. Além disso, procura-se fazer uma leitura filosófica a partir de Habermas acerca das comunidades religiosas buscando traduzir a sua mensagem na esfera pública a fim de que façam parte da sociedade pós-convencional como comunidades razoáveis. O resultado a ser obtido consiste em demonstrar luzes diante do cenário pandêmico.

Palavras-chave: Antropologia, Casa comum, Casa-jardim, Ecologia, Paradigma tecnocrático.

Abstract: This article analyzes the theological dimension of ecological culture, in the encyclical letter Laudato Sí. The objective is to propose a theology of Christian ecology based on the denunciation of technological progress in dialogue with the Religious Studies and with Philosophy regarding religious tolerance in the liberal State. The reflection will take place in four moments. In the first, it is proposed to examine the nº 106-114 regarding the technocratic paradigm, showing the limits of technology. In the second, Christian theology on ecology is elucidated in the idea of ecological culture. In the third, the analysis of modern anthropocentrism is investigated, according to the reading that Pope Francis makes from the thought of Romano Guardini that technical reason is above reality and the environment as a “common house” in nº 115-121. In the fourth and last moment, the union of Ecology and Anthropology is analyzed in the context of the preservation of the “house-garden”, especially in the work “Life after the pandemic”, published in 2020 by Pope Francis. In addition, this article aims to make a philosophical reading from Habermas about religious communities who translate their message in the public sphere, in order to be part of post-conventional society as reasonable communities. The expected result is to show lights in the face of the pandemic scenario.

Keywords: Anthropology, Common house, Garden house, Ecology, Technocratic paradigm.

Introdução

Na Laudato Sí, o Papa Francisco exorta a cada pessoa, através do diálogo, a repensar o modo de construir o futuro do planeta identificando, de modo geral, o progresso e suas consequências nocivas como raiz humana da crise ecológica. As dificuldades que provêm da noção de progresso técnico podem ser identificadas na sociedade atual fundamentada no tecnicismo. Essa identificação concebe que “[...] o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência. [...] carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade” [...] (Francisco, 2015, nº 105). É imprescindível a necessidade de refletir acerca do aspecto antropológico em diálogo com o avanço tecnológico para que esse, por sua vez, seja humanizador.

Para isso, essa reflexão é proposta a partir de quatro pontos. No primeiro, objetiva-se analisar os nº 106-114 da encíclica ecológica do Papa Francisco no que diz respeito ao paradigma tecnocrático, salientando aspectos ético-teológicos do texto pontifício. Com isso, destacam-se os limites da especialização da tecnologia que, muitas vezes, torna o conhecimento fragmentado e sem unidade. É preciso, para tanto, inserir a reflexão antropológica no intuito de trazer elementos que levem em conta a dignidade humana.

No segundo ponto, a contribuição da teologia cristã à espiritualidade ecológica, propõe-se uma análise através do verbete “ecologia” de Bauckham, que aponta o estudo de todas as realidades; a saber, da natureza como um todo, tanto do meio ambiente como a relação do homem com ele. Deseja-se contribuir com uma espiritualidade respeitosa do planeta; ou seja, uma atitude ética da necessidade solidária entre o humano e toda a Criação. A encíclica ecológica quer ser um subsídio teológico e espiritual para uma ecologia cristã. Aqui, novamente, o objetivo é de cultivar o respeito à natureza, não sendo o humano dominador dela, mas ajudado através da ciência e da técnica a alargar a consciência de que o ser humano faz parte de um todo. Essa visão propicia a definição de uma espiritualidade ecológica.

No terceiro ponto, a deterioração da casa comum, realça-se que a missão hodierna, em face da pandemia do novo coronavírus, rompe com o modelo presencial e dá espaço maior ao virtual de modo que a pessoa precisa se adaptar a essa nova realidade a fim de manter a sua saúde mental. Dessa forma, a pessoa ou o ambiente que aparece na tela possui a sua presença virtual, a qual implica o respeito e a responsabilidade de se relacionar bem com as diferentes culturas, bem como despertar o interesse pela preservação do meio ambiente como “casa comum”, que se situa deteriorada pelo excesso de consumismo. Para tanto, analisam-se os nº 115-121 da Laudato Sí.

No quarto ponto, a união da Ecologia com a Antropologia apontada pelo Papa Francisco à luz do pensamento de Habermas é analisada. Este momento pandêmico é urgente, por um lado, é necessário refletir e estreitar mais os laços que tornam as pessoas mais humanas na arte de cuidar de si, do outro, do mundo e da relação com o Deus Criador. Por outro, a ligação entre Ecologia e Antropologia possibilita ver que o Planeta Terra se encontra doente, necessitando dos cuidados no ensejo de sarar as suas feridas, principalmente para sanar e recuperar o seu singelo vigor. A proeza ecológica denota a preservação, pois nota-se que a pandemia revela a vulnerabilidade humana por intermédio do egoísmo e do relativismo.

A leitura habermasiana indica algumas luzes. Primeiro, aponta a consciência religiosa contemporânea como reflexiva no tocante à busca de compreensão dos estudos bíblicos e de vivências em pequenas comunidades religiosas. Segundo, constata que a razão moderna entende a si própria a partir da consciência reflexiva religiosa. Terceiro, que o estado liberal democrático se orienta para uma legitimação arraigada numa visão pluralista, que abarca cidadãos crentes na igreja católica, de outras denominações religiosas ou até mesmo descrentes. Assim, o pensamento de Habermas torna possível a tolerância religiosa de maneira que religiosos e laicos podem se utilizar do discurso democrático em vista de um mundo justo e solidário.

Os limites da especialização da tecnologia

Num primeiro momento, a encíclica ecológica reconhece que as manufaturas produzidas pela técnica “[...] não são neutras, mas podem, desde o início até ao fim de um processo, envolver diferentes intenções e possibilidades que se podem configurar de várias maneiras” (Francisco, 2015, nº 114). Assim, “[...] criam uma trama que acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possiblidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções, que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver” (Francisco, 2015, nº 107), como também “[...] capacidade de decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa dos indivíduos” (Francisco, 2015, nº 108). Constata-se, portanto, que “a vida passa a ser uma rendição às circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como o recurso principal para interpretar a existência” (Francisco, 2015, nº 110).

Em decorrência da interpretação do mundo condicionada meramente pela técnica, uma possível descoberta seria que:

Tornou-se anticultural a escolha de um estilo de vida, cujos objetivos possam ser, pelo menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e massificador. Com efeito, a técnica tem a tendência de fazer com que nada fique fora da sua lógica férrea, e ‘o homem que é o seu protagonista sabe que, em última análise, não se trata de utilidade nem de bem-estar, mas de domínio; domínio no sentido extremo da palavra

(Francisco, 2015, nº 108).

O progresso tecnológico tende a esconder os limites. Assim, é perigoso se estiver concentrado nas mãos de uns poucos, sendo abusado em nome da utilidade e da segurança, ambas consideradas necessidades. O Papa Francisco expressa seu pensamento da seguinte maneira: “[...] é possível que hoje a humanidade não se dê conta da seriedade dos desafios que se lhe apresentam [...]. Neste sentido, ele [ser humano] está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para controlá-lo” (Francisco, 2015, nº 105).

A tecnologia dá origem à globalização ao permitir a produção em massa e, portanto, o consumismo. Dessa forma, chega-se facilmente à ideia de crescimento infinito ou ilimitado, o que tem entusiasmado muitos economistas, financeiros e tecnólogos. Os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos (Francisco, 2015).

Nessa direção, o Papa concebe a dificuldade da mercantilização em relação ao desenvolvimento humano. Nessa concepção, comenta o Papa Francisco:

[...] que os problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado. [...] mas o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social. [...] não se criam, de forma suficientemente rápida, instituições econômicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem regularmente acesso aos recursos básicos. Não temos suficiente consciência de quais sejam as raízes mais profundas dos desequilíbrios atuais: estes têm a ver com a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do crescimento tecnológico e econômico

(Francisco, 2015, nº 109).

Constata-se, por meio do desenvolvimento da tecnologia, que “[...] àqueles que detêm o conhecimento e, sobretudo, o poder econômico para desfrutá-lo, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro” (Francisco, 2015, nº 104). Portanto, o Papa Francisco rejeita todas as formas de dominação e estruturas de poder, incluindo as dos economistas, finanças e multinacionais. É precisamente a lógica do domínio tecnocrático que leva à destruição da natureza e à exploração das pessoas e populações mais fracas. Observa-se que “o paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política” (Francisco, 2015, nº 109) e impede o reconhecimento de que “[...] o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social” (Francisco, 2015, nº 109). Silva (2020, p. 83) considera que o Papa Francisco, na encíclica ecológica, “[...] almeja repensar a relação entre economia e ecologia, com o intuito de encontrar o caminho para romper a desordem mundial e o empobrecimento sistêmico de grande parte da humanidade”.

Embora o Papa elogie repetidamente os avanços da tecnologia por causa das melhorias na vida humana (Francisco, 2015, nº 102-103), adverte contra o mito de que o progresso científico poderia resolver males ecológicos sem pôr em questão o modelo de desenvolvimento, os estilos de vida e os modos de produção e de consumo da sociedade atual. Diante dessa análise da tecnologia, o paradigma tecnocrático “[...] é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando outros” (L.S., nº 20), além de “buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial” (Francisco, 2015, nº 111).

Portanto, Papa Francisco considera que:

a especialização própria da tecnologia comporta grande dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto. A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido que se torna irrelevante. [...] A vida passa a ser uma rendição às circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como o recurso principal para interpretar a existência

(Francisco, 2015, nº 110).

Contudo, para resolver os problemas mais complexos do mundo atual, especialmente os do meio ambiente e dos pobres, é necessário alargar a perspectiva científica e técnica para incluir os contributos da filosofia e da ética social. O ser humano é capaz de conduzir a tecnologia ao serviço de um progresso integral. A esse respeito, Laudato Sí considera que “[...] é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao serviço de outro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral. De fato, verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático [...]” (Francisco, 2015, nº 112).

Diante dessa análise que leva em conta somente o uso da razão técnica em detrimento do aspecto antropocêntrico que é tão fundamental para que ocorra um horizonte alargado, a especialização da tecnologia, no contexto da ecologia integral, consiste numa perspectiva disciplinar estreita que ignora todo o conhecimento. Para tanto, é necessário ter uma consciência atenta para o que está sendo alertado a respeito da especialização tecnológica, visto que ela constitui apenas uma “fragmentação do saber”. Nessa perspectiva, é preciso explorar a contribuição da pessoa humana, percebendo a interligação entre o ser humano e o meio ambiente e caminhando, portanto, numa interdisciplinaridade, frequentemente referido na encíclica e no qual as ciências interagem de forma complementar, para resolver e encontrar soluções em conjunto.

Para proporcionar esse movimento de abertura do contributo humano, é necessário ter uma postura de resistência. O Papa Francisco observa que:

a cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático

(Francisco, 2015, nº 111).

Por isso, o Papa Francisco propõe um olhar das coisas interligadas. A cultura ecológica deve resistir permanentemente ao paradigma tecnocrático e desenvolver o pensamento global, e resistir ao sistema dominante é pôr a tecnologia ao serviço dos outros e do bem comum. Nessa perspectiva, conclui que o ser humano, deixando-se seduzir pela tecnologia, põe-se somente a serviço do lucro e das finanças e, consequentemente a crise ecológica não deixa de ser a expressão de outra crise profundamente ética e espiritual. Portanto, a resposta a essa confusão só pode ser uma ecologia humana espiritual.

Assim, concebe-se que tudo está ligado por meio da interdependência entre ecologia ambiental, econômica e social, requerendo diferentes formas de conhecimento “[...] para uma visão mais integral e integradora” (Francisco, 2015, nº 141), compreende-se uma reflexão da ecologia cultural. Isso implica “[...] assumir a perspectiva dos povos e das culturas [...]” (Francisco, 2015, nº 144), além do tratamento técnico no desenvolvimento de qualquer solução para os problemas ambientais. Portanto, a Laudato Sí considera que “[...] é preciso um debate científico e social que seja responsável e amplo, capaz de considerar toda a informação disponível e chamar as coisas pelo seu nome”, já em “[...] distintas linhas de pesquisa autônoma e interdisciplinar que possam trazer nova luz” (Francisco, 2015, nº 135).

Desse modo, a ecologia integral é um novo paradigma; ou seja, uma ecologia que “[...] integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia” (Francisco, 2015, nº 15). Na verdade, não se pode “[...] considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura de nossa vida” (Francisco, 2015, nº 139). Algumas lições podem ser retiradas a partir dessa concepção de ecologia, da economia à política, em diferentes culturas, e especialmente naquelas mais ameaçadas, mas também em cada momento da vida cotidiana. Assim, em última instância, existe um nexo entre as questões ambientais e as questões sociais e humanas que não podem ser rompidas. Por conseguinte, “[...] a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa com si mesma, [...]” (Francisco, 2015, nº 141) e “não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental” (Francisco, 2015, nº 139).

O conceito de teologia ecológica na Laudato Sí

Entende-se ecologia como “[...] estudo da natureza tomada como um todo em que todas as realidades, inclusive os homens, dependem umas das outras” (Bauckham, 2014, p. 592). Assim, concebe-se que a ação humana interfere e destrói uma rede de dependência e a autonomia dos ecossistemas naturais, pondo em risco a natureza e gerando uma crise ambiental, e que dessa forma “surge, então, uma tarefa teológica, a de criticar e repensar ao mesmo tempo a visão cristã do lugar do homem na criação e sua responsabilidade para com as outras criaturas” (Bauckham, 2014, p. 592).

Silva (2020) considera que há a problemática teológica que envolve a interpretação do relato da criação do mundo e dos seres humanos (Gn 1-2,4a)3. Essa passagem apresenta uma compreensão que coloca a humanidade no ‘topo’ de toda a natureza, fundamentando a sua destruição. Portanto, na Laudato Sí, encontra-se uma reviravolta teológica, rompendo com o paradigma antropocêntrico tradicional, não separando o ser humano do resto da natureza criada, mas solidário com o resto da criação. O Papa Francisco, em sua encíclica ecológica, provoca essa revolução ao afirmar: “esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (Gn 2,7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos” (Francisco, 2015, nº 2).

Revol (2016) considera que o Papa Francisco desenvolve uma teologia da criação em diálogo com a ecologia como ciência; ou seja, a biologia dos ecossistemas. A chave para interpretar essa proposição é o fato de que no parágrafo 138 encontra-se, no início da elaboração do conceito de ecologia integral, a definição científica de ecologia. Portanto, tanto a ecologia como a ciência estão em função da teologia, já que “tudo está ligado”.

Diante dessa análise, a ecologia é uma ciência que trata de todos os seres vivos que interagem uns com os outros e com seu ambiente. Essas interações formam um ecossistema. Numa dimensão de ecossistema, o resultado das redes das interações é a biodiversidade, tão necessária para a vida, se adaptando em ambientes em mudança. Observa-se que quanto mais formas de vida houver na criação, mais, como um todo, será possível discernir os vestígios de Deus. Dessa forma, a Laudato Sí desenvolve a teologia da criação vinculada à ideia da criação em perspectiva trinitária, contemplando os vestígios da Trindade refletidos na criação. Portanto, o Papa Francisco sugere que o conhecimento científico da biodiversidade conduz a uma interpretação teológica da manifestação da glória de Deus na criação (Francisco, 2015).

Aqui, propõe-se uma teologia ecológica com método interdisciplinar, apresentando uma teologia cristã da criação enquanto em relacionamento entre teologia e a ecologia. Dessa forma, a teologia ecológica compreende a criação como vestígios de Deus, sendo vista à luz da glória de Deus. Assim, a teologia cristã sobre a ecologia da Laudato Sí assume uma posição de interdisciplinaridade. Entende-se que, de fato, a encíclica ecológica é interdisciplinar, posto que inclui a ética ambiental e a ecoteologia. Dessa forma, essa concepção de interdisciplinaridade entre a teologia cristã e a ecologia trata da relação entre o ser humano e o mundo natural, ou seja, a ecologia humana, bem como com Deus Trindade, como descreve o quinto capítulo da encíclica. Portanto, a encíclica propõe associar ecologia e teologia com vistas à glória divina.

Além disso, o Papa Francisco, em sua encíclica ecológica, adota o desenvolvimento sustentável e a ação climática baseada nos princípios da precaução e da responsabilidade comum como obrigações morais. Desse modo, obriga-se a mudar as relações de dominação entre nós e com a natureza, dominação descrita como pecaminosa e que afeta, assim, as nossas relações com Deus Trino.

Ademais, a prioridade é dar atenção ao mais pobre, a quem a natureza é hoje assimilada, já que o paradigma atual possui uma ética utilitária e uma prioridade dada ao progresso tecnológico e ao consumismo, reduzindo a liberdade humana. Dessa forma, a solução da crise ecológica reside na educação, numa conversão ecológica segundo o modelo da Trindade; uma conversão que, antes de ser mais espiritual e cultural, é tanto individual como comunitária. É necessário abandonar o consumismo pela sobriedade, a cultura do domínio do outro e da natureza em favor da fraternidade uns com os outros. A ecologia torna-se central à mensagem cristã e, sendo assim, se poderia falar de pecado ecológico?

O Papa Francisco conclui, à luz da Trindade, que tudo está em relação:

Para os cristãos, acreditar em um Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária. [...] As Pessoas divinas são relações subsistentes; e o mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de relações. As criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada ser vivo tender, por sua vez, para outra realidade, de modo que, no seio do universo, podemos encontrar uma série inumerável de relações constantes que secretamente se entrelaçam. [...] tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade

(Francisco, 2015, nº 239-240).

A compreensão da vida imanente de Deus é de suma importância para se entender uma teologia cristã ecológica. Para Rahner e Vorgrimler (1970), a Tradição tem feito distinção entre a Trindade econômica e a Trindade imanente. A Trindade econômica (ad extra) refere-se à ação salvífica de Deus no mundo como manifestada na obra do Pai, Filho e Espírito. A Trindade imanente (ad intra) diz respeito à inter-relação entre as três pessoas em Deus. Não se trata, evidentemente, de duas trindades; na realidade, Trindade econômica é a Trindade imanente, e vice-versa. Já Moltmann (1992, p. 34) concebe que:

A doutrina trinitária da criação não parte de uma contraposição entre Deus e mundo [...]. Ela parte, [...], de uma tensão imanente de Deus mesmo: Deus cria o mundo e logo faz dele sua morada. Ele o chama à existência e, ao mesmo tempo, se manifesta através da sua existência. O mundo vive da sua força criadora e ele vive no mundo. [...] O Deus transcendente e o Deus imanente no mundo são um só Deus.

Partindo desses pressupostos, tem-se presente que, na compreensão cristã, a criação é um ato da Trindade. Neste contexto, a criação como manifestação da glória divina é uma concepção teológica que melhor corresponde ao tema ecológico da criação (Francisco, 2015, nº 33). Constata-se que a ecologia é, antes de tudo, uma questão de relações, e que as criaturas são ecológicas na medida em que são seres em relação, voltadas para Deus, para si próprias e para todas as criaturas. Em primeiro lugar, uma relação entre a Trindade e as criaturas ecológicas, posto que a Trindade é pessoal e interpessoal e, portanto, relacional, às três pessoas divinas que vivem numa comunidade de amor mútuo. Deus é um amor relacional. Consequentemente, ser criatura ecológica é possuir dentro si mesmo essa dinâmica que impulsiona para frente, para fora de si mesmo, numa relação com outro que é certamente Deus, mas também toda a criação. Assim, descobre-se a dimensão teofânica da criação. Finalmente, Deus é trinitário em suas relações de amor e unidade; contemplá-Lo é aprender a se relacionar com o meio ambiente.

Portanto, a teologia pode oferecer grande subsídio espiritual e teológico à ecologia, instigando o pensamento sobre as relações de Deus, dos humanos e do criado pelo viés da inter-relação ecológica (Bauckham, 2014). A espiritualidade ecológica possibilita contemplar a presença da Trindade em favor de todas as coisas que existem e se relacionam.

A crise antropocêntrica na modernidade com a deterioração da “casa com um”

Na encíclica Laudato Sí, o Papa Francisco argumenta que o antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade. Ele cita uma frase de Guardini, do livro “Das ende der neuzeit” (“O fim da era moderna”, tradução nossa), de que o ser humano “já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela” (Francisco, 2015, nº 115).

Em relação aos tempos modernos, segundo o Papa Francisco, verificou-se um notável excesso antropocêntrico que hoje, com outra roupagem, continua a minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços sociais. Por isso, chegou a hora de prestar novamente atenção à realidade, com os limites que ela impõe e que, por sua vez, constituem a possibilidade de um desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo. Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada sobre a relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado com a natureza era atividade de fracos. Mas a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de “administrador responsável” (Francisco, 2015).

Doravante, o Papa Francisco sublinha que a falta de preocupação em medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência, só para dar alguns exemplos, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. “Tudo está interligado”. Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o próprio homem tenta substituir a Deus e, desse modo, acaba por provocar a revolta da natureza (Francisco, 2015).

Quanto ao paradigma tecnocrático, o Papa Francisco sublinha a esquizofrenia permanente que se estende da exaltação tecnocrática e que não reconhece o valor próprio dos outros seres, até a reação de negar qualquer valor peculiar ao ser humano. Contudo, não se pode prescindir da humanidade. Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia. Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou de um determinismo físico, corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade. Um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído por um “biocentrismo”, porque isso implicaria introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes, mas acrescentará outros. Não se pode exigir do ser humano um compromisso para com o mundo se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade (Francisco, 2015).

Porventura, a crítica do antropocentrismo desordenado não deveria deixar em segundo plano também o valor das relações entre as pessoas. Se a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade, não se pode ter a ilusão de sanar a relação com a natureza e o meio ambiente sem antes curar todas as relações humanas fundamentais. Quando o pensamento cristão reivindica, ao ser humano, de acordo com o Papa Francisco, um valor peculiar acima das outras criaturas, suscita a valorização de cada pessoa humana e, assim, estimula o reconhecimento do outro. A abertura a um outro capaz de conhecer, amar e dialogar continua a ser a grande nobreza da pessoa humana. Por isso, para uma relação adequada com o mundo criado, não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura ao Tu divino. Com efeito, não se pode propor uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um confinamento asfixiante na imanência (Francisco, 2015).

O Papa Francisco realça que tudo está relacionado. Com efeito, não é compatível a defesa da natureza com a justificação do aborto. Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá proteção a um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incômodos e dificuldades: se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento de uma nova vida, definham-se também outras formas de acolhimento úteis à vida social (Francisco, 2015).

Espera-se, conforme o Papa Francisco, o desenvolvimento de uma nova síntese que ultrapasse as falsas dialéticas dos últimos séculos. O próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e ao tesouro de verdade que recebeu de Jesus Cristo, não cessa de se repensar e reformular em diálogo com as novas situações históricas, deixando desabrochar assim a sua eterna novidade (Francisco, 2015). A fé cristã precisa dialogar com a pluralidade de visões presentes no mundo atualmente.

A exortação apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia”, do Papa Francisco, focaliza cinco desafios para que as pessoas exercitem a profecia da contemplação: a consciência insensível; o valor da diversidade de espécies; a necessidade de encarar a Amazônia com o olhar dos povos nativo; despertar o sentido estético e contemplativo e a Amazônia como um lugar teológico. Desse modo, as pessoas passam a encarar a Amazônia como uma oportunidade de ter uma profunda experiência de Deus com a diversidade das espécies e com os povos nativos. Elas podem, acima de tudo, fazer pesquisas na dimensão da Antropologia Cultural com o intuito de conhecer a beleza do local, dos alimentos e dos valores, assim como a intimidade com a Amazônia, a fim de reconhecer a valiosa presença do Deus Criador.

O primeiro desafio trata da consciência insensível, de sorte que a constante distração tira a coragem de advertir a realidade de um mundo limitado e finito. Se as pessoas se detiverem na superfície, pode parecer que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Esse comportamento evasivo serve simplesmente para manter o estilo de vida, de produção e até mesmo de consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes e age como se nada tivesse acontecido (Francisco, 2020a).

O valor da diversidade de espécies corresponde, por sua vez, ao segundo desafio. As diferentes espécies têm valor em si mesma. Ora, anualmente desaparecem milhares de espécies vegetais e animais que já não podem ser conhecidos e que a próxima geração não poderá ver; perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade humana. Por causa de cada pessoa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar a sua própria mensagem. Não têm o direito de fazê-lo (Francisco, 2020a).

A necessidade de encarar a Amazônia com o olhar dos povos nativos compreende o terceiro desafio. À proporção que se aprende com os povos nativos, pode-se contemplar a Amazônia, e não apenas analisá-la, para reconhecer esse precioso mistério que supera a mentalidade; pode-se “amá-la”, e não apenas usá-la, para que o amor desperte um interesse profundo e sincero. Mais ainda: pode-se “sentir-nos intimamente unidos a ela”, e não só defendê-la. Com isso, a Amazônia se torna como uma mãe, pois através dela se contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro, de modo a reconhecer os laços com que o Pai uniu a todos os seres (Francisco, 2020a).

Quarto desafio: despertar o sentido estético e contemplativo colocado por Deus no coração de cada pessoa e que, às vezes, deixa atrofiar. Lembre-se de que, quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos. Distintamente, se entra em comunhão com a floresta, facilmente a voz se unirá à dela e transformar-se-á em oração. Disso decorre a conversão interior que possibilita chorar pela Amazônia e, posteriormente, gritar com ela diante do Senhor (Francisco, 2020a).

A Amazônia como um lugar teológico consiste no quinto desafio. Jesus disse: “Não se vendem cinco passarinhos por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus” (Lc 12,6). Deus Pai, que criou com infinito amor cada ser do universo, chama cada pessoa a ser seu instrumento para escutar o grito da Amazônia. Se alguém acudir a esse clamor angustiado, tornar-se-á manifesto que as criaturas da Amazônia não foram esquecidas pelo Pai do céu (Francisco, 2020a).

A união da Ecologia com a Antropologia em vista da preservação da “casa-jardim” à luz de uma leitura habermasiana de comunidades razoáveis

Quando se medita a respeito da união da Ecologia com a Antropologia, nota-se uma nova maneira de ver o mundo a partir da ética do cuidado. Nesse sentido, o momento pandêmico exige das pessoas o isolamento, mas sem perder a dimensão comunicativa através de gestos que geram a vivência da caridade e da justiça, como por exemplo, a preocupação com as pessoas ao redor, vizinhos, bairro, cidade e igreja. Isso implica entrar em contato por telefone, Internet e ir ao encontro presencial com todo cuidado necessário e expressar a solidariedade com o outro por meio da escuta atenta, da ajuda espiritual e material.

Em face da pandemia, esse pensamento corrobora a urgência de uma transformação na maneira de se relacionar com o mundo, com as pessoas e com Deus. Urge a necessidade da ética do cuidado para que a pessoa possa viver, realmente, em harmonia na casa comum proposta pela Laudato Sí.

A relação de cuidado consiste num tema que também foi discutido no texto da Pontifícia Academia para a Vida. As pessoas são, portanto, chamadas a reconhecerem, com emoções novas e profundas, que são confiadas umas com as outras. Nunca antes a relação de cuidado foi apresentada como paradigma fundamental da convivência humana. “A mudança da interdependência de fato em solidariedade desejada não é uma transformação automática” (Pontificia Accademia per la Vita, 2020, p. 3, tradução nossa)4. Abre-se o compromisso solidário e que vai contra a onda da autossuficiência e da exploração humana e do meio ambiente.

O Papa Francisco, no seu livro “Vida após pandemia”, no tópico “Superar os desafios globais”, mostra que as pessoas são feitas de matéria terrena e que os frutos da terra sustentam a vida. Mas, como recorda o livro de Gênesis, as pessoas não são simplesmente “terrestres”: cada uma tem, também, o sopro vital que vem de Deus (Cf. Gn 2,4-7) (Francisco, 2020b).

O Papa Francisco postula que o mundo carece de que as pessoas reconheçam a responsabilidade que têm de serem guardiães e administradoras da casa comum. O egoísmo se manifesta nos gestos desordenados, dentre eles a poluição. Há, com isso, “a deterioração da casa comum” (Francisco, 2020b, p. 60). O Papa Francisco considera o valor dos movimentos internacionais e locais no intuito de despertar as consciências. Faz-se necessária uma consciência ecológica crítica a respeito do desmatamento e da comercialização dos animais silvestres, que geram o desequilíbrio ambiental e o afloramento de novos vírus na população. Essa consciência ecológica deve priorizar o respeito pela fauna e pela flora no âmbito de uma antropologia que cuide da natureza como na preservação de uma casa preciosa para futuras gerações (Francisco, 2020b).

O Papa Francisco salienta a falha na preservação da casa-jardim. Com efeito, aponta também o pecado contra a terra, contra o próximo e contra o Criador. Falha-se na preservação da terra, da casa-jardim e na tutela dos irmãos. Peca-se contra a terra, contra o próximo e, em última análise, contra o Criador; o bom Pai que vela sobre todos e quer que vivam juntos em comunhão e prosperidade. Disso resulta pensar sobre como seria a reação da Terra? Há um ditado espanhol que é muito claro sobre essa indagação: “‘Deus perdoa sempre; nós, homens, às vezes; a terra, nunca’. A terra não perdoa: se deteriorarmos a terra, a resposta será terrível” (Francisco, 2020b, p. 60).

O Papa Francisco recorda no seu livro o sentido estético e contemplativo de Deus a partir da exortação “Querida Amazônia”. Com isso, ele desenvolve a profecia da contemplação relacionada ao “bem-viver” em harmonia com a Terra. Algo que necessita, da parte de cada pessoa, do aprendizado com os povos originários, visto que “bem-viver” não é passar bem e sim viver em harmonia (Francisco, 2020a).

A Constituição da República Federativa do Brasil apregoa a liberdade de crença religiosa, visão filosófica ou política a cada cidadão. Nota-se que a tolerância religiosa se dá à proporção em que cada comunidade pós-convencional possa respeitar os valores públicos e religiosos dos integrantes do Estado liberal. A Constituição relata: “VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (Brasil, 2011, Art. 5º).

Luiz Bernardo Leite Araújo, na “Apresentação à edição brasileira” do livro “Fé e saber” de Habermas, afirma que o autor investiga a secularização e a laicização.

Habermas propõe uma reavaliação da tese tradicional da secularização com vistas a um questionamento do secularismo como visão de mundo. Não resta dúvida de que a laicização da autoridade política é a viga mestra do processo de secularização, do qual fazem parte a separação entre igreja e Estado, a instauração do pluralismo religioso e a adoção do regime de tolerância mútua entre credos e doutrinas divergentes

(Habermas, 2013, p. 17, grifo nosso).

Habermas destaca o fundamentalismo como um problema emergente na sociedade secularizante. Ele cita, como exemplo, os terroristas islâmicos:

Apesar de sua linguagem religiosa, o fundamentalismo é um fenômeno exclusivamente moderno. O que chama particularmente a atenção nos terroristas islâmicos é a assincronia entre os motivos e os meios [...] nesses países, a perspectiva de uma melhoria das condições materiais de vida é apenas uma perspectiva. O mais decisivo é que se bloqueia, por meio dos sentimentos de degradação, a transformação espiritual que se expressaria politicamente na separação entre religião e Estado

(Habermas, 2013, p. 3).

As comunidades religiosas podem receber o título de “razoáveis” à proporção em que dialogam com o Estado liberal. Caso contrário, elas podem cair na imposição violenta de seus ideais em detrimento do senso comum civilizador do nível pós-convencional.

Não é levado em conta o papel civilizador de um senso comum [Commonsense] democraticamente esclarecido que, em meio aos ânimos exacerbados da luta cultural, funciona como um terceiro partido, pavimentando seu próprio caminho entre a ciência e a religião. É certo que, do ponto de vista do Estado liberal, só merecem o predicado “razoáveis” as comunidades religiosas que segundo seu próprio discernimento, renunciam à imposição violenta de suas verdades de fé, à pressão militante sobre as consciências de seus próprios membros, e tanto mais à manipulação para atentados suicidas

(Habermas, 2013, p. 6, grifo nosso).

Faz-se necessário elencar, conforme Habermas, alguns aspectos relevantes das comunidades razoáveis frente à sociedade pluralista. Primeiramente, a consciência religiosa tem de assimilar o encontro cognitivamente dissonante com outras confissões e religiões. Em segundo lugar, ela tem de adaptar-se à autoridade das ciências, que detêm o monopólio social do saber mundano. Por fim, ela tem de adequar-se às premissas do Estado constitucional, que se fundam em uma moral profana. Para conseguir essa proeza, é indispensável um impulso reflexivo (Reflexionsschub) para que seja dado um novo passo a cada conflito que irrompe nos campos de batalha da esfera pública democrática (Habermas, 2013).

As comunidades religiosas precisam traduzir suas convicções numa linguagem pública. Por essa razão, elas são comunidades razoáveis. Desse modo, o Estado liberal deve ser aberto, a fim de possibilitar as manifestações religiosas de cada denominação religiosa.

A liberdade religiosa tem como contrapartida, de fato, uma pacificação do pluralismo das visões de mundo cujos custos se mostraram desiguais. Até aqui, o Estado Liberal só exige dos que são crentes entre seus cidadãos que dividam a sua identidade, por assim dizer, em seus aspectos públicos e privados. São eles que têm de traduzir as suas convicções religiosas para uma linguagem secular antes de tentar, com seus argumentos, obter o consentimento das maiorias

(Habermas, 2013, p. 15).

A argumentação secular e a religiosa não podem perder de vista a perspectiva do outro, como aquele que torna fluido o que é sólido. No diálogo, algumas coisas são ganhas e outras são perdidas, mas sem que se perca a identidade de cada uma. Habermas expressa: “Os limites entre os argumentos seculares e religiosos são inevitavelmente fluidos. Logo, o estabelecimento da fronteira controversa deve ser compreendido como uma tarefa cooperativa em que se exija dos dois lados aceitarem também a perspectiva do outro” (Habermas, 2013, p. 16).

Habermas assume uma posição kantiana ao se referir à religião na sua obra “Entre naturalismo e religião” e vai além dela de maneira que aponta um sentido pós-metafísico e pós-cristão. O pensador afirma que:

A autocrítica da razão, formulada por Kant, visa dois pontos, a saber: a posição da razão teórica quanto à tradição metafísica e a posição da razão prática quanto à doutrina cristã. Ao passar pela autorreflexão transcendental, o pensamento filosófico configura-se, de um lado, como pensamento pós-metafísico e, de outro lado, como pensamento pós-cristão – o que não significa, todavia, que ele deva ser necessariamente anticristão

(Habermas, 2007, p. 235).

Kant, segundo Habermas, ampliou a liberdade de arbítrio de modo a abarcar a autonomia e, com isso, forneceu o primeiro grande exemplo – após a metafísica –, de uma desconstrução concomitantemente secularizante e salvadora das verdades da fé (Habermas, 2013). Assim, a razão profana pode guardar distância da religião sem fechar-se às suas perspectivas.

Considerações Finais

O Papa Francisco vai, então, mais fundo no paradigma tecnológico, detectando nele o desejo do ser humano de possuir as coisas para manipulá-las. Entretanto, mais do que isso, a tecnologia condiciona o estilo de vida humano/o interesse dos grupos de poder. Aqueles que possuem tecnologia são movidos não pela utilidade ou bem-estar, mas pela dominação. E, como resultado, a crise ecológica é, na realidade, uma crise ética e espiritual. Assim, Laudato Sí debate virulentamente o desenvolvimento tecnológico orientado à corrida do lucro.

A cultura ecológica deve resistir permanentemente ao paradigma tecnocrático e ao desenvolvimento global, porque não basta resolver um problema ambiental com uma solução técnica simples. É preciso pôr a tecnologia a serviço dos outros e do bem comum. Por fim, aqui, concebe que tudo está ligado por meio da interdependência entre ecologia do meio ambiente, economia e social acrescentado o conhecimento das ciências. É preciso ouvir o “clamor dos pobres e da terra” tanto quanto rejeitar a “cultura do descarte” e trazer uma dimensão espiritual ao compromisso de preservar o planeta. Portanto, é um apelo a renovar o vínculo com a natureza, com os outros, consigo mesmo e com Deus. Essas relações são interdependentes. Enfim, a ecologia integral é um novo paradigma, porque integra desde a economia à política, respeitando as diferentes culturas dos povos e o quotidiano da vida.

Na interação dinâmica das criaturas, constata-se a teologia cristã da criação à luz da Trindade ao considerar a glória de Deus manifestada em toda a criação. Para tanto, a imanência de Deus é fundamental para se entender uma teologia cristã ecológica. Segundo os teólogos Rahner, Vorgrimler e Moltmann não se pode partir da separação de Deus e o resto da criação. O Deus da Salvação é o mesmo Deus imanente. Assim, a criação é o reflexo da teofania da glória de Deus, cuja concepção ecológica da criação está em perspectiva trinitária. Essa visão concebe que a teologia da criação situa-se no contexto de uma orientação interdisciplinar; ou seja, enquanto diálogo das ciências com as tecnologias e da tradição teológica com a nova concepção ecológica da Laudato Sí de que tudo está ligado.

As categorias casa comum e casa-jardim nomeadas pelo Papa Francisco são extremamente enriquecedoras, visto que vem ao encontro do momento pandêmico para despertar uma nova consciência fundamentada na preservação da vida e do estreitamento dos laços que caracterizam as verdadeiras amizades. Essas, por sua vez, humanizam e alargam os horizontes no desejo da união entre a Ecologia e a Antropologia.

A urgência da união entre Ecologia e Antropologia sugere meditar a imagem da casa, que remete à intimidade e ao pensamento de que cada pessoa é singular, de modo que possui um jardim a ser preservado. Vale ressaltar o meio ambiente como casa comum a ser cultivada, amada e respeitada, conforme a conduta alicerçada pela corresponsabilidade. Com isso, “perde-se o tempo” para todas as coisas que promovem a autossuficiência e “ganha-se o tempo” no amor e na dedicação conferida no decorrer do dia a dia com objetividade. A pandemia é, portanto, um alerta de que é imprescindível uma Ecologia com a Antropologia em vista do cuidado. Assim, nota-se que o mundo revela a grandeza do Deus Criador, que dá a vida a cada ser por amor.

A visão habermasiana aponta a necessidade de polarizar a discussão laica e religiosa de modo que cada um possa expressar seus posicionamentos. Esta atitude é uma voz que se direciona às comunidades religiosas portadoras de um papel importante na esfera pública. Sem a dimensão religiosa, os conflitos continuarão a existir. Com isso, o discurso religioso pode ser traduzido, por intermédio do diálogo com a diversidade cultural em vista do bem comum.

Ser tolerante no Estado liberal é indispensável para que ocorra o diálogo da fé com a razão. À medida que as comunidades religiosas traduzam seus valores no âmbito público, mais proximidade terão com as comunidades razoáveis pós-convencionais, que são abertas ao exercício da razão comunicativa e a novos horizontes podem se abrir no ponto de vista da esfera pública.

Referências

Bauckham, R. Ecologia. In: Lacoste, J.-Y. Dicionário crítico de teologia. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2014.

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1995.

Brasil. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2011. (Coleção Saraiva de Legislação).

Habermas, J. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.

Habermas, J. Fé e saber. São Paulo: UNESP, 2013.

Francisco, Papa. Carta Encíclica Laudato sí: sobre o cuidado da casa comum. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2015.

Francisco, Papa. Exortação Apostólica Pós-Sinodal: querida Amazônia. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2020a. Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20200202_querida-amazonia.html. Acesso em: 18 jul. 2020.

Francisco, Papa. Vida após a pandemia. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2020b. Disponível em: https://anec.org.br/wp-content/uploads/2020/05/Vida-apo%CC%81s-a-Pandemia-Papa-Francisco.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.

Moltmann, J. Deus na criação: doutrina ecológica da criação. Petrópolis: Vozes, 1992.

Pontificia Accademia per la Vita. Pandemia e fraternità universale: nota sulla emergenza da Covid-19. Roma: Pontificia Accademia per la Vita, 2020. Disponibile in: http://www.academyforlife.va/content/dam/pav/documenti%20pdf/2020/Nota%20Covid19/Nota%20su%20emergenza%20Covid-19_ITA_.pdf. Accesso in: 16 luglio 2020.

Rahner, K.; Vorgrimler, H. Petit dicitionnaire de théologie catholique. Paris: Éditions du Seuil, 1970.

Revol, F. Le Pape et les science dans la lettre encyclique Laudato sí. Histoire, Monde & Cultures Religieuses, v. 40, n. 4, p. 71-80, 2016. Disponible en: https://www.cairn.info/revue-histoire-monde-et-cultures-religieuses-2016-4-page-71.htm. Accès en: 25 sept. 2020.

Silva, W. A. A Bíblia e a crise ecológica: reinterpretando Gn 1,28 frente ao paradigma tecnocrático. Revista Contemplação, n. 22, p. 71-84, 2020. Disponível em: http://fajopa.com/contemplacao/index.php/contemplacao/article/view/237/256. Acesso em: 25 sept. 2020.

Notas

3 Todas as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia de Jerusalém (1995).
4 No original: “Il mutamento dell’interdipendenza di fatto in solidarietà voluta non è una trasformazione automática” (Pontificia Accademia per la Vita, 2020, p. 3).
Como citar este articulo: Silva, N. M. B.; Costa Junior, A. A ecologia e a antropologiano Papa Francisco: uma leitura à luz de Habermas acerca da tolerância religiosa. Reflexão, v. 46, e215152, 2021. https://doi.org/10.24220/24476803v46e2021a5152

Autor notes

Colaboradores Ambos os autores participaram igualmente de todas as etapas da confecção do artigo.

Correspondência para/Correspondence to: N.M.B. SILVA. E-mail: nelsonbrecho@yahoo.com.br.

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