Artigo

Jesuítas e ensino religioso no Brasil

The Jesuits and religious education in Brazil

Eraldo Leme Batista
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil

Jesuítas e ensino religioso no Brasil

Reflexão, vol. 46, e205007, 2021

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Recepção: 16 Novembro 2019

Revised document received: 11 Outubro 2020

Aprovação: 16 Outubro 2020

Resumo: Neste artigo, abordamos os primórdios da educação religiosa em terras brasileiras, destacando como a metrópole portuguesa realizou as primeiras experiências educacionais no Brasil Colônia mediante ações catequéticas e educacionais da Companhia de Jesus, ordem religiosa sob o comando da Igreja Católica. Os jesuítas, com apoio incondicional da Coroa portuguesa, desenvolveram hegemonicamente o trabalho educacional em terras nativas em um período em que a Igreja buscava se fortalecer. A Companhia de Jesus, chefiada por Manuel da Nóbrega, chegou ao solo brasileiro no ano de 1549 com a missão de evangelizar e instruir. Os primeiros ensaios educacionais dos padres jesuítas foram com as crianças indígenas, tendo em conta que os índios adultos se evadiam, rejeitando a aproximação que visava à catequização. O objetivo do artigo é analisar a educação brasileira no Brasil Colônia no período histórico de 1549 a 1759, fase em que os jesuítas desenvolveram suas atividades religiosas e educacionais no país, sendo depois expulsos pelo Marquês de Pombal. Entendemos que o primeiro trabalho pedagógico, educacional e de ensino religioso foi realizado sistematicamente na colônia pelos jesuítas, com apoio do governo de Portugal, portanto estatal.

Palavras-chave: Colonização brasileira, Companhia de Jesus, Ensino religioso, Jesuítas.

Abstract: This paper discusses the beginning of religious education in Brazil, showing the way Portugal performed the early educational initiatives in colonial Brazil, in which catechetical and educational actions were taken by the Society of Jesus, a religious order of The Catholic Church. The Jesuits, by unconditional Portuguese royal support, hegemonically developed educational work on native lands at a time when The Church sought to gain strength. The Society of Jesus, headed by Father Manuel da Nóbrega, landed in Brazil in 1549, with the mission of evangelizing and teaching. The first educational attempts of the Jesuits involved the indigenous children, because adult Indians evaded and rejected the approach aiming at catechization. The purpose of this paper is to review Brazilian education in colonial Brazil, during the historical period from 1549 to 1759, a time when the Jesuits developed their religious and educational activities in the country and were later expelled by the Marquis of Pombal. It is understood here that the first pedagogical, educational and religious teaching work was systematically carried out in the colony by the Jesuits, with the support of the government of Portugal, therefore with state support.

Keywords: Brazilian colonization, Company of Jesus, Religious education, Jesuits.

Introdução

Para um debate a respeito do ensino religioso e dos jesuítas no Brasil, é fundamental contextualizarmos, mesmo que de maneira breve, o que se passava nesse período histórico - séculos XVI e XVII - na Europa e as mudanças que lá ocorriam. Foi um momento de profundas transformações na sociedade, tanto em relação a questões religiosas como políticas e filosóficas. Novas ideias, pensamentos, teorias sobre o mundo e o universo ganhavam destaque. Portugal e Espanha estavam à frente dos demais países no que se referia a navegações, com pesquisas marítimas, além das diversas possibilidades mercantis nas Índias e, posteriormente, em novos continentes. Nesse período, surgiu o humanismo2, uma corrente teórica e filosófica que questionava dogmas, preceitos e práticas da Igreja Católica. Também a criação da imprensa contribuiu para a divulgação dessas novas ideias e pensamentos sobre outras perspectivas de funcionamento da sociedade.

Ao analisar esse período histórico, a filósofa Aranha (2006) contribui com suas assertivas para entendermos a crise na Igreja Católica. Segundo a pensadora, a maior tensão da Igreja “[...] deu-se no século XVI, com a Reforma Protestante. Contrariando as restrições feitas pelos católicos aos negócios e a condenação ao empréstimo a juros, os protestantes viam no enriquecimento um sinal de favorecimento divino” (Aranha, 2006, p. 125). A referida autora continua sua reflexão observando que, em decorrência do crescimento do protestantismo, “[...] a Igreja Católica desencadeou forte reação, conhecida como Contrarreforma, a fim de recuperar o poder perdido”. E foi no Concílio de Trento (1545-1563) que se “[...] reafirmaram a supremacia papal e os princípios da fé, além de estimular a criação de seminários, para formar padres. A Inquisição tornou-se mais atuante, sobretudo em Portugal e Espanha” (Aranha, 2006, p. 125).

Em virtude dos laços estabelecidos entre Igreja e Coroa portuguesa, os jesuítas tiveram apoio político e logístico para aportar em solo brasileiro e desenvolver trabalho catequético e educacional (Kist, 2008). É importante lembrar que a religião católica era oficial em Portugal, o que facilitava o trabalho dos inacianos em colônia portuguesa. Em análise sobre o tema, Ferreira Júnior (2010, p. 17) constata que:

No caso brasileiro, devido ao fato de que o reino de Portugal assumiu o catolicismo como religião oficial (Padroado), os padres da Companhia de Jesus exerceram um controle de 210 anos (1549-1759) na educação colonial. Assim, a história da educação brasileira (e do ensino religioso no país) não pode, desde sua origem, ser desassociada da educação europeia. Ela é fruto, diretamente, das ações econômicas desencadeadas pela burguesia mercantil, das grandes navegações e, como já foi dito, das reformas religiosas.

Consideramos que o apoio da Coroa foi fundamental para a permanência dos jesuítas por mais de 200 anos no trabalho missionário e educacional na colônia. Ressaltamos a pertinência das observações do autor supracitado, pois de fato a história do ensino religioso no Brasil esteve, desde a sua origem, vinculada à história da educação do país, uma vez que a educação e o primeiro método pedagógico foram introduzidos aqui pelos padres da Companhia de Jesus.

Destacamos que esse longo período de trabalho foi essencial para que os padres jesuítas implementassem uma virtuosa experiência educacional no país, construindo diversas missões e facilitando, assim, a aproximação com os índios. A educação originária no Brasil recebeu influências europeias, com a implementação de um método de estudos desenvolvido pelos padres da Companhia de Jesus na Espanha e na França3. Os missionários tiveram sua formação baseada no projeto do fundador da ordem religiosa de Inácio de Loyola4, então militar convertido ao catolicismo. Disciplina, ordem, dedicação, desprendimento, além de preparação para trabalhos em terras distantes, sob inúmeras adversidades, eram exigências básicas para ser um missionário da Companhia de Jesus. Esses homens eram, com efeito, soldados de Cristo, militantes da fé e dos dogmas da Igreja, dedicados ao trabalho de divulgação dos preceitos da Igreja Católica e das deliberações do Concílio de Trento4. Este, entre suas principais medidas, construiu “[...] Seminários para a formação dos futuros sacerdotes, reforçou a atuação da Inquisição e criou o Index Librorum Prohibitorum, lista de livros proibidos aos católicos por conterem ideias consideradas contrárias à fé católica” (Azevedo; Seriacopi, 2010, p. 263, grifo meu).

A partir da Reforma Protestante, a Companhia de Jesus teve papel estratégico nas colônias, tanto de Portugal quanto da Espanha, para ampliar as ações da Igreja Católica no que dizia respeito à religião e à aquisição de bens, posses e terras nesses continentes colonizados. Essa congregação religiosa fez frente aos protestantes na disputa pela questão educacional, tendo êxito por três séculos na Europa6.

Consideramos que a constituição da Companhia de Jesus visava reprimir o avanço do protestantismo na Europa e pelo mundo. Os missionários da Companhia de Jesus foram fundamentais nesse projeto, contribuindo para expandir a Igreja Católica além-mar, legitimando e justificando seus dogmas. É importante lembrarmos que o Concílio de Trento foi organizado com o objetivo de analisar e deliberar propostas em oposição à Reforma Protestante, sendo uma de suas considerações justamente a radicalização da Inquisição, iniciando um processo mais acentuado de perseguição, de prisões e de julgamentos daqueles que se opunham publicamente aos dogmas da Igreja. A educação era uma das principais questões debatidas por Lutero, e, nesse embate, seriam os jesuítas os portadores de um projeto educacional que seguiria por 300 anos, fortalecendo a Igreja e contrapondo-se ao movimento de Lutero.

Considerando as questões relativas a esse processo, Piletti e Piletti (2002, p. 134) elucidam que a Companhia de Jesus “[...] foi fundada por Inácio de Loyola, em 1534, dentro do movimento de reação da Igreja Católica contra a Reforma Protestante”. Destacam ainda que o principal objetivo da constituição dessa congregação de missionários católicos “[...] era deter o avanço protestante em duas frentes: através da educação das novas gerações e por meio da ação missionária, procurando converter à fé católica os povos das regiões que estavam sendo colonizados” (Piletti; Piletti, 2002, p. 134).

Cabe ressaltar que essa ordem religiosa foi criada em 1534, portanto 17 anos após Lutero divulgar suas teses sobre a Igreja Católica e seus dogmas. Assim, a Companhia de Jesus foi criada para fazer frente aos protestantes, principalmente na questão educacional, tarefa na qual lograram êxito, com sua expansão acontecendo rapidamente para os países colonizados por Portugal e Espanha, catequisando índios, colonos e, mais tarde, escravos. Nessas colônias, desenvolveram experiências exitosas no campo educacional, criando em 1599 o método Ratio Studiorum7.

Ao discorrer análise sobre a Companhia de Jesus, Raymundo (1998, p. 43) destaca que esta “[...] é produto de um interesse mútuo entre a Coroa de Portugal e o Papado. Ela é útil à Igreja e ao Estado emergente”. Existia uma relação de benefício tanto para a Igreja como para a Coroa Portuguesa, uma vez que os objetivos de ambas as instituições confluíam em interesses idênticos, com a pretensão de expandirem-se mundo afora e “defender as novas fronteiras, somar forças, integrar interesses leigos e cristãos, organizar o trabalho no Novo Mundo pela força da unidade lei-rei-fé” (Raymundo, 1998, p. 43).

Essa confluência de interesses beneficiava os jesuítas, pois garantia que a missão de catequizar e instruir os índios se concretizasse na prática, com apoio do governo português e de seus representantes legais na nova terra. Em contrapartida, o trabalho de catequização e também de educação possibilitava inserir os povos indígenas na lógica da colonização e da exploração do novo continente. Educá-los e catequizá-los favorecia que fossem alcançados os objetivos da colonização, ou seja, produzir riquezas e explorar a mata, buscando, com isso, enviar para o Velho Continente pau-brasil, cana-de-açúcar e outras riquezas aqui encontradas, como posteriormente ocorreria com a descoberta do ouro.

Logo que chegaram a terras brasílicas, os jesuítas instalaram-se em Salvador, Bahia, iniciando a missão que lhes havia sido outorgada pela Igreja e pela Coroa portuguesa. Essa localidade era chamada de Pereira, depois denominada Vila Velha, uma região que contava com um número reduzido de portugueses.

Era o período de surgimento de um país em condições adversas, quando colonizadores, padres e missionários sofriam com as dificuldades encontradas. Estamos falando de uma sociedade que nasceu duplamente explorada por aqueles que aqui se instalavam e pelos interesses da Coroa portuguesa, que dessas terras distantes queria apenas as riquezas. Chegaram no país implantando um novo comportamento, uma nova cultura, uma nova forma de organização societal, na qual os índios seriam aos poucos disciplinados, orientados, catequizados para uma nova religião, um novo Deus e novos modos de viver e conviver, mudando seus hábitos e costumes. Nesse processo, a religião era fundamental para que os nativos aceitassem a colonização sem criar resistências.

Com relação à chegada dos missionários da Companhia de Jesus, Nóbrega (1988, p. 71) registra esse momento:

Chegamos a esta Bahia a 29 dias do mês de março de 1549. Andamos na viagem oito semanas. Achamos a terra de paz e quarenta ou cinquenta moradores na povoação que antes era; receberam-nos com grande alegria e achamos uma maneira de igreja, junto da qual logo nos aposentamos os Padres e Irmãos em umas casas a par delia, que não foi pouca consolação para nós para dizermos missas e confessarmos. E nisso nos ocupamos agora.

Após o desembarque em terras brasileiras, Nóbrega relata as primeiras experiências dos jesuítas e as primeiras ocupações e atividades. Foi com esse trabalho que os inacianos abriram caminho para a penetração dos colonizadores, os quais foram adentrando e ocupando as terras dos povos que aqui habitavam antes de 1500. Recorrendo ao trabalho educativo, os padres ensinavam as primeiras letras, mas ensinavam também a doutrina católica e os costumes europeus, buscando transformar o modo de vida dos índios. De Salvador, partiram em missões para diversas regiões do país, enfrentando inúmeros obstáculos, como a densa selva de difícil acesso, as questões climáticas, os vários perigos presentes na floresta, como animais selvagens e mesmo tribos canibais. Os catequizadores dirigiram-se então para o Sul e posteriormente para o Norte do Brasil.

Era urgente e primordial formar sacerdotes para ampliar o processo de evangelização e de educação na colônia, modulando para que pudessem enfrentar todas as adversidades presentes no novo continente. Era fundamental formar sacerdotes nessa nova lógica e perspectiva de trabalho e catequese, garantindo o processo de doutrinação dos povos nativos que aqui residiam. Ao desenvolver considerações sobre o trabalho dos missionários que aportaram no Brasil, Xavier, Ribeiro e Noronha (1994, p. 41) destacam que os padres da Companhia de Jesus “[...] deveriam cuidar da reprodução interna do contingente de sacerdotes, necessário para a garantia da continuidade da obra”.

Na questão educacional, o objetivo desses missionários era “[...] aculturar e converter ‘ignorantes’ e ‘ingênuos’, como os nativos, e criar uma atmosfera civilizada e religiosa para os degredados e aventureiros que para aqui viessem” (Xavier; Ribeiro; Noronha, 1994, p. 41). Tratava-se de um trabalho difícil, levando em consideração que os nativos nunca haviam tido contato com outros povos e sua cultura era totalmente diferente daquela dos europeus.

Fazia parte dos objetivos da colonização povoar, como também era essencial desenvolver técnicas para a produção local, habilidades rudimentares que muitos colonos não detinham, e os índios tampouco. Eram técnicas para produzir artefatos de subsistência, criação de gado e manutenção dos colégios e das missões. Sendo assim, era preciso domesticar os nativos e educá-los para esse tipo de trabalho. “[...] Na verdade, tratava-se de uma ação concentrada e temporária, ‘heroica’ como adjetivam nossos historiadores, para abrir espaços, sondar terreno e criar condições para o efetivo povoamento da Colônia” (Xavier; Ribeiro; Noronha, 1994, p. 41).

Era estratégico catequizar os índios para aceitarem o Deus “verdadeiro”, o Deus da Igreja Católica, o Deus dos europeus, enfim, o Deus que salvaria a todos do pecado, do inferno, uma vez que, com a aceitação do catolicismo, o recém-convertido era batizado e passava a ter uma alma. Desse modo, a missão dos jesuítas precisava lograr êxito, pois era necessário converter o povo desalmado que aqui habitava, direcionando-o para os caminhos do Senhor. O trabalho de catequizar irá caracterizar os padres inacianos como soldados do Senhor. Tratava-se de fato de “[...] dominar, pela fé, os instintos selvagens dos donos da terra, que nem sempre recebiam pacificamente os novos proprietários, difundindo o pânico entre a população metropolitana que ansiava por oportunidades econômicas num mundo menos competitivo” (Xavier; Ribeiro; Noronha, 1994, p. 41).

Com base no exposto por Xavier, Ribeiro e Noronha (1994), concluímos que o início do trabalho catequético e educacional não foi tarefa fácil. Os índios adultos não aceitavam as investidas dos religiosos e resistiam, afastando-se, evitando contato ou até mesmo fugindo para a densa mata. Houve situações em que aldeias inteiras, muito a contragosto, fugiram dos colonos e dos religiosos, migrando para o interior da floresta brasileira. As tribos que não resistiram ou aceitaram sem muita contestação as ações dos jesuítas foram paulatinamente domesticadas, doutrinadas e evangelizadas.

Ao tratar desse tema, Ferreira Júnior (2010, p. 19) nos apresenta as dificuldades dos missionários no processo de catequização, quando as intenções dos inacianos esbarravam na cultura dos nativos, nos “[...] elementos culturais que estruturavam as sociedades tupis-guaranis, habitantes do litoral da colônia lusitana. Assim, a experiência catequética com índios adultos não prosperou porque já eram portadores de uma concepção de mundo”. E foi essa concepção de mundo diferente dos europeus que criou dificuldades para o trabalho catequético e educacional. Vários grupos indígenas tinham a prática da antropofagia, além “[...] da poligamia, da nudez, da pajelança, da guerra e do nomadismo, isto é, [...] praticavam hábitos culturais considerados pelos colonos como violação dos preceitos religiosos cristãos” (Ferreira Júnior, 2010, p. 19).

Ao constatarem a aversão que os índios adultos apresentavam no tocante à ação evangelizadora, os clérigos da corporação religiosa mudaram a prática da evangelização, priorizando o trabalho com as crianças (os curumins). Na nova tática catequizante, as crianças nativas eram tidas como mensageiras de uma dupla potencialidade: primeiro, elas ainda não estavam totalmente “contaminadas” pelas noções culturais tidas como pecados e, segundo, mediante a incorporação da doutrina católica, questionavam os costumes culturais praticados pelos índios adultos. Nesse ponto, por conhecerem a terra onde habitavam e pela relação que tinham com a floresta, não era difícil para os indígenas migrarem e se estabelecerem em outras regiões, distantes dos europeus. Essa diferença era clara, pois os povos indígenas estavam em sua própria casa, e migrar de uma região para outra era prática das organizações indígenas, sempre em busca de alimentos e localidades mais abastadas para sobreviverem.

Outra estratégia utilizada pelos jesuítas na tarefa de catequizar foi a organização de missões itinerantes:

[...] na forma de Recolhimentos ou, como se revelaria mais eficiente, de Aldeamento. Mais do que a pregação esporádica, o sistema de internatos para crianças indígenas e, principalmente, a reorganização total da vida em comunidade, através das Aldeias, levaram os jesuítas a penetrar decisivamente na vida da população nativa (Xavier; Ribeiro; Noronha, 1994, p. 42).

Essa prática de reunir os indígenas em um espaço organizado adotava uma estrutura que previa a existência de espaço para orações, ou seja, as capelas; para atividades culturais, como cantos e danças; e para atividades profissionais, com oficinas onde se ensinava como fazer e como utilizar ferramentas para o cultivo da terra, pesca e caça. Com relação à catequese, os missionários da Companhia de Jesus foram abordando os indígenas de forma pacífica, catequizando-os com temperança, domesticando almas, corações e mentes para esse processo de colonização. Mesmo assim, o fato é que ocorreu uma ruptura brusca, imperiosa e sem limites na vida dos índios, em suas tradições, culturas, comportamentos, valores, com seus sentimentos sendo desconsiderados sem piedade para contraírem novos hábitos e costumes.

Iniciava-se, dessa maneira, um processo de aculturação8 dos povos nativos. As resistências às investidas dos jesuítas foram sucumbindo, passando a ser toleradas, depois aceitas; aos poucos, foram introduzidas as atividades de catequese e educação. Lentamente, os traços e a cultura de um povo foram sendo substituídos por outros padrões. Por meio da música, do teatro e de pinturas, novos contornos foram ganhando espaço nas aldeias e povoados, com a inserção dos indígenas nas relações com os europeus. “Esse era, por exemplo, o sentido da utilização de mediação. Esse era, por exemplo, o sentido da utilização de pinturas, músicas e danças nativas em representações, rituais e festas católicas” (Xavier; Ribeiro; Noronha, 1994, p. 42).

Ao analisar as ações dos padres da Companhia de Jesus no Brasil Colônia, o filósofo e educador Saviani (2013, p. 43) ressalta que essas atividades coordenadas pelo padre Manuel da Nóbrega foram marcadas por algumas fases, sendo a primeira fundamental, quando Nóbrega esboçou um plano de ações tanto para um propósito catequético como educacional. A estratégia “[...] foi marcada pelo plano de instrução elaborado por Nóbrega. O plano iniciava-se com o aprendizado do português (para os indígenas); prosseguia com a doutrina cristã”. Também constava no projeto de Nóbrega a constituição da escola de ler e escrever e, “[...] opcionalmente, canto orfeônico e música instrumental; e culminava, de um lado, com o aprendizado profissional e agrícola” (Saviani, 2013, p. 43). Ressaltamos que, após a constituição dos colégios, deu-se importância para os estudos que preparassem os filhos de colonos, com o objetivo de continuarem a escola superior em universidades da Europa, sendo a preferência de muitos a Universidade de Coimbra.

Como se iniciou de fato o processo de catequização, de evangelização e educação religiosa das crianças indígenas e dos filhos dos colonos? Como surgiu o ensino religioso no Brasil? Em primeiro lugar, os inacianos “[...] gramaticaram a língua tupi por meio dos trabalhos de Juan Azpilcueta Navarro e José de Anchieta” (Ferreira Júnior, 2010, p. 20). Para facilitar o contato, as primeiras aproximações e os diálogos com os índios compuseram “[...] um catecismo bilíngue, português e tupi, na forma de perguntas e respostas que acentuavam negativamente os hábitos indígenas considerados pecaminosos, e positivamente os valores cristãos ratificados pelo Concílio de Trento (1545-1563)” (Ferreira Júnior, 2010, p. 20).

Os soldados de Cristo entendiam que a religião católica era obra do Senhor, enquanto as religiões dos nativos e dos africanos eram obras do demônio. Saviani (2013, p. 47) aponta como se deu esse processo de aculturação ao apresentar análise sobre esse trabalho com os indígenas, presumindo que ocorreu um processo de “[...] aculturação da população colonial nas tradições e nos costumes do colonizador. [...] As ideias pedagógicas postas em prática por Nóbrega e Anchieta [...] configuraram uma verdadeira pedagogia brasílica”. No entanto, Saviani (2013) entende que se tratou de uma pedagogia praticada sob medida para as condições então enfrentadas pelos jesuítas.

No ensino das primeiras letras, por exemplo, os inacianos mostraram habilidade e capacidade de adaptação. Segundo considerações de Piletti e Piletti (2002, p. 135), os representantes da Companhia de Jesus:

Penetravam com igual facilidade na casa-grande dos senhores de engenho, na senzala dos escravos e nas aldeias indígenas. Em todos os ambientes procuravam orientar na fé jovens e adultos e ensinar as primeiras letras às crianças, adaptando-se às condições específicas de cada grupo. Para o trabalho junto aos índios aprendiam e ensinavam sua língua nos colégios; utilizavam-se de órfãos vindos de Portugal para atrair mais facilmente as crianças índias e, através destas, buscavam conquistar seus pais.

O medo do inferno, a culpabilização pelos modos de vida que cultivavam, a descoberta de um Deus verdadeiro, enfim, várias eram as nuances que vinham à tona no processo de catequização e educação. Havia um novo sentido de vida, porém submetido a uma nova lógica, uma nova maneira de viver, pensar, vestir, cantar, dançar, pois todas as coisas foram enquadradas de forma que não expressassem o pecado, que não contrariassem a Deus.

Era introduzida na cultura dos nativos a separação da vida comunitária, ocorrendo a apartação das famílias e a constituição de um novo formato de lar, de casa, no qual o espaço comunitário deixava de existir e a arquitetura das construções se apresentava com repartições, configurando os espaços próprios de cada cômodo. A regra, a disciplina e os bons modos eram impostos. O trabalho passou a ser feito mediante a organização do dia, do trabalho, com o tempo sendo medido, com horário para refeições, trabalho, lazer, estudos, vida doméstica, de forma regrada, estabelecida por normas; tudo passou a ser cronometrado, planejado. Cabe destacar que, nos primórdios da colonização, houve, em algumas missões, a utilização do trabalho escravo de índios, visando obter lucros e ampliar o alcance da Companhia. Além disso, o trabalho escravo dos negros trazidos da África também foi incorporado pelos jesuítas em suas fazendas. Acreditamos que esse processo não se deu por acaso, pois os jesuítas já haviam cumprido a primeira missão, de domesticar, doutrinar, evangelizar e apaziguar os índios para facilitar o processo de colonização a ser desencadeado.

Após iniciarem trabalho em terras brasílicas, os jesuítas passaram a receber 10% do valor advindo dos impostos e repasses da Coroa portuguesa, constituindo uma estrutura financeira com rendimentos das fazendas de gado e da produção de cana-de-açúcar. O trabalho dos jesuítas tornou-se cada vez mais elitizado, focando nos filhos de colonos abastados ou daqueles que trabalhavam nas burocracias das pequenas cidades, vilarejos, com o intuito de formá-los para serem padres ou para partirem e darem continuidade aos estudos na Europa. Nessa nova fase de escolarização no processo de colonização, os filhos de negros e de índios foram excluídos.

Com o crescimento no número de proprietários de terras, de homens de negócios, de comerciantes e funcionários do governo português, a vida urbana foi ganhando novos contornos, as vilas tornaram-se cidades. Nesse processo, aumentaram as atividades comerciais e a produtividade nas fazendas e ações administrativas, o que passou a exigir maior instrução da população que aqui residia. Essas mudanças, por sua vez, motivaram o investimento dos jesuítas na constituição dos colégios:

Os jesuítas tornaram-se famosos pelo empenho em institucionalizar o colégio como local por excelência de formação religiosa, intelectual e moral das crianças e dos jovens. Para atingir esses objetivos, instauraram rígida disciplina, aplicada nos internatos criados para garantir proteção e vigilância. Além de controlar a admissão dos alunos, concediam férias bem curtas para evitar que o contato com a família afrouxasse os hábitos morais adquiridos (Aranha, 2006, p. 129).

Considerando as experiências nas colônias portuguesas e espanholas, os jesuítas elaboraram um método educacional que se tornou popular na época, o Ratio Studiorum. Ferreira Júnior (2010, p. 24) relata que “[...] o processo de criação dos colégios no Brasil Colonial, mantidos materialmente pelas fazendas de agropecuária (gado e cana-de-açúcar), efetivou-se concomitantemente à própria elaboração do método jesuítico de ensino e aprendizagem”. Baseado no trabalho pedagógico dos jesuítas na Itália e em outros países colonizados por Portugal, o Ratio Studiorum levou “[...] aproximadamente 50 anos para ser discutido e aprovado, isto é, teve início com a primeira experiência pedagógica dos jesuítas no colégio de Messina (Itália), em 1548, e só foi concluído em 1599” (Ferreira Júnior, 2010, p. 24).

A Corte portuguesa financiava o trabalho educacional - e também o religioso - dos padres da Companhia de Jesus e, segundo Xavier, Noronha e Ribeiro (1994, p. 48), era no método educacional Ratio Studiorum que “[...] o Plano de Estudos dos jesuítas reinava absoluto, e o faria por séculos, mesmo após a expulsão dos seus criadores (1759) e desmantelamento do sistema educacional colonial”. Portanto, ficam evidentes o crescimento e a estrutura das escolas criadas pelos inacianos nas terras colonizadas por Portugal, pois o subsídio destinado à referida ordem religiosa fazia a diferença em relação às outras demais ordens que não tinham esse apoio e financiamento. O ensino era “[...] subsidiado pela Coroa [...] através do chamado padrão de redizima, que correspondia a 10% dos impostos cobrados na Colônia” (Xavier; Ribeiro; Noronha, 1994, p. 48).

Os colégios da Companhia de Jesus eram considerados os melhores do mundo entre os séculos XVI, XVII e XVIII. Formavam intelectuais para as diversas áreas do conhecimento, além de possuírem um sólido desenvolvimento nas ciências humanas. No entanto, a instituição foi promovendo uma educação elitista e excludente, de acordo com considerações de Saviani (2013). Para esse pesquisador, “[...] O Plano contido no Ratio era de caráter universalista e elitista. Universalista porque se tratava de um plano adotado indistintamente por todos os jesuítas, qualquer que fosse o lugar onde estivessem”. Era uma educação elitista porque “[...] acabou destinando-se aos filhos dos colonos e excluindo os indígenas, com o que os colégios jesuítas se converteram no instrumento de formação da elite colonial” (Saviani, 2013, p. 56).

No decorrer do tempo, o trabalho dos jesuítas tornou-se focado em uma educação voltada para os filhos de colonos ricos, de fazendeiros e aristocratas. Houve um processo de elitização da educação desde o período de colônia, quando a formação nas séries subsequentes, ou seja, o ensino secundário, era destinada aos filhos da elite colonial, que então dariam sequência aos estudos em Coimbra ou em Lisboa.

[...] podemos dividir a educação jesuítica colonial em duas fases que se distinguiram entre si, mas que, ao mesmo tempo, estavam relacionadas historicamente: a primeira achava-se ligada à catequese dos índios, e a segunda aos filhos dos colonos. Dito de outra forma, na mesma medida em que o processo colonizador luso-jesuítico avançava por meio da monocultura da cana-de-açúcar, que se utilizava da grande extensão territorial (latifúndio) e da mão de obra escrava (negros desafricanizados), desapareciam as populações ameríndias, isto é, o próprio objeto da missão evangelizadora dos padres jesuítas foi sendo extinto em decorrência da ocupação violenta do território brasílico (Ferreira Júnior, 2010, p. 26).

O autor observa ainda que “[...] elitismo e exclusão formam o binômio que marcou os ‘500 anos’ da História da Educação Brasileira”, apontando também que, na longa hegemonia “[...] jesuítica de 210 anos [...] até o final do século XX, a educação escolar brasileira significou, a um só tempo, tanto exclusão das classes populares como formação intelectual das elites econômicas que secularmente governam o Brasil” (Ferreira Júnior, 2010, p. 13). Concordamos com Ferreira Júnior (2010), considerando que a história da educação no Brasil retrata que, em todos os períodos, mantiveram-se políticas públicas educacionais que não atendiam a uma parte considerável de crianças e jovens. E, quando a educação se tornou inclusiva, ou seja, quando todos podiam ter acesso a ela, deu-se um processo de exclusão por dentro, ou seja, uma exclusão no espaço escolar, uma vez que já não se garantia o aprendizado satisfatório dos alunos.

Retornando à questão central do texto, constatamos que, além de exercer trabalho pedagógico e catequético, os jesuítas conquistaram fazendas de engenho e de gado e ampliaram o número de colégios, alcançando prestígio e respeito na colônia. No século XVII, os inacianos eram detentores de consideração e de poder, com grande influência nas decisões políticas, situação que preocupava a Coroa, a qual se via perdendo espaço nas decisões e enxergava os padres como fortes decisores de poder em terras brasileiras.

Em relação a essas evidências, Aranha (2006, p. 191) ressalta que “[...] crescia a animosidade contra a Companhia de Jesus. O governo temia o seu poder econômico e político, exercido maciçamente sobre todas as camadas sociais ao modelar-lhes a consciência e o comportamento”. A Coroa precisava do apoio e do trabalho desenvolvido pelos inacianos, e era fundamental garantir seu desempenho, o que era subsidiado pelo financiamento. No entanto, esse financiamento contribuiu para que a companhia religiosa se tornasse poderosa e rica, propiciando que conquistasse autonomia e independência financeira.

Para evitar perder o controle sobre a situação, Portugal iniciou um processo de reformas fiscal e administrativa, tendo o Marquês de Pombal à frente das decisões. Este então centralizou o poder no país, afetando diretamente a Companhia de Jesus, que administrava seus bens e suas ações políticas, religiosas e educacionais sem prestar contas à Coroa. Assim, as atividades dos jesuítas foram suspensas a partir de 1759 pelo decreto-lei de 3 de setembro desse mesmo ano, promulgado pelo rei D. José I. Os inacianos foram destituídos dos poderes que detinham, suas propriedades foram confiscadas, e, por fim, foram expulsos do país.

Nesse período, havia no Brasil 670 membros da ordem religiosa, sendo praticamente todos eles repatriados para Portugal; no entanto, alguns noviços e missionários preferiram deixar a ordem e permanecer em solo brasileiro. “[...] os jesuítas foram afastados sob a acusação de culturalmente retrógrados, economicamente poderosos e politicamente ambiciosos. Segundo Pombal, sua permanência colocaria novos projetos de recuperação em risco” (Xavier; Ribeiro; Noronha, 1994, p. 52). Consideramos que, mesmo com a expulsão dos padres da Companhia de Jesus, a pedagogia católica gozou de uma hegemonia incontestável, que na verdade não chegou a ser abalada nem mesmo após o afastamento de seus representantes do país.

Considerações Finais

Ao analisar o trabalho educacional dos padres da Companhia de Jesus no Brasil, seus objetivos, pressupostos e intenções, verificamos que essa instituição nasceu com a intenção clara de sustentação dos dogmas da Igreja, então questionados pelo movimento liderado por Martinho Lutero. Nesse sentido, entendemos que a Companhia de Jesus surgiu para disputar com os protestantes também no campo educacional. Os jesuítas especializaram-se nessa área, elaborando projeto educacional pautado em um método que foi hegemônico por mais de 200 anos na Europa e em países colonizados por Portugal. No Brasil, os padres vieram para catequizar os índios e os filhos de colonos, com a intenção clara de adestrá-los e prepará-los para a colonização, além de inseri-los nessa nova constituição social. Alinhado à catequese, um processo gradual de aculturação foi se consolidando com as atividades pedagógicas.

Concluímos que o ensino religioso no país teve início nesse período, uma vez que os jesuítas desenvolveram trabalhos pedagógicos nos colégios utilizando o Ratio Studiorum, mas educando também nos pressupostos da Igreja e da Companhia de Jesus. Portugal era um país organizado, constituído, um Estado que investia na educação e garantia, por meio de verba pública, o trabalho dos inacianos em suas colônias. Nesse sentido, consideramos que a educação jesuítica foi uma educação estatal, sob a responsabilidade de uma ordem religiosa. A origem, portanto, da educação brasileira é pública e privada: pública, pois era financiada pelo governo português, e privada, em decorrência de a educação ser ministrada por uma ordem religiosa.

Referências

Aranha, M. L. A. História da educação e da pedagogia: geral e do Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006.

Azevedo, G. C.; Seriacopi, R. História em movimento 1: dos primeiros humanos ao Estado moderno. São Paulo: Ática, 2010.

Ferreira Júnior, A. História da educação brasileira: da Colônia ao século XX. São Carlos: EDUFSCAR, 2010.

Kist, L. Os jesuítas no começo do Brasil, guiados pela fé e regidos pela colônia. 2008. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2008.

Manacorda, M. A. História da educação. São Paulo: Cortez, 1989.

Nóbrega, M. Cartas jesuíticas 1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.

Piletti, N.; Piletti, C. História da educação. São Paulo: Ática , 2002.

Raymundo, G. M. C. Os princípios da modernidade nas práticas educativas dos jesuítas. 1998. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 1998.

Reale, G.; Antiseri, D. História da filosofia: do humanismo a Descartes. São Paulo: Paulus, 2004.

Saviani, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4. ed. Campinas: Autores Associados, 2013.

Xavier, M. E. S. P.; Ribeiro, M. L. S.; Noronha, O. M. História da educação: a escola no Brasil. São Paulo: FTD, 1994.

Notas

Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Edital nº 02/2019, conforme Portaria nº 086, de 3 de julho de 2013).
2 Para mais informações a esse respeito, ver Reale e Antiseri (2004).
3 Consultar o livro “História das ideias pedagógicas no Brasil”, de Saviani (2013).
4 Fundador da Companhia de Jesus no ano de 1540. Foi um dos principais líderes religiosos católicos a contrapor-se à Reforma Protestante.
5 Em 1545, iniciou-se, na cidade de Trento, na península Itálica, uma reunião de bispos e teólogos destinada a estabelecer regras para a Igreja Católica e reforçar os princípios da fé. Conhecida como Concílio de Trento, a reunião foi interrompida por diversas vezes e prolongou-se até 1563 (Azevedo; Seriacopi, 2010, p. 263).
6 Para mais detalhes, sugerimos a leitura de “História da educação” (Manacorda, 1989).
7 Método de ensino criado pelos padres da Companhia de Jesus e utilizado nas atividades educacionais na Europa e em países das colônias portuguesas e espanholas.
8 Processo de modificação cultural de um indivíduo ou grupo social que acostuma, aceita e incorpora traços de outra cultura.

Autor notes

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