Artigos
Recepção: 20 Junho 2019
Aprovação: 21 Setembro 2019
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i3.1296
Resumo: Em Ser e Tempo (1927), Heidegger argumenta que o conhecimento primordial do Dasein se dá no manuseio de entes mundanos. Merleau-Ponty, por sua vez, descreve na Fenomenologia da Percepção (1945) que o conhecimento é, antes de tudo, uma intencionalidade corporal intraduzível em termos proposicionais. Mais tarde, em What Computers Can’t Do (1972), Hubert Dreyfus usa a obra de ambos para apontar os equívocos do paradigma cognitivista, isto é, a abordagem dominante do então nascente campo da inteligência artificial. Finalmente, em The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience (1991), a noção de enativismo - elaborada por Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch - surge como uma tentativa de tomar do cognitivismo e do conexionismo a hegemonia nas ciências cognitivas. Dito isso, o objetivo do artigo consiste em descrever o enativismo e apontar sua herança fenomenológica.
Palavras-chave: Enativismo, Fenomenologia, Heidegger, Merleau-Ponty, Francisco Varela.
Abstract: In Being and Time (1927), Heidegger claims the primordial knowledge of Dasein comes from coping with mundane beings. Merleau-Ponty, in turn, argues on Phenomenology of Perception (1945) for knowledge as a bodily activity non translatable in propositional terms. Later, on What Computers Can’t Do (1972), Hubert Dreyfus use the work of both to point out the flaws of cognitivism, the dominant paradigm in early days of artificial intelligence. Finally, The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience (1991) by Francisco Varela, Evan Thompson and Eleanor Rosch brings enactivism as an attempt to take from cognitivism and connectionism the hegemony in cognitive sciences. That being said, the paper describes enactivism while showing its phenomenological heritage.
Keywords: Enactivism, Phenomenology, Heidegger, Merleau-Ponty, Francisco Varela.
Em Ser e Tempo (1927), Heidegger afirma que “O tipo de prática mais próxima a nós é, como indicamos, não a mera cognição perceptiva e sim aquele tipo de ocupação onde se manipula coisas e as põe em uso; e isso possui o seu próprio tipo de ‘conhecimento’.” (HEIDEGGER, 1962, p. 95, tradução nossa). Com isso, percebe-se que as raízes daquilo que mais tarde viria a ser chamado de enativismo já residem em Heidegger. No entanto, apesar de Varela, Thompson & Rosch (1991) admitirem certa influência heideggeriana, o principal interlocutor usado em sua obra é Merleau-Ponty por conta de um motivo crucial: mesmo ao oferecer uma fenomenologia da inteligência prática do Dasein que serviu a Hubert Dreyfus como principal argumento contra o cognitivismo, Heidegger pecou ao não oferecer uma detalhada descrição em termos corporais desse envolvimento não-representacional entre organismo e ambiente.. Em outras palavras, ao focar na exposição de uma intencionalidade corporal não-proposicional, Merleau-Ponty serve melhor aos propósitos de Varela et al., a saber, a compreensão da mente não como algo espacialmente localizável e decomponível, mas como a dinâmica entre ação corporal e ambiente. Como diria Merleau-Ponty, o processo de cognição é nada mais que “a dialética do meio e da ação” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 262) Essa dinâmica, na perspectiva enativista, significa a enação [enactment] de um ambiente, isto é, o trazer-à-tona de um meio pela ação corporal contínua de um organismo vivo. Merleau-Ponty torna isso claro quando descreve em A Estrutura do Comportamento (1942) que o equilíbrio vital visado pelo organismo para agir no mundo significa a circunscrição, por assim dizer, de um meio no qual suas ações ganham sentido em termos de otimização de resultado.
[...] cada organismo possui suas condições mais eficazes de atividade e sua própria maneira de atingir equilíbrio; e os determinantes internos desse equilíbrio se dão por uma atitude geral em relação ao mundo. [...] o próprio organismo mede a ação das coisas e ele próprio delimita seu meio por um processo circular que não possui análogo no mundo físico. (MERLEAU-PONTY, 1963, p. 148)
Quando Merleau-Ponty afirma que “O senso comum põe o lugar do pensamento na cabeça” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 202), o fenomenólogo resume a tese enativista por excelência, a saber, a rejeição da mera equivalência entre mente e cérebro, algo possível para o francês “porque rejeitamos o formalismo da consciência e fizemos do corpo o sujeito da percepção” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 303). Antes do surgimento de qualquer sistema nervoso, há uma corporeidade ou sistema autopoiético que mantém seu equilíbrio vital por meio da enação ou circunscrição não-representacional de um meio.. Dessa forma, torna-se claro o porquê da explícita adoção da fenomenologia merleau-pontiana como inspiração na formulação enativista.
Gostaríamos de considerar o trabalho desenvolvido ao longo deste livro [The Embodied Mind] como uma continuação moderna de um programa de investigação iniciado há mais de uma geração pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Por continuação não queremos dizer uma consideração erudita do pensamento de Merleau-Ponty no contexto da ciência cognitiva contemporânea. Pelo contrário, queremos apenas afirmar que os trabalhos de Merleau-Ponty inspiraram e guiaram o desenvolvimento desta obra. (VARELA et al., 1991, pp. 15-16)
Com isso, podemos agora apresentar a abordagem desenvolvida por Varela et al. (1991), opondo-a aos paradigmas cognitivista e conexionista, além de apontar suas influências fenomenológicas.
II
A melhor maneira de entender a abordagem enativista é demonstrar como ela difere do cognitivismo e do conexionismo.. O cognitivismo confunde-se com o surgimento do campo da inteligência artificial. À época, o argumento dominante defendia que a inteligência humana - desde correr, jogar futebol, dirigir um carro ou resolver equações - poderia ser traduzível em algoritmos proposicionais. Em outras palavras, o comportamento humano, segundo o cognitivista, deve ser entendido em termos de regras heurísticas que, dependendo da ação em questão, poderiam ser efetivadas tanto de modo consciente quanto inconsciente ao se seguir regras ou passos. A raíz de tal abordagem provém de Alan Turing, aquele que “sugeriu que um computador digital de alta velocidade, programado com regras e fatos, poderia exibir comportamento inteligente” (DREYFUS, 1992, p. IX). Quando Dreyfus fez sua sucedida crítica ao cognitivismo, foi demonstrado que ao descrever a inteligência puramente em termos proposicionais a posição cognitivista defende implicitamente a ideia de uma mente transcendental na qual há um “mundo-lá-fora” que seria representado “aqui-dentro” por modelos internos de regras gerais aplicáveis a diferentes contextos vividos pelo organismo que, ulteriormente, se traduziriam em ações. Por outro lado, Dreyfus - apoiado na tradição fenomenológica - argumentou que, na verdade, a ação corporal não-proposicional já é a chamada “atividade inteligente” do organismo: “todo modo de lidar com o mundo acontece em um pano de fundo que Heidegger chama de ser-no-mundo, o qual não envolve nenhum tipo de representação.” (DREYFUS, 2007, p. 254).
Apesar de não colocar em termos explícitos, a crítica de Dreyfus - ao incorporar as obras de Heidegger e Merleau-Ponty - já expressa o mote enativista: aquilo que entendemos por mental já é o corporal, ou seja, a forma originária de inteligência é nada mais que a inteligência prática, seja o movimento corpóreo de uma ameba ou de um ser humano em formação. Como Dreyfus relembra: “Eu comecei a suspeitar que os insights formulados em poltronas existencialistas, especialmente as de Heidegger e Merleau-Ponty, eram más notícias para aqueles trabalhando nos laboratórios de inteligência artificial.” (DREYFUS, 2007, p. 247). Dito de outro modo, a mente, na descrição enativista, significa o looping ou o feedback contínuo da cadeia ininterrupta de ações do organismo em resposta às solicitações do contexto.
.A forma [Gestalt] é uma configuração visual, sonora, ou mesmo anterior à distinção dos sentidos, em que o valor sensorial de cada elemento é determinado por sua função no conjunto e varia com ela. [...] Essa mesma noção de forma permitirá descrever o modo de existência dos objetos primitivos da percepção. Estes são, como dizíamos, mais do que conhecidos como objetos verdadeiros, são vividos como realidades. Certos estados da consciência adulta permitem entender essa distinção. O campo de futebol não é, para o jogador, um “objeto”, ou seja, a palavra ideal que pode dar lugar a uma multiplicidade indefinida de perspectivas e permanecer equivalente sob essas transformações aparentes [...] O campo não lhe é dado, mas está presente para ele como o termo imanente de suas intenções práticas; ele e o jogador são um só corpo e o jogador sente, por exemplo, a direção do gol tão imediatamente quanto a vertical e a horizontal de seu próprio corpo. Não bastaria dizer que a consciência habita esse meio. Ela nada mais é, nesse momento, que a dialética do meio e da ação (MERLEAU-PONTY, 2006, pp. 262-263).
O corpo não é instrumento da inteligência, o corpo é onde a própria inteligência irrompe. Como Evan Thompson (2007, p. 243) ressalta, “a mente humana está corporificada em todo o nosso organismo”. A ação corporal inteligente não exige um modelo representacional interno de regras sequenciais para agir efetivamente em uma dada situação. Mesmo quando há uma intenção explícita anterior à ação (como no caso do jogador de futebol), as ações propriamente ditas continuam não passíveis de descrição proposicional. Trata-se, então, do que Dreyfus chama de absorbed coping, isto é, uma ação irrefletida, o modo de agir transparente que Heidegger chama de ser-no-mundo e Merleau-Ponty de corpo próprio ou, por vezes, intencionalidade operante ou motriz e também arco intencional.. Esse aspecto não-representacional da inteligência prática funciona, em seus termos mais gerais, como o modo de manutenção do equilíbrio vital do organismo em seu meio, fazendo do ambiente um sistema percebido pelo corpo não como um amontoado de predicados fixos, mas como solicitações que possibilitam respostas diversas: “De acordo com Merleau-Ponty, o que é percebido não são estruturas proposicionais unificadas, mas sim solicitações para agir que estão mais ou menos indeterminadas.” (DREYFUS, 2013, p. 292). Ou ainda: “o equipamento é uma solicitação para agir, e não uma entidade com uma caracterização funcional.” (DREYFUS, 2007, p.252). Tais solicitações ou affordances. se dão por meio de “três modos permanentes e entrelaçados de atividade corporal - auto-regulação, acoplamento sensório motor e interação intersubjetiva.” (THOMPSON, 2007, p. 243). O entrelaçamento de tais modos - indicados pelo enativismo como exigências para o desvelamento ou enactment significativo não-representacional do meio - não são contemplados pela perspectiva cognitivista, pois nela o funcionamento algorítmico computacional serve como a base explicativa da cognição, fazendo com que a interface organismo-meio ou sistema-meio seja essencialmente a reprodução de modelos internos: “O típico modelo cognitivista toma a forma de um programa para a solução de um problema em determinado domínio.” (THOMPSON, 2007, p. 5). Dessa forma, o foco cognitivista reside na formalização proposicional da inteligência. No entanto, tal rigidez formalista dos modelos cognitivistas é exatamente o empecilho na sua validade explicativa quando lidamos com o tipo de variação organizacional observada no cérebro.. Com o avanço da neurociência, tornou-se cada vez mais evidente o fato de que algoritmos sequenciais talvez não sejam o melhor modelo para compreender o cérebro e é aqui que entra o modelo conexionista, o qual, segundo Varela et al., representa um avanço no entendimento da cognição pelo caráter emergentista de sua explicação mas, como veremos, ainda compartilha com o cognitivismo o erro de não estabelecer um entrelaçamento não-representacional entre organismo e ambiente. De qualquer maneira, para encerrarmos a exposição do paradigma cognitivista, vejamos a afirmação de Varela et al. que, assim como em Dreyfus, nos lembra que “sem se darem conta, os pesquisadores de inteligência artificial estavam realmente empenhando-se em fazer da filosofia racionalista um programa de pesquisa.” (DREYFUS, 2007, p. 247), ou seja, o modelo cognitivista não é estranho à história da filosofia.
De certo modo, o cognitivismo é, até agora, a mais forte defesa da visão representacional da mente inaugurada por Descartes e Locke. De fato, Jerry Fodor, um dos mais importantes e eloquentes expoentes do cognitivismo, chega a afirmar que o único aspecto no qual o cognitivismo pode ser tomado como um verdadeiro avanço em relação ao representacionismo dos séculos XVIII e XIX é o seu uso do computador como um modelo da mente. (VARELA et al., 1991, p. 138)
Com isso, podemos agora nos debruçar sobre o conexionismo para entender em que sentido o enativismo difere da abordagem que sucedeu o paradigma cognitivista.
III
Varela et al. definem o conexionismo como “a controversa abordagem à cognição na qual as qualidades auto-organizantes dos agregados biológicos desempenham um papel central.” (1991, p. 118). Se a metáfora principal do paradigma cognitivista era a da mente como um computador, “a metáfora central do conexionismo é a mente como uma rede neural” (THOMPSON, 2007, p. 9). O conexionista argumenta que qualquer teorização sobre a cognição deve partir do pressuposto onde se afirma que “propriedades emergentes são fundamentais na operação do próprio cérebro.” (VARELA et al., 1991, p. 93). Ideias sobre o caráter emergente dos padrões neuronais já existiam nos primórdios das ciências cognitivas. e, durante as Macy Conferences (1946-1953), já havia uma “extensa discussão sobre o fato de nos cérebros reais parecer não existir qualquer tipo de regras, nenhum processador lógico central, nem a informação parece encontrar-se armazenada em endereços precisos.” (VARELA et al., 1991, p. 121). Em suma, o paradigma conexionista surge no intuito de romper com o uso de modelos fixos de representação interna do mundo: “os cérebros podem funcionar à base de interligações em massa e de uma forma distribuída, de tal modo que as ligações reais entre conjuntos de neurônios se alteram em função da experiência.” (VARELA et al., 1991, p. 131). Por exemplo, pesquisas acerca da alteração neuronal no córtex visual de animais apontam que “as respostas neuronais estereotipadas se tornaram altamente sensíveis ao contexto [...] Mesmo uma alteração de postura, embora preservando o mesmo idêntico estímulo sensorial, altera as respostas neuronais no córtex visual primário.” (VARELA et al., 1991, p. 131). Com isso, o comportamento global que emerge das unidades simples (no caso, os neurônios) evidenciam uma organização estreitamente ligada ao contexto. Em suma, o conexionismo surge como a defesa de uma “capacidade auto-organizativa que não existe no paradigma da manipulação de símbolos.” (VARELA et al., 1991, p. 122).
No cognitivismo, “o processamento da informação simbólica é baseado em regras sequenciais, aplicadas uma de cada vez.” (VARELA et al., 1991, p. 122), levando-nos a modelos que não condizem com a investigação empírica do cérebro. Dessa forma, torna-se necessário uma descrição emergente e não-rígida da base material que subjaz o processo cognitivo, ou seja, a constante reorganização das unidades neuronais apontam para a antiga lição da Gestalttheorie: o todo é mais do que a soma de suas partes, pois não só o todo condiciona suas partes, mas também as partes determinam o todo, indicando o caráter circular da causalidade da esfera orgânica..
Uma descrição simbólica estágio-por-estágio para um sistema com este tipo de constituição parece ir contra a direção natural. Além disso, tornou-se cada vez mais claro para os neurocientistas que precisamos estudar os neurônios como membros de vastos conjuntos que estão constantemente a desaparecer e a surgir através das suas interações cooperativas e em que cada neurônio tem respostas múltiplas e que se alteram de um modo dependente do contexto [...] O cérebro é portanto um sistema altamente cooperativo: as densas interligações entre os seus componentes implicam que quase tudo o que decorrer será uma função de tudo aquilo que os componentes se encontram a fazer. (VARELA et al., 1991, pp. 131-132).
Além disso, não só determinados contextos servem para a mudança de padrões organizacionais, como a historicidade combinada de ações e contextos deve ser levada em conta: “se dois neurônios tendem a ser ativos em conjunto, a sua ligação é fortalecida; caso contrário, é diminuída. Consequentemente, a conexidade do sistema torna-se inseparável da sua história de transformação.” (VARELA et al., 1991, p. 124). Em outras palavras, a interligação neuronal não é um sistema acabado que opera via regras fixas, mas sim um contínuo processo de auto-organização proveniente do histórico de ações contextuais do organismo. Com isso, o objetivo do paradigma conexionista é “construir um sistema cognitivo não a partir de símbolos e regras, mas a partir de componentes simples que se ligariam dinamicamente uns aos outros.” (VARELA et al., 1991, p. 125).
A visão é útil para indicar os limites do cognitivista que defende que ver significa um processamento sequencial de inputs: “Olhar para os circuitos visuais como constituindo um processador sequencial parece inteiramente arbitrário [...] o comportamento de todo o sistema parece-se muito mais com uma conversa em uma festa do que com uma cadeia de comando.” (VARELA et al., 1991, p. 134). Logo, o argumento de que cada unidade de um sistema cognitivo possuiria uma sintaxe pré-estabelecida (como no caso de computadores) perde sua fundamentação, pois “um neurônio individual participa em muitos desses padrões globais e tem pouco significado quando tomado individualmente” (VARELA et al., 1991, p. 134), ou seja, uma tarefa cognitiva (e.g., reconhecimento visual de um objeto) deve ser descrita como a emergência de uma Gestalt ou organização global de conexões neuronais onde a significação funcional das unidades simples variam de acordo com o contexto. Na abordagem conexionista, “o significado não está localizado em símbolos particulares; é uma função do estado global do sistema.” (VARELA et al., 1991, p. 139, grifo nosso). Portanto, a função de cada unidade neuronal provém do arranjo situacional.
Em situações em que o universo de itens possíveis a ser representado é constrangido e de fácil definição (quando, por exemplo, um computador é programado, ou quando uma experiência é conduzida com base num conjunto de estímulos visuais predefinidos), a especificação de significado é clara. Cada item físico ou funcional discreto é feito para corresponder a um item externo (o seu significado referencial), uma operação de correspondência que o observador facilmente executa. Removam-se estes constrangimento e a forma dos símbolos é tudo o que resta, e o significado transforma-se num fantasma, como aconteceria no caso de termos que contemplar os padrões de bits num computador cujo manual de instruções se tivesse perdido. (VARELA et al., 1991, pp. 138-139).
Muito do conexionismo está contido na visão enativista. Varela et al. (1991) reconhecem tanto o valor do cognitivismo, como o avanço do conexionismo em relação ao último. O enativismo, portanto, não significa um descarte do conhecimento acumulado, mas uma tentativa de refinar a ciência cognitiva no intuito de auxiliar na construção de uma descrição mais precisa do ser-no-mundo do Dasein.
Um modo inclusivo ou misto parece, então, uma estratégia natural a ser seguida. Uma ligação frutuosa entre um cognitivismo menos ortodoxo e a visão da emergência, onde as regularidades simbólicas emergem de processos paralelos distribuídos, é uma possibilidade concreta, especialmente na IA, com a sua orientação pragmática, voltada predominantemente para a engenharia. (VARELA et al., 1991, pp. 142-143).
Dessa forma, vejamos agora o caráter da dinâmica corporal não-representacional que o enativismo propõe como elemento crucial para a compreensão da cognição.
IV
O enativismo significa tomar a corporeidade como central na compreensão da mente. O aspecto inconsciente ou subpessoal destacado pelo cognitivismo10 não é negado, mas sim associado à totalidade de um sistema autopoiético, isto é, de uma corporeidade dotada de intencionalidade. Para o cognitivista, a cognição “acontece em um módulo cognitivo central do cérebro separado dos aspectos perceptivos, emocionais e sensório motores. O inconsciente cognitivo não é nem somático, nem afetivo, e está firmemente alojado dentro da cabeça.” (THOMPSON, 2007, p. 6). Daí o resquício behaviorista criticado por Thompson sobre a abordagem cognitivista: não só a dinâmica subpessoal acontece apartada da corporeidade, como o processo cognitivo é privado dos aspectos emocionais e fenomenológicos da experiência subjetiva: “Em suma, o cognitivismo não oferece explicação alguma sobre a mentalidade em termos de experiência subjetiva.” (THOMPSON, 2007, p. 6).
Essa lacuna da teoria cognitivista é evidenciada tanto pelo avanço das neurociências, como pelas ideias conexionistas, as quais apontam que os padrões emergentes dos arranjos neuronais não são compreensíveis em termos computacionais ou sequenciais: “a crítica conexionista focou-se na implausibilidade neurológica do modelo de sistema físico-simbólico e em diversas deficiências percebidas no processamento de símbolos em comparação com as redes neurais.” (THOMPSON, 2007, p. 8). Um processo cognitivo em um modelo conexionista, portanto, “corresponde a padrões emergentes de atividades na rede.” (THOMPSON, 2007, p. 9). Tais padrões possuem um caráter não só de historicidade (aprendizagem do sistema) como ambiental (constante reatualização do sentido dos dados exteriores), significando um importante passo para além do restrito e limitante modelo cognitivista: “Enquanto que o cognitivismo firmemente alojava a mente dentro da cabeça, o conexionismo ofereceu uma concepção mais dinâmica da relação entre processos cognitivos e o ambiente.” (THOMPSON, 2007, p. 9). Porém, o problema do conexionismo foi não ter ido longe o suficiente: “Apesar desses avanços, os sistemas conexionistas não envolviam nenhum acoplamento sensório-motor com o ambiente, e, em vez disso, operavam na base de inputs . outputs (inicialmente designados pelo programador do sistema).” (THOMPSON, 2007, p. 9). O primeiro ponto - a ausência de acoplamento sensório-motor - é um problema óbvio que, hoje em dia, não é mais ignorado pelos cientistas cognitivos. Há um consenso paradigmático hoje que ecoa a fórmula de Merleau-Ponty: “todo hábito é ao mesmo tempo motor e perceptivo.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 210). No entanto, o segundo ponto - sistemas onde os inputs . outputs são designados previamente por um designer - continua a ser o resquício representacionista que impede, segundo a concepção enativista, uma verdadeira compreensão da cognição e indicam o parentesco entre cognitivismo e conexionismo que o enativismo pretende superar.
O conexionismo também herdou do cognitivismo a ideia de que a cognição é basicamente a resolução de problemas pré-definidos (colocados no sistema por um observador ou designer exterior) e que a mente é essencialmente o inconsciente cognitivo limitado ao crânio, o domínio sub-pessoal de representação computacional na mente-cérebro [mind-brain]. O desacordo do conexionismo com o cognitivismo era sobre a natureza da computação e da representação (simbólica para cognitivistas, sub-simbólica para conexionistas). (THOMPSON, 2007, pp. 9-10)
Portanto, o enativismo se afasta das abordagens iniciais das ciências cognitivas pela sua defesa da não-necessidade de representações para explicar o processo de apreensão do meio pelo organismo. O uso de representações implica em uma visão onde organismo e ambiente são esferas independentes de uma relação na qual o primeiro reduz o segundo a símbolos (sejam eles fixos e unitários ou emergentes e variáveis) que definem sequências para a efetivação de uma ação. Em suma, “seus modelos [do cognitivismo e do conexionismo] eram descorporificados e abstratos.” (THOMPSON, 2007, p. 10), ao contrário do enativismo, o qual argumenta que “processos cognitivos emergem da causalidade circular e não-linear das ininterruptas interações envolvendo o cérebro, o corpo e o ambiente.” (THOMPSON, 2007, p. 11). Em outras palavras, o enativista argumenta que a melhor imagem para a mente humana não é nem a do computador digital, nem a da rede conexionista emergente, mas sim a de um sistema dinâmico corporificado no mundo.
Além da intransigente defesa da mente como corporificada e situada, a outra principal característica do enativismo é a adoção da matemática descritiva da teoria de sistemas dinâmicos (PORT & VAN GELDER, 1995; VAN GELDER, 1998; THOMPSON, 2007): “a cognição é um fenômeno intrinsecamente temporal e, dessa forma, deve ser entendida da perspectiva da teoria de sistemas dinâmicos.” (THOMPSON, 2007, p. 11). Grosso modo, a teoria de sistemas dinâmicos é uma teoria matemática que usa equações diferenciais que, por conta da dinamicidade dos sistemas estudados, não tentam estabelecer soluções exatas para o comportamento do sistema, mas sim apenas projeções de médio e longo prazo. Especificamente sobre seu uso nas ciências cognitivas, o que interessa ao enativismo é que a perspectiva da teoria de sistemas dinâmicos serve para construir uma imagem mais próxima do que acontece de fato em sistemas autopoiéticos, isto é, os dados exteriores ao organismo não são representações internalizadas, mas perturbações que levam o sistema à procura de ações que mantenham seu equilíbrio vital, isto é, em vez de regras a serem obedecidas, o enativismo usa a teoria dinâmica para compreender os inputs como perturbações a serem ultrapassadas por meio da combinação entre errância e historicidade comportamental, ou seja, o caminho surge pelo caminhar.
Em vez de instruções a serem seguidas, os inputs são descritos como perturbações à dinâmica intrínseca do sistema; e os estados internos são compreendidos como compensações auto-organizadas desencadeadas por perturbações e não como representações do estado de coisas externas.” (THOMPSON, 2007, p. 11).
A citação anterior é crucial para compreender a mente como corporificada, pois ao negar o aspecto representacional da cognição e compreender os inputs como perturbações a um equilíbrio vital, o enativismo fica livre para descrever a cognição como uma apreensão corporal criativa, isto é, um “hábil saber-como” [skillful know-how]. Com isso, a dinâmica de apreensão cognitiva do organismo pode ser descrita a partir da retroatividade entre percepção e ação.
Os processos e estruturas cognitivas emergem de padrões sensório-motores recorrentes que governam a percepção e a ação em agentes autônomos e situados. A cognição como um hábil saber-como [skilfull know-how] não é redutível à resolução de problemas pré-especificados, pois o sistema cognitivo não só impõe os problemas como especifica quais ações devem ser tomadas para sua solução. (THOMPSON, 2007, p. 11).
Dessa forma, os processos subpessoais descritos pelo cognitivismo não são negados, mas reformulados e atrelados à corporeidade. Enquanto que o inconsciente cognitivista é formulado como um processo descorporificado de manipulação de representações (passível de transposição para diferentes sistemas), o inconsciente enativista é o processo emocional e sensório-motor de apreensão direta do meio via corporeidade, inacessível ao eu-representacional. É aqui, então, que a influência de Merleau-Ponty fica ainda mais explícita, pois a Fenomenologia da Percepção (1945) tem como intuito descrever exatamente este inconsciente enativista. Quando Merleau-Ponty afirma que o “corpo é nosso meio geral de ter um mundo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203), o fenomenólogo francês quer, no fundo, definir a motricidade, isto é, a esfera sensório motora, como a esfera primordial de engendramento significativo: “O que descobrimos pelo estudo da motricidade é, em suma, um novo sentido da palavra ‘sentido’” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203). Portanto, o inconsciente enativista é, como Merleau-Ponty descreveu, o modo originário de apreensão pré-reflexiva e não-representacional da corporeidade que faz surgir um meio que, posteriormente, pode vir então a ser representado.
O dinamismo corporificado oferece uma perspectiva diferente do inconsciente cognitivo computacional. Não mais o inconsciente cognitivo é visto como uma manipulação de símbolos ou um reconhecimento de padrões descorporificado separado da ação motora e emocional no mundo. (THOMPSON, 2007, p. 12).
Dessa forma, assim como Merleau-Ponty assume parte da teoria psicanalítica em sua obra11, também o enativismo assume que “muito do que somos como seres psicológicos e biológicos é, em certo sentido, inconsciente. Logo, a subjetividade não pode ser entendida sem situá-la em relação à tais estruturas e processos inconscientes.” (THOMPSON, 2007, p. 12). Lembrando que, assim como Merleau-Ponty defende a noção de intencionalidade operante para indicar o aspecto anônimo ou subpessoal do corpo, também Thompson ressalta que, no enativismo, os processos inconscientes não estão alojados em uma parte específica do corpo, mas sim na dinâmica corpo-ação-ambiente.
Portanto, esses processos e estruturas inconscientes, incluindo aqueles descritos como cognitivos e emocionais, se estendem pelo corpo e atuam em loop pelos ambientes materiais, sociais e culturais nos quais o corpo está situado; eles não estão limitados a processos neurais dentro do crânio. (THOMPSON, 2007, p. 12)
Dessa forma, para concluirmos, a abordagem enativista pode ser resumida em cinco pontos (THOMPSON, 2007): primeiro, organismos vivos são corporeidades autônomas que se autoproduzem (autopoiesis) e, com isso, “fazem surgir seus próprios domínios cognitivos.” (THOMPSON, 2007, p. 13); em segundo lugar, “O sistema nervoso não processa informação no sentido computacional, e sim cria sentido.” (THOMPSON, 2007, p. 13); terceiro, o processo de cognição é “o exercício de um saber-como hábil [skillful know-how] em ações situadas e corporificadas.” (THOMPSON, 2007, p. 13); em quarto lugar, pelo fato da corporeidade do organismo não processar informação de modo proposicional, o domínio cognitivo “não é uma esfera externa, pré-especificada e representada internamente, mas sim um domínio relacional” (THOMPSON, 2007, p. 13); finalmente, o enativismo não vê a experiência fenomênica ou subjetiva como um epifenômeno secundário na explicação da mente, mas como um tema central a ser investigado aos moldes da tradição fenomenológica husserliana em consonância com a ciência contemporânea, ou seja, o paradigma enativista deve ser entendido como um esforço de naturalização da fenomenologia: “Para o sucesso deste projeto, devemos fazer uso da biologia, da neurociência, da psicologia, da filosofia e da fenomenologia. [...] Uma vez que a ciência voltar sua atenção à subjetividade e à consciência, à experiência vivida, então ela não poderá seguir sem o auxílio da fenomenologia.” (THOMPSON, 2007, p. 14).
Considerações finais
Para além da exigência de modelos internos como pressuposto do processo cognitivo, o enativismo propõe a imbricação não-representacional do organismo-ambiente. Não há um mundo-objetivo-representável fora do organismo que seria internalizado via unidades simbólicas fixas, mas sim uma atividade contínua e não-proposicional onde a historicidade das ações fazem um mundo de solicitações vir à tona. Em suma, o enativismo significa que “o animal projeta ele mesmo as normas de seu meio e coloca ele mesmo os termos de seu problema vital.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 117).
Referências
BARBARAS, Renaud. Francisco Varela: A new idea of perception and life. Phenomenology and the Cognitive Sciences n. 1: pp. 127-132, 2002.
CARMAN, T. The Cambridge Companion to Merleau-Ponty. London: Cambridge University Press, 2005.
CLARK, Andy. Whatever next? Predictive brains, situated agents, and the future of cognitive science. Behavioral and Brain Sciences, 2013.
DREYFUS, H. L. Being-in-the-World: A Commentary on Heidegger’s Being and Time, Division I. Cambridge: MIT Press, 1991.
DREYFUS, H. L. What Computers Still Can't Do: A critique of Artificial Reason. Cambridge: MIT Press, 1992.
DREYFUS, H. L. Why Heideggerian Artificial Intelligence failed and how fixing it would require making it more Heideggerian. In: Philosophical Psychology. Londres, 20:2, 2007, p.247-268.
HEIDEGGER, M. Being and Time. Translated by John Macquarrie & Edward Robinson. London: Blackwell, 1962.
MERLEAU-PONTY, M. A Estrutura do Comportamento. Tradução de M. V. M. Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. Tradução de C. A. Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MERLEAU-PONTY, M. The Structure of Behavior. Boston: Beacon Press, 1963.
MOUTINHO, L. D. S. Razão e experiência: ensaio sobre Merleau-Ponty. São Paulo: Ed. Unesp. 2006.
SACRINI, M. A. F. Fenomenologia e Ontologia em Merleau-Ponty. Tese de Doutorado em Filosofia - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. São Paulo, 2008. THOMPSON, E. Mind in Life: Biology, Phenomenology and the Sciences of Mind. Cambridge: Harvard University Press, 2007.
VARELA, F.; MATURANA, H. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Ed. Palas Athena, 2001.
VARELA, F., THOMPSON, E. & ROSCHE, E. The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience. Massachusetts: MIT Press, 1991.
VARELA, F.; WEBER, A. Life after Kant: Natural purposes and the autopoietic foundations of biological individuality. Phenomenology and the Cognitive Sciences, N. 1: pp. 97-125, 2002
___________________________________________________________________________________
Autor(a) para correspondência: Rodrigo Benevides Barbosa Gomes, Departamento de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, Rodovia Washington Luis, km 235, 13566-905, São Carlos – SP, Brasil. rodrigobenevides23@gmail.com