Resumo:
: O Trabalho pretende expor os traços iniciais da fenomenologia hermenêutica de Heidegger a partir da crítica realizada pelo autor ao método crítico-teleológico do neokantismo de Baden na preleção de 1919 A ideia da filosofia e o problema da concepção de mundo.
Palavras-chave:S: FenomenologiaS: Fenomenologia,HermenêuticaHermenêutica,HeideggerHeidegger,RickertRickert.
Abstract:
: The paper intends to expose the initial features of Heidegger's hermeneutic phenomenology from the criticism made by the author to the critical-teleological method of Baden Neokantism in the 1919 lecture The Idea of Philosophy and the Problem of Worldview.
Keywords: Phenomenology, Hermeneutics, Heidegger, Rickert.
Artigos
Os traços iniciais da fenomenologia hermenêutica de M. Heidegger na preleção a ideia da filosofia e o problema da concepção de mundo
The initial features of hermeneutic phenomenology of M. Heidegger in lecture the idea of philosophy and the problem of worldview
Recepção: 23 Março 2019
Aprovação: 09 Junho 2019
O desenvolvimento das ciências positivas particulares no final do século XIX emerge a discussão acerca do sentido e possibilidade do conhecimento na filosofia. Nesse contexto, o neokantismo buscou uma filosofia propriamente científica, enquanto a fenomenologia husserliana, a autonomia da filosofia frente à ciência positiva. E a contribuição de Dilthey, cujo pensamento, mesmo imerso nas exigências positivistas de seu tempo, faz aparecer o caráter hermenêutico de toda interpretação e apresenta o sentido do conhecimento como essencialmente histórico Nossa intenção nesse trabalho é compreender como a herança da fenomenologia de Husserl insere Heidegger no interior da referida discussão pelo sentido do conhecimento.. Mas, ao mesmo tempo, tentaremos mostrar como a superação da fenomenologia reflexiva e a introdução do elemento hermenêutico radicalizou a investigação filosófica. Com Heidegger, a pergunta fundamental deixou de ser sobre o sentido e possibilidade do conhecimento, e passou a ser a pergunta pelo sentido do ser dos entes em geral. Desse modo o presente trabalho pretende expor as linhas gerais da argumentação exposta na preleção: A ideia da filosofia e o problema da concepção de mundo (GA56/57), título uma das primeiras lições do jovem professor em Friburgo, em 1919. Nesse texto a abordagem hermenêutica de Heidegger no interior da fenomenologia indica o caminho decisivo para o acesso à questão do sentido do ser desenvolvida nos anos 1920.
Aqui nos é necessária uma breve consideração. É pública a preocupação filosófica de Heidegger com a ontologia já desde seu contato com o livro de Brentano. Percurso descrito pelo próprio autor em Meu caminho para a fenomenologia .Mein Weg in die Phänomenologie, 1963):
A partir de algumas indicações extraídas de revistas filosóficas, tinha averiguado que o modo de pensar de Husserl fora bastante influenciado por Franz Brentano, cuja tese de doutoramento, intitulada Da múltipla significação do ente em Aristóteles (1862), tinha sido justamente, desde 1907, o guia e o critério das minhas primeiras e desajeitadas tentativas de penetrar na filosofia. De uma forma bastante imprecisa, o que me movia era a seguinte reflexão: “se o ente se diz com significados múltiplos, qual será então o significado fundamental e condutor? O que significa ser?” (HEIDEGGER, 2009, p.3).
É evidente que não vamos reduzir a investigação heideggeriana acerca do sentido de ser a uma mera relação de causalidade, i.e., a um mero efeito do seu confronto com a teoria do conhecimento vigente à época de seus estudos, mas insistiremos que a questão do ser, sua forma e até sua possibilidade, só aparece para Heidegger, a partir da fenomenologia. Como o próprio filósofo afirma no curso de 1925, Prolegômenos para uma história do conceito de tempo: “A pergunta pelo ser surge da crítica imanente no curso da própria investigação fenomenológica” (HEIDEGGER (GA20), 2006, p.122), e o elemento hermenêutico é decisivo para esse acesso. Portanto, é na crítica imanente à fenomenologia que o mundo e a facticidade aparecem como o campo de mostração dos fenômenos em seu ser. Nossa intenção é, portanto, mostrar como a crítica é inicialmente desenvolvida já no curso de 1919. E ainda, se ainda não há explicitamente a questão do sentido de ser em geral, a preleção possui elementos decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental. Para tanto nosso trabalho será dividido em duas partes: Na primeira vamos expor uma breve contextualização do Neokantismo, destacando o projeto dos neokantianos de Baden; na segunda vamos expor a crítica de Heidegger à filosofia e ao método desses últimos representantes.
Neokantismo: a análise da validade do conhecimento e o lugar próprio da filosofia em relação às ciências.
Na reação contra o empirismo positivista do final do século XIX e, sobretudo, ao psicologismo, desenvolveram-se as investigações dos chamados neokantianos, um “movimento com profundas raízes no século dezenove, [que] dominou a academia filosófica alemã entre 1890 e 1920” (CROWELL,2001, p.23).
Seguindo a exposição de Crowell, o movimento neokantiano pode ser dividido em três momentos, profundamente relacionados com os acontecimentos históricos, políticos e sociais da Alemanha na virada do século XIX para XX. Não será possível nos aprofundarmos muito na especificidade de cada momento desse movimento, bem como nas suas relações com outras matérias. Como já foi dito acima, nossa proposta, é apenas mostrar a importância desse movimento na formação do pensamento de Heidegger. e indicar o contexto geral, no qual nasce esse pensamento, contexto de uma disputa pela “Nova Filosofia”, que dividiu a Fenomenologia, de um lado, e os Neokantianos, de outro:
Ambos os movimentos reivindicam o título de "nova filosofia", mas o neokantismo difere da fenomenologia em manter uma continuidade entre a ciência positiva e filosofia. A teoria da ciência, a epistemologia neokantiana deseja fornecer fundamentos para os princípios de base (‘científicos’) da visão de mundo. A Fenomenologia (aqui, Husserl e o jovem Heidegger), ao contrário, estabelece a autonomia da filosofia precisamente através da descontinuidade com a ciência positiva e os objetos de formação da visão de mundo (CROWELL, 2001.p.24).
No primeiro período (1871-1878) verifica-se “certa continuidade entre o inquérito apriorístico e empírico. A autonomia da filosofia vis-à-vis a ciência positiva ainda não tornou a questão decisiva” (Crowell, 2001.p.26). Os neokantianos ainda estavam dispostos a aceitar que as estruturas fundamentais da realidade revelavam seu caráter transcendental, pois ainda constatavam a necessidade das formas universais através das quais podemos pensar as coisas singulares. No projeto positivista, a ciência empírica estuda apenas o conteúdo de fato, em uma restrição circunstancial dos fenômenos já compreendidos.
Tentando superar as aporias da Crítica da Razão Pura, o idealismo transcendental neokantiano rejeitou a distinção entre fenômeno e coisa em si. Os objetos são totalmente imanentes à consciência não somente quanto a sua forma, mas também à sua matéria, i.é, o seu elemento empírico. Destarte as categorias já não constituem meramente o modo de aparecer da realidade, mas o seu modo de ser, pois ela não existe senão enquanto presente à consciência [...]. Assim o lógico como estudos das determinações fundamentais de várias regiões dos objetos imanentes à consciência, ocupa, com razão, ainda para Kant, o lugar reservado antigamente à metafísica. A tarefa própria da filosofia consiste, numa Teoria das Ciências, i.é, no exame das estruturas a priori, ao passo que estas estudam o conteúdo empírico das várias regiões dos objetos (MACDOWELL, J.p.30).
Durante o segundo período neokantiano, entre 1878 e o final da Primeira Guerra Mundial, as escolas originadas desse movimento vão acirrar suas diferenças. A escola de Marburg (Cohen, Natorp e Cassirer) se opôs, sobretudo, às interpretações psicológicas, da Primeira Crítica de Kant. O campo de investigação dessa escola era direcionado à fundamentação lógica das ciências exatas, tais como a física e a matemática, pois o que está em jogo nessa obra, segundo os pesquisadores de Marburg, não é qualquer fundamentação da estrutura psicológica do conhecimento, nem sua origem, mas o valor lógico de sua verdade, na medida em que “o nosso conhecimento dos objetos reais contém um elemento que não pode ser reduzido pura e simplesmente a intuição sensível” (MCDOWELL, J. p.29).
No mesmo sentido, mas sobretudo em função da superação do psicologismo e do relativismo histórico, a escola neokantista de Baden, representada principalmente por Windelband e seu discípulo Rickert, estende o retorno a Kant com o propósito da elaboração de uma lógica das ciências humanas. O desenvolvimento da filosofia dos valores (Werttheorie) realizado por essa escola reconhecia a necessidade de diferenciar o conhecimento da natureza do conhecimento da cultura, nesse último caso, as leis deveriam ser explicadas a partir dos valores que neles são presentes. Aqui, sem dúvida, existe um ponto de contato com o projeto de Dilthey que nos exige um breve excurso para desenhar com linhas mais precisas a especificidade de cada projeto.
A crítica à metafísica, inaugurada pela filosofia crítica de Kant (negando ao conhecimento qualquer acesso a elementos suprassensíveis), é absorvida por Dilthey e pelos neokantianos, contudo, a epistemologia das ciências históricas, como filosofia crítica da história, ao recorrer a Kant deveria, como aponta Reis (2002, p. 166): “ou substituir ou completar ou subordinar ou se coordenar à [crítica] de Kant”, e nesse sentido é possível observar a fissura entre os projetos. Poderíamos dizer que para Dilthey é necessário superar Kant, pois as categorias abstratas do conhecimento são tributárias de relações vitais primárias, como pensamento que emerge da própria vida histórica, pois é a vida histórica, em última instância, que fornece ao pensamento unidade e sentido. Já para os neokantianos de Baden, poder-se-ia dizer que houve uma coordenação com vistas à complementação à crítica kantiana, tendo em vista que tanto para Windelband como para Rickert, a diferença entre as ciências naturais e as ciências do espírito era legítima, para o primeiro, como uma distinção metodológica, para o segundo, como distinção lógica. No interior dessa diferença entre Dilthey e os neokantianos de Baden é possível observar um ponto ainda mais fundamental: mesmo com exigências epistemológicas objetivas em seu trabalho, Dilthey, não aceita o pressuposto de um sujeito transcendental, e é antes a vivência do sujeito particular histórico que lhe fornece a base de sua pesquisa; já para Windelband e Rickert o idealismo transcendental é mantido com o propósito de garantir o estatuto científico de suas teses. Assim, enquanto Dilthey, através dos métodos próprios, faz emergir uma nova concepção de ciência, os representantes de Baden movimentam-se em uma teoria preconcebida da ciência. Dito de outro modo, “enquanto Dilthey buscava uma forma de liberar as ciências do espírito do método das ciências naturais, Windelband e Rickert procuravam uma definição de ciência que reconhecesse a importância dos valores” (WU.R, 2010.p.175).
De maneira geral, retornando ao ponto central de nosso tópico, poderíamos apontar que as duas escolas neokantianas se diferenciavam essencialmente acerca do objeto de investigação. Na escola de Marburg, Cohen direcionava suas pesquisas ao chamado “fato da ciência”, e a filosofia seria uma reflexão sobre o conhecimento científico, concentrando-se na busca de uma metodologia capaz de descrever matematicamente a constituição seu objeto, na medida em que seu valor de verdade encontra-se sob bases lógico-matemáticas. Já na escola de Baden, influenciado pela filosofia dos valores de Lotze, Windelband pretende analisar as pretensões de validade dos juízos científicos, concentrando-se nos valores que constituem esses juízos, a fim de conciliar ciência (Wissenschaft) e “visão de mundo” (Weltanschauung). A ciência apenas lida com questões de fato, e se for necessário analisar a “visão de mundo”, seremos obrigados a lidar com os deveres e, sobretudo, com valores.
Esse enfoque nos valores, por parte de Windelband, levará o neokantismo de Baden ao desenvolvimento de uma teoria geral do juízo, segundo a qual os juízos científicos (juízos teóricos) constituem apenas um tipo de juízo, qual seja, os juízos orientados pelo valor verdade. Além dos juízos teóricos, haveria também juízos não teóricos, como os juízos éticos, estéticos, religiosos, etc., os quais seriam orientados por outros tipos de valores, como o bem, o justo, o belo o sagrado, etc., e os quais diriam respeito a outras dimensões da experiência humana para além da ciência, como a moral, o direito, a arte, a religião, etc. Com isso, Windelband procura reformar e ampliar o projeto de Kant. Como, na Crítica da Razão Pura, Kant reduziu o papel da filosofia à análise do caráter a priori dos juízos teóricos específicos das ciências da natureza, trata-se, portanto, de completar a empresa kantiana com a análise do caráter a priori dos outros tipos de juízos. Mesmo dentro das ciências, é preciso distinguir tipos de juízos, o que Windelband fará através da distinção entre ciências nomológicas e ciências ideográficas, e Rickert, com a distinção entre ciências naturais e ciências culturais (RESENDE, 2013.p.17).
Contudo, se ambas escolas se diferenciam na circunspecção de seu objeto, existe um ponto de partida epistemológico comum: o retorno a Kant que indica o lugar próprio da filosofia em relação às ciências. A investigação filosófica não deve se voltar à pesquisa científica de como se dá tal ou qual conhecimento, mas analisar a validade do conhecimento, ou seja, aquilo que torna a verdade do conhecimento possível, e esse problema é de ordem transcendental, pois não está interessada nos processos cognitivos, mas na condição de possibilidade de todo e qualquer processo de conhecimento.
Contemporâneo de Hermann Cohen, da escola de Marburg, Windelband enfatizou, como este, a primazia da abordagem epistemológica, dando continuidade ao projeto kantiano de limitação do conhecimento buscando assegurar a sua validade, rejeitando a contingência do histórico e do psicológico, em prol de uma validade atemporal, puramente lógica. Cohen procurou assegurar a validade lógica do conhecimento científico na matemática, procedimento que Windelband analisa como deficiente, pois, embora a primeira Crítica possa fundamentar a interpretação de Cohen, a segunda e a terceira Críticas, assim como os textos sobre antropologia, história e política requerem outra fundamentação que não a matemática (WU, R.2010, p.3).
A terceira fase do movimento, ainda segundo Crowell, inicia-se no fim da Primeira Guerra Mundial e vai até a intervenção Nacional Socialista no sistema universitário alemão nos anos 30. “Refletindo o colapso do otimismo cultural, este período é caracterizado por um ataque ao idealismo acadêmico em nome de Lebensphilosophie(um termo genérico invocando as teses filosóficas ‘à margem’ como as de Nietzsche, Bergson, e Dilthey). (Crowell,2011p.28). E nesse sentido, as escolas neokantianas precisaram enfrentar o conflito entre a realidade múltipla e dispersa que, no mais das vezes, escapa a qualquer tentativa de apreensão conceitual e lógica, e portanto, à consciência transcendental como postulado que garante a cientificidade do projeto filosófico neokantista.
É também conhecida a interlocução entre Rickert e a fenomenologia de Husserl, tanto, de um lado, pela crítica de Rickert à intuição fenomenológica e à identificação entre sentido (Sinn) e Significado (Bedeutung) nas Investigações Lógicas., quanto, por outro, pela crítica de Husserl a Rickert no que diz respeito à via predominantemente subjetiva das primeiras publicações de Der Gegenstand der Erkentnnis (O objeto do conhecimento)..Contudo, apesar do diálogo entre esses autores, o que nos interessa marcar a título introdutório, é a centralidade do debate que orientou a filosofia deste período. Seja pela busca de juízos lógicos-matemáticos, seja pela busca dos juízos de valor, a filosofia ainda está imersa nos problemas e na gramática da modernidade, pois os debates se movimentam no interior da teoria do conhecimento, e cada escola a seu modo recorre ao sujeito transcendental para assegurar a garantia de objetividade e validade do conhecimento. A discussão inaugurada por Kant, acerca da “coisa em si” e de seu acesso como ideia da razão, redirecionam qualquer ontologia dos objetos à consciência do sujeito. E em última instância, a filosofia permanece imersa no pressuposto da existência de um fundamento último - baseado no sujeito e em suas possibilidades ligadas à representação e organização dos elementos do mundo externo- como condição de possibilidade que garante a segurança e objetividade de todo conhecimento.
Windelband e Rickert: Filosofia dos valores e a razão prática
Para Wilhelm Windelband (1848-1915), a filosofia deve investigar os valores das representações, ou seja, em que medida uma representação se torna uma proposição científica. Contra as teorias representacionistas do juízo, aqui já é possível identificar a clara separação entre representação - que seria a mera aparição de um objeto e suas propriedades-, e o juízo – que possui valor de verdade e pode ser negado ou afirmado. Os juízos (sejam lógicos, estéticos ou éticos) não são neutros como a representação, pois possuem embutido o que Windelband chama de apreciação:
Trata-se de uma distinção lógica que normalmente não aparece no nível da gramática. A mera conexão neutra de representações (sujeito + predicado) é o que se chama de juízo, já o fato dessas representações constituírem uma proposição com valor de verdade se deve à apreciação. O que Windelband quer mostrar é que nisso ordinariamente chamado de juízo está embutida uma apreciação em função de um valor, a qual não se confunde com o conjunto de formações conceituais (RESENDE, 2013.p.40).
O que está em jogo nessa concepção é identificar que a apreciação, inerente a todo juízo, não diz nada acerca dos conteúdos representativos, mas de sua pretensão a um ideal ou fim último, como um horizonte estável do que é verdadeiro, ético, ou estético, e que funcionam como parâmetros avaliativos na ação mesma de julgar. O que está implicado nessa tese é a concepção prática do juízo. As ciências particulares possuem pretensão de valor universal, mas essa universalidade não é fática e “sua necessidade não é causal, mas apenas “deve-ser” (sein-solle).Toda proposição lógica, ética ou estética é impelida pelo dever-ser universal”(RESESNDE,2013.p.41), e mesmo que sua manifestação seja faticamente histórica, esse dever-ser da proposição lógica deve ser reconhecido como universal e incondicionalmente válido por qualquer ser racional – em uma clara assunção da universalidade moral kantiana, mas que agora permeia todos os juízos e não somente os éticos.
Considerando os juízos em função de sua apreciação, Windelband descreve três tipos de juízos. Os juízos são: teóricos (segundo a apreciação: verdadeiro/falso), juízos de gosto (segundo a apreciação: belo/feio) e os juízos éticos (segundo a apreciação: bom/mau). Os fenômenos psíquicos são as representações, neutras em sua manifestação. Assim, como comportamentos da apreciação, os juízos ganham sua forma lógica nas figuras judicativas: juízos afirmativos, juízos negativos, juízos problemáticos. Essa última forma suspende a apreciação, mas pela pergunta – que não é propriamente um juízo- condiciona a possibilidade de julgar, portanto se refere a uma etapa, mesmo que prévia, à tomada de posição apreciativa.
Aqui reside o ponto decisivo: enquanto, para Windelband, a lógica clássica (de Aristóteles a Kant) se ocupou dos elementos meramente gramaticais - sendo os juízos coincidentes com as representações, na medida que bastava afirmá-las ou negá-las - a apreciação, por sua vez, aparece como constituidora do conceito presente nas formações gramaticais, pois dizer algo é antes apreciar a sua posição existencial (com fim ao ideal da matéria em questão: ético, estético etc.) de forma a negá-las ou afirmá-las. Em outras palavras, para que o conhecimento seja possível não é suficiente a recepção passiva das representações, mas é fundamental uma atividade valorativa, que constitui um conceito no reconhecimento de seu conteúdo, sentido e validade, na sua pretensão de necessidade e universalidade. Algo ‘é’ em função do valor que alcança no ideal de conhecimento, e “a pesquisa desses valores com pretensões universais (...) é o objeto de estudo da filosofia” (RESENDE, 2013.p.41). Essa posição será retomada e desenvolvida por Rickert.
Assim como Windelband, Heinrich Rickert (1863-1936) coloca o problema na forma metodológica, ou seja, a pesquisa dos valores como método de base para a filosofia, e busca assim determinar o critério de validade do conhecimento através do elemento que confere sua objetividade, ou o que pode ser identificado como o crucial para a diferença entre os enunciados arbitrários e as proposições válidas do conhecimento efetivo, elemento que Rickert denomina “objeto do conhecimento”, como o título mesmo de sua obra principal indica: “Die Gegenstand der Erkenntnis” (revista em seis edições diferentes entre 1892 e 1928).
Aprofundando as investigações de seu mestre, Rickert difere conceitos ontológicos de conceitos axiológicos, diferença oculta na linguagem ordinária e que se torna clara na observação acerca da concepção prática do juízo. “Enquanto, para Kant, o problema é a impossibilidade de explicar o fato de como a razão teórica pode ser prática, para Rickert, o problema é o fato de que a razão já é sempre prática em seu uso teórico puro” (RESENDE, 2013.p.45), e isto não pelo fato de juízos teóricos dependerem da lei moral, mas pela convicção acerca dos conteúdos mesmos do conhecimento. Se a representação são processos psíquicos elementares e neutros, a convicção só é possível pela razão prática. Para melhor visualização do problema: quando digo “S é P”, ou “S é um sujeito” (e aí está também seu conceito, por exemplo “homem”) ou ainda “P é um predicado” (e também utilizo um conceito, por exemplo “racional”) o que me autoriza dizer “É verdadeiro que S é P”? Segundo Rickert é a convicção prática, fundada no sentimento (Gefühl) de “vontade de verdade” (Willen zur Wahrheit) que impele a busca da verdade. É esse sentimento que possibilita a tomada de posição, que aprova ou desaprova, expresso, por fim, em um juízo. Somos impelidos, pelo dever, na medida em que somos livres, a buscar a verdade. Mas é importante considerar que:
Apesar de o sentimento ser o parâmetro para a tomada de posição do juízo, o dever não deriva do sentimento, pois isso seria derivar o dever do ser. O dever não pode ser confundido com a necessidade causal do sentimento. Na verdade, na própria constatação do sentimento já está pressuposto o dever [...]. Essa verdade buscada não é uma instância ideal, mas apenas um postulado, um inalcançável ideal absoluto de verdade, que funciona como móbil da atividade científica dos seres morais (RESESNDE, 2013.p.46).
A razão prática busca a verdade como sua atividade mais própria a partir do dever impresso na sua própria liberdade, expresso no ato prático de tomada de decisão que culmina na expressão dos juízos (na razão teórica). Se para Kant a ação humana livre é impelida a agir conforme a lei moral, para Rickert, a ação humana em seu querer livre - nem mecânico nem biológico - de um ideal de perfeição da verdade é impelida a agir em função do conhecimento e da ciência.
Na tentativa de afastar as interpretações psicologistas ou idealistas (não científicas) de sua teoria, o valor de verdade para Rickert, que é garantido pelo dever-ser, é observado na evidência, como manifestação psíquica do dever, mas que pelo seu caráter de necessidade ultrapassa o indivíduo singular. O sentimento de prazer ou desprazer dessa evidência na estrutura psíquica, que posiciona o ato prático de tomada de posição, é reconhecido pela sua necessidade transcendente e é o elemento do esquema cognitivo que “estabelece a ponte entre os processos psíquicos reais, em sua singularidade e contingência, com a universalidade e necessidade transcendental do dever” (RESENDE, 2013.p.47). Mesmo com essas colocações, e sobretudo com a postulação que o dever não pode ser derivado do ser pelo seu caráter mesmo de liberdade, Rickert foi aproximado de um certo “psicologismo voluntarista”, pois o valor de verdade na realidade só poderia ser derivado dos processos psíquicos, tendo em vista que “o dever é uma norma psicológica que só tem sentido ‘para’ um sujeito empírico” (RESENDE, 2013.p.47). E ainda, por mais que sua meta fosse buscar a universalidade e necessidade dos valores, ainda assim, esses valores estariam reduzidos “à contingência e temporalidade dos processos psíquicos, ou seja, reduzindo o valor ao ser” (RESENDE, 2013.p.48).
Mas como a filosofia dos valores desses autores lida com as pesquisas históricas enquanto crítica do historicismo? Para Windelband as ciências positivas são ciências nomotéticas, ou seja, operam por uma abstração que busca o conhecimento universal através da estabilidade de suas leis. Já as ciências históricas são ideográficas, cujo juízos não descrevem uma coisa ou estados de coisa enquanto aquilo que é, mas possuem como objeto valores que possuem (ou não) validade. Validade oferecida em última instância pelo juízo em sua forma fundamental como juízo apreciativo. Analisar esses valores requer uma metodologia própria, baseada na pesquisa da valoração como forma de conhecimento.
Para Rickert, a filosofia dos valores é o fundamento universal para os significados da história, e aqui reside o ponto crucial: a busca de um ideal absoluto (vontade de verdade) deve atuar como medida para a realidade individual e histórica, sem a qual não podemos significar a interpretação da vida histórica e cultural na sua singularidade. A distinção entre âmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e âmbito de validade e do valor (Wert), segundo Rickert, levaria a compreender que a história é apreendida pela formação de conceitos (Begriffsbildung) e que não se trata de um conhecimento no campo ontológico, mas reconstrução do objeto pelo conceito, determinado de maneira formal no espaço lógico-axiológico.
Um evento histórico não possui relevância por si só, é a partir da valoração que um fato histórico se “diferencia substancialmente de outros na heterogeneidade contínua, a partir de sua individualidade” (Wu, R. 2010.p.180). Ou seja, o que doa sentido a um fato histórico, na sua individualidade – que se destaca dos fluxos indistintos e heterogêneos dos acontecimentos - é uma realização teórica que o valoriza e lhe confere sentido. A história é, portanto, possível e existe como objeto capaz de ser analisado como ciência pelos valores atribuídos teoricamente a seus eventos.
Heidegger e os limites da filosofia dos valores:
No primeiro semestre do pós-guerra, num contexto de recuperação da normalidade da vida cotidiana que obviamente se estendia ao ensino universitário, ocorre a preleção: A ideia da filosofia e o problema da concepção de mundo (GA56/57), título uma das primeiras lições do jovem professor em Friburgo, em 1919, as quais pretendiam desenvolver e solucionar parcialmente a ideia de ciência que persegue uma posição metodológica genuína, não desfigurada, ou seja, não afetada por nenhuma teoria e livre dos prejuízos herdados. Para tanto, exigia-se voltar à esfera da simples consciência imediata da vida:
A ideia científica perseguida é tal que, uma vez alcançada uma posição metodológica verdadeiramente genuína, somos forçados a sair e dar um passo além de nós mesmos para voltar metodologicamente naquela esfera que sempre permanece alheia a problemática da ciência que se pretende fundar (HEIDEGGER (GA56/57), 2005.p. 3).
Essa transformação do método não é algo arbitrário ou advindo de uma posição filosófica, mas “se evidencia como uma necessidade que se funda na natureza objetiva do problema como tal e que responde à específica constituição dos problemas da ciência em geral”. (HEIDEGGER (GA56/57) ,2005, p.3). A ciência e seus modelos teóricos irrompem na consciência imediata da vida e a transformam na medida em que trazem uma nova atitude da consciência, a qual se desenvolve no caráter dinâmico e móvel da vida do espírito. “Contudo, essa irrupção da ideia de ciência no contexto da consciência natural da vida só se dá em um sentido primordial e radical, no marco de uma filosofia entendida nos termos de ciência originária” (HEIDEGGER (GA56/57), 2005, p.4).
Aqui é possível observar não apenas o mesmo vocabulário husserliano, mas também a mesma tarefa: reconduzir a filosofia ao seu lugar de ciência originária, diferenciando-se dos outros tipos de ciências (biologia, física, psicologia, história, antropologia etc.). Como indica Jésus Adrián Escudero, em sua nota de apresentação à tradução, no texto de 1919 é possível observar a linguagem filosófica dos Neokantianos de Baden (Windelband e Rickert), de Natorp, a linguagem fenomenológica de Husserl e talvez as primeiras formulações de uma linguagem própria, por exemplo, Welten (mundiar), ou das Wie (O como). Mas, para nós, o decisivo é notar que se os princípios que motivam essa investigação inserem Heidegger no debate de sua época (no contexto da busca de uma filosofia propriamente científica), porém no curso de seu pensamento, e na análise das posições filosóficas que intentam o mesmo objetivo, a abordagem da filosofia como ciência originária recoloca a problemática no aspecto propriamente hermenêutico e não teórico da vida. Se a filosofia é ciência originária, é a partir desse aspecto primário que ela deve se movimentar.
Em A ideia da filosofia e o problema da concepção de mundo, o modo de recondução a essa originariedade já não obedecerá aos mesmos moldes da fenomenologia husserliana. Já nessa primeira lição, Heidegger nos propõe uma recondução da filosofia (ao seu lugar basilar de toda e qualquer ciência teórica e derivada), que é a recondução à vida humana na sua imediatidade, como fenômeno primário e fundamental. Mesmo que não estejam aí desenvolvidas, é claro, as posições de Ser e Tempo como, por exemplo, o “ser-em-o mundo em geral como constituição fundamental do Dasein”, teses expostas e desenvolvidas principalmente nos §12 e 13 da obra de 1927, já era possível encontrar alguns elementos da hermenêutica da facticidade. Em 1919, a direção dada a uma filosofia era a de que devia ocupar-se da vida, e assim, a própria renovação da universidade naquele contexto de reconstrução do pós-guerra “implica[va] um renascimento da autêntica consciência científica e de seus laços com a vida” (HEIDEGGER (GA56/57) ,2005, p. 5). Indicação que se articula com as lições posteriores do autor, mas que ganha seu esclarecimento radical em 1923 no Relatório Natorp, na medida em que a apropriação da filosofia aristotélica por Heidegger mostra que a vivência e sua relação de sentido com todo ente ocorre na ocupação prática como condição primária de conhecimento com o mundo, condição essa que coincide com a situação hermenêutica de toda ontologia.
Antes de expormos as linhas gerais do desenvolvimento do texto é necessário tentar esclarecer o que Heidegger quer dizer com a expressão “concepção de mundo” (Weltanschauung). Para a filosofia, segundo nosso autor, visão de mundo, cosmovisão, ou concepção de mundo não são termos que funcionam como uma direção de comportamento no interior do mundo, direção essa justificada, desenvolvida, e capaz de orientar os seres humanos. Também não oferecem uma visão teórica geral da história e da realidade, a partir da qual as ciências pudessem desenvolver-se. Assumindo uma perspectiva bem geral, esses são os problemas das filosofias de Windelband e Rickert (e em certa medida, também os de Dilthey) contra os quais Heidegger vai se opor nessa lição. Pois o que aí está em jogo não é a postulação teórica do que é a vida histórica, mas a compreensão do âmbito fundamental da realidade imediata da vida que proporciona algo como “visão de mundo”. E, desse modo, a relação entre “filosofia” . o “problema da concepção de mundo”, na conjunção expressa “e”, não significa a relação de duas esferas diferentes, mas sim o mesmo âmbito, pois a concepção de mundo põe em evidência a natureza e a busca da filosofia: “concepção de mundo como tarefa da filosofia: quer dizer, uma consideração histórica da maneira em que a filosofia resolveu em cada caso esta tarefa” (HEIDEGGER (GA56/57) , 2005.p.9).
Como sugere a orientação fenomenológica, Heidegger considera que a fundamentação sem preconceitos da filosofia como ciência originária deve desenvolver-se a partir de um processo metodológico: “A ideia de ciência exige implicitamente um desenvolvimento metodológico dos problemas e nos coloca a tarefa da explicação preliminar do verdadeiro problema [que nos ocupa]. (HEIDEGGER (GA56/57) ,2005, p.6). Essa explicação se desenvolve não como hipótese a ser demonstrada, mas a partir da análise das filosofias precedentes e de suas preconcepções que podem distorcer o tema da investigação: como elas se aproximaram da vida e como se relacionam com a noção de ciência.
Como exposto, na escola de Baden, influenciado pela filosofia dos valores de Lotze, Windelband pretende analisar as pretensões de validade dos juízos científicos, concentrando-se nos valores que constituem esses juízos, a fim de conciliar ciência (Wissenschaft) e “visão de mundo” (Weltanschauung). Para a escola de Baden as leis naturais levam à explicação, mas é a norma de um valor ideal a condição de um pensamento verdadeiro. Rickert retoma as considerações de Windelband e põe o problema em uma base filosófica radical, como instrumento metodológico. Entre os §§ de 6 e 9 do texto A ideia da filosofia e o problema da concepção de mundo, já esboçando algumas consequências problemáticas, Heidegger expõe os elementos principais das teorias desses autores. E se pergunta se aquele método que tem a pretensão de clarificar a relação entre filosofia e visão de mundo poderia se tornar um método seguro para a realização da filosofia como ciência originária. A partir do § 10, Heidegger inicia a crítica propriamente dita ao método crítico-teleológico do Neokantismo de Baden. Um dos alvos de sua investigação foi como a “doação ideal”, elemento central do método, na medida em que é o conteúdo com pretensão de necessidade e universalidade dos juízos, acaba por revelar o desconhecimento da problemática acerca da ciência originária por essa escola. Para tanto, Heidegger faz “a pergunta decisiva: quais são as formas e normas necessárias que permitem ao pensamento alcançar a validez universal e, assim, cumprir o propósito da verdade?” (HEIDEGGER (GA56/57), 2005, p.50).
A análise é feita em dois momentos: a) Consideração da natureza do método, b) aplicação do método.
Para a consideração da natureza do método, o importante é delinear o aspecto fundamental que sustenta seus parâmetros. Heidegger aponta que, para a escola de Baden, as determinações necessárias do pensamento são aquelas que configuram o pensamento à finalidade ideal (validez universal) como condição de verdade, pois o pensamento com valor deve responder a um dever-ser. Pois bem, de posse desse elemento basilar, é na aplicação do método que se revelarão os problemas.
A aplicação do método crítico-teleológico consiste em: a partir do material fornecido pelos processos psíquicos, dirigir a visão ao aspecto ideal do pensamento, e a partir daí determinando o próprio material, ordenando seus elementos em função de seu aspecto ideal. Portanto “O núcleo de todo o método baseia-se no ideal do pensamento; mais precisamente, em trazer à presença a doação do ideal” (HEIDEGGER (GA56/57), 2005, p.51). Em suma, o ideal é normativo e dirige a consciência à finalidade do pensamento.
Estamos aqui perante o mesmo problema da circularidade. O método crítico-teleológico afirmaria poder determinar o ideal do pensamento, isto é, a verdade, a partir dos pensamentos verdadeiros, no entanto o que tenho ante mim são pensamentos verdadeiros (ocorrências factuais no mundo), mas não a verdade, pois esta é um ideal. Por outro lado, para ter pensamentos verdadeiros ante mim eu preciso selecionar entre os pensamentos aqueles que são verdadeiros, o que novamente eu só posso fazer se já tenho de antemão o ideal, a verdade (RABELO, 2013, p.28).
A partir daí, em seu estilo muitas vezes categórico, Heidegger demonstra ser supérfluo o sentido do método crítico-teleológico e o acusa de, em última instância, nem mesmo conseguir esclarecer seus pressupostos, deixando obscuras questões como: “a doação ideal possibilita uma relação de apreciação e de seleção com o material dado, mas como trago à minha consciência o ideal de pensamento?”; “o que significa validez universal para esse pensamento?”; “O que significa ser verdadeiro para o pensamento para que ele seja universalmente válido?”. Nas palavras de nosso autor:
A análise estrutural do método crítico-teleológico mostra que este método pressupõe, em seu sentido mais próprio e como condição de sua própria possibilidade, justamente aquilo que deve alcançar. Não pode encontrar em si mesmo seu próprio fundamento, posto que o ideal já tem que estar dado como critério de valoração crítica da norma para levar a cabo a tarefa implícita no método (HEIDEGGER (GA56/57), 2005, p.52).
Se a análise da natureza e aplicação do método crítico-teleológico fizeram despontar a primeira crítica acerca de sua impossibilidade, Heidegger aprofunda sua crítica tendo em vista o aspecto central de sua lição. E, portanto, aponta o desconhecimento acerca da problemática da ciência originária por essa escola.
Já vimos que o movimento do método, mais exatamente a implementação do mesmo, inclui o ter presente o ideal, o fim, o dever-ser. O ideal tem evidentemente um conteúdo, umas determinações substantivas. Contudo, é um ideal; não é um conteúdo real e efetivo, senão um modo de dever-ser. Frente a todo ser, o caráter de obrigatoriedade [inerente ao dever-ser] encerra o momento da idealidade e da validez supra-empírica. Assim, pois, o conceito do método teleológico pressupõe algo mais essencial e algo essencialmente diferente: a doação do dever ser, e se tratando do dever absoluto, então falaríamos da objetividade originária (HEIDEGGER (GA56/57), 2005, p53).
A partir da constatação dessas implicações do método, Heidegger pergunta: qual é o correlato objetivo do dever-ser? Em outras palavras: qual sua orientação vital? Isso permanece obscuro, e mais, ainda que a inclusão do elemento do dever-ser no método aparentemente não se mostre como um viés meramente teórico (na medida em que se trata da razão prática), não é possível responder à demanda necessária de uma ciência originária, pois é inconciliável com a urgência da vida fática.
Nesse sentido nos parece que, na filosofia crítica-transcendental de Rickert, o acesso aos elementos decisivos do método, em última instância, é realizado a partir das teorias das ciências positivas. Então, a filosofia está obrigada a se posicionar frente às teorias dessas ciências, e não propriamente a partir da orientação vital. O desconhecimento acerca da filosofia como ciência originária se torna aqui patente, pois ao se revelar que são as teorias dessas ciências que fornecem os elementos para os juízos valorativos relacionados ao dever-ser, a filosofia se torna delas dependente e parece nelas encontrar até mesmo sua condição de possibilidade.
Heidegger ainda aponta, em sua crítica, um problema que decorre da tentativa de estabelecer uma relação entre valor judicativo e dever-ser. Para ele, na vivência imediata da vida as relações valorativas não encontram a menor correspondência com o dever-ser. Ouçamos as suas palavras:
Pela manhã entro em meu estúdio, o sol banha meus livros, etc, estou alegre. Esta alegria não responde em nenhum caso a um dever-ser. A ‘alegria’ como tal não se oferece a mim em uma vivência marcada pelo dever-ser. Devo trabalhar, devo sair para uma caminhada: duas motivações, duas possíveis razões, que em si mesmas não formam parte de meu sentimento de alegria, senão que o pressupõe. Existe, portanto, um tipo de vivência em que me sinto alegre, em que me dá algo que tem valor como tal (HEIDEGGER (GA56/57), 2005.p.55).
A experiência do valor é intransitiva, não um juízo, mas em seu sentido imanente “o método teleológico implica indubitavelmente o momento da vivência do dever-ser” (HEIDEGGER (GA56/57), 2005.p.55).
Até agora o que foi analisado foi o significado do método crítico- teleológico e suas implicações, que apontaram para a existência de fenômenos mais originários que passam desapercebidos aos defensores desse método. E se o método lógico-teleológico estabelece a relação necessária entre valor e dever-ser, acarretando todas as possíveis críticas já expostas, Heidegger não deixa de reconhecer:
Uma coisa é evidente: Rickert detectou um fenômeno significativo quando identificou o objeto do conhecimento como um dever-ser e o desvencilhou dos mecanismos psíquicos: o fenômeno da motivação, um fenômeno que encontra seu significado primário tanto nos problemas do conhecimento como em outros âmbitos. Uma coisa é declarar-algo-como-valor [Für-Wert-Erklären] e outra muito distinta é tomar-algo-por-um-valor [Wertnehmen]. Este tomar-algo-como-um-valor se pode caracterizar como um fenômeno originário, como uma constituição da vida em si e para si, no entanto, o declarar-algo-como-um valor foi visto como algo derivado, algo fundado na esfera teorética, e esse mesmo fenômeno teorético é um elemento constitutivo da vida vivida em si mesma. Pressupõe levantar o véu teorético do caráter valorativo como tal. A estratificação precisa desse fenômeno não nos interessa nesse momento. (HEIDEGGER(GA56/57), 2005, p.57).
O que está em jogo aqui é a relação entre verdade e valor, pois para Rickert “distinto do processo psíquico real, uma ocorrência natural, que poderia ser tratada causalmente, destaca-se a legalidade ideal do pensar verdadeiro, que se deve obedecer, uma vez que se queira o ideal da verdade” (RABELO, 2013, p.26). Desse modo algo é capaz de ser analisado como verdadeiro através dos valores atribuídos teoricamente (através da análise do juízo) ao seu material. Ou seja, a verdade é garantida na análise judicativa que declara-algo-como-valor.Por exemplo, a distinção entre âmbito de ser na realidade (Wirklichkeit) e âmbito de validade e do valor (Wert), segundo Rickert, levaria a compreender que a história é apreendida pela formação de conceitos (Begriffsbildung), e que não se trata de um conhecimento no campo ontológico, mas reconstrução do objeto pelo conceito, determinado de maneira formal no espaço lógico-axiológico. Portanto:
Uma coisa é “explicar por valor” (für-Wert-erklären) outra é “tomar-por-valor” (wertnehmen). O primeiro é uma construção teorética, o segundo uma vivência. Está em jogo aqui uma diferença que se insinua na língua alemã a partir da expressão perceber, wahrnehmen, literalmente tomar-por-verdadeiro. No mesmo sentido imediato em que aquilo que me aparece na percepção sensível é tomado como estando aí ele mesmo, sem a necessidade de uma reflexão, aqui quer-se saber se algo vivenciado é, no próprio vivenciar, tomado como algo valoroso, se é experienciado enquanto valoroso, ou se posteriormente lhe é adicionada esta referência a valores (RABELO, 2013, p.27)
Desse modo, para Rickert, verdade e valor judicativo (teórico) se comungam, mas essa comunhão, para Heidegger, não passa de uma constituição metodológica externa e derivada de uma filosofia teórica. Se para Rickert o tomar-algo-como-um-valor não tem “valor de verdade” como o declarar-algo-como-valor. Para Heidegger a verdade do ser (ser –verdadeiro), ou o “tomar-por-verdadeiro” (a vivência) independe do valor, e nada tem a ver com o dever-ser:
Dá-se o ser-verdadeiro como um valor? De maneira alguma; e nem se dá no segundo caso do juízo histórico [acerca da morte de Napoleão I na ilha de Santa Elena]. Contudo, o conteúdo objetivo desse juízo tem a forma de um valor no sentido de [que remete a algo] ‘historicamente significativo’: um novo fenômeno ‘valorativo’ que não afeta o ser-verdadeiro como tal, bem como joga um papel metodológico na constituição da verdade histórica. O ser-verdadeiro (ἀ-λήθεια) como tal não ‘vale’. Na alegria como alegria assumo valores, na verdade simplesmente vivo. Não apreendo o ser-verdadeiro na e através de uma assunção de valores (HEIDEGGER(GA56/57), 2005, p58)
Essas últimas considerações revelam para Heidegger que o método teleológico está impregnado de pressuposições, pois a cada vez “os fenômenos do dever-ser, do valor, da assunção de um valor, da pergunta se a verdade é um valor que descansa em uma valoração originária se fundam em uma determinação valorativa que se realiza subsequentemente” (HEIDEGGER(GA56/57), 2005, p.62). E essas pressuposições trazem à vista o privilégio teorético dessa filosofia:
O privilégio outorgado ao teorético repousa na convicção de que o teorético representa o estrato básico e fundamental que de alguma maneira funda todas as esferas restantes. Isso se põe manifesto quando é falado, por exemplo, da ‘verdade’ ética, artística ou religiosa. Se diz que o teorético tem todos os demais âmbitos valorativos, e é capaz de fazer isso na medida em que o teorético mesmo se concebe como um valor. É necessário romper este primado do teórico, mas não com a finalidade de proclamar a primazia da prática ou introduzir um outro elemento que mostra os problemas a partir de uma nova perspectiva, mas porque o teorético mesmo enquanto tal remete a algo pré -teorético (HEIDEGGER (GA56/57), 2005, p.70).
Para os neokantianos de Baden o ideal absoluto, como medida da realidade empírica, como condição de interpretação do pensamento verdadeiro, e ainda, como condição de interpretação do significado histórico, reveste-se da transcendentalidade em função do rigor científico. Para eles o mundo do ser não pode ser confundido com o mundo do valor, pois são os valores, como elementos transcendentais, que orientam a constituição do indivíduo histórico de modo lógico. A realidade - o espaço ontológico – está condicionada à teoria e, em última instância, o próprio teorético é concebido como valor. Inversão que Heidegger detecta como propriamente afastada do âmbito imediato da vida e que como método, portanto, não pode fundar-se como ciência originária.
A derivação do teorético ao pré-teórico: O Es gibt. originário:
Diferentemente de Windelband e Rickert, que subordinavam a verdade à valoração em função do juízo, já em 1919, Heidegger indicava a derivação do teorético de uma instância primária mais originária. Após a investigação do método crítico-teleológico em "A idéia da filosofia e o problema da visão de mundo", o autor apresenta essa instância primária como correlata a um “es gibt” originário: há, e o que há é mundo, ou melhor, um dar-se mundo.
A crítica de Heidegger à teoria do conhecimento e às implicações dessa postura propriamente teórica em relação à verdade conduz o autor à correlação entre as vivências e a significação fenomênica como cooriginárias da imersão num mundo que há, se dá, existe como mundo circundante. As pressuposições da teoria do conhecimento e suas postulações acerca do “sujeito” reverberam em uma série de problemas derivados que nada dizem acerca das vivências. Assim, questões: "Como é possível o acesso à realidade exterior?"; "Em que medida minha vivência subjetiva alcança a vivência de outro sujeito?"; "Como passar da esfera subjetiva aos dados sensoriais do mundo?"; "Como passar da esfera subjetiva ao conhecimento objetivo?", são problematizações derivadas da primazia teórica dada pela filosofia e pelas ciências que ignoram por completo que "o viver do mundo circundante não é uma contingência (...), somente em ocasiões excepcionais estamos instalados em uma atitude teorética" (HEIDEGGER(GA56/57), 2005, p.106).
Lembremos que o que está em questão nessa preleção é em que medida a filosofia pode ser considerada como ciência originária, e qual é o seu modo de relação com a visão de mundo. Nesse sentido a filosofia se mostra como aquela ciência que deve se afastar de qualquer posição prévia, e assim, dizer que "o viver do mundo circundante não é uma contingência", é reconhecer aquilo que todo posicionamento teórico quer a cada vez afastar, mas é, em última medida, a condição de possibilidade de sua própria realização teórica. Com outras palavras, a possibilidade do conhecimento está imersa em bases que não são elas próprias, teóricas E nesse sentido, quando uma ou outra teoria filosófica pretende investigar a possibilidade do conhecimento, partindo de pressuposições teóricas, acaba por afundar-se em falsos problemas como “a realidade do mundo” e “o acesso a essa realidade”. Discussões vazias, pois o mundo em sua realidade histórica é o dar-se originário e prescinde de toda e qualquer teorização.
Na leitura de Heidegger, o neokantismo decompõe o âmbito originário da vivência em conceitos teóricos que não formam mais uma totalidade, pois a desvivifica, transformando-a num objeto a-histórico e, portanto, sem significado. O mundar (welten) só é apreensível pela visão fenomenológica que ainda não está contaminada pelos pressupostos teoréticos que tornam essa experiência uma relação objetificante [...]. Heidegger se contrapõe à metodologia teorética que pretende objetificar e descrever as vivências, mas compreender e apreender as conexões de significado em que já se está submerso. A fenomenologia pretende manifestar isso que se dá em um só golpe, o mundo circundante (Umweltliche) característico do vivenciar primordial (WU, R.2010, p.185)
Mas se a compartimentação da realidade realizada pelas teorias filosóficas recai em discussões vazias e a vivência primordial prescinde de conceitos teóricos, isso não apontaria para um empirismo ou um realismo como possibilidades da filosofia? A filosofia é ainda busca e busca originária. Nesse sentido, o acesso fenomenológico ao mundo circundante, orientado pela própria coisa na intuição imediata é, para Heidegger, o modo de abrir “cientificamente” a esfera da vivência resguardando a orientação à vida sem qualquer teoria prévia.
O “rigor” da cientificidade cultivada na fenomenologia cobra sentido a partir dessa atitude fundamental e não se pode comparar com o “rigor” das ciências derivadas e não originárias. Ao mesmo tempo resulta claro porque o problema do método joga um papel central na fenomenologia como em nenhuma outra ciência [...]. Para o problema que nos ocupa, a atitude fundamental da fenomenologia aponta em uma direção decisiva: não construir um método desde fora ou desde acima, não idear um novo caminho teorético por meio de reflexões dialéticas (HEIDEGGER(GA56/57), 2005, p.133).
Desde o início da preleção, Heidegger está em busca de um método capaz de alcançar o primário, que estaria na base de qualquer conhecimento. Nesse sentido a fenomenologia como retorno às coisas mesmas se volta ao dar-se originário das coisas e é através delas que o método pode vir a ser desenvolvido. A tentativa de orientar-se pelo dado na vivência, pelo que é como é no mundo circundante, se afasta, portanto, de qualquer objetificação. A fenomenologia como método é a possibilidade de compreensão dos significados que nos vem ao encontro no mundo circundante e histórico no qual já se está sempre imerso. Mas, se Heidegger apresenta a fenomenologia como o método que alcança o que vem ao encontro sem qualquer prévia teoria, esse acesso não se dá segundo os mesmos parâmetros de seu mestre Husserl.
Na fenomenologia husserliana, o modo de aparecimento do fenômeno é sempre uma doação de significado, mas o acesso aos fenômenos é sempre a partir da análise dos atos intencionais das vivências na consciência. Heidegger recusa o pressuposto da consciência e pretende que a doação significativa seja originária da vivência imersa no mundo. No último momento da preleção de 1919, o autor apresenta o que seria cooriginária de qualquer orientação fenomenológica e base de qualquer ciência teórica: a intuição hermenêutica. Assim, "a vivência que se apropria do vivido é a intuição compreensiva, a intuição hermenêutica [...]. A universalidade do significado das palavras assinala primariamente algo originário; o caráter mundano da vivência vivida" (HEIDEGGER(GA56/57), 2005, pp.141-142). Ou seja, a significação gramaticalmente revestida não aponta para algo essencial apreendido no ato de consciência (como compreende Husserl), mas a significação vivida no mundo circundante.
O princípio dos princípios husserlianos: "tudo o que se dá originariamente na 'intuição', [...] há que tomá-lo simplesmente como se dá" (Husserl, Ideen apud Heidegger (GA56/57), 2005, p.132), é dado no interior das conexões de significados no es gibt originário, no mundo que se dá cooriginariamente às próprias vivências.
Para Heidegger, o único modo de apreender essa vivência originária é retroceder ao pré-teórico por uma abordagem fenomenológica que faz com que o mundar do mundo se manifeste enquanto tal. Alguns anos mais tarde, isso constituiria o núcleo da ontologia fundamental na perspectiva da temporalidade, cujo objetivo de crítica não seria mais, de maneira tão detida, o neokantismo de Windelband e Rickert, mas a totalidade da tradição metafísica da filosofia (Wu,R.2010, p.186).
Tendo em vista o ponto central da preleção aqui examinada, é imprescindível notar que, em 1919, Heidegger estava debatendo com os problemas de seu tempo: a possibilidade do conhecimento; o lugar da filosofia diante da autonomia das ciências particulares; e a articulação dessa problemática com a Lebensphilosophie.Se ainda não há explicitamente a questão do sentido de ser em geral, a preleção possui elementos decisivos para o desenvolvimento da ontologia fundamental. O que queremos enfatizar é como o modo de aparição dos fenômenos em seu significado prescinde de toda e qualquer teorização. Essa característica fundamental vai permanecer vigente nos desdobramentos futuros do pensamento de Heidegger e vai se mostrar, a cada vez mais, intimamente relacionada à ambição heideggeriana de superar os pressupostos da tradição filosófica moderna:
A pergunta acerca da realidade do mundo externo deriva em parte de uma compreensão superficial da filosofia kantiana, ou, de outro modo, de reflexões colocadas por Descartes. É uma questão que em todo momento, de modo mais ou menos expresso, ocupou a teoria do conhecimento da modernidade, assegurando-se sempre, contudo, que, naturalmente, ninguém duvida da realidade do mundo externo. Pois o que nela sempre se dá por suposto é que essa realidade, essa mundanidade do mundo, é no fundo algo que talvez possa demonstrar-se, ou, mais exatamente, no caso de nos encontrarmos em condições ideais, ao final havíamos demostrado [essa realidade]. E, contudo, o ser-real do mundo não só não necessita ser demosntrado, nem sequer é algo que, na falta de provas rigorosas, por isso deva ser unicamente objeto de crença. ( HEIDEGGER (GA20), 2006, p.270)
Assim, a partir dessas considerações, é possível indicar que a questão do sentido do ser em geral ou, numa palavra, a “ontologia” para Heidegger, pode vir a ser atingida quando se revela que a fenomenologia não está fundada na epistemologia (a partir da consciência) e que a hermenêutica não é apenas um instrumento metodológico de acesso à história em sua objetividade. O que Heidegger pretende exprimir com o termo “intuição hermenêutica” é a possibilidade de uma compreensão imediata do mundo, a qual não está fundada nas vivências subjetivas. O es gibt originário é o mundo que se dá como campo hermenêutico de toda orientação fenomenológica. Com outras palavras, não há significados ideais, eles aparecem a partir da situação hermenêutica compartilhada entre os homens, campo que chamamos de mundo e a compreensão desse campo não é tributária das vivências psíquicas. Desse modo podemos compreender que ao superar a consciência husserliana enquanto lugar de aparição dos fenômenos, e também como a noção heideggeriana de “intuição hermenêutica” - ao superar a vivência psíquica de Dilthey como categoria epistemológica fundamental -, conduz Heidegger , já nas primeiras investigações da década de 1920, à profunda transformação hermenêutica da fenomenologia, a qual consiste na tentativa de mostrar como é possível articular filosoficamente uma ciência originária da vida, ou em mostrar como se dá a realidade antes de qualquer consideração científica, ajuizante; isso quer dizer: antes de qualquer concepção teórica de mundo. Nesse sentido vimos que a intencionalidade fenomenológica é intuição compreensiva, ou intuição hermenêutica, em meio ao mundo circundante, que vem ao encontro. E as coisas que vêm ao encontro não respondem primariamente ao tradicional esquema sujeito-objeto, mas resultam compreensíveis a partir da pertença prévia a um mundo já articulado, ou a partir de um estado de coisas pré-compreendido na vida fática que articula toda e qualquer compreensão do homem (das coisas e de si mesmo) desde sua existência imediata no mundo. Dito de outro modo, revela-se como compreensão ontológica.