Artigo
Recepção: 31 Janeiro 2019
Aprovação: 27 Fevereiro 2019
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i1.1136
Resumo: Este artigo se divide em duas partes. Na primeira seção, após a introdução, mapeamos as diversas ocorrências de “phýsis” ao longo das Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico, dividindo-as em 5 categorias: (1) “natureza” como o real, em posição à “aparência”; (2) o “natural” como aquilo que parece próprio, pertencente a algo ou alguém; (3) a “Natureza”, como uma dimensão criadora e regente; (4) o “natural” em oposição ao “antinatural”; (5) a “natureza dos homens”. A forma como esses diversos usos aparecem na obra é invariavelmente crítica, como elementos da argumentação contra os dogmáticos, especialmente os estoicos. Na segunda parte do trabalho, entretanto, mostramos como a “phýsis” aparece também de maneira positiva no início das Hipotiposes com a função de guia para a vida, como parte da resposta à célebre objeção da apraxía. Além disso, defendemos a hipótese de que a “natureza”, da perspectiva de Sexto, não se opõe nem ultrapassa as convenções e os costumes; pelo contrário, a natureza é o que é reconhecido por todos e é mesmo determinada pelas convenções e pelos costumes.
Palavras-chave: Sexto Empírico, Natureza, Ação.
Abstract: This paper is divided into two parts. In the first section, after the introduction, we exposed the various occurrences of “physis” throughout Sextus Empiricus’ Outlines of Pyrrhonism, dividing them into 5 categories: (1) "nature" as the real, in contrast to “appearance”; (2) the "natural" as that which seems characteristic, peculiar to something or someone; (3) "Nature" as a creative and guiding agent; (4) the "natural" as opposed to "unnatural"; (5) the "nature of men". The way these various uses appear in the work is invariably critical, as elements of argumentation against the dogmatists, especially the Stoics. In the second part of this paper, however, we show how “physis” also appears positively at the beginning of the Outlines with the guiding function for life, as part of the answer to the famous objection of apraxia. In addition, we defend the hypothesis that “nature”, from Sextus’ point of view, does not oppose nor surpass conventions and customs; on the contrary, nature is what is recognized by all and is even determined by conventions and customs.
Keywords: Sextus Empiricus, Nature, Action.
1. Introdução
Este trabalho se insere no âmbito de um projeto de pesquisa sobre a phýsis em Sexto Empírico. São muitas as motivações para estudá-lo. Em primeiro lugar, é interessante para qualquer amante da Filosofia Antiga, por transmitir um grande conjunto de fragmentos que hoje estariam perdidos não fosse a pertinácia de Sexto em expor passo a passo aquilo que os predecessores entendiam nos mais variados assuntos, dentre os quais, os relativos à Ética, à Física e à Lógica (lembrando que a Lógica incluía o que hoje chamaríamos de Teoria do Conhecimento). Em segundo lugar, o tema da “natureza”, da phýsis, é um desses que perpassa todo o pensamento antigo e em contextos variados (político, cosmológico, ético etc.), e Sexto se insere nessa tradição, que é grega, de reconhecer o caráter fundacional da natureza. Ao que parece, os filósofos invariavelmente chegavam a esse inquestionado, ao “natural”. Platão, por exemplo, funda sua politeía a partir da acepção de que os érga, os diferentes ofícios praticados na pólis,devam ser conforme a natureza de seus habitantes. Aristóteles, por sua vez, para citar mais um exemplo, na Ética a Nicômaco, flexibilizará a noção de autarquia, de autossuficiência, afirmando que a solidão é incompatível com a natureza política, agregadora, do homem. O homem tende, por natureza, a se relacionar. Nessas narrativas, e em muitas outras, a natureza funciona como isso que estamos chamando de princípio fundacional, ele mesmo não questionado nem demonstrado. Do ponto de vista do cético, certamente isso é um problema, pois reside nesses conceitos de “natureza” e de “natural” um campo fértil para o dogmatismo.
Nas Hipotiposes Pirrônicas, texto que elegemos analisar neste primeiro trabalho., a questão da phýsis não será tematizada especificamente em nenhum lugar, porém são frequentes as passagens em que o termo aparece, e em diferentes contextos. Curiosamente, apesar de quase todas as passagens fazerem referência à phýsis de maneira dubitativa e refutativa, em ataque articulado contra as diferentes escolas, há um lugar para a phýsis no ceticismo pirrônico. É no âmbito da ação que Sexto assumirá a natureza como referência. Neste trabalho propomos investigar como Sexto concilia sua crítica às diversas noções dogmáticas de “natureza” com a ideia de que a natureza serve como guia para a vida, conforme o cap. 11 do livro 1 das Hipotiposes. Haveria contradição nessa postura? Num primeiro momento, esclareceremos os diversos usos de phýsis por Sexto Empírico, para, em seguida, apresentar a sua própria maneira de compreender a phýsis no campo da ação. Sexto utiliza o repertório que apresentaremos, em geral, de maneira crítica, mas acaba, assim, nos proporcionando um mapeamento dos diversos sentidos em que a noção de phýsis é utilizada na Filosofia que o precede (embora sem a pretensão de esgotá-los).
2. Os diversos sentidos de phýsis nas Hipotiposes
2.1 tê phýsei ou pròs tèn phýsin: é recorrente em Sexto a contraposição entre “aquilo que parece x” (aquilo que parece bom, doce, redondo, p. ex.) e “aquilo que é x por natureza .tê phýsei)”. Como em P. 1.12.27:
Pois aquele que crê que algo é por natureza belo ou mau se perturbará continuamente; e quando as coisas que lhe parecem belas não estão presentes, julga ser perseguido pelos males por natureza e busca os bens, como acredita; e uma vez que os tenha adquirido, cai em frequentes perturbações e, por temer a mudança, fará tudo para que não perca as coisas que lhe parecem boas. Já aquele que não se define sobre as coisas belas ou boas por natureza nem evita algo nem persegue algo intensamente; por isso, resta sem perturbação..
Nesse contexto, “ser x por natureza” (tê phýsei ou pròs tèn phýsin) poderia ser entendido por nós como “ser x realmente”, “ser x em realidade”. Quando da exposição dos dez modos para a suspensão do juízo, essa expressão aparece o tempo todo como o objeto da suspensão. Pelas diferentes impressões (phantasíai) das coisas que subsistem., suspendemos o juízo quanto ao que elas são por natureza. Trata-se da renovação, num outro quadro teórico, do velho par ser-aparência..
2.2 natural como aquilo que parece próprio, pertencente a algo ou alguém: o uso que Sexto faz dessa expressão (pephykótos ou phýsei) parece pouco rigoroso. Ele aponta simplesmente algo que tem uma característica que é reconhecida por todos. Por exemplo: “E uma vez que alguns animais possuem por natureza um brilho nos olhos [...].” (P. 1.14.45); ou “uma vez que alguns animais são flácidos por natureza e flegmáticos [...]”. (P.1.14.51).
Importante, com relação a esses exemplos, que Sexto utiliza a expressão “por natureza” no contexto de um discurso dogmático. Na exposição dos dez modos, as antíteses são formadas a partir de teses dogmáticas, às quais ele não dá adesão. Ele se vale delas apenas para obter a equipolência. Nesse sentido, não se sustenta a atribuição de dogmatismo a Sexto ao se referir ao “natural brilho nos olhos de alguns animais” ou “à flacidez natural de alguns animais”. Ele está usando simplesmente a linguagem ordinária e a partir de crenças ordinárias.
Com relação ao uso das expressões à maneira dogmática, cabe salientar que Sexto dedica um capítulo (P. 1.28) a esclarecer essa questão. Ele as utiliza como drogas (phármaka) indicadas como purgantes. Ao serem eliminados os humores do corpo, a droga é expelida junto. Portanto, as expressões e teses usadas nas antíteses, como dissemos, visam à formação de equipolência, sem implicar alguma crença ou afirmação do cético.
2.3 he phýsis como a Natureza: essa concepção aparece pela primeira vez nas Hipotiposes no contexto da tese dogmática da comensurabilidade dos sentidos, em que a Natureza aparece personalizada (por isso, é comum grafar a palavra com “n” maiúsculo), por ser a “autora” da simetria ou proporção entre sentidos e sensíveis: “Mas a Natureza comensurou, dirá alguém, os sentidos de acordo com os sensíveis.” (P. 1.14.98).
Essa tese pode ser encontrada tanto em Aristóteles (De Anima 424b20-425a13), quanto em vários fragmentos estoicos e visa a responder à dúvida levantada no terceiro modo cético sobre se há (1) mais qualidades sensíveis além daquelas que conhecemos pelos cinco sentidos, se há (2) apenas um sensível que apreendemos de maneira diferenciada pelos cinco sentidos ou se há (3) tantas qualidades sensíveis quanto sentidos. O cético suspende o juízo com relação às impressões oferecidas pelos diferentes sentidos, porém um estoico como Epiteto, que defende a concepção de uma Natureza divina, regente, racional, conclui não ser possível a arbitrariedade de o homem não apreender a realidade tal qual ela é de fato, defendendo assim a comensurabilidade dos sentidos, isto é, os sentidos apreendem as qualidades sensíveis existentes, nem mais nem menos10.
2.4 Estado natural e antinatural: katà phýsin / parà phýsin ékhein
O par de opostos katà phýsin e parà phýsin ocorre pela primeira vez nas Hipotiposes no quarto modo da suspensão, o das circunstâncias. O empenho em exemplificar se expressa somente quanto ao estado reconhecido como antinatural. Em estado natural estamos “nós”, como aparece nas oposições que ele apresenta: os delirantes e os inspirados pelos deuses parecem ouvir os daímones e percebem odores que nós não sentimos (P. 1.14.101). Em estado natural, segundo o dogmático, está, também, o saudável; enquanto o doente, em estado antinatural (P. 1.14.102-103). Na exposição do quarto modo subjaz a crítica quanto à eleição das melhores condições ou circunstâncias para a apreensão da realidade. Estamos sempre sob alguma condição (dormindo ou acordados; ébrios ou sóbrios; jovens ou velhos etc.), mesmo quando julgamos qual a melhor condição para a apreensão, e por isso não podemos decidir.
Cabem, ainda, duas observações complementares com relação ao par katà phýsin-parà phýsin: primeiro, que ele provavelmente era um tópos nas discussões preexistentes relativas à dúvida quanto ao conhecimento dos sentidos. O próprio Sexto aponta para o uso anterior do par na tese do homem-medida. Ele trata do assunto no cap. 32, do livro 1, em que procura diferenciar o ceticismo da doutrina protagórica. Difícil saber se Sexto teve acesso ao Da Verdade, de Protágoras, ou se somente ao Teeteto de Platão. O fato, todavia, é que ele não acena para nada que já não esteja descrito no diálogo, onde se vê o homem parà phýsin como aquele em estado alterado, seja pela loucura, seja pela doença, o que lhe afetaria, segundo a objeção socrática (Teeteto, 157e-158d), a percepção. O mesmo par aparece também no contexto da Nova Academia (p. ex. CÍCERO, Acadêmicas 2.51-52), cujo principal adversário era o estoicismo, uma escola preocupada, como mostra sua teoria da phantasía, em garantir o conhecimento pela percepção. É provável, portanto, que o par estivesse presente, fosse um lugar-comum no debate sobre a verdade e a falsidade das impressões.
A segunda observação importante é com relação ao contexto médico envolvido no par11. No quarto modo, para gerar a equipolência, Sexto traz a dogmática teoria médica dos humores, que credita a uma certa mistura de humores a formação de impressões inadequadas. E responde dizendo que todas as pessoas têm alguma mistura de humores que também interferem na produção das impressões. Se todos temos mistura de humores interferindo na produção de impressões, inclusive quando precisamos decidir sobre qual a mistura adequada ou natural para a produção de impressões, suspende-se o juízo. O contexto médico retorna no capítulo 34, quando Sexto se dedica a distinguir o ceticismo da medicina empírica, apontando, em sua exposição, a escola metódica como a mais próxima do ceticismo. Não entremos nesse assunto, que importa pouco para o nosso tema, mas atentemo-nos para o fato de que o par katà phýsin-parà phýsin retorna ali na descrição dos procedimentos da escola metódica, que parte das afecções aparentes (tôn phainoménon pathôn), tanto as naturais quanto as antinaturais (tôn te katà phýsin kaì tôn parà phýsin), para fins de registro e descoberta de tratamentos (cf. P. 1.34.239-240). A abordagem de Sexto aqui chama a atenção pelo uso acrítico das expressões, embora dê a entender que ambos os tipos de afecção, tanto as chamadas naturais quanto as chamadas antinaturais, têm igual relevo na escola metódica. Mas, de todo modo, destaca-se aqui e em outros lugares da obra esse uso pouco rigoroso das expressões quando o contexto é o da linguagem ordinária, quando o que está em jogo não é a proposição de verdades sobre o mundo. Para comunicar, o cético precisa se valer dos significados reconhecidos pelo senso comum, ainda que em outros momentos ele coloque em questão justamente os sentidos reconhecidos pelo senso comum. No caso específico do par parà phýsin.katà phýsin, todavia, as expressões, embora pertencentes à linguagem ordinária (assim como usamos hoje as noções de “normal” e “anormal”), estão inseridas também no contexto das teorias médicas, que supostamente justificariam, racionalmente, seus usos na fala corrente12.
2.5 A natureza dos homens (he anthrópon phýsis)
A noção de natureza humana é a única mais desenvolvida positivamente por Sexto, quando da apresentação da conduta cética na vida (que abordaremos na segunda parte do trabalho). Por enquanto, ainda partindo da crítica aos dogmáticos, nos limitaremos a comentar a visão que ele apresenta da noção de “natureza humana” no estoicismo. Assim como na crítica à noção de Natureza regente, Sexto considera a visão estoica da natureza humana uma extrapolação. Ao considerarem que há uma arte da vida (he perì tòn bíon tékhne, P. 3.23.244), que a prudência (phrónesis) é apreensível e que o sábio possuidor da arte da vida é alguém cujas ações são consistentes, contínuas, os estoicos estão falando demais (hyperphthéngousin), ou superestimando a natureza humana; estão mais para rezadores ou suplicantes (eukhómenoi) do que para contadores de verdades (talethê légontes)13.
A crítica de Sexto não segue irrestrita contra uma noção de natureza humana, mas contra noções que deixam de lado o evidente, o que é reconhecido por todos. Veremos agora, na segunda parte do trabalho, como a natureza dos homens é pensada por ele, e como a própria noção de “natural” apresenta limites rígidos com vistas à precaução contra o dogmatismo.
3 A natureza como guia para a vida
Como dissemos anteriormente, a despeito de a noção de phýsis aparecer nas Hipotiposes muitas vezes de maneira crítica, outras dentro de um contexto dogmático para a formação de equipolências – em outras palavras, a despeito de toda a precaução com essa noção que serve de base para muitas teorias e argumentos dogmáticos –, encontramos logo no início da obra um uso positivo dela, como critério de ação. O tema surge no capítulo 11 do livro 1, intitulado “Do critério do ceticismo”. Lá, Sexto afirma que o critério pode ser compreendido de duas formas: como “aquele que determina a crença numa realidade ou numa irrealidade” (aquilo que em outros momentos, especialmente em Contra os lógicos, ele chamará de critério de verdade, que diz respeito ao conhecimento); e o outro seria o critério de ação (tò toû prássein), a partir do qual realizamos certas ações ou as evitamos em nossa vida. Se a epokhé é recorrente no primeiro caso, por sermos juízes parciais que só têm acesso às próprias impressões, e não à realidade; no segundo caso o mesmo não se dá. Não é possível suspender a atividade da vida. E isso não só porque a indecisão gera consequências no mundo real (a omissão é ela mesma uma decisão que produz fatos), mas porque há algo de constrangedor nas motivações para a ação14. Sexto dirá que o critério de ação é o fenômeno, e que ele depende de afecção involuntária (abouléto páthei). Isso fica mais claro na sequência do argumento, quando Sexto desdobra a conduta de vida em quatro aspectos: (a) orientação da natureza (hyphégesis phýseos); (b) constrangimento das afecções (anánke pathôn); (c) tradição das leis e dos costumes (parádosis nómon te kaì ethôn) e (d) no ensino das artes (didaskalía tekhnôn).
O constrangimento das afecções ele exemplifica com a fome e a sede. Ao sentirmos fome, buscamos comer; ao sentirmos sede, buscamos beber.
A tradição das leis e dos costumes é a orientação que recebemos culturalmente sobre o bem e o mal, o belo e o feio, sobre o que deve ou não ser feito. Sexto dedica muitas páginas a esse item tanto na discussão do décimo modo da suspensão, dedicado aos assuntos relativos à ética, quanto em sua obra Contra os eticistas. Vê-se dele um intenso empenho em mostrar como não sabemos se há e o que seria o bem por natureza ou o mal por natureza, e ele o faz a partir das antíteses, contrapondo costumes diferentes, leis diferentes, costumes a leis etc. Não podendo decidir entre as diversas concepções de bem, suspendemos o juízo com relação ao bem por natureza (ou, como dizemos habitualmente, o bem em si). Suspendemos o juízo, mas não podemos suspender a ação. E, nesse sentido, o cético é, antes de tudo, um prudente15, ou, se quisermos usar uma palavra um pouco mais dura, um conservador. Ele nada afirma sobre a existência de deuses, mas se a tradição entende ser bom ser piedoso, o cético agirá como um (cf. P. 1.11.24). Ele se conduzirá de maneira a não ser reprovado por seus concidadãos, evitando as ações e posturas escandalosas que ele sabe, bom frisar, que não são más nem vergonhosas em si mesmas, mas porque os costumes e as leis lhe ordenam. Julia Annas (2007, p. 24-25) atribui certa passividade ao pirrônico, que respeita as instituições de seu país, ou os costumes de seu povo mesmo sem considerá-los justos em si, ou dignos de obediência por si. É como se o cético se destacasse, descolasse, de seu próprio “interior”, agindo, estranhamente, sem partir de crenças. Essa que seria a vida “adoxástica”. Uma outra forma de entender a atitude do cético é pensá-lo como alguém que não recusa o mundo que lhe aparece. Ele vive numa região com leis e costumes, as reconhece; porém, também ciente das leis e costumes de outros povos e culturas, percebe-se juiz imparcial na reflexão sobre essas práticas que lhe são estranhas. Suspende o juízo sobre o “melhor em si”, mas isso não significa que uma escolha não lhe apareça como a melhor. Não precisamos ter uma teoria ética, stricto sensu, para nos sentirmos impelidos a agir de uma determinada maneira16. Algo nos aparece como o melhor a ser feito e o fazemos17.
O ensino das artes também é acatado sem questionamentos. A prática dos ofícios que têm um efeito útil na vida das pessoas, da cidade, não é questionado. O ceticismo não se estende aos conhecimentos produtivos, à construção de casas, por exemplo, ou à agricultura18. O alvo do pirronismo são, fundamentalmente, as teorias filosóficas, que propõem sistemas explicativos que partem do não-evidente.
Resta explicar o aspecto da orientação da natureza na condução da vida. Como é possível a Sexto falar de “natureza” sem cair ele mesmo num dogmatismo? Cremos que a chave está em pensar nos limites discursivos do cético. Se o cético é aquele que se limita a descrever o que lhe aparece, sem avançar na direção do que não é evidente, sua leitura da natureza vai ser, paradoxalmente, uma descrição do que aparece como natural. Mas qual a noção de natural que resta a Sexto? Selecionamos duas passagens nas Hipotiposes que podem contribuir para uma resposta. O livro III, cap. 21, sobre se há algo por natureza bom, mau ou indiferente, Sexto inicia assim: “O fogo que aquece por natureza aparece a todos como aquecedor, e a neve que resfria por natureza aparece a todos como resfriadora19 [...] (P. 3.21.179). Ainda nesse livro, uma passagem nessa mesma linha chama a atenção. Após descrever as diferentes dietas e proibições alimentares de acordo com as diferentes religiões dos diferentes povos, Sexto conclui: “E, se as <práticas> rituais e de proibições [alimentares] existissem por natureza, elas seriam reconhecidas por todos de modo semelhante20” (P. 3.24.226).
O que essas e outras passagens indicam é que Sexto está tomando o “natural” como aquilo que é reconhecido por todos. Um cético não afirma sobre a realidade do calor do fogo, mas percebe regularmente - algo que é compartilhado por todos - que na presença do fogo as coisas esquentam. Ele não afirma sobre a realidade resfriadora da neve, mas percebe, e em comum com todos, frequentemente que, na presença da neve, as coisas resfriam21. Ele assume aquela segunda noção de “natural” que elencamos, “aquilo que é próprio ou pertence a algo ou alguém”, mas limita essa noção ao parecer de “todos”22. Isso soa paradoxal porque submete a natureza ao aparecer, ao reconhecimento. Entretanto, ao ser bem específico, limitando o natural ao parecer de todos, a noção de natureza será bem restrita. Por isso que os estoicos falam demais ao proporem uma arte da vida a ser buscada pelo homem. Isso é superestimar a natureza humana, diz Sexto. O que no homem é reconhecido por todos? Desdobrando a questão em perguntas anteriores: primeiro, o que em mim é reconhecido por mim? Em seguida, o que nos demais homens é reconhecido por mim? E, por último, o que é reconhecido por mim e pelos demais homens nos homens e em comum? Muito pouco. Sexto dirá simplesmente: somos percipientes (aisthetikoí) e pensantes (noetikoí). Vejam que a orientação da natureza não pode ser confundida com uma regra de vida em sentido prescritivo. Não é possível viver sem sentir nem pensar.
No cap. 33, dedicado a distinguir os pirrônicos dos acadêmicos, Sexto descreverá a conduta de vida cética de uma maneira um pouco diferente, afirmando que “nós [pirrônicos] vivemos de maneira adoxástica, seguindo as leis, os costumes e as afecções naturais” (P. 1.33.231). Reúne, assim, numa única expressão o constrangimento das afecções à orientação da natureza. Como percipientes e pensantes somos afetados involuntariamente pelos mais diversos fenômenos, tanto sensoriais quanto inteligíveis: não conseguimos evitar sensações e pensamentos. É importante frisar isso para mostrar que a suspensão não é dessa ordem. Ela pode vir num passo posterior, se passarmos a afirmar a partir das sensações e pensamentos. Se da descrição daquilo que nos aparece saltarmos para a descrição do que ocorre de fato, em realidade. Reparem que isso que é descrito como o natural em nós não será ampliado para uma tese sobre o homem. Pelo contrário, Sexto dedicará também um capítulo (5 do livro 2) para questionar essa noção.
Para concluir, como explicar em algumas poucas palavras isso que compreendemos como a orientação da natureza? Enquanto escrevo23 sinto cansaço, tenho ideias, tenho vontade de tomar um café, a orelha coça, me vem à memória que daqui a pouco preciso sair pra buscar os filhos na escola. Temos experiências relativas ao pensamento e à percepção que não recusamos e não podemos recusar. No presente momento tenho também recordações, de modo que as experiências passadas (ou versões das experiências passadas) também constituem meus pensamentos e sentimentos e de alguma maneira também determinam a minha maneira de me relacionar com as coisas e as pessoas. E seguimos vivendo independente de qualquer sistema explicativo que dê conta do cansaço, do surgimento ou da conexão de ideias, e da vontade de coçar a orelha, por exemplo. Não precisamos entender como opera o desejo para termos um desejo e buscar satisfazê-lo. Não precisamos de uma teoria etiológica para associarmos um fenômeno a outro e termos a expectativa (e somente isso) de que algo irá acontecer se dadas condições se apresentarem24. É disso, parece, que o cético está falando25. Que não faz sentido exigir verdades sobre o mundo para se viver. Isso não é exigido do homem comum e, no entanto, ele vive26 – reconhecendo tanto as imposições da natureza, quanto as imposições das leis e dos costumes. E é só isso que podemos fazer, descrever como as coisas se dão. Qualquer tentativa de valorar, de hierarquizar esses aspectos, seria já uma extrapolação, seria já dogmatizar.
Veja-se, todavia, que essa vida conforme à natureza curiosamente está subordinada às convenções. Por dois motivos: (1) como vimos anteriormente nas passagens elencadas (P. 3.21.179 e 3.24.226), a própria noção de natureza se compreende como aquilo que é reconhecido por todos. Sexto parece (é a hipótese que procuramos defender), portanto, não compreender “natureza” como aquilo que está para além da percepção, como o “essencial” em oposição ao aparente. Pelo contrário, compreende o “natural” como o “reconhecidamente comum a todos”. (2) Ao definir o natural em nós, homens, como a capacidade de sentir e pensar, Sexto ilustrou o homem como uma espécie de receptáculo de dados, tanto de ordem sensorial, quanto de ordem inteligível, e que tende a conectá-los a partir de sua memória. Por exemplo, quando vejo agora a árvore no meu quintal, penso que o nome do fruto que ela dá é romã, e que é comum sua utilização para o combate à dor de garganta; me lembrei de que a ganhei do meu cunhado, quando ainda estava casado com a minha irmã; quando ponho as sementes com a polpa na boca, sinto gosto de chiclete. E podemos montar outros tantos relatos descritivos a partir da experiência com todos os objetos à nossa volta (a árvore de Natal, o porta-retrato com um membro da família, o computador à frente etc.), que nos aparecem em conjunto com uma enorme gama de informações (científicas, afetivas, sensoriais, da ordem do costume etc.) aprendidas ao longo do tempo. Como pensantes e percipientes, temos esse crescente acervo de experiências27 que não são particulares apenas. Estamos imersos numa intrincada rede de dados sensoriais e inteligíveis, como dissemos acima, compartilhados, em larga medida convencionados, de modo que nossa própria natureza pensante e percipiente está a ela subordinada. Isso sem entrar no delicado tema da linguagem que herdamos, em que estamos inseridos, por meio da qual pensamos e nos expressamos, ela mesma convencional28 e determinante em nossa experiência de mundo29.
É possível ver nisso algo de negativo, como uma espécie de declaração da nossa limitação, da diminuição do nosso horizonte criativo e de ação; mas é justamente essa visão que nos previne de tomar o parcial, o relativo, como o todo, ou o real. Ao nos sabermos situados e determinados pela nossa educação, história, território, cultura, enxergamos o outro como um igual em condições (igualmente determinado por sua educação, história, território, cultura). Isso não é pouco, em especial contra certo tipo de dogmatismo, aquele que pode ser expresso da seguinte maneira: “aquilo que me parece o melhor . o melhor absolutamente. Aquilo que me parece ruim . ruim absolutamente.” O ceticismo é um remédio contra esse pensamento que chamaríamos de totalizante, que toma o particular como universal30, ou o fenômeno privado como o real. Resvalando para o campo da ação, especialmente da política, o homem do discurso totalizante se vê legitimado, pela verdade que acredita ter, a impor o “melhor” a todos, impedindo a pluralidade de perspectivas e o contraditório. E como a noção de phýsis é bastante útil ao propósito totalizante, a atitude cética nos parece uma saída para o problema. Diríamos mais, que é a noção de parà phýsin, de “antinatural”, de “anormal”, que contamina o discurso e as ações totalizantes. O que pode ser mais desviante, anti-humano do que ser ou agir contra a própria natureza? É sobre essa imputação – “isso é contra a natureza” – que o discurso totalizante se apoia. E o que o ceticismo propõe é justamente uma espécie de cura para essa doença que ele nomeia como “a pretensão e a precipitação”, como diz Sexto Empírico no último capítulo das Hipotiposes. O pirrônico é um philánthropos .P. 3.32.280), um amante da humanidade. Ele não se alheia, como pode parecer, e viverá como um médico cujos remédios são os diferentes argumentos, modos de persuasão, variando de interlocutor a interlocutor o grau de dificuldade, a fim não de trazê-lo para outra verdade, a “verdade dele, cético”, mas para deixá-lo sem verdade nenhuma, em dúvida, em estado de suspensão.
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Autor(a) para correspondência: Alice Bitencourt Haddad, Universidade Federal Fluminense, Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, São Domingos, 24210201, Niterói – RJ, Brasil. alicecorreio@gmail.com