Resumo: O tema geral do presente artigo trata da antropologia histórica encontrada em “The Authoritarian Personality” e fundamentada em “Dialética do Esclarecimento”. Especificamente, abordaremos a conceituação que compreende as movimentações pulsionais (segundo leitura da teoria freudiana) enquanto natureza interna, fundamento da concepção da antropologia aqui debatida. Com isso, ao falarmos de antropologia e de natureza, não estamos nos referindo a concepções imutáveis e “biologizantes”, mas a noções históricas e contextuais. Para tanto, iremos nos voltar à “Ideia de história natural” adorniana, precisamente à dialética entre história e natureza. No texto, Adorno trata de dois movimentos de tal dialética: uma concepção de Lukács, para quem elementos da história se tornam naturalizados enquanto segundo natureza, o que pode ser exemplificado com o esquematismo hollywoodiano promovido pela indústria cultural; o segundo movimento, sob influência de Walter Benjamin, trata da transitoriedade histórica da natureza, quando resquícios arcaicos reprimidos pelo sentido histórico dominante ressurgem, tornando-se possibilidade de outra orientação histórica. Este debate se mostra importante justamente porque se encontra no cerne da relação entre economia-política/sociologia e psicanálise, os domínios teóricos mais relevantes para a primeira geração da Teoria Crítica. Por mais que pensemos que há uma antropologia implícita para Horkheimer e Adorno – que enxergariam o ser humano enquanto naturalmente agressivo e destruidor –, o nosso intuito é mostrar que, se a antropologia e a natureza são históricas, o ser humano age a partir da pulsão de morte justamente porque o meio social que o forma é ele mesmo dominador, violento, reificado e alienante.
Palavras-chave:AntropologiaAntropologia,HistóriaHistória,NaturezaNatureza,PulsõesPulsões,Teoria CríticaTeoria Crítica.
Abstract: The theme of this article deals with the historical anthropology found in “The Authoritarian Personality” and grounded on “Dialectic of Enlightenment”. Specifically, we approach the conceptualization that understands the drives’ movements (as explained by the Freudian theory) as internal nature, foundation of the anthropological conception discussed here. By referring to anthropology and nature, we are not thinking about immutable and “biologizing” notions, but historical and contextual ones. Therefore, we use mainly the “Idea of natural history”, precisely the dialectic between history and nature. In the text, Adorno deals with two movements of this dialectic: a conception of Lukács, for whom elements of history became naturalized as second nature, which can be exemplified by the hollywoodian schematism promoted by the cultural industry; the second movement, under the influence of Walter Benjamin, that deals with the historical transience of nature, when archaic remnants repressed by the dominant historical sense resurface, becoming a possibility of another historical sense. This debate is important precisely because is located at the heart of the relation between political-economy/sociology and psychoanalysis, the most relevant theoretical domains for the first generation of Critical Theory. Whatsoever we think there is an implicit anthropology for Horkheimer and Adorno – that would see the human being as naturally aggressive and destructive –, our intention is to show that if these anthropology and nature are historical, the individuals act under influence of the death drive precisely because the social environment that forms the human beings is domineering, violent, reified and alienating.
Keywords: Anthropology, History, Nature, Drives, Critical Theory.
Artigo
Antropologia histórica como conceito de história natural em Adorno
Historical anthropology as a concept of natural history in Adorno
Recepção: 15 Outubro 2018
Aprovação: 25 Novembro 2018
Um dos pontos de destaque da importante obra “Dialética do Esclarecimento” (1947) de Horkheimer e Adorno trata da repressão e dominação da natureza externa e interna, movimento que revela o que há de mítico no Esclarecimento. É justamente deste ponto que partiremos, sendo nosso intuito o de aprofundar os questionamentos sobre este tema ao perguntarmos em que consiste essa natureza, de forma geral, e a natureza interna, de modo específico. Sobre isso, sabemos que Horkheimer e Adorno explicam a natureza interna a partir de desenvolvimentos teóricos freudianos, enquanto vicissitudes pulsionais relacionadas a deslocamentos de representações de objetos, defesas, recalques e sublimações de pulsões colocados em operação por instâncias psíquicas.
Contudo, ao denominar as movimentações pulsionais em termos de natureza, não podemos fugir da impressão de uma certa fixidez e rigidez e que aparece junto a tal escolha conceitual, como se as denominações freudianas empregadas pelos autores de Frankfurt definissem um determinismo biológico que atuaria à revelia das influências culturais e históricas. Algo que seria no mínimo estranho para ser assumido por autores dialéticos. Levando ainda mais adiante tal impressão problemática, isso significaria que tal determinismo se desdobraria também em uma naturalização do impulso dominador e agressivo dos seres humanos em relação ao seu meio e em relação a seus semelhantes, ocorrendo uma “biologização” das relações humanas, culturais e históricas segundo um sentido antropológico bastante forte de inevitabilidade da violência de homens contra homens.
Com isso, é nosso propósito maior desfazer de tais impressões mediante a apresentação de uma dialética entre natureza e história encontrada em algumas obras de Adorno, o que leva a uma compreensão mais profunda da antropologia fundamentada em “Dialética do Esclarecimento” e aprofundada em “The Authoritarian Personality” (1950) – esta última obra que aparece para nós enquanto pano de fundo conceitual ao nos fornecer uma concepção de antropologia para Adorno. Como expusemos em outra ocasião (COSTA, 2017, p. 20), a teoria freudiana é utilizada em “Dialética do Esclarecimento” para definir uma racionalidade pulsionalmente defensiva que tem por finalidade a autoconservação a fim de se evitar o sofrimento, medo e angústia. Tal racionalidade levaria à formação de um sujeito preconceituoso e autoritário, para quem “a identidade da inteligência e hostilidade [...] encontraram uma confirmação avassaladora.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 10) Esta antropologia foi posteriormente desenvolvida na pesquisa empírica de 1950, onde encontramos a definição do tipo antropológico autoritário:
o tema central do trabalho é um conceito relativamente novo – o despontar de uma espécie “antropológica” que nós chamamos de tipo autoritário de homem. Em contraste com o fanático [bigot] do estilo antigo, ele parece combinar as ideias e habilidades que são típicas de uma sociedade altamente industrializada com crenças irracionais ou antirracionais. Ele é ao mesmo tempo esclarecido e supersticioso, orgulhoso de ser um individualista e em constante medo de não ser igual aos outros, zeloso de sua independência e inclinado a se submeter cegamente ao poder e à autoridade. (HORKHEIMER, 1950, p. IX) .
A personalidade autoritária aparece caracterizada por meio de uma racionalidade irracional formada no conflito vivenciado pelo sujeito, a saber, aquele que se dá entre sua organização psíquica em contradição com a realidade vivenciada. Tal condição leva os autores de “The Authoritarian Personality” a aproximarem a configuração da psique do tipo autoritário ao conceito de “sintoma”, pois na economia psíquica deste tipo antropológico estariam envolvidas racionalizações que se configuram como
realizações de desejos indiretos de, ou como defesas contra, impulsos reprimidos. […] Determinadas características dessa funcionalidade são expressas psicologicamente no medo infantil e sua transferência inconsciente, nas idiossincrasias escolhidas no objeto, nas fantasias paranoides e na transferência do ônus da difamação. (ADORNO ET AL., 1950, p. 617-8)
Tal antropologia, como tivemos oportunidade de mostrar em um segundo momento (COSTA, 2018), é constituída mediante aproximações e afastamentos teóricos de Adorno em relação a Fromm – principalmente quando pensamos na produção de Fromm nos anos 1940. Esta diferenciação viria justamente de tipo de leitura psicanalítica freudiana que seria assumida por ambos: seja a de uma complementação a um problema proveniente da crítica da economia-política, retratando a transposição mais direta de influências socioeconômicas no indivíduo, no caso de Fromm; seja a de uma influência indireta do social sobre a psique com uma análise centrada na sexualidade, no conflito, no inconsciente e na pulsão de morte, no caso de Adorno. Ao repensar a concepção de caráter frommiana, Adorno teria desenvolvido a noção de personalidade utilizada em “The Authoritarian Personality”. Isso porque o conceito de personalidade nesta obra admite muitas contradições internas, algo que não se aproxima do entendimento frommiano de caráter unitário, estável e coeso. Negando um posicionamento frommiano – que identifica a gênese dos problemas psíquicos em uma relação existencial com a sociedade, e não na inconsciência e nos destinos das pulsões sexuais e de morte – Adorno procura por uma teoria cada vez mais libidinal para nela encontrar aspectos conflituosos, fragmentados, danificados, dissonantes na psique. Os antagonismos sociais não poderiam, então, ser aplainados, mas assumidos, vividos na experiência humana. Diz Adorno:
Uma totalidade do caráter, ao modo como a pressupõem os revisionistas como dada, é um ideal que só seria realizável em uma sociedade não-traumática. [...] Sua totalidade é fictícia: quase poderia ser chamada de sistema de cicatrizes que só se integram padecendo e nunca de maneira completa. A agregação dessas cicatrizes é propriamente a maneira pela qual a sociedade se impõe ao indivíduo, não aquela continuidade ilusória, em favor da qual os revisionistas dispensam a estrutura chocante da experiência individual. (ADORNO, 1952/2004, p. 23)
Em relação à terminologia, enquanto Fromm utilizava a noção de caráter – o que designaria o seu campo de debates no interior de uma temática principalmente reichiana e do freudo-marxismo –, a opção de Adorno em “The Authoritarian Personality” pela noção de antropologia designaria, por outro lado, um campo de diálogo não exatamente com Fromm, mas com Horkheimer.. Por mais que o posicionamento deste tenha se modificado quando sob influência de Fromm ou de Adorno, defendemos que o debate em torno de uma antropologia claramente histórica – relativa à “época burguesa”, ou seja, a um momento e classe social particulares – é enfatizado por Horkheimer ao longo de todo o seu percurso teórico. Ele nunca teria deixado de ressaltar como a natureza humana seria modificada por influência das condições histórico-sociais e culturais, sendo possível inclusive designar antropologias específicas para determinados grupos sociais. Horkheimer lê, então, a psicanálise freudiana como uma antropologia resultante da era burguesa que deverá se modificar com o curso histórico da transformação social:
“é justamente a decadência da família burguesa que permitiu à teoria de [Freud] chegar a este novo estágio que aparece em ‘Além do Princípio do Prazer’ e nos escritos que o seguem”. [...] Refletindo sobre o declínio histórico da família, Freud compreendeu com isso algo de “objetivamente” verdadeiro. Horkheimer quase antecipa as fórmulas paradoxais que Adorno terá em relação a Freud, que “tinha razão onde ele não tinha razão”. (GENEL, 2017, p. 270)
Além disso, desde a década de 1930 Horkheimer defende o distanciamento entre a realidade econômica e a moralidade defendida no contexto burguês. Considerando as exigências de ações humanas para a sobrevivência no capitalismo, vê-se que o egoísmo e a crueldade são mobilizados na designação de um comportamento econômico voltado à obediência à autoridade e o desejo de aniquilar o outro. Ao mesmo tempo, entretanto, a moralidade burguesa prega a recusa do egoísmo enquanto princípio de justiça social voltado à fraternidade e liberdade de todos os seres humanos iguais. “Para eles, a moralidade deveria significar submissão, resignação, disciplina e sacrifício pelo todo, ou seja, simplesmente a repressão de suas reivindicações materiais.” (HORKHEIMER, 1936/1993, p. 54) Nota-se facilmente que “a disposição peculiar de grupos socialmente importantes da burguesia estava em contradição com sua própria moralidade. […] Tanto a existência humana real como a consciência moral contraditória, bem como sua interação dinâmica, resultam da base social.” (HORKHEIMER, 1936/1993, p. 60) Vemos, portanto, a dualidade de um tipo antropológico cuja “visão moralista de ser humano contém um princípio racional, embora sob forma mistificada, idealista.” (HORKHEIMER, 1936/1993, p. 54) Ou ainda, a concepção de que os princípios morais e racionais voltados aos fins de uma totalidade social aparecem como meramente formais, sem vínculo com a realidade material.
É assim que já vemos no Horkheimer da década de 1930 os traços do que “The Authoritarian Personality” irá definir como o cinismo do tipo antropológico autoritário que pratica uma atitude cindida entre a repetição vazia de valores morais simplesmente formais, de um lado, e as ações e discursos de conteúdo agressivo e egoísta, de outro. Nesse sentido, Horkheimer relaciona esta dualidade à racionalização, entendida em sentido psicanalítico: “Freud está certo ao dizer que, por razões culturais, a pulsão de destruição sempre precisa de um pretexto, uma racionalização: a maldade do oponente, a finalidade pedagógica, a defesa da honra, uma guerra ou alguma revolta popular.” (HORKHEIMER, 1936/1993, p. 107)
Assim, a noção de antropologia utilizada em “The Authoritarian Personality” por Adorno et. al. é fruto de uma influência de Horkheimer, que trata do tema desde os anos 1930. Esta antropologia teria então uma conotação histórica, que se modifica segundo os contextos sociais, de modo que seria próprio de uma época capitalista o desenvolvimento de uma antropologia burguesa que se mostra cinicamente cindida entre as obrigações morais e a realidade violenta fomentada e imposta pelo sistema econômico.
É, então, sob influência de Adorno em considerar a teoria pulsional freudiana, bem como as noções de sexualidade e inconsciente, além da ressignificação do conceito de pulsão de morte, que Horkheimer irá romper com Fromm a partir da virada teórica deste último operada nos últimos anos da década de 1930. Isso não impede, contudo, que elementos da teoria frommiana continuem presentes na próxima etapa dos trabalhos do Instituto nos anos 1940. Até Adorno, o principal crítico de Fromm no Instituto, irá retomar alguns aspectos da teoria frommiana de 1930. Além da premissa da influência social sobre as pulsões, noções como caráter, família, a descrição das perversões relacionadas ao autoritarismo, a relação íntima entre personalidade e ideologia, além da ideia de um eu fraco e o emprego da noção de supereu na análise social ainda se farão presentes. Contudo, estas concepções serão retomadas mediante um tipo de “retorno a Freud” praticado por Horkheimer sob influência de Adorno no qual serão ressaltados os elementos da “radicalidade exagerada” de Freud.
Assim, é na década de 1940 que Adorno, seguindo Horkheimer, começa a mobilizar de forma mais preponderante uma concepção antropológica do ser humano. Como lemos em Minima Moralia: “Com a dissolução do liberalismo, o princípio genuinamente burguês, o da concorrência, não foi superado, mas da objetividade do processo social transitou para a constituição dos átomos que entre si chocam e se comprimem, ou seja, para a antropologia.” (ADORNO, 1951/1992, p. 16) A análise de elementos da burguesia e da concorrência capitalistas deixa de ser procurada no nível da superestrutura, passando a ser analisada como uma questão antropológica.
Com isso, a concepção adorniana de personalidade do tipo antropológico autoritário procura fugir da psicologização dos determinantes sociais, por manter a gênese do preconceito em fatores sociais, e da sociologização dos elementos psíquicos, por se colocar em oposição à posição revisionista. É nesse sentido que TAP, apesar de ser uma pesquisa sociológica, ao menos em seus métodos de pesquisa empírica, foge ainda assim de ambos os perigos. Em complemento ao que dissemos em nosso primeiro capítulo, Adorno nos diz explicitamente:
Em termos teóricos, nosso grupo se opôs às tentativas de “sociologizar” a psicanálise através do abrandamento de conceitos básicos, por exemplo, sexualidade infantil, inconsciente, o dinamismo psicológico do indivíduo [monad] ao procurar por influências ambientais que seriam registradas sob as condições do eu e não do inconsciente. (…) Onde quer que pareçamos permanecer dentro dos limites da psicologia social mais convencional, isso não se deve a nenhum viés “revisionista” de nossa parte, mas às limitações metodológicas inevitáveis de nosso estudo. Nós levamos a psicanálise muito a sério para desrespeitá-la [play around] em uma investigação que, na melhor das hipóteses, pode dedicar somente algumas entrevistas individuais dentre os casos selecionados para um exame mais detalhado. Embora os dados coletados nessas entrevistas possam se mostrar significativos, não poderíamos afirmar que realmente analisamos nossos sujeitos. (ADORNO, 1948/2016, p. 8-9)
A antropologia sendo, então, um retrato de problemas sociais em nível individual designa mais do que uma abordagem psicológica, mas um diagnóstico social marcado corporalmente. Se a sociedade capitalista apresenta contradições em seu fundamento, o resultado também deve ser uma antropologia centrada nas dissonâncias e cicatrizes. Nesse sentido, se “a naturalização dos homens hoje não é dissociável do progresso social” (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 14), é nossa tarefa aqui não só enfatizar como a natureza se apresenta como um conceito histórico, mas ainda elucidar de que modo essa mutabilidade se fará presente na natureza interna, ou seja, nos destinos pulsionais – evidenciada mediante a possibilidade de uma “nova espécie antropológica”, como vimos acima. Para tanto, iremos nos ater principalmente ao texto “Ideia de história natural” também de Adorno.
Lembremos, então, rapidamente a amplitude que a concepção de natureza ganha em “Dialética do Esclarecimento”. Como já foi salientado muitas vezes, o Esclarecimento segue o intuito de “liberar o homem dos perigos da existência natural, animal e vegetal e protegê-lo a partir de níveis cada vez mais elevados de iluminismo por medo de regredir a uma condição de sujeição ainda mais arcaica ao poder das forças naturais.” (MATOS, 1995, p. 153) Contudo, também sabemos que os autores relacionam o controle sobre a natureza a um retorno mítico contido justamente em tal pretensa concepção de progresso. Em uma sociedade capitalista, não só a natureza externa é modificada pelo trabalho, mas a energia corporal do trabalhador é voltada para a produção, momento em que se realiza a renúncia à satisfação pulsional direta por meio da sublimação da libido em trabalho. A astúcia da substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade que adia a satisfação pulsional para fins de autoconservação “incluía um sacrifício do eu (Selbst), porque seu preço era a negação (Verleugnung) da natureza no homem, em vista da dominação sobre a natureza extra-humana e sobre os outros homens.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 53). Ou ainda:
Quem quiser vencer a provação não deve prestar ouvidos ao chamado sedutor do irrecuperável e só o conseguirá se conseguir não ouvi-lo. Disso a civilização sempre cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores têm que olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à distração [Den Trieb, der zur Ablenkung drängt], eles tem que se encarniçar em sublimá-la num esforço suplementar. É assim que se tornam práticos. A outra possibilidade é a escolhida pelo próprio Ulisses, o senhor de terras que faz os outros trabalharem para ele (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 39).
É assim que a história do progresso humano se torna a história da alienação e não a da emancipação. Isso porque a dominação sobre a natureza externa mediante o trabalho converte-se em uma dominação sobre a natureza humana, isto é, dominação do ser humano sobre seus semelhantes objetificados pelo sistema capitalista de produção, apropriação da força de trabalho alheia mensurada e alienada. Como nos diz Benhabib:
O desenvolvimento das forças de produção, o aumento do domínio da humanidade sobre a natureza, não é acompanhado pela diminuição da dominação interpessoal; pelo contrário, quanto mais racionalizada a dominação da natureza, mais sofisticada e difícil de reconhecer se torna a dominação social. (…) O trabalho é de fato a sublimação do desejo; mas o ato de objetificação no qual o desejo é transformado em produto não é um ato de autorrealização, mas um ato de medo que leva ao controle da natureza dentro de si mesmo. A objetificação não é autorrealização, mas a autonegação disfarçada de autoafirmação. (BENHABIB, 1986, p. 167)
Haveria, então, uma relação direta, permitida pelo capitalismo, entre dominação da natureza externa e do corpo humano entendido como natureza interna para fins de produção econômica.
os traços humanos e extra-humanos no mundo administrado não são mais passíveis de distinção um do outro: seres humanos são reprimidos, perseguidos e até mesmo exterminados, como se aí se tratasse de mero prolongamento da milenar - e, tacitamente, unanimemente aceita – exploração da natureza. (...) Eles são, portanto, vistos como “homens-natureza” e a violenta dominação sobre a natureza prolonga-se em sua repressão. (DUARTE, 1993, p. 75)
Contudo, pensando dialeticamente, a natureza não estaria só sendo determinada pelo avanço histórico do capitalismo. Afinal, as necessidades humanas que se mostram continuamente subjugadas pelo sistema capitalista dominante permanecem vivas, mesmo que reprimidas, retornando de forma indireta, distorcida e, mais uma vez, passível de ser administrada pela situação histórica socioeconômica - como podemos ver pela manipulação dos destinos pulsionais inclusive nos momentos de lazer humano mediante a organização industrial da cultura. São justamente estes retornos naturais anteriormente retirados da história que são remanipulados pela estereotipia e racionalizações veiculadas pela indústria cultural. Como lemos em “O interesse pelo corpo” ao fim de “Dialética do Esclarecimento”:
Sob a história conhecida da Europa corre, subterrânea, uma outra história. Ela consiste no destino dos instintos e paixões humanas recalcados e desfigurados pela civilização [Schicksal der durch Zivilisation verdrängten und entstellten menschlichen Instinkte und Leidenschaften]. O fascismo atual, onde o que estava oculto aparece à luz do dia, revela também a história manifesta em sua conexão com esse lado noturno que é ignorado tanto na legenda oficial dos Estados nacionais, quanto em sua crítica progressista. (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 190)
Tal modificação da natureza interna, que é entendida pelos autores como uma história subterrânea das movimentações pulsionais, é justamente o objeto maior de nossos interesses.
É de longa data a existência de uma reflexão sobre natureza e história nos escritos de Adorno, aparecendo em diversos momentos de sua trajetória. Em “Teses sobre a necessidade” (1942), texto contemporâneo à “Dialética do Esclarecimento”, por exemplo, tal relação é abordada claramente ao lermos que “toda pulsão é tão mediada socialmente que sua dimensão natural jamais aparece de imediato, mas sempre como produzida pela sociedade.” (ADORNO, 1942/2015, p. 229-230.) Ou ainda, em passagens encontradas em “Dialética Negativa”: “ Um tal conceito social de natureza possui a sua própria dialética. A legalidade natural da sociedade é ideologia na medida em que é hipostasiada como um dado natural imutável.” (ADORNO, 1966/2009, p. 295).
A antítese tradicional entre natureza e história é verdadeira e falsa; verdadeira na medida em que enuncia o que acontece com o momento natural; falsa na medida em que repete apologeticamente o encobrimento da naturalidade da história por meio dessa história mesma graças à sua construção conceitual a posteriori. Na diferenciação entre natureza e história exprimiu-se ao mesmo tempo de maneira irrefletida essa divisão do trabalho que sem escrúpulos projeta sobre os objetos a diferenciação inevitável dos métodos científicos. (ADORNO, 1966/2009, p. 297)
“O momento, porém, em que a natureza e a história se tornam mutuamente comensuráveis é o momento da ruinância.” (ADORNO, 1966/2009, p. 298.)
Mas, é principalmente em “Ideia de história natural” que concentraremos nossa leitura mais detida. Escrito em 1932 e publicado somente após a morte do autor, este ensaio se mostra particularmente interessante para nós “porque contém elementos centrais das obras maduras de Adorno em um estágio ainda em articulação [molten].” (HULLOT-KENTUR, 1984, p. 241.) Hullot-Kentur assim resume este ensaio: para Adorno o intuito da “Ideia de história natural” é
compreender um objeto como natural ali onde ele parece mais histórico e histórico, onde parece mais natural. A ideia de história natural, então, é a dialética que pode ser extraída de uma análise literal da ambiguidade do termo: a história da natureza é a natureza compreendida como histórica; a história natural é o histórico apreendido como natural. (HULLOT-KENTUR, 1984, p. 239.)
Grosso modo, Adorno inicia este texto desenvolvendo uma crítica à fenomenologia de Heidegger, que teria desfeito a dualidade entre natureza e história erigida desde Platão. Por mais que não seja de nosso interesse aprofundarmos em tal crítica, ao menos podemos lembrar que a nova ontologia heideggeriana tende, para Adorno, a dissolver o objeto ao projetar na natureza um sentido formulado pela razão, como se o conceitual subjetivo apagasse a natureza. É assim que a história idealista de Heidegger trata tautologicamente dela mesma e não atinge a objetividade natural: o ser histórico é incluído e subjugado à historicidade subjetivista: “o ente mesmo se converte em sentido, e, em lugar de uma fundamentação além da história do ser comparece o projeto do ser como historicidade.” (ADORNO, 1932/2000, p. 2) Tal formulação de uma historicidade do natural pela neo-ontologia idealista ganha uma conotação mítica, substancial, anterior à história. Nas palavras de Hullot-Kentur,
a ratio consome sua relação com seu objeto. No entanto, a ratio, ao tentar estabelecer a objetividade, isola-se da objetividade. Historicamente, a ratio produz uma segunda natureza - em última análise, as existências míticas e invariáveis da neo-ontologia. Esses absolutos nada mais são do que significados inseridos na realidade que são destoantes [rebarbative] à interpretação porque seu ponto de partida é em si mesmo a ratio. (HULLOT-KENTUR, 1984, p. 244)
A partir de tal crítica, Adorno apresenta a relação dialética entre natureza e história que defende. Para isso, ele trata de dissolver a compreensão mítica de natureza:
Para entendimento do conceito de natureza, que eu gostaria de dissolver, basta dizer que se trata de um conceito que, se eu quisesse traduzi-lo na linguagem conceitual filosófica mais habitual, poderia caracterizá-lo mais facilmente pelo conceito de mítico. [...] Por ele (mítico) se entende o que está aí desde sempre, o que sustenta a história humana e nela aparece como um ser anteriormente dado, submetido inexoravelmente, o que nela há de substancial. O demarcado por estas expressões é o que eu entendo por natureza. A questão que se coloca aqui refere-se à relação dessa natureza com o que entendemos por história, em que história designa uma forma de conduta dos homens, forma de conduta transmitida, que se caracteriza antes de tudo pelo fato de aparecer nela o qualitativamente novo, por ser ela um movimento que não se desenvolve na pura identidade, na pura reprodução do que sempre esteve aí, e sim produz o novo e alcança seu verdadeiro caráter através do que, nela, aparece como novo. (ADORNO, 1932/2000, p. 1)
Definidas as concepções de natureza e história que Adorno quer destituir, o autor procede com sua dinâmica dialética. Para tanto, não basta desvincular a natureza à uma noção de originário, primário, imutável e essencial, ou seja, “separar o aparentemente idêntico por meio de diferenciação específica” (BUCK-MORSS, 1977, p. 99); Adorno produz ainda uma aproximação da natureza com uma concepção histórica mutável, social, nova, justapondo “elementos aparentemente não relacionados e não-identicos, revelando a configuração na qual eles congelaram ou convergiram. Construção de semelhanças fora dos opostos por uma ‘justaposição de extremos’.” (BUCK-MORSS, 1977, p. 99) Os termos natureza e história sofrem, então, uma mediação dialética na qual nenhum dos dois elementos permanece estático, assim como não culminam em uma síntese última.
Como veremos, a concepção mesma de natureza é definida culturalmente e, portanto, historicamente, sendo um reflexo do contexto social. Por outro lado, a história seria influenciada por resquícios naturais que retornariam à história, obrigando o contexto cultural a considerar as vicissitudes pulsionais que retornam de uma situação de repressão. Tal manipulação social da natureza que retorna pode levar novamente ao controle e repressão desta natureza que, como sabemos, não deixará de reaparecer. Assim, ao mesmo tempo em que natureza e história permanecem incomensuráveis em seu dualismo (não podendo resultar em um conceito fundido, unificado), por outro lado, seus sentidos são continuamente modificados por determinação mútua. Deste modo, é natural aquilo que é formado sob influência histórico-social, além de ser também aquilo que foi retirado da história, mas que poderá retornar. Ao passo que a categoria de história perde a sua continuidade progressiva linear, sendo ressignificada continuamente através da mediação constante com a natureza.
Segundo o exposto na própria “Ideia de história natural”, as bases teóricas para o desenvolvimento de tal concepção dialética de natureza e história são ao menos duas, ancoradas em trabalhos de Lukács e Walter Benjamin. Na “Teoria do Romance” (1914-5), Lukács teria mobilizado a concepção formulada por Hegel de segunda natureza a fim de opor, de um lado, uma primeira natureza entendida no sentido das ciências da natureza, sendo esta natureza evidente e calculável; e, de outro, uma segunda natureza alienada, o mundo da mercadoria. Esta segunda natureza estaria vinculada ao sistema capitalista no qual coisas seriam criadas e consumidas pelo ser humano, tornando-se uma convenção.
Essa realidade do mundo da convenção, como é produzida historicamente, das coisas que se tornam estranhas, que não podemos decifrar, mas que topamos como cifras, é o ponto de partida da problemática que eu apresento aqui. O problema da história da natureza, visto a partir da filosofia da história, se coloca, antes de tudo, com a questão de como é possível esclarecer, conhecer este mundo alienado, coisificado, morto. (ADORNO, 1932/2000, p. 5)
Trata-se, como se lê em “Dialética do Esclarecimento”, de uma concepção de natureza produzida historicamente pelo ser humano no sistema capitalista, mas que é concebida enquanto originária, mítica, imutável, alienada, fazendo a mimese do morto – como veremos mais a frente. A segunda natureza expressaria, assim, um semblante ou aparência concebida simultaneamente como natural e histórica, não se configurando completamente como uma natureza fixa, porque historicamente produzida, nem como puramente transitória, já que se sedimentou enquanto segunda natureza. “A leitura do histórico como natural neste sentido revela como o histórico se tornou eternizado como um produto natural não humano.” (MORGAN, 2007, p. 15.)
Contudo, é em combinação com conceituações benjaminianas que o conceito de segunda natureza lukacsiano é desenvolvido ao ponto de esclarecer a ideia adorniana de história natural. Afinal, foi Benjamin quem mostrou que o momento dialético em que a natureza é revelada seria transitório – uma “ruinância” – o que permite “definir o mais moderno em si como uma figura do mais arcaico.” (BUCK-MORSS, 1977, 107) Assim diz Adorno:
O que pode significar aqui o discurso da transitoriedade e o que quer dizer proto-história do significado? Não posso desenvolver estes conceitos à maneira tradicional, um separado do outro. [...] A natureza enquanto criação é concebida por Benjamin como assinalada pelo sinal da transitoriedade. A natureza mesma é transitória. Dessa maneira, tem em si mesma o momento da história. Sempre que aparece historicamente, o histórico remete ao natural, que nele passa. [...] Por isso não se trata de meramente indicar que na própria história temas proto-históricos sempre se voltam a manifestar, e sim que a própria proto-história, enquanto transitoriedade, leva em si o tema da história. A determinação fundamental, a transitoriedade do terreno não significa outra coisa que uma relação semelhante entre natureza e história; que todo ser ou todo ente deve ser compreendido apenas como cruzamento do ser histórico e do ser natural.” (ADORNO, 1932/2000, p. 6)
Na conjunção entre Lukács (que mostra a segunda natureza produzida historicamente ganhando um caráter natural pretensamente “fixa” e sedimentada) e Benjamin (que exibe a transitoriedade do natural tanto em sua formação quanto em sua revelação), elimina-se a possibilidade de qualquer elemento estático na história natural. Não há nada histórico que não possa ser naturalizado, assim como em todo conteúdo natural há uma origem histórica.
O ponto mais profundo na convergência da história com a natureza se situa precisamente nesse momento da transitoriedade. Se Lukács faz com que o histórico, enquanto o ter-sido, volte a se transformar em natureza, aqui se dá o outro lado do fenômeno: a mesma natureza se apresenta como natureza transitória, como história. (ADORNO, 1932/2000, p. 5)
É justamente neste momento dialético entre natureza e história que a nossa concepção de antropologia histórica se posiciona: sendo concebida como uma natureza interna forjada a partir de determinantes histórico-culturais, a psicanálise freudiana seria tomada por Adorno e Horkheimer como uma antropologia cujas reações metapsicológicas – ou mais precisamente os destinos e vicissitudes pulsionais – seriam do signo de uma natureza sedimentada, porém historicamente determinada e vivenciada. “A leitura do natural como histórico tem um propósito mais direto, no sentido de que todo ontológico fundamentado em termos naturalistas deve ser lido como mediado historicamente pelas forças e relações de produção.” (MORGAN, 2007, p. 15.) Historicizar uma noção naturalista de ser humano, ou ainda, naturalizar restos renegados da história significa, então, colocar a psicanálise e a crítica da economia-política no coração mesmo da dialética pensada por Adorno.
Esta natureza interna descrita em termos antropológicos não pode ser estática. Pois vemos restos ou potenciais do arcaico que foram relegados pelo desenvolvimento histórico-civilizatório e que retornam, podendo modificar a história e, por consequência e novamente, a formação da natureza interna. Não queremos dizer com isso que o aparato conceitual utilizado por Adorno para descrever esta natureza humana não seja universalizável, mas sim que os destinos pulsionais – enquanto reações defensivas, satisfações pulsionais, desvios de meta e capacidade de sublimação – que são descritos enquanto “tipos antropológicos” porque sedimentados historicamente são, por outro lado, historicamente determinados. Afinal, a família e a sociedade que formam os indivíduos o fazem segundo normas, valores e ações mais ou menos condizentes com o contexto histórico vivido, cada vez mais massificado. Por isso, o que pretendemos expor seria justamente a historicização da antropologia, justamente o contrário de uma “biologização”, “naturalização”, “essencialização” relacionada à imutabilidade humana.
Seguindo tal raciocínio, a antropologia de “The Authoritarian Personality” pode ser pensada mediante dois pontos de vista. De um lado, é retratado o tipo antropológico autoritário cuja organização e reação pulsional típica, influenciada por determinações históricas do capitalismo, foi sedimentada, tipo este descrito mediante termos da psicanálise freudiana apropriado por Adorno. Sob tal ponto de vista, a reação a determinantes históricos como que naturalizados em uma tipologia, definindo fisionomias típicas de sujeitos mais ou menos adequados a um determinado contexto cultural. De outro lado, contudo, essa adequação não impede que resquícios da natureza interna que teriam sido reprimidos pelas determinações históricas possam ressurgir, mesmo que de forma ressignificada, à revelia das imposições culturais reinantes. Estes seriam os resquícios arcaicos correspondentes a traços de uma realidade atualmente não prevalecente que retornam como não-idênticos. Falemos inicialmente deste último aspecto.
Para abordá-lo, entretanto, deveremos tratar com mais afinco a concepção dialética adorniana. Apesar da concepção de não-idêntico ser mais desenvolvida em “Dialética Negativa”, podemos rastrear seu significado mais ou menos explícito em uma leitura atenta de “Dialética do Esclarecimento” e “The Authoritarian Personality”. Para nós, a natureza, enquanto retorno arcaico na particularidade subjetiva, aparece como um momento de não-identidade e negatividade diante da racionalidade estabelecida universalmente. Tais resquícios de uma natureza indomada não seria precisamente originária, fixa e dada, meramente constatada. Ao contrário, sendo apenas um instante evanescente do movimento dialético, o retorno de traços naturais é transitório, experienciado como uma particularidade que foi mediada pela universalidade histórica, isto é, possibilitada por elementos contextuais inerentes à realidade contraditória. Nesse sentido, dar ouvidos ao retorno de elementos da natureza interna que não puderam ser completamente controlados pelo sentido histórico dominante pode ser entendido por nós como a prática de dar primazia ao objeto no sujeito. Sob tal ponto de vista, esta parte da natureza histórica seria, então, a diferença vivenciada imediatamente pelo sujeito apresentada como o retorno de traços arcaicos de uma possibilidade histórica ainda não vivenciada, ainda sem sentido. O objeto no sujeito seria, então, parte da natureza – formulada historicamente, mas ainda assim recusada por este mesmo sentido histórico dominante.
Por outro lado, este instante transitório de ressurgimento do resquício natural não-idêntico também pode se comportar como um disparador de um processo subsequente. Modo de dizer não só como, desde a influência de Sohn-Rethel e Lukács, o funcionamento psíquico do tipo antropológico autoritário seria decorrente das determinações socioeconômicas; mas também que a abertura para uma reconciliação com a própria natureza gerada na e negada pela própria história também se encontra no interior deste mesmo sujeito, sendo igualmente reflexo de gêneses socioculturais. Forma de pensar que há contradições não só na realidade objetiva, como também, para utilizar uma expressão de Freud, na “realidade interna”.
É assim que compreendemos que, para se alcançar o primado do objeto que inaugura o materialismo dialético de Adorno, deve-se procurar por mais sujeito. Isto é, no interior de um indivíduo há mais sujeito não quando ele se encontra inteiramente adequado às formas culturais dominantes, mas quando há a espontaneidade de uma parcela de natureza ainda não inserida na história “contada pelos vencedores”, como diz Benjamin. E nesse mais-sujeito há justamente algo de objetividade em sua gênese, uma objetividade recusada pelo sentido histórico dominante, precisamente a contradição vivida na realidade e negada pela racionalização e estereotipia forjadas pelo capitalismo enquanto segundo natureza. Como disse o próprio Adorno anos mais tarde:
O primado do objeto só é alcançável em uma reflexão subjetiva e em uma reflexão subjetiva sobre o sujeito. Decerto é possível explicar esse estado de coisas dificilmente conciliável com as regras da lógica corrente e discrepante em sua expressão abstrata, dizendo que seria em verdade necessário escrever uma pré-história do sujeito, tal como ela foi esboçada na Dialética do Esclarecimento, mas não uma pré-história do objeto. Uma tal pré-história já trataria sempre de objetos. [...] A mediação do objeto significa que ele não pode ser estática e dogmaticamente hipostasiado, mas só pode ser conhecido em sua imbricação com a subjetividade; a mediação do sujeito significa que ele não seria literalmente nada sem o momento da objetividade.” (ADORNO, 1966/2009, p. 159-60)
Já ao passarmos de uma perspectiva de reconciliação para a crítica do existente, podemos recorrer a um breve comentário da adequação de um tipo antropológico à objetividade dominante, qual seja, o tema de Hollywood e o esquematismo kantiano presente em “Dialética do Esclarecimento”. Sob tal ponto de vista, podemos notar como a objetividade no interior da subjetividade, isto é, todo conteúdo estereotipado e racionalizado veiculado pela indústria cultural e recepcionado e repassado pelos indivíduos, seria nesse caso somente o reflexo de uma objetividade falsa precisamente porque duplica a falsidade de um mundo pretensamente unívoco, mas irreconciliado com a natureza e, consequentemente, com elementos de sua própria história. Verdadeira historicidade naturalizada que acaba se referindo dialeticamente muito mais à projeção de uma identidade na realidade que não deve ser percebida como contraditória – tema este reiteradamente debatido sobre “Dialética do Esclarecimento”.
Adorno mobiliza a teoria kantiana no debate da indústria cultural ao dizer que “a função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. o esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 103) Ou ainda: “No mundo da produção em série, a estereotipia – que é seu esquema – substituí o trabalho categorial. O juízo não se apoia mais numa síntese efetivamente realizada, mas numa cega subsunção.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 166) Em nossa análise de tais assertivas, podemos começar por apresentar a definição, cunhada por Horkheimer e Adorno, do esquematismo kantiano: esquematismo é o nome do
funcionamento inconsciente do mecanismo intelectual que já estrutura a percepção em correspondência com o entendimento. Este imprime na coisa como qualidade objetiva a inteligibilidade que o juízo subjetivo nela encontra, antes mesmo que ela penetre no eu. Sem esta intelectualidade na percepção nenhuma impressão se ajustaria ao conceito, nenhuma categoria ao exemplo, e muito menos o pensamento teria qualquer unidade, nem a unidade do sistema, para a qual tudo está dirigido. (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 72)
Grosso modo, o esquematismo seria, então, a mediação entre o entendimento e a percepção, ou melhor, a forma de adequação do dado ao conceito, verdadeira intelectualidade dos conteúdos percebidos. Forma de dizer como nenhuma percepção aparece para nós de modo completamente “neutro” em seu sentido, mas já é con-formado pelo pensamento na construção de conhecimento. Modo de descrever o próprio ato de raciocinar, isto é, sistematizar dados factuais em torno de sistemas de referência importantes para a unidade psíquica do sujeito do conhecimento.
Sabemos, contudo, que Adorno “não ignora a distinção fundamental da filosofia kantiana entre o momento empírico da subjetividade e o transcendental. No entanto, recusa a separação e a abstração que, segundo ele, inverte totalmente a ordem da constituição.” (Musse, 2007, p. 206.) Isso porque, no contexto fetichizante e “naturalizante” do capitalismo, o indivíduo já des-individualizado se encontra historicamente destituído de seu papel de sujeito do conhecimento: a consciência que produz o esquema não seria mais individual, sendo substituída pelo capitalismo em seu modo industrial de entretenimento. Isso quer dizer que, para Adorno, o esquema que media a percepção e o pensamento é produzido pela indústria cultural, chega pronto ao indivíduo que simplesmente o aceita e o “aplica” em cada percepção na produção do conhecimento. A função mesmo de raciocinar, de refletir conceitualmente os dados percebidos no mundo são produzidos por Hollywood:
os sentidos já estão condicionados pelo aparelho conceitual antes que a percepção ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria com a qual ele o produz para si próprio. Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood realizou conscientemente: as imagens já são pré-censuradas por ocasião de sua própria produção segundo os padrões do entendimento que decidirá depois como devem ser vistas. A percepção pela qual o juízo público se encontra confirmado já estava preparada por ele antes mesmo de surgir.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 73)
Esta seria a segunda forma de vermos como a dialética entre história e natureza se mostra operante na constituição do tipo antropológico analisado por nós: aquilo que é entendido como naturalizado em Kant ganha uma gênese histórico-social em Horkheimer e Adorno. Assim, se o esquematismo é produzido objetivamente de forma massificada, esta universalidade falsa enseja a naturalização e perenidade de um funcionamento psicológico e metapsicológico humano que tem em vista a autoconservação de uma identidade adequada ao status quo.
O reconhecimento de uma antropologia histórica, ainda muito questionado dentre os pesquisadores adornianos, é de enorme valia para a teoria do pensador de Frankfurt por diversos motivos. Não só porque ela coloca em funcionamento uma dialética entre natureza e história (ou conceito e objeto) que perpassa as principais obras de Adorno. Mas porque a assunção de uma antropologia histórica trata efetivamente da dialética vivenciada na materialidade física do corpo humano – algo muito repetido de modo vazio pelos comentadores, mas que ainda se mostra como um verdadeiro tabu a ser explorado pelos filósofos. Esta dialética vivenciada no corpo também é materialista por ser consequência das contradições objetivas em operação – contradições estas escamoteadas pelo capitalismo, de um lado, e por algumas das teorias críticas pós-adornianas. O conflito entre o sentido histórico dominante e o resquício arcaico que retorna na história é, como vimos, também relegado quando se nega também uma concepção antropológica que seja histórica. Por mais que toda a possibilidade de reconciliação deva ser erigida histórica e socialmente, é no corpo humano que ela é particularizada. Assim, negar uma antropologia histórica em Adorno seria negar também o modo como as contradições e potencialidades objetivas são vivenciadas pulsionalmente.
Assim, a antropologia é histórica não só porque o corpo se adequa às determinações sociais (produzindo uma historicidade sedimentada em naturalizações míticas), mas também porque o corpo não tem como se adequar completamente a elas (produzindo o retorno de resquícios arcaicos indomados). Nesse sentido, ao mostrarmos a transitoriedade da antropologia histórica enquanto natureza interna dos seres humanos segundo Adorno, nossos desenvolvimentos teóricos nos apontam para um caminho ainda pouco desenvolvido de reconciliação que não se situa exatamente na estética adorniana. Ao menos é isso que podemos pensar tendo Hullot-Kentur em nosso auxílio: nosso intuito seria o de
elucidar o semblante [semblance] mítico como implicitamente contendo a possibilidade de reconciliação: (...) o elemento de reconciliação no semblante [semblance] aparece quando seu conteúdo de transitoriedade [Transience] é expresso, onde o arcaico se revela como o histórico. Em sua transitoriedade [transience], a segunda natureza apresenta-se como primeira natureza. […] Através do controle completo sobre o material, no limite da convenção, o mítico se torna expressivo, ‘as paixões não são mais simuladas, mas sim emoções genuínas do inconsciente - de choque, de trauma - são registradas sem disfarce’ [...] A segunda natureza, então, não é só a convenção, mas potencialmente uma nova natureza. (HULLOT-KENTUR, 1984, 248-49.)
Ainda lemos em “Dialética do Esclarecimento”:
É só quando a total identificação com essas potências monstruosas é impressa nas pessoas concernidas como uma segunda natureza e quando todos os poros da consciência são tapados, que as massas são levadas a esse estado de absoluta apatia que as torna capazes de realizações fantásticas. (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 168)
Afinal, a sua antropologia sendo tanto fruto de uma adequação às determinações histórico-sociais quanto concebendo esta potência arcaica de expressão não-idêntica sofre no interior de si mesma as decorrências da dialética entre natureza e história. É claro que, sendo uma dialética, este elemento arcaico transitório pode voltar a ser dominado – como ocorre na descrição dos “Elementos de Antissemitismo” no qual os “O impulso recusado [die versagte Regung] é permitido na medida em que o civilizado o desinfeta através de sua identificação incondicional com a instância recusadora.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1947/1985, p. 152) Mas, também justamente porque é histórica, tal antropologia pode vir a ser outra em outros contextos e determinações talvez até mais radicais:
Em seu estudo sobre o Admirável mundo novo, Adorno critica o desdém de Huxley por Lenina, uma criação robótica de tubos de ensaio, a quintessência da sexualidade artificialmente desinibida e do charme artificial, por quem o protagonista do romance se apaixona. De acordo com Adorno, Huxley entendeu mal sua criação. “Porque ela é como uma [at one with] convenção até o seu âmago, a tensão entre o convencional e o natural se dissolve e com ela a violência na qual consiste a injustiça da convenção [...]. Através da mediação total [...] uma nova imediaticidade, uma nova humanidade poderia surgir.” (HULLOT-KENTUR, 1984, p. 249-50.)
Vemos entrar em cena o potencial deste novo natural que se coloca como uma abertura de outro sentido histórico diante de uma segunda natureza que, sendo reconhecida como mero semblante, guarda também as possibilidades de um novo recomeço. Como arremata Adorno:
Ao invés de desenvolver ideias gerais, apresentarei um exemplo: o da aparência; e, certamente, falo da aparência no sentido de uma segunda natureza, da qual tratava antes. Esta segunda natureza, quando se manifesta plena de sentido, é uma natureza da aparência, e nela a aparência é produzida historicamente. [...] Penso que o momento da reconciliação está por toda parte onde o mundo se apresenta o mais aparente possível; em que a promessa de reconciliação é dada da forma mais perfeita, onde, ao mesmo tempo, o mundo está mais fortemente protegido contra todo “sentido”. Com isso volto a lhes remeter à estrutura do proto-histórico na aparência mesma, onde esta, em seu próprio ser, se revela como algo produzido historicamente: na linguagem corrente da filosofia: onde a aparência se torna madura pela dialética sujeito-objeto. A Segunda natureza é na verdade a primeira. A dialética histórica não é um mero retomar materiais proto-históricos reinterpretados e sim transformar esses mesmos materiais históricos em mítico e histórico-natural.” (ADORNO, 1932/2000, p. 8)
Assim, é quando a aparência é revelada, desnaturalizando o pretenso dado, e quando a natureza é exibida de forma historicamente construída que a conceituação mesma de segunda natureza tende a se desfazer, concebendo-se como primeira natureza no sentido da história natural. Este seria um possível caminho para a reconciliação com essa natureza, uma vez que, sendo histórica, é passível de ser modificada, transformada. Assim, o sentido histórico se vê ancorado na interpretação de uma realidade contraditória, o que convida à reformulação constante do significado do que está sendo, do que foi e do que será.