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Na prática envolvente das semelhanças, o mundo renascentista

In the involving practice of the similarities, the renaissance world

Nilton César Arthu
Universidade Metodista de Piracicaba, Brasil

Na prática envolvente das semelhanças, o mundo renascentista

Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 1-11, 2019

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 26 Março 2019

Aprovação: 09 Junho 2019

Resumo: Este artigo busca voltar-se ao corpus do saber do século XVI, época compreendida como a Era das similitudes, segundo leitura de Michel Foucault. Interessa-nos a aproximação da ordem prática do período - rica em sinais e grafias - a fim de determo-nos em sua devida concepção de mundo - rica em simbologia. Nesta análise, o mundo renascentista estará envolto a uma intensificação do exercício de ordenamento, regido por formas segundo as quais as semelhanças se dão a conhecer: as chamadas figuras das similitudes - signatura, convenientia, aemulatio, analogia . simpatia. Além disso, aderente a um fundo de configuração geral, será enfatizado a noção de círculo como referencial figurativo cabível ao entendimento do espaço geral do saber renascentista. Da noção de círculo remeteremos à prática de circulação das similitudes, e através disso, indicaremos um mundo renascentista decifrado ou interpretado segundo uma rede esgotável, no limite das próprias órbitas circulares emanadas do ajustamento de semelhanças. Na prática, o uso de uma marcação simbólica - inclusive, extensa à dimensão cósmica – possibilita-nos a visualizar um arranjo do como, mediante ordenamento do saber, são promovidas certas disposições “entre” e “para” as coisas e pessoas no mundo.

Palavras-chave: Figuras da similitude, Círculo, Ordem do saber, Mundo ordenado.

Abstract: This article seeks to return to the corpus of knowledge of the sixteenth century, a time understood as the Era of similarities, second reading of Michel Foucault. We are interested in the approximation of the practical order of the period - rich in signs and spellings - in order to pause in its proper conception of the world - rich in symbology. In this analysis, the Renaissance world will be involved in an intensification of the ordination exercise, governed by forms according to which similarities become known: the so-called figures of similarities - signatura, convenientia, aemulatio, analogia and simpatia. In addition, adhering to a background of general configuration, the notion of circle as a figurative referential will be emphasized, which can be understood in the understanding of the general space of Renaissance knowledge. From the notion of circle we shall refer to the practice of circulation of similarities, and through this we shall indicate a Renaissance world deciphered or interpreted according to an exhaustible network, within the limits of the circular orbits emanating from the adjustment of similarities. In practice, the use of a symbolic marking - inclusive, extended to the cosmic dimension - enables us to visualize an arrangement of how, through the ordering of knowledge, certain dispositions are promoted "between" and "for" things and people in the world.

Keywords: Figures of similitude, Circle, Order of knowledge, Ordered world.

Considerações preliminares

A pergunta sobre como, no período renascentista, uma operante cosmovisão fora configurada ao modo de um movimento circular, moldará esta investigação. A abordagem do ponto de vista da ordem do saber e de suas práticas será balizada principalmente pela leitura de As Palavras e as coisas, de Michel Foucault, tomando a disposição do “círculo das similitudes” (2000a, 40). No capítulo II, intitulado A Prosa do Mundo, Foucault salienta que “até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental” (ibid., 23). Nesta exposição, vamos examinar como o espaço epistêmico condicionante do mundo do Renascimento tinha a ver com a ordem das similitudes.

A possibilidade de se ater ao perfil do século XVI, regido pelo enlace de similitudes - tanto do ver quanto do ordenar o mundo - reforçar-se-á a característica e necessidade das práticas nesse período: instalar e reconhecer mais e mais semelhanças no mundo. Neste esforço, a confecção de signos renascentistas circulava dentro de um panorama de elos do similar. E a partir de uma realidade “assinalada” notaremos uma primeira aderência da linguagem com a naturalidade do mundo, cuja força semântica fez disparar correlações e ajustamentos da ordem do necessário e do natural. Nessa esteira, não demorará notar, no Renascimento, a existência de um tipo de prática ritualística e cerimonial envolvendo o cenário a ser considerado nesta investigação.

De todo modo, na tarefa de proliferar fortes vínculos de similitudes, válidos para toda a multiplicidade corpórea envolvida, ao final, veremos despontar uma configuração ordenada do saber. E na medida em que nos alimentarmos do grande potencial dessa ordem comum e circundante da época, ou ainda, absorvendo tal jogo de fortalecimento de semelhanças e circularidade de marcas simbólicas, isso poderá evocar também reverberações em nosso período atual, haja vista a confecção massiva de imagens, linhas, traços, impressões, figuras simbólicas que continuamos anexar ao mundo.

Signatura no mundo

Não é desconhecida a idéia de que o homem renascentista, em virtude da valorização e retorno à cultura clássica greco-romana, viu-se posicionado segundo certa perspectiva de centralidade na Criação, ou seja, um novo centro referencial instalou-se ao redor do homem. A partir de seu olhar e de sua percepção de mundo, deu início àquele novo aspecto tão propagado na cultura moderna vindoura, o aspecto humanista.

No século XVI, a proporção humana revelou-se pelos modos de retratar o cenário humano no cosmos. Apesar de sua natural medida - relativamente ainda não emancipada do Divino - refletir-se como uma natureza cheia de faltas e excessos, decaída ou restaurada, é certo que o humano firmou-se como uma fonte de medida e significação: o homem é o “grande fulcro das proporções – o centro onde as relações vêm se apoiar e donde são novamente refletidas” (FOUCAULT, 2000a, 31).

Além disso, há outro ponto importante que deve estar justaposto ao antropocêntrico: “até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental” (ibid., 23). Isso significa dizer que o homem instaurou-se como base de reflexo, um espelho a ser preenchido na medida em que capturava a face das semelhanças entre as coisas, curiosamente nem sempre dada à visibilidade. A insistência nessa ação de captura, estabelecida pelo olhar e o que está ao seu redor, leva-nos a considerar que a busca de similitudes esteve como prefigurada no olhar humano. Quer dizer que o grande e grave sustentáculo, sobre o qual fez aparecer a todas as direções as órbitas das semelhanças, foi o próprio homem; e ele, o ponto polivante, reversível para si mesmo, que afirmou as sutis semelhanças, rebobinadas do mundo, e que estiveram em cena envolvidas nele mesmo. É como se disséssemos: na captura do que é visto, similarmente, passavam nele as mesmas coisas.

Potencialmente, o olhar renascentista, ao circunavegar ao redor e ao longe, foi capaz de tudo envolver, enlaçar sinais, ler e adivinhar correspondências exteriores na natureza e também compreender a sua similitude dentro do cosmos. Talvez aqui não seria vago se trouxéssemos à lembrança as pinturas renascentistas, cujo grande cenário simbólico esteve preenchido conforme as tintas do contexto humano, como bem sabemos. No entanto, aqui não importa outra coisa senão dar foco àquilo que propriamente confere materialidade a uma semelhança, a saber, a confecção de um signo. Dessa forma, vamos dar ênfase ao que se assume como necessário na articulação de toda e qualquer semelhança, a marcação do mundo. Vejamos.

De início, uma semelhança não pode ser conhecida se não houver adesão a um signo, ou simplesmente, se não houver uma assinalação (signatura) posta no mundo. A semelhança necessita inevitavelmente de signos, e estes, no Renascimento, mostraram um poder de propiciar ondas circulares envolvendo coisas e pessoas, em grande giro simbólico. Mas havia um problema, na voz afirmativa e exclamativa: “acaso não será toda semelhança a um tempo o que há de mais manifesto e o que está mais bem oculto?” (ibid., 36). Considerando que, na vazão do olhar humano, a busca da semelhança apresenta este aspecto dúbio, de vista e de não vista, e para que a ela seja notada e saia da sombra e “venha até a luz, é necessária uma figura visível que a tire de sua profunda invisibilidade”: marcas, grafias, traços, caracteres, símbolos tornaram-se, portanto, figuras visíveis instaladas nas superfícies das coisas. Declara Foucault: “eis por que a face do mundo é coberta de brasões, de caracteres, de cifras, de palavras obscuras” (ibid., 36-7). Foi, pois, no ato de marcação do mundo que tomou vulto a pretensão de fazer com que nada permanecesse indefinidamente escondido; ou seja, através da signatura acontece o registro visível resgatado das coisas.

Em resumo, qualquer semelhança notada deverá estar assinalada, pois é o sinal legível que tira do mundo a cobertura enigmática, fazendo dele uma versão decifrada. Com efeito, todo signo legível ou marca visível é um elemento de decisão para transformar algo implícito em algo explícito. A marca é algo que desvela. Podemos dizer que, pela força da assinalação, a marca faz ligar um conteúdo significativo à coisa assinalada, de modo que esta seja conhecida através e unicamente por sua marca. Portanto, é pelas assinalações que se faz a leitura do mundo renascentista, reconhecendo semelhanças imediatas e longínquas, retratadas em seus signos; nessa ordem, seria inconseqüente e “inútil”, por exemplo, “deter-se na casca das plantas para conhecer sua natureza; é preciso ir diretamente às suas marcas” (ibid., 36). No contexto, é pela força e autoridade do signo que resplandece uma espécie de semelhança originária, secreta e essencial, da própria natureza.

Prática ritualística

Se a realidade renascentista esteve atenta às suas marcas, veremos acontecer em sua ambiência uma prática ritualista do discurso, de tipo encantatória, embasada na palavra dita: “como se, assim, fosse possível igualar magicamente a palavra e a coisa, possibilitando uma ação mágica sobre o mundo através das palavras” (GALLO, 1995, 19). Em um sutil aspecto, as palavras são “como repetição da realidade”, e isso equivale a dizer que, na prática, “as palavras são as coisas” (GREGOLIN, 2004, 80). Com este sentido é que chamaremos a atenção ao chamado discurso ritualístico, em cujo exercício, no Renascimento, a multiplicidade humana se verá envolvida.

Segundo Foucault, a força vinculativa e cerimonial do discurso ritualista se dará, antes, por intermédio de algum sinal ou “marca de uma anterioridade fundadora” (2006, 53). Na corte soberana de um rei, por exemplo, acontece uma ritualística que funciona como subsistência vitalícia de sua própria “espiral monárquica” (ibid., 56), cujo esplendor inicial é relatado por alguma façanha do passado. No presente, o registro dos elementos vistos em cerimônia são símbolos sensíveis que se tornam legítimos pela força do rito neles empregados. Nota-se assim uma ampla conexão simbólica: “é reatualizada pelo relato e é atualizada por gestos, sinais, hábitos, obrigações de cumprimento, sinais de respeito, insígnias, brasões, etc.” (ibid., 54). Ora, se é por força de um ato fundante no passado que um sinal se presentifica, isso nos fornece um entendimento de que tal cerimonial é de ordem “ritual ou cíclica” (ibid., 59), quer dizer, solenemente se re-atualiza, se recupera e se mantém, ciclicamente, a força da marca simbólica fundadora.

Insistiremos no uso desse caráter ritual agora em torno da palavra. Sem dúvida, estamos falando de uma sujeição dos conteúdos falados e simbólicos a um ritualismo prático. Assim, mediante um movimento ritualístico entre as palavras e as coisas é que se ordenam posição, ocupação, comportamentos e ocasiões ditas qualificadas, implicando sempre mais a eficácia do simbólico. E mais, do trato solene, comum a todo ritual, o discurso ritualístico assume, a seu modo, “uma força esotérica” (GALLO, 1995, 19):

[...] sua primeira etapa, a da epistèmê do século 16 é marcada por uma forte aliança entre a palavra e a coisa centrada na semelhança; o dizer e o nomear assumem uma força esotérica, pois se verbo e matéria estão indissociavelmente unidos pela similitude, a palavra ganha uma força mágica de transformar a realidade.

Neste bojo, o Renascimento está aberto ao acolhimento tanto de saberes considerados mágicos quanto eruditos. Erudição e magia eram aceitas por serem formas não concorrentes, e assim eram requeridas e incorporadas ao próprio conhecimento renascentista. Decerto, pelo lado não-erudito, vale lembrar o exemplo dos alquimistas, quando da operação da fórmula mágica, além de se entreter com a articulação da palavra pronunciada, também se importavam com o critério do efeito da escrita imposta às coisas, que atua, com força misteriosa, sobre a natureza. Por outro lado, a erudição, através de seu tipo específico de linguagem fora aceita e válida como espelho das coisas, buscando, além de ajustar o devido significado às próprias coisas, tornar-se ainda responsável pela transmissão do tesouro de signos ligados por similitudes.

Todavia, no século XVI, “desde suas fundações, esse saber será movediço” (FOUCAULT, 2000a, 42), considerando que, no círculo movente do mundo, as coisas podem avizinhar-se à mercê do fervilhar do conhecimento, das credulidades, das experiências e das tradições existentes. Mas curiosamente, no vão entre as marcas depositadas no mundo e o que se revela através delas, é que estaria o aspecto do que é “próprio do saber” que “não é nem ver nem demonstrar, mas interpretar” (ibid., 55).

Com efeito, o mundo renascentista enredou-se na prática de decifração interpretativa mediante dois conjuntos de conhecimentos e de técnicas, superpostos na forma da similitude: a hermenêutica e a semiologia. Essas técnicas se apoiavam na existência de signos, incluindo aqueles pertinentes a costumes, a vestuários, a ritos vigentes, no intuito de interpretá-los adequadamente. Pelo uso de técnicas, portanto, é que se tornará possível e permitido fazer falar, distinguir, definir as leis dos signos e descobrir os seus significados. Vale dizer que, neste contexto, a compreensão de “interpretar” contém o sentido de ato de “decifrar”, ou seja, decifração pressupõe dar à luz ao vestígio anterior dado naturalmente - eximindo assim de sinalizar o período renascentista enquanto “livre interpretação” das coisas. Ora, se “Deus, para executar nossa sabedoria, só semeou na natureza figuras a serem decifradas” (ibid., 46), a técnica da hermenêutica, propriamente dita, vai abranger e absorver, na mesma atividade interpretativa, os tipos de conhecimento da cognitioe da divinatio. Apesar de diferentes entre si, tais conhecimentos, fazem dizer e, ao mesmo tempo, reproduzem quer lateralmente ou em profundidade, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, de cima para baixo, de baixo para cima, os elos da semelhança tanto os do céu quanto os da terra. Descreve Foucault (2000c, 42):

dois tipos de conhecimento completamente distintos: a cognitio, que era a passagem, de qualquer forma lateral, de uma semelhança à outra; e a divinatio, que era o conhecimento em profundidade, indo de uma semelhança superficial a outra mais profunda. Todas essas semelhanças manifestam o consensus do mundo que as funda.

Quando se crê que os segredos do mundo, e de suas figuras, podem ser decifrados e desvelados por técnicas de interpretação, então, acata-se a idéia de que o consenso do mundo é enredado mediante o uso de uma sintaxe gramatical que ligue os seres em um só espaço exegético, e cuja totalidade combinatória aponte que “a natureza das coisas, sua coexistência, o encadeamento que as vincula e pelo que se comunicam não é diferente de sua semelhança” (FOUCAULT, 2000a, 40-1). Podemos dizer que, por conta fundamentalmente do sistema interpretativo, os signos e as semelhanças enrolam-se sempre mais, recobrindo-se reciprocamente em mais semelhanças sujeitas à decifração. Por exemplo, os sinais residentes nas plantas, nos astros, nas pedras e nos animais, um a um, tornam-se frutíferos signos decifráveis em um espaço conjuntural.

O que vemos, à mercê de um intenso trabalho de interpretação de toda uma camada espessa, toda ela escrita e depositada nas coisas, é um mundo cheio de símbolos, ao mesmo tempo em que é uma onda indicativa, é também misterioso em sua ciranda, pois tanto manifesta quanto esconde semelhanças passíveis de decifração. Na consideração de Foucault (ibid., 44):

O mundo é coberto de signos que é preciso decifrar, e este signos, que revelam semelhanças e afinidades, não passam, eles próprios, de formas da similitude. Conhecer será, pois, interpretar: ir da marca visível ao que se diz através dela e, sem ela, permaneceria palavra muda, adormecida nas coisas.

Com isso, vemos que o próprio sistema interpretativo foi ele também um eixo de desdobramento de semelhanças, dando vazão para que sempre novos signos circulassem na busca de conhecer o seu similar. E, na leitura foucaultiana, essa tarefa de desdobramento ativo de semelhanças foi fruto de uma “relação inevitável que a linguagem do século XVI entretinha consigo mesma” (ibid., 56). E foi justamente no circuito das semelhanças, em seu “sítio geral”, que o próprio liame da interpretação buscava a sua unidade interpretativa (id., 2000c, 41):

Nesta época, o que dava lugar à interpretação, simultaneamente seu sítio geral e a unidade mínima que a interpretação tinha a tratar, era a semelhança. Lá onde as coisas se assemelhavam, lá onde isso se parecia, alguma coisa queria ser dita e podia ser decifrada.

No entanto, a prática da decifração interpretativa esteve submetida a uma rede esgotável. Isso significa afirmar que, pela maneira operacional da decifração, estando condicionada à circularidade, concentra a sua própria exaustão; ou seja, sujeita a despachar suas considerações pelas instâncias limitadas que ela própria, de toda maneira, já percorreu e passou, tende a se alimentar do cenário exaustivo do mesmo. Não custa associar tal cenário a um carrossel homogêneo, em cujo giro “os signos da terra remetiam ao céu, mas também ao mundo subterrâneo, eles remetiam do homem ao animal, do animal à planta, e vice-versa” (ibid., 43-4). No entanto, isso não quer dizer que a realidade do mesmo não estivesse imune a certa dispersão e oscilação; ao contrário, porque, às vezes, se dispersava e oscilava, era preciso novamente decifrá-lo, no retorno a um eixo de ajuste, de recuperação do homogêneo.

A envergadura desse tipo de abordagem significativa absorvera toda a extensão do real ou, sem exagero, atingira a totalidade cósmica. Tanto o macro quanto o microcosmo puderam ser pensados no enlace das semelhanças. Vale dizer que “a similitude não tinha que confessar de que peças ou pedaços era feita secretamente; ela podia dar conta, pelos poderes que lhe eram próprios, da maneira pela qual o mundo estava ligado a ele mesmo” (id., 2000b, 11). Dessa maneira, não é exagero dizer que a linguagem renascentista dispôs da tarefa de confirmar, por suas operações, uma reprodução ou reduplicação do universo. Assim, ao desenrolar e expandir, pelo carretel das semelhanças, uma realidade do mesmo, o que vemos é adição e acúmulo de todas as semelhanças, e reconhecimento de umas com as outras, em um espaço comum de encontro.

Persistência e repetição favoreceram o sucesso da empreitada das similitudes, visto que nenhuma semelhança “permanece estável em si mesma; só é fixada se remete a uma outra similitude que, por sua vez, requer outras” (id., 2000a, 41). A seu modo, podemos dizer que a curvatura do espaço epistêmico circular do Renascimento faculta que toda e qualquer semelhança reconheça a outra por meio de anelamentos aditivos, e isso dentro da realidade movediça do mesmo. A propósito, e não nos equivoquemos, no saber do século XVI, apesar dos anéis aditivos, isso não significa fundamentar o saber na dimensão do infinito - aliás, a troca de terminologia de mundo fechado para universo infinito acontecerá somente a partir do século XVII (KOYRÉ, 2006).

Noções satélites

Devemos agora buscar as figuras que, além de sustentarem as similitudes, ainda desempenharam, segundo Foucault, um importante papel “na cosmologia, na botânica, na zoologia, na filosofia do século XVI” (FOUCAULT, 2000c, 41). Mais exatamente, estamos falando de um “jogo de símbolos”, cuja engrenagem não deve ser buscada nas “próprias palavras, mas antes na existência mesma da linguagem, na sua relação total com a totalidade do mundo, no entrecruzamento de seu espaço com os lugares e as figuras do cosmos” (id., 2000a, 52).

Os símbolos desse jogo são as figuras articulatórias das semelhanças. Uma delas, já foi considerada aqui anteriormente, é a assinalação (signatura). As outras são as consideradas figuras da conveniência, da emulação, da analogia e da simpatia. Articuladas enquanto formas de conhecer, em conjunto, tais figuras “nos dizem de que modo o mundo deve se dobrar sobre si mesmo, se duplicar, se refletir ou se encadear para que as coisas possam assemelhar-se” (ibid., 35). Também indicadas como noções “satélites” (id., 2000c, 41), eram bem definidas para a organização do “corpus da semelhança”. Entre elas, há reciprocidade em seus modos de atuação, e também um “pequeno desnível” por meio do qual se torna possível, por exemplo, “que o signo da simpatia resida na analogia, o da analogia na emulação, o da emulação na conveniência, que, por sua vez, para ser reconhecido, requer a marca da simpatia” (id., 2000a, 39-40). Consideremos uma a uma.

Tomemos a conveniência (convenientia) enquanto figura da semelhança. A sua característica basicamente é ser um dispositivo de laço que faz ligar as extremidades de coisas, antes desligadas entre si, estabelecendo um encontro, uma aproximação. Dessa aproximação, em seu lugar de encontro, é que aparecerá a semelhança, justamente onde as coisas estão envolvidas e ajustadas. A forma da conveniência ramifica as artérias do envolvimento, ou seja, em elos laterais, formula a arte dos liames de parentesco e de vizinhança, constituindo assim um imenso encadeamento no mundo. Diz Foucault que a conveniência é uma semelhança “da ordem da conjunção e do ajustamento” (2000a, 25); o “ajustamento (por exemplo, da alma ao corpo, ou da série animal à vegetal)” (2000c, 41). Envolvidos em círculos, os elos da conveniência, ao se enrolarem liberam uma atração recíproca e vibrante entre as coisas. O mundo adquire assim a confluência da continuidade e do ajuste, quer dizer, na medida em que “muitos seres que se convêm estão separados” (id., 2000a, 39), faz-se necessário que a conveniência circunscreva os seus sinais para fazer valer o seu propósito de ajustamento.

A semelhança tem outra maneira de aparecer: pela figura da emulação (aemulatio). Com tal forma faz-se atuar a semelhança na dispersão, ou seja, através dela busca-se a semelhança na distância, no não encadeamento de coisas próximas. A emulação se caracteriza por fazer arrolar atributos comuns a seres ou substâncias distintas e distantes entre si, de tal maneira que sejam “como o reflexo uns dos outros em uma substância e na outra”, e continua Foucault, “Porta explica que o rosto humano é, com as sete partes que ele distingue, a emulação do céu com seus sete planetas” (2000c, 41). A influência da emulação, enquanto vinculação de semelhanças de coisas distantes equilibra “uma espécie de geminação natural das coisas” (id., 2000a, 27). Ao percorrer rincões desatados, desde aqui ao longínquo, os círculos da emulação, em altas voltagens, “não formam uma cadeia como os elementos da conveniência: mas, antes, círculos concêntricos, refletidos e rivais” (ibid., 29). Este último aspecto - “rivais” – interessa, pois não estão isentas, na forma da emulação, ondas que espelham afrontamentos e duelos de tudo o que se apresenta, estando aberta a possibilidade de inflexão, ou seja, de “combate de uma forma contra outra – ou melhor, de uma mesma forma separada de si pelo peso da matéria ou pela distância dos lugares” (ibid., 28).

Uma terceira forma da semelhança é mediante a figura da analogia (analogia). O modo da analogia enreda o parentesco de semelhança entre as coisas por relações sutis, nem sempre dadas à visibilidade. Explora-se, por meio dela, uma espécie de identidade entre coisas diferentes: a analogia “é a identidade das relações entre duas ou mais substâncias distintas” (id., 2000c, 42). Contém, portanto, um modo de operação que opera o elo da correspondência entre as coisas; elo, aliás, ao modo de uma superposição da conveniência e da emulação, pois “como esta, assegura o maravilhoso afrontamento das semelhanças através do espaço; mas fala, como aquela, de ajustamentos, de liames e de juntura” (id., 2000a, 29). Desse modo, qualquer indício de afinidade, mesmo que imprevista, toma peso pelo crivo da analogia.

Por fim, uma quarta forma desse jogo é a figura da simpatia (simpatia). A partir dela desloca-se o heterogêneo (as individualidades) em direção a uma forma mútua de semelhança. Em virtude de uma disposição livre, a simpatia aproxima e impulsiona as individualidades, no intuito de suscitar secretamente semelhanças através de um “movimento interior” que desloca “qualidades” simpáticas. A forma da simpatia pretende ser o princípio que rege a mobilidade “das coisas no mundo e provoca a aproximação das mais distantes” (id., 2000a, 32). Ela pode brotar de um só contato e circula instantaneamente sobre vastas extensões. De seu toque sempre suscita “uma palavra dizendo que ela é boa” para isso ou para aquilo (ibid., 37). Se da prática da simpatia afirmam-se e confirmam-se aproximações, também há nesta figura o “perigoso poder de assimilar, de tornar as coisas idênticas umas às outras”, colocando-as ao redor da “morna figura do Mesmo” (ibid., 33). No entanto, em discórdia e em contestação permanente à simpatia, há a sua “figura gêmea”, a antipatia. Ou seja, enquanto curvatura oposta, a antipatia preserva a singularidade ou a individualidade das coisas, a qual mesmo se aproximando não se dissipa. É como se disséssemos, na equidistância, a antipatia obstina-se a compensar qualquer assimilação e contrabalançar a redução do mundo em uma homogeneidade; e, por força disso, a figura da antipatia mantém as coisas isoladas, na distância.

Em resumo, a análise das noções satélites, e de sua projeção na ciranda do pensamento e da ação, não pode negligenciar um diagnóstico: “de fato, no século XVI, esse corpus da semelhança era perfeitamente organizado” (id., 2000c, 41). Se hoje há uma dificuldade de se compreender a ordem das semelhanças nas rodilhas em que se assentavam os moldes renascentistas é justamente porque, de maneira até imediata, aproximamo-nos dela sempre com as interferências dos critérios atuais de percepção: “na verdade, aos nossos olhos de homens do século XX” - e acrescento XXI - “toda essa rede de similitudes é sofrivelmente confusa e embaralhada” (ibid., 41). No entanto, no Renascimento, se não há uma compreensão desordenada é porque, na realidade, um grande moinho propulsor de rotatividade do similar configurou-se de maneira positivada, e sendo assim, a circulação de similitude foi eminentemente “uma forma de saber positivo” (id., 2000b, 11):

Atualmente, o semelhante é tão alheio ao nosso saber, tão misturado aos jogos solitários da percepção, da imaginação e da linguagem, que facilmente esquecemos que ele tenha podido ser, e por muito tempo, uma forma de saber positivo.

Para elucidar, tomemos alguns exemplos da positividade desses símbolos dentro de um cenário cósmico do período. Dado como um sinal ou símbolo que se dá a conhecer, o mundo é concebido enquanto “cosmos” (um ordenamento estabelecido e bem harmonizado). Na ordem cosmológica, um aspecto curioso se dá segundo um contraste entre o simpático e o antipático, em torno dos termos “fortuna” e “má-fortuna”. Interessa-nos reforçar a palavra fortuna a partir de sua raiz latina fors (“força”, “potência”) significando “boa sorte”, “boa ventura” – e, seu oposto, “infortúnio”, “má sorte”. Vinculados ao simbólico, os homens, por sua vez, devem assimilar-se ao movimento da “fortuna”, isso porque, no giro maior macrocósmico, há indícios de uma fortuna boa que envolve, silenciosamente, a manutenção do todo. Em outras palavras, na grande natureza, estaria mais impressa ou seria mais expressiva a manifestação da roda da boa fortuna.

Conectado ao eixo deste sentido macro-simbólico da natureza, aí também reverberará o micro-simbólico, investido e revestido no corpo humano. Um corpo “afortunado” vai aparecer como estado puro da “boa sorte”, isto é, portador da força simpática da natureza, realizando nele a ordem benéfica do cosmos. Temos o seguinte panorama: no microcosmo, a imagem e semelhança da “boa ventura” do macro, na devida proporção do grande no pequeno. A boa fortuna é, portanto, um juízo analógico que, de um lado, nota a ordem macrocósmica operante e, de outro, um corpo microcósmico que manifesta a assimilação à fortuna, em uma ordem de bem físico e também moral. E quaisquer reveses dessa fortuna, isso não significa o abalo da própria naturalidade da fortuna: ela é o destino que domina a manutenção do cosmos, e quanto mais se manifesta circularmente, mais é retornável e favorável aos homens.

Por outro lado – diríamos, em descompensação da ordem -, estaria presente também a “má fortuna”. Tomemos um exemplo que sempre rondou a realidade humana, um caso de importante e grave infortúnio: a escassez alimentar: “a escassez alimentar é a má sorte no estado puro, já que seu fator mais imediato, mais aparente, é precisamente a intempérie, a seca, a geada, o excesso de umidade, em todo caso, algo sobre o que não se tem controle” (id., 2008, 41). Ver-se assolado por este grande infortúnio, além de dar visibilidade ao signo da “má fortuna”, também a isso está conjugada a idéia de decadência. Ou seja, este infortúnio era um claro sinal da natureza decaída, ou simplesmente, sinal da natureza decaída do homem. De imediato, sob influência religiosa, a visão e leitura da escassez alimentar submeteram-se ao vínculo de dependência ao seu signo promotor: a inconsequente natureza humana decaída.

Vale insistir que tal natureza decaída significava um estado de desequilíbrio, e que curiosamente estabeleceu-se por uma curva: uma curvatura que se recurvou sobre si mesma, em sua decadência. Isso porque, com natureza decaída, o homem age tão somente por interesse próprio e, consequentemente, o mais agudo: desfigura-se em si ou anula aquela similitude em potencial, de grandeza original e sem decadência. Fica claro que, na natureza decaída, haveria uma deformação ou desfiguração da afortunada semelhança à naturalidade originária - não decaída, portanto. Em suma, eis a trama simbólica: por um lado, um microcosmo encurvado sobre si e, de outro, o cosmos afortunado por inteiro, e ao qual, o primeiro, deve se assemelhar, original e verdadeiramente.

Considerações finais

Um modelo que se fecha em seu próprio sistema de desdobramentos retrata bem a disposição do espaço do saber renascentista. O giro efetivo de noções “satélites” das similitudes - a conveniência, a emulação, a analogia, a simpatia e a assinalação – moveu-se em operação insistente e fértil, porém, num domínio circunscrito: no limite de sua circularidade, no mesmo espaço-comum de encontro.

Vimos que, em um parentesco, que se bastou em si mesmo, da linguagem com o mundo, este se tornou auto-ordenado por uma disposição de linguagem, cuja força semântica reforçou correlações e ajustamentos, realçando naturalmente sinais nas coisas. De um modo geral, isso nos levou a características relativas ao formato do conhecimento: primeiramente, este se deu por uma narrativa discursiva à imagem e semelhança do que ele anunciava; em segundo lugar, como uma espécie de convicção, absorvia-se uma disposição, tanto de visão quanto de fala, de fazer com que sua linguagem estivesse genuinamente imantada à natureza. Vimos, pois, a apresentação de uma primeira aderência da linguagem com a naturalidade do mundo, ou seja, um processo de imprimir sinais nas coisas e notá-los como naturais.

Como ainda hoje encontramos em nossas falas, quando dizemos que é preciso saber ler os sinais que despontam ao nosso redor e perceber bem aquilo que nos rodeia, este mesmo movimento, no período renascentista, foi amplamente assimilado em seu espectro, pelo forte uso de uma marcação simbólica aderente ao mundo. Assim, pudemos salientar uma correspondência entre palavra e mundo, quer dizer, o mundo renascentista subscreveu-se à co-originalidade do similar entre suas palavras e suas coisas - uma refletida similitude entre signo, conteúdo e realidade. Disso resultou um inventivo transporte dos reflexos das coisas para palavras-espelho – e, claro, sinais – no poder de serem elas mesmas correspondentes das coisas.

Com efeito, o mundo foi dado pela via da naturalização de sua linguagem, em cujas voltas, por caminhos da similitude, tiveram para o Renascimento o propósito de garantir e determinar a riqueza da forma e do conteúdo do conhecimento. E foi com esta aposta na indissociação palavra/mundo que se garantiu, afinal, a salvaguarda, assumida pelo Renascimento, de tradução da natureza verdadeira das coisas, por meio da escrita, da escrituração, da impressão material, dos signos expressos devidamente para ver e ler. Tanto os elementos da visão (observação) quanto os da leitura (redação) asseguraram, ao final, que o conhecimento fosse transmitido segundo um novelo de similitudes, feito de palavras, de marcas e de narrativas simbólicas. Vimos que, no século XVI, uma disposição de signatura, solidificada nas coisas, pôde ser vista, dita, lida e decifrada.

No entanto, a grande tarefa da decifração interpretativa esteve submetida a uma rede esgotável, visto que havia um limite das próprias órbitas circulares emanadas do ajustamento de semelhanças. Tal esgotabilidade do espaço interpretativo foi circunscrita pela própria maneira operacional da época, ativada, pois, pela idéia de circularidade. De toda forma, salientar que o mundo renascentista fora absorvido e instituído pelo espaço disposto e auto-alimentado pela circularidade das similitudes, significou reforçar a real característica e necessidade do saber renascentista: impor vizinhanças às coisas, mesmo até as mais obscuras, em um giro de círculos e mais círculos, com alongamentos excêntricos e movimentos concêntricos.

Finalmente, em virtude dessa limitação e esgotamento intrínseco do giro das similitudes, é que enfatizamos a figura do círculo, aderindo-o à configuração do século XVI. Ao salientar o movimento de semelhanças segundo a noção de circularidade, isso pareceu-nos uma opção tangível e aplicável enquanto um referencial figurativo – e se quiser geométrico – cabível ao entendimento do espaço subjacente aos saberes de toda a época do Renascimento. Certamente a noção de circulação do corpus da semelhança auxiliou-nos a compreender, no período circunscrito, esta forma de saber positivo, aqui retratada como um grande moinho propulsor de rotatividade significativa para o mundo.

Referências

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Autor(a) para correspondência: Nilton César Arthur, Universidade Metodista de Piracicaba, Rodovia do Açúcar, km 156, 13400-911, Piracicaba – SP, Brasil. niltonarthur@yahoo.com.br

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