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John Dewey, reconstrução da filosofia e empirismo imediato
Thiago B. Gomes
Thiago B. Gomes
John Dewey, reconstrução da filosofia e empirismo imediato
John Dewey, reconstruction of philosophy and immediate empiricism
Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 23-32, 2019
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: Este artigo pretende abordar o conceito de filosofia de John Dewey, em sua especificidade em relação à tradição pragmatista. Para isso, partiremos da reconstrução da filosofia apresentada por este autor em Reconstruction in Philosophy, de 1920, obra na qual expõe completa e explicitamente o conceito e o que acredita ser o papel da filosofia. Em especial, caracterizaremos a concepção de filosofia de Dewey a partir das críticas que o pragmatista americano lançou contra certas maneiras de fazer filosofia, por ele denominadas filosofias modernas ou tradicionais. A partir dessa crítica, examinaremos o uso que Dewey faz de seu postulado do empirismo imediato, enquanto uma metodologia filosófica, para evitar os supostos equívocos das filosofias passadas e desenvolver uma filosofia que faz jus à experiência concreta.

Palavras-chave:John DeweyJohn Dewey,FilosofiaFilosofia,PragmatismoPragmatismo.

Abstract: In this paper, I analyze John Dewey's concept of philosophy, in relation with its specificity within the pragmatic philosophical tradition. For this, I will approach the problem of the reconstruction of philosophy as Dewey presents in his work Reconstruction in Philosophy (1920), a work in which he completely and explicitly exposes his concept of and what he believes to be the role of philosophy. In particular, I will characterize Dewey's concept of philosophy from his critique to what he think to be the problems of modern or traditional philosophies. From this point of view, I will examine Dewey's use of his postulate of immediate empiricism as a philosophical methodology to avoid the alleged misconceptions of past philosophies and to develop a philosophy of concrete experience.

Keywords: John Dewey, Philosophy, Pragmatism.

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Artigos

John Dewey, reconstrução da filosofia e empirismo imediato

John Dewey, reconstruction of philosophy and immediate empiricism

Thiago B. Gomes
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 23-32, 2019
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 22 Junho 2019

Aprovação: 31 Agosto 2019

John Dewey foi um filósofo pragmatista com interesses excepcionalmente abrangentes. Seus estudos abarcavam a psicologia, a lógica, a inquirição científica, epistemologia, ética, educação, arte e estética. No Brasil, no entanto, ele é mais conhecido por sua filosofia da educação e pela influência de seu pensamento pedagógico no desenvolvimento da Escola Nova. O pragmatismo, surgido no final do século XIX, geralmente é tratado como uma contribuição genuinamente estadunidense à filosofia. Os mais conhecidos filósofos desse período são Charles Peirce e William James, cujas investigações acerca da noção de significação e verdade são ainda hoje influentes. Esse movimento, comumente conhecido por sua ênfase na experiência prática, não apresenta uma forma única ou um sistema unificado de doutrinas que devem ser seguidas por todos os filósofos considerados pragmatistas. De fato, ele pode ser considerado “um método para fazer filosofia e não uma teoria filosófica” (DE WAAL, 2007, p. 22).

Entre os filósofos pragmatistas tradicionais, Dewey foi o mais prolífero e de interesses mais extensos, com um percurso filosófico de mais de setenta anos inevitavelmente heterogêneo, repleto de mudanças, revisões e críticas internas. Apesar das mudanças, revisões e diferentes influências que agiram sobre Dewey, há algo subjacente a seu pensamento, que perpassa toda sua vida dedicada à filosofia: um desejo que aflora no Dewey jovem e que se mantém aceso no Dewey septuagenário ao escrever as obras Experience and Nature (1925) e Art as Experience (1934) oferecer uma filosofia capaz de fazer jus à experiência como ela é encontrada na vida comum, em toda sua riqueza e complexidade.

Pode-se dividir a trajetória de desenvolvimento do pensamento filosófico de Dewey em três grandes períodos.. O primeiro vai de suas primeiras publicações, ainda sob influência do transcendentalismo americano, até a publicação de Studies in Logical Theory (1903), que marcou a viragem pragmatista de Dewey. A segunda fase corresponde às duas décadas seguintes, período em que Dewey desenvolveu sua filosofia da educação, pela qual ele é mais conhecido, e seu pragmatismo instrumentalista. O início da terceira fase é marcado pela publicação de Experience and Nature (1925), período mais complexo de seu pensamento, embora negligenciado, em que Dewey reexamina suas teorias filosóficas à luz de diversas críticas. e no qual ele apresenta de forma mais elaborada sua metafísica naturalista.

O objetivo deste artigo é examinar o conceito de filosofia de John Dewey, na medida em que o que ele entende por fazer filosofia mostra-se substancialmente diferente da posição de Peirce ou James. Nesse sentido, partiremos da reconstrução da filosofia como Dewey apresenta em sua obra Reconstruction in Philosophy (1920) quando expõe de maneira completa e explícita o conceito e aquilo que ele acredita ser o papel da filosofia. Em especial, caracterizaremos a concepção de filosofia desse autor a partir das críticas que lançou contra as maneiras características de fazer filosofia denominadas por ele como filosofias modernas ou tradicionais. Por fim, examinaremos o conceito de empirismo imediato proposto por Dewey como uma metodologia capaz de evitar o que ele supõe serem os erros das filosofias passadas.

II

O que é filosofia? Uma pergunta aparentemente tão simples é, contudo, capaz de embaraçar muitos filósofos dedicados à tal atividade. Esse constrangimento se deve ao fato de que quando falamos sobre o que consiste a atividade filosófica, por vezes, estamos lidando com um domínio que é inteiramente negligenciado pelos filósofos: seja porque o modelo de pensamento vigente se tornou o padrão, seja por ele estar tão enraizado em nossas instituições que raramente é examinado. Essa questão embaraçosa, no entanto, é fundamental para a compreensão de qualquer empreendimento filosófico. Ao respondê-la, revela-se o que qualquer filósofo concebe como um problema filosófico e o que deseja, implícita ou explicitamente, das respostas dadas a esses problemas.

Com Dewey não é diferente. O que ele concebe por filosofia inevitavelmente se reflete naquilo que ele acredita ser um problema filosófico, bem como a origem desses problemas, e no que é o objetivo da filosofia. Em especial, sua concepção pragmatista de filosofia se contrapõe àquilo que ele chama, às vezes de modo vago e indistinto em Reconstruction in Philosophy (1920) ou em Experience and Nature (1925), de filosofia moderna e tradicional. No entanto, não devemos pensar que a filosofia pragmatista de Dewey é completamente alheia às filosofias que lhe são anteriores, modernas ou antigas.

As influências filosóficas que moldaram o pensamento de Dewey não se restringem ao período imediatamente anterior ao seu, isto é, a filosofia moderna. Muitas de suas ideias foram fortemente motivadas por filosofias e pensadores antigos. Sua ética, por exemplo, na medida que enfatiza o papel comunitário na constituição da moralidade, está mais próxima a uma ética das virtudes aristotélica do que a qualquer teoria moderna deontológica ou utilitarista. Em razão disso, argumenta-se que “Dewey não pode ser nem ‘moderno’, nem ‘pós-moderno’. Ele era, pelo contrário, no termo introduzido por Bruno Latour, ‘politemporal’ em atitude” (BOISVERT, 1998, p. 5). Contudo, Dewey não assimilou pacificamente as teorias que o influenciaram. Pelo contrário, “o que Dewey fez [...] foi separar exageros, ênfases unilaterais, preconceitos equivocados e fórmulas arcaicas das contribuições vivas feitas pelos filósofos na tradição” (BOISVERT, 1998, p. 5).

O método encontrado por ele para mostrar essas ênfases, preconceitos e equívocos foi empreender análises históricas e sociológicas dos problemas filosóficos. Análises que demonstrariam como as condições sociais e históricas de uma dada comunidade condicionariam o que é entendido como um problema filosófico e a forma como esses problemas seriam abordados pelos membros dessa comunidade. Dewey “recorre, para suplementar os argumentos estritamente lógicos, à crítica intelectual da história e sociologia do conhecimento [...] para explicar como os problemas (especialmente aqueles vistos como falsos problemas) foram desenvolvidos” (WESTBROOK, 1991, p. 148).

Dewey utiliza a análise histórica e social dos problemas filosóficos em quase todas investigações que empreende, independentemente do assunto examinado – estética, moral, educação, política etc. – e não apenas para lidar com problemas epistemológicos. Com efeito, o exercício mais visível da aplicação desse método de análise se encontra em sua obra Reconstruction in Philosophy (1920). Nessa obra, o filósofo investiga o descompasso entre os resultados da ciência e as teorias filosóficas. Ele examina os problemas decorrentes do conflito entre os resultados da ciência moderna e as instituições que foram herdadas pelo período posterior ao seu surgimento. A partir disso, defende a aplicação do que concebe como método científico a outros domínios de investigação, dos quais muitos são considerados sagrados ou específicos da filosofia.

O objetivo de Dewey é demonstrar que “a filosofia deveria lidar explícita e conscientemente com os conflitos de fins sociais e valores de seu próprio tempo” (DWEYR, 1991, p. 191), o que foi abertamente exposto no segundo prefácio escrito vinte cinco anos após sua publicação:

Hoje Reconstrução da Filosofia é um título mais adequado do que Reconstrução em Filosofia. Pois os eventos vigentes definiram nitidamente [...] o postulado basilar do texto: a saber, que a tarefa específica, os problemas e os temas da filosofia brotam das tensões e contradições da vida comunitária na qual uma dada forma de filosofia emerge, que, portanto, seus problemas específicos se alteram com as mudanças na vida humana, que estão sempre acontecendo e que, às vezes, constitui uma crise e um ponto de viragem na história da humanidade (DEWEY, 2004, p. iii).

O termo “reconstrução” não significa a destruição da filosofia para reconstruí-la em novas bases e com novos materiais. Reconstrução, no sentido pensado por Dewey, diz respeito a colocar a filosofia numa nova perspectiva, que adotasse como modelo o método científico e que expandisse suas possibilidades de aplicação ao utilizá-lo em domínios antes restritos à filosofia, como a moral ou política.

A razão pela qual não se aplicaria o método científico a assuntos mais “elevados” seria meramente histórica e social. Mesmo com os avanços e resultados da ciência em campos específicos como da física ou da biologia, nossas instituições mantiveram bem delimitado o escopo da investigação científica. À ciência seria atribuída a tarefa de investigar o domínio material e concreto; enquanto a filosofia e a religião se ocupariam de domínios mais “espiritualizados”: a moralidade, a política, as artes etc. Consequentemente, criou-se um espaço para o desenvolvimento da ciência e preservou-se grande parte das instituições do período pré-científico. Esses domínios antagônicos persistem até hoje, criando conflitos entre os problemas contemporâneos e as instituições herdadas, sobretudo as advindas do período que caracterizamos como da “filosofia moderna”. Como comenta Dweyer,

Apesar de pensarem sobre si mesmos como perseguindo a Verdade e retratando a Realidade, os filósofos têm lidado com problemas e questões que surgem em razão dos conflitos de fins sociais, especialmente entre os objetivos das tendências contemporâneas e os fins das instituições herdadas (DWEYER, 1991, p. 191).

Esses conflitos ficam mais evidentes quando falamos dos problemas da ética. Novos problemas e conflitos éticos surgem, ao longo do tempo, em decorrência das mudanças na sociedade e seu modo de vida. Muitas vezes, os valores morais compartilhados pela sociedade e os valores considerados absolutos se tornam incapazes de explicar ou de serem aplicados aos novos problemas. Diante dessa situação, tradicionalmente se condena a prática ou se busca outros valores absolutos para substituir os antigos. Dewey, valendo-se do método científico, não recorre a valores morais absolutos, mas a hipóteses morais que seriam aplicadas a casos concretos e, depois de testadas, adotadas ou abandonadas - a depender de seus resultados empíricos. A filosofia, assim, estaria sempre aberta a mudanças (assim como a ciência). Em parte, é isso que Richard Rorty (1988, p. 285) quer dizer quando fala que Dewey desenvolve uma “filosofia edificante” em oposição a uma “filosofia sistemática”. Para ele, Dewey desejava reconstruir a filosofia evitando aquilo que alimenta os erros da filosofia moderna ou tradicional.

III

Mas o que haveria de tão inconveniente nas filosofias herdadas, seja a moderna, medieval ou antiga? De maneira geral, haveria três grandes equívocos cometidos pelas filosofias do passado e que Dewey pensa ser preciso evitar para se reconstruir a filosofia. Quando Dewey se refere a filosofias tradicionais ou modernas ele, na verdade, abrange as teorias filosóficas que podem ser identificadas por uma ou mais características tipificadas por Boisvert (1998) como Tentação Plotiniana, Purificação Galileana e Atitude Assomática.

A Tentação Plotiniana nomeia a busca dos filósofos por uma unidade ou unicidade subjacente à complexidade da existência e que sirva como fim último da vida. Dewey argumenta que filósofos têm desejado chegar a uma Realidade Última ou ao Ser e pensam que a tarefa própria da filosofia é oferecer uma resposta abrangente do que é tal “Realidade Última”. A resposta a essa questão, se for verdadeira, perduraria para sempre, independente das mudanças históricas e sociais. Desse modo, os filósofos estariam presos a um modo de pensar que não teria mais lugar se quisermos trazer a filosofia para próximo dos problemas dos homens. Contudo, Dewey acredita que “a filosofia se origina, e em propósito está conectada, a assuntos humanos” (DEWEY, 2004, p. vi).

Boisvert comenta que “a tentação plotiniana de asseverar uma unidade tanto como fundamento quanto como finalidade não é algo ao qual Dewey sucumbe” (BOISVERT, 1998, p. 6). Em sua comunicação “Three Independent Factors in Morals” (1930, 1998b), Dewey argumenta que os elementos que constituem a inquirição moral não podem ser reduzidos a um único princípio (ao dever ou à consequência, por exemplo). Com sua concepção de experiência estética não é diferente. Para Dewey, a experiência estética não é apenas uma resposta fisiológica diante do objeto, não é meramente conceitual nem meramente afetiva, mas engloba toda essa multiplicidade de elementos presentes na experiência.

Boisvert chama de “cluster approach” a abordagem filosófica de Dewey, justamente porque essa abordagem não reduz a explicação a um único elemento, ou seja, não reduz a inquirição moral ao dever ou consequência, nem reduz a experiência estética à resposta emocional ou intelectual do sujeito. Segundo ele,

Na base da filosofia de Dewey está sempre um conjunto análogo de aglomerados [cluster] cujos componentes devemos manter juntos num equilíbrio homeostático. Aqueles que sucumbem a tentação plotiniana rejeitam o caráter último do aglomerado, e procuram uma unidade mais profunda. Dewey, admirando a natureza irredutível da multiplicidade, procura harmonia. Ele é anti-plotino (BOISVERT, 1998, p. 7).

Outra tipificação é a Purificação Galileana. Galileu Galilei (1564-1642) analisou os eventos corriqueiros a partir de planos idealizados. Ele investigou a situação concreta imaginando uma situação ideal, por exemplo, o movimento de um corpo num plano idealizado em que não há atrito ou qualquer obstrução. Dessa forma, embora não se possa encontrar essa situação no plano dos eventos concretos e comuns, pode-se analisar o movimento removendo-o das condições concretas em que ele ocorre.

À primeira vista, parece um contrassenso afirmar que Dewey defende abertamente a utilização do método científico em filosofia enquanto critica o procedimento investigativo adotado por Galileu. Contudo, a crítica de Dewey não se dirige ao próprio método científico, mas ao uso que se faz dele. Certamente, remover o objeto de estudo da experiência comum e o colocar em contextos alternativos foi indispensável para o avanço da ciência. No entanto, independente da forma como o contexto foi idealizado, as conclusões das investigações devem ser asseguradas na experiência comum. Os resultados da ciência sempre são validados pela experiência ordinária.

Os problemas surgem quando os filósofos se esquecem da necessidade de retornar à experiência comum e tomam o contexto idealizado como o ponto de partida para suas investigações filosóficas. Boisvert comenta:

A ciência se concentra em descrever as estruturas elementares das coisas com o propósito de previsão e controle. A purificação galileana era condição sine qua non para o avanço científico. Contudo, isso não é inato à filosofia, que começa e termina na experiência ordinária. Apesar disso, muitos filósofos modernos tomam como garantido a purificação galileana em seus próprios domínios. Descontentes com a desordem complexa da experiência ordinária, eles buscam fundamentar a filosofia em pontos de partidas mais puros (BOISVERT, 1998, p. 8).

O exemplo mais notório dessa atitude é aquela tomada por René Descartes (1596-1650) com sua “dúvida hiperbólica”, em que se recusa a filosofar até que fossem suspensas todas as evidências dos sentidos e as tradições filosóficas na qual foi educado. Somente após essa “purificação” poderia Descartes chegar ao penso, logo existo. Em outras palavras, Descartes nega a validade da experiência comum como ponto de partida para qualquer investigação filosófica. Ao contrário, “ele começa com uma purificação rigorosa e autoconsciente, a projeção de uma situação ideal dentro da qual a filosofia pode começar” (BOISVERT, 1998, p. 8).

Resquícios desse tipo de análise por meio da purificação podem ainda hoje ser encontrados em filosofia. O exemplo contemporâneo mais notório talvez seja o Tractatus Logico-Philosophicus (1921) de Ludwig Wittgenstein, no qual o filósofo austríaco intenciona desenvolver uma linguagem ideal, puramente lógica. Diferentemente, para Dewey, “a análise filosófica começa sempre in media res”. O aqui e agora não é algo a ser superado (BOISVERT, 1998, p. 9).

Por fim, a Atitude Assomática também deve ser evitada na reconstrução da filosofia. Ela diz respeito a histórica negação do corpo pelos filósofos ocidentais, de Platão às filosofias contemporâneas. A separação completa entre a mente e o corpo, e a caracterização do homem e da atividade filosófica com aquilo que é puramente racional. O corpo, nesse sentido, seria algo que corrompe a racionalidade. Como comenta Boisvert, “os humanos foram definidos como ‘coisas pensantes’ (Descartes) ou como ‘essências racionais’ (Kant). O corpo [...] foi interpretado como um apêndice grosseiro, inconveniente e problemático” (BOISVERT, 1998, p. 10).

Dewey concebe a inteligência como um processo biológico no qual o indivíduo age ativamente no meio em que se encontra, de modo a transformá-lo e adaptá-lo às suas necessidades de sobrevivência. Não há qualquer cisão primordial entre racionalidade e corpo. Aqui se vê o papel da biologia evolucionista no pensamento de Dewey. Seria impensável a ideia de uma razão sem corpo, afinal “o conhecimento não deriva de uma ‘razão’ assomática, mas de uma ‘inteligência’ corporificada” (BOISVERT, 1998, p. 9).

Além dos três elementos acima discutidos, é importante ressaltar que, para Dewey, os problemas filosóficos não se resumem à entrega de uma representação acurada da realidade, como parece ser o caso de muitos filósofos modernos, como Descartes, ou mesmo contemporâneos, por exemplo, Arthur C. Danto (1989). Para tais filósofos, qualquer resposta aos problemas filosóficos, se verdadeira, seria eterna e imune a mudanças.

Dewey é falibilista. Acredita que os problemas filosóficos surgem dos problemas dos homens, das relações dos homens com o mundo e entre eles. Portanto, estariam condicionados ao momento e à comunidade em que surgem. Qualquer resposta, por mais duradoura que seja, seria provisória e passível de novo exame. Caberia aos filósofos inquirir continuamente sobre a validade dos problemas e das respostas dadas a eles, testando-as diante da mudança das circunstâncias sociais.

IV

O empirismo imediato e o método científico seriam o meio de verificação das respostas e dos problemas. Recorrer a eles evitaria que os filósofos incorressem nos equívocos cometidos por aquilo que Dewey chama vagamente de filosofias tradicionais e modernas. Isto é, filosofias associadas à tentação plotiniana, à purificação galileana e à atitude assomática. Para Dewey, a filosofia começa e termina no presente concreto, por mais confuso e ambíguo que seja.

O novo conceito de experiência pensado por Dewey foi tratado mais detalhadamente em “The Postulate of Immediate Empiricism” (1905, 1998a). Nesse artigo, Dewey afirma que o empirismo, como concebido por ele, pouco tem a ver com o empirismo britânico. Contudo, isto não significaria uma aproximação com idealismo de sua juventude. Ele considera as duas posições equivocadas pelo mesmo motivo: ambas as doutrinas retrocederiam a algo que é definido em termos que não são experienciados diretamente a fim de justificar o que é experienciado diretamente.

Nesse artigo, Dewey intenta estabelecer uma nova metodologia filosófica a partir da qual a experiência pode ser examinada evitando a herança deficiente que a filosofia moderna deixou, principalmente a suposta “ubiquidade da relação de conhecimento”. Por outro lado, em seu postulado do empirismo imediato, “Dewey está tentando explicar a experiência como um todo funcional, como ela é encontrada, ao invés de tentar colocar conceitos refinados e analisados dos sentidos ou categorias como ‘realidade subjacente’ ou ‘a priori’” (ALEXANDER, 1987, p. 74).

Dewey apresenta seu postulado da seguinte forma:

O empirismo imediato postula que as coisas – qualquer coisa, cada coisa, no uso comum e não técnico do termo “coisa” – são o que elas são enquanto experienciadas. Daí, caso se deseja descrever qualquer coisa fielmente, sua tarefa é dizer o que ela é enquanto experienciada. (DEWEY, 1998a, p. 115)

O problema, então, não é saber qual experiência é verdadeira ou ilusória. O “cerne da questão”, afirma Dewey, “é que tipo de experiência é denotado ou indicado: uma experiência concreta e determinada, variando […] em elementos reais específicos e concordando com elementos reais específicos, de modo que temos um contraste” (DEWEY, 1998a, p. 115). Alexander comenta que

A insistência de Dewey está sobre a completude primária da experiência. A experiência deve ser a base para a verdade e para o erro; em outras palavras, a atitude que assumimos diante da experiência deve refletir os modos com que interagimos com o mundo. Dewey faz a afirmação importante que a experiência é sempre experienciada “como aquela”, ou seja, que “coisas” e “objetos” refletem modos dinâmicos de envolvimentos que são perspectivas e que cada perspectiva tem sua qualidade única, própria, integrando-os como um todo. (ALEXANDER, 1987, p. 79).

O que Dewey visava com o postulado do empirismo imediato era remover a experiência cognitiva da posição superior que desde a modernidade a filosofia lhe tem atribuído e, com isso, mostrar que é possível se relacionar com o mundo de diversas formas, ou seja, que é possível ter diferentes tipos de experiência e que a experiência cognitiva é tão somente mais um tipo possível. Segundo Dewey,

Pelo nosso postulado, as coisas são o que são enquanto experienciadas, e, a não ser que conhecer seja o único e exclusivo modo genuíno de experienciar, é falacioso dizer que a realidade é somente e exclusivamente o que ela é, ou que seria, a um conhecedor competentíssimo e oníscio. Ou colocando de forma mais clara, conhecer é um modo de experienciar. (DEWEY, 1998a, p. 113).

Portanto, como resume Alexander, “a implicação do postulado do empirismo imediato é que eu posso ter outras atitudes diante do mundo além daquela de tentar conhecê-lo” (ALEXANDER, 1987, p. 76).

Em seu artigo, Dewey se vale de dois exemplos para ilustrar essa diferença entre a experiência da realidade como ela é conhecida e como ela é encontrada. No primeiro exemplo, ele ilustra a situação de um homem que ouve um barulho e se sente amedrontado, de modo que se possa descrever o barulho como amedrontador. O homem experiencia o barulho enquanto amedrontador. Esse indivíduo pode posteriormente buscar a causa do barulho, isto é, experienciar o barulho enquanto experiência cognitiva, e descobrir que o barulho que o amedrontava era apenas a batedela de um galho no vidro da janela. A experiência que o indivíduo teve não seria uma experiência falsa ou ilusória que foi substituída por uma experiência verdadeira e real, simplesmente a “experiência se transformou, ou seja, a coisa experienciada se transformou” (DEWEY, 1998a, p. 117). Portanto, segundo Dewey, haveria uma transformação da experiência e não uma substituição, o que implicaria numa continuidade entre as experiências (no exemplo utilizado, entre a experiência da coisa como amedrontadora e a experiência da coisa como batedela no vidro). Como afirma Deladalle, “o conhecimento do medo é um momento da experiência contínua que vai do medo vivenciado ao desaparecimento do medo cuja causa é o conhecimento” (DELADELLE, 1967, p. 293). Dewey deixa isso claro quando afirma que

O conteúdo da segunda experiência considerada cognitiva é indubitavelmente mais verdadeiro do que o conteúdo da anterior; mas não é em qualquer sentido mais real. Além disso, chamá-la de verdadeira deve significar, do ponto de vista empírico, uma diferença concreta nas coisas correntes experienciadas. Novamente, em muitos casos, apenas retrospectivamente a experiência anterior é considerada cognitivamente. Em tais casos, é apenas em relação ao conteúdo contrastado numa experiência subsequente que a determinação “mais verdadeira” tem força (DEWEY, 1998a, p. 113).

Em observância ao título do artigo, “Postulado do Empirismo Imediato”, pode-se aqui fazer uma indagação: se uma dada experiência é sempre interpretada a partir de uma fase anterior à experiência, não seria contraditório dizer que ela é imediata? Não seria ela mediada pelas experiências anteriores? Tradicionalmente, quando se diz que uma experiência é imediata isso significa que a experiência não é mediada por conceitos ou que ela é espontânea, como descrita, por exemplo, na concepção de experiência dos dados dos sentidos proposta pelos empiristas britânicos. Contrário a essa concepção, Dewey afirma que uma experiência imediata refletiria determinada fase da situação, isto é, uma fase que se desenvolve juntamente com a situação. Alexander aponta que no postulado do empirismo imediato, o termo

“imediato” se refere à qualidade da situação como um todo, inclusive aos seus aspectos determinados e indeterminados, cognitivos e não cognitivos. […] O imediato é o contexto pré-analisado em que o pensamento opera – ele é, de fato, o que torna o conhecimento possível (ALEXANDER, 1986, p. 80).

Diferente da acepção que lhe é atribuída tradicionalmente, “imediato” não significa “não mediado por conceitos”. Aceitar a possibilidade de uma experiência ocorrer sem o mínimo de reflexão seria, do ponto de vista naturalista de Dewey, abstrair os seres humanos do ambiente em que vivem e considerá-los apartados de suas histórias e da vida coletiva que lhes deu origem. A experiência não acontece por uma imposição exterior de uma outra realidade ou de uma faculdade transcendental, mas através da interação dos homens com o mundo e entre si.

Dewey (1998a) finaliza seu artigo afirmando que o único método possível em filosofia é o do empirismo imediato. Sob seu ponto de vista, esse método seria capaz de dissolver todas as confusões e querelas que tradicionalmente perturbam os filósofos e faria desaparecer uma vastidão de problemas filosóficos:

Conforme o postulado do empirismo, então nada pode ser deduzido, nem uma única proposição filosófica. O leitor pode daqui concluir que tudo chegou ao truísmo que a experiência é a experiência, ou que é o que é. […] Mas o significado real do princípio é aquele do método de análise filosófica – um método idêntico em tipo (mas diferindo em problemas e, assim, em operação) com aquele do cientista. Se você deseja descobrir o que é subjetivo, objetivo, físico, mental, cósmico, psíquico, causa, substância, propósito, atividade, mal, ser, qualidade – qualquer termo filosófico, em resumo – significa, vá à experiência e veja como a coisa é experienciada (DEWEY, 1998a, p. 115).

Dewey mostra sua interpretação da máxima pragmatista apresentada por Charles S. Peirce em “Como tornar as nossas ideias claras” (1878, 2008), quando afirma que os significados dos termos filosóficos podem ser esclarecidos ou determinados em observância de como eles ocorrem na experiência. Para Peirce, o significado de um termo é o âmbito possível de seus efeitos práticos e, portanto, ele propõe uma análise empírica para determinar a significação de qualquer termo. Dewey segue essa ideia e a acomoda em sua teoria da experiência. Para ele, toda inquirição filosófica deveria começar e ser avaliada na própria experiência, isto é, na experiência em toda a sua complexidade, abrangência e completude encontrada cotidianamente. A metodologia proposta pelo postulado do empirismo tem uma consequência direta: ela praticamente concebe a filosofia como uma ferramenta eficiente para evidenciar falsos problemas filosóficos. Valendo-se desse método, poder-se-ia tanto denunciar os abusos dos idealistas e realistas, quanto delimitar o alcance de qualquer empreendimento filosófico.

Material suplementar
Referências
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ZELTNER, Philip. John Dewey Aesthetic Philosophy, Amsterdam: B. R. Grüner B.V, 1975
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Autor(a) para correspondência: Thiago B. Gomes, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Av. Fernando Ferrari, 514, - IC-II - Térreo - Sala 1, Goiabeiras, 29075-910, Vitória – ES, Brasil. contato@tgomes.com.br
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