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Recepção: 30 Junho 2019
Aprovação: 31 Agosto 2019
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i3.1277
Resumo:
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Neste artigo, desenvolveremos a crítica de Ailton Krenak à modernidade-modernização ocidental como uma monocultura de ideias que se constitui como uma estrutura autorreferencial, autossubsistente, endógena, autônoma e autossuficiente, não necessitando do outro da modernidade em termos de ajuda e de crítica. Utilizando a ideia de colonialismo como teoria da modernidade, identificaremos cinco problemas fundamentais apresentados pela teoria da modernidade-modernização ocidental de Jürgen Habermas que justificam a crítica de Ailton Krenak, a saber: (a) a modernidade como uma sociedade-cultura marcada por uma singularidade absoluta, enquanto universalismo-globalismo pós-metafísico via racionalidade cultural-comunicativa, diferente de todo o resto das sociedades-culturas como tradicionalismo em geral via fundamentações essencialistas e naturalizadas; (b) a compreensão do processo de constituição e de desenvolvimento da modernidade europeia como um movimento-princípio endógeno, autônomo, autossuficiente e fechado relativamente ao outro da modernidade, plenamente capaz de autocompreensão, autorreflexividade e autocorreção desde dentro, por seus próprios meios, sem necessidade de ajuda externa; (c) a redução da dinâmica constitutiva e caracterizadora da modernidade como correlação, separação e tensão-contradição entre modernidade cultural e modernização econômico-social, com o silenciamento sobre o e o apagamento do colonialismo como movimento, princípio e consequência do processo de modernização ocidental; (d) a compreensão restritiva do caminho constitutivo e evolutivo da modernidade-modernização ocidental, como um processo reto, direto e linear que vai da Europa moderna ao Primeiro e Segundo Mundos, mais uma vez silenciando-se sobre e apagando o Terceiro Mundo enquanto parte constitutiva e consequência da modernidade-modernização ocidental como um todo; e, finalmente, (e) a correlação de modernidade cultural (enquanto universalismo-globalismo pós-metafísico via racionalidade cultural-comunicativa) com/como o gênero humano, do gênero humano como um grande processo de modernização e de cada sociedade-cultura particular como uma proto-modernidade, o que sustenta e respalda exatamente a modernidade-modernização ocidental como ápice da evolução humana e, assim, seu sentido e sua vocação universalistas-globalistas, característica negada ao outro da modernidade.
Palavras-chave: Pensamento Indígena Brasileiro, Discurso Filosófico-Sociológico da Modernidade, Autorreferencialidade, Colonialismo, Outro da Modernidade.
Abstract:
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In this paper, we will develop the Ailton Krenak’s criticism to Western modernity-modernization as a monoculture of ideas that constitutes itself as a self-referential, self-subsistent, endogenous, autonomous and self-sufficient structure which does not need the help and the critic by the other of modernity. Using the notion of colonialism as theory of modernity, we will identify five fundamental problems that permeates the construction of Jürgen Habermas’ theory of Western modernity-modernization, problems that justify this Ailton Krenak’s criticism, namely: (a) the modernity as a society-culture marked by an absolute singularity as post-metaphysical universalism-globalism from cultural-communicative rationality, entirely different of the rest of societies-cultures as traditionalism in general based on essentialist and naturalized foundations; (c) the comprehension of the constitution and development of European modernity as an endogenous, autonomous, self-sufficient and closed movement-principle relatively to the other of modernity, totally capable of self-comprehension, self-reflexivity and self-correction from inside, by its own means, with no necessity of external help; (c) the reduction of the constitutive and distinctive dynamics of Western modernization to the notion of correlation, separation and tension-contradiction between cultural modernity and social-economic modernization, with the silencing about and the erasing of the colonialism as movement, principle and consequence of the process of Western modernization; (d) the restrictive comprehension of the constitutive and evolutionary way of Western modernization as a straight, direct and linear process which goes from modern Europe towards the First and Second Worlds, again silencing about and erasing the Third World as a constitutive part and consequence of the Western modernity-modernization as a whole; and, finally, (e) the correlation of cultural-modernity (as post-metaphysical universalism-globalism from cultural-communicative rationality) with/as humankind, the humankind as a big process of modernization, and each society-culture as a proto-modernity, which sustains and supports exactly the idea of Western modernization as the apogee of human evolution and, therefore, its universalist-globalist sense and vocation, a characteristic that is denied to the other of modernity.
Keywords: Brazilian Indian Thinking, Philosophical-Sociological Discourse of Modernity, Self-referentiality, Colonialism, Other of Modernity.
Monocultura de ideias é o que eu percebo em todo o repertório do pensamento do Ocidente (KRENAK, 2017, p. 109).
O que já indica, de certa maneira, a pouca valorização do pensamento ameríndio, do pensamento autóctone, ante a visão abrangente que os civilizados têm do seu mundo. Um mundo em si. Um mundo acachapante, que não precisa de colaboração. E que não abre espaço para que se ofereça uma crítica ou para apresentar uma crítica a essa visão tão completa do que é a civilização e do que são as cidades (KRENAK, 2017, p. 115).
Considerações iniciais
Neste artigo, objetivamos realizar uma aproximação e um diálogo gradativos entre o paradigma normativo da modernidade, estilizado, em nosso caso aqui, na/pela/como teoria da modernidade de Jürgen Habermas, e o pensamento indígena brasileiro enquanto crítica da modernidade. Além de um diálogo e de uma discussão pouco tentados ou mesmo pouco valorizados entre ambas as posições – pensamento indígena e teoria da modernidade –, em geral o pensamento indígena brasileiro tem sido relegado, como o reconhecem alguns/algumas de seus/as representantes mais destacados/as, ou ao âmbito da literatura infanto-juvenil, ou ao âmbito do mito como pré-filosofia, como pré-ciência, sendo assumido, quando muito, pela antropologia cultural como um objeto de estudo descritivo, talvez até como uma curiosidade etnográfica (cf.: MUNDURUKU, 2016, p. 172-173; KRENAK, 2017, p. 72; WERÁ, 2017, p. 102-102; WERÁ JECUPÉ, 2002, p. 10). Não espanta, aqui, que, ainda conforme nos contam diferentes pensadores/as indígenas brasileiros/as, em geral os/as indígenas foram representados/as de modo extemporâneo, se falou deles/as e sobre eles/as, mas eles/as não falaram, deles/as quase não conhecemos a voz, o que significa que tivemos pensamento indianista e indigenista, mas não efetivamente pensamento indígena, por causa da recusa da voz, da negação do protagonismo e do não-reconhecimento da voz-práxis indígena (cf.: MUNDURUKU, 2016, p. 190-192; KRENAK, 2015, p. 33, p. 166; TUKANO, 2017, p. 26-28; JEKUPÉ, 2009, p. 09-22). Na filosofia nacional, como estamos dizendo, o pensamento indígena brasileiro praticamente não aparece, a não ser como um passo pré-filosofia, pré-ciência, e é bem provável que o motivo resida exatamente na dupla suposição (a) de um sentido não-filosófico – e não-científico e não-político – por ele assumido, segundo a concepção hegemônica de filosofia e de ciência como razão guiada em termos de um método técnico de investigação da natureza e de uma perspectiva antropocêntrica no âmbito ético-político, e (b) pelo próprio fato de que, como Habermas não se cansa de dizer, é praticamente um consenso na comunidade filosófica que a racionalidade moderna, não obstante suas contradições, permite pluralismo e autocorreção internos, colocando-se como guarda-chuva normativo das diferenças, o que nos permite não apenas compreender o outro sem acessar-lhe as próprias ideias e práticas, mas também, apenas pelo exclusivo uso dessa mesma racionalidade moderna, conseguir aproximarmo-nos criticamente, moralmente de todos os sujeitos, de todas as práticas e de todos os valores não-modernos, nesse caso o pensamento indígena brasileiro – uma vez que o universalismo, isto é, a humanidade enquanto categoria normativa formal, serve como base para a fundação do pensar e da práxis em termos de filosofia europeia. Essa ignorância relativamente ao pensamento indígena e a supervalorização do paradigma normativo da modernidade também se devem, acreditamos, a outro pressuposto fundamental desenvolvido pela filosofia moderna e assumido em cheio pelas teorias da modernidade contemporâneas, em particular, para nosso caso aqui, pela teoria da modernidade de Jürgen Habermas, a saber: o da autorreferencialidade, da autossubsistência, da endogenia e da autonomia da razão tanto em compreender-se, justificar-se e corrigir-se quanto, como já dissemos acima, em servir como guarda-chuva normativo de todas as diferenças, enquanto universalismo-globalismo pós-metafísico – a modernidade já contém em si, como ápice do desenvolvimento humano que é, todos os momentos passados, incluindo-se o mito, o tradicionalismo (com o qual os indígenas são compreendidos pela modernidade). Dentro desse contexto, o pensamento indígena brasileiro pode ter recusadas sua filosoficidade, sua cientificidade e sua politicidade, permanecendo no âmbito do exótico e do ingênuo, do arcaico e do passado, tornando-se grandemente inservível para compreender, enfrentar e resolver problemas contemporâneos, como também pode ser periferizado por causa da completude do paradigma normativo da modernidade enquanto racionalidade pós-metafísica que serve de contexto, de fundamento e de caminho para a compreensão de si e do que está para além dela, sob a forma de outro da modernidade, possibilitando que esse mesmo pensamento indígena no máximo ande a reboque do protagonismo e da importância daquele.
Nesse sentido, nos propomos, nesse texto, a assumir o pensamento indígena brasileiro como crítica da modernidade, e isso por um motivo bastante explícito e direto em termos de postura dos/as pensadores/as indígenas brasileiros/as, a saber, seu reconhecimento de que o processo de constituição, de desenvolvimento e de evolução de nossa sociedade, que se atrela ao processo de modernização ocidental de um modo mais geral, tem no colonialismo um de seus eixos-chave, sendo que o/a índio/a é produzido exatamente nesse contexto e a partir desse horizonte cultural-material-institucional representado pela modernização ocidental e/como colonização.. Como dissemos, o reconhecimento dessa condição basilar do Brasil no âmbito da modernização ocidental de um modo mais geral e, aqui, a construção, a compreensão e a produção do/a índio/a demarcam a voz-práxis indígena em termos de autoafirmação, resistência e luta, em termos de ativismo, de militância e de engajamento públicos, políticos e culturais desses/as mesmos/as indígenas no Brasil hodierno em particular, no amplo horizonte da modernização ocidental de um modo mais geral – como o mostra a participação de lideranças indígenas as mais variadas em discussões internacionais sobre o futuro das comunidades tradicionais, sobre a questão da ecologia e do desenvolvimento, entre outras coisas (cf.: KOPENAWA e ALBERT, 2015, p. 375-498). Por tudo isso, como dissemos, definiremos nesse texto, a partir da sugestão dos/as próprios/as pensadores/as indígenas brasileiros/as, o pensamento indígena como crítica da modernidade.
A partir disso, nós procuraremos argumentar sobre uma afirmação muito importante e impactante de Ailton Krenak, uma das grandes lideranças indígenas brasileiras da atualidade, responsável pela formação do Movimento Indígena brasileiro, a partir de fins dos anos 1970. Sua afirmação, apresentadas nas duas epígrafes ao início deste texto, nos diz que a modernidade é um mundo completo, fechado, endógeno, autorreferencial, autossuficiente e autossubsistente, que não precisa de colaboração e crítica de fora para dentro, e nem abre espaço para a participação por parte do outro da modernidade, o que leva à sua afirmação de que o Ocidente é uma monocultura de ideias. A pergunta que nos fazemos e que nos proporemos a responder ao longo do texto é: em que sentido a modernidade-modernização ocidental pode ser entendida como um mundo completo, autossubsistente e autossuficiente, que não precisa nem de colaboração e nem de crítica por parte do outro da modernidade? Para responder a esta questão e, portanto, fazer jus ao mote que Ailton Krenak nos dá nas epígrafes acima, nós analisaremos a teoria da modernidade europeia de Jürgen Habermas, que propõe uma teoria da modernidade-modernização ocidental. que é, ao mesmo tempo, uma teoria da modernização europeia e de seu caminho direto, o Primeiro e o Segundo Mundos, . também uma teoria da evolução humana como universalismo-globalismo pós-metafísico calcado na racionalidade cultural-comunicativa, diagnosticando os seguintes problemas teórico-políticos que dão razão à afirmação de Ailton Krenak. (a) O discurso filosófico-sociológico começa com a afirmação da singularidade absoluta da Europa moderna enquanto universalismo-globalismo pós-metafísico via racionalidade cultural-comunicativa, separando-se diretamente do outro único princípio e modelo civilizacional existente, que subsume todas as outras sociedades-culturas, a saber, o tradicionalismo em geral como contextualismo estrito via fundamentações essencialistas e naturalizadas. A modernidade, nesse sentido, seria racional e geradora de racionalização social, de crítica, reflexividade e emancipação, ao passo que o tradicionalismo geraria basicamente fundamentalismo. (b) Dada sua singularidade e seu exclusivismo absolutos – posto que somente a modernidade teria e dinamizaria essa condição de universalismo-globalismo pós-metafísico, a modernidade-modernização ocidental constitui-se como uma sociedade-cultura autorreferencial, autossubsistente e autossuficiente, capaz, por sua própria dinâmica, por seus próprios sujeitos, por seus próprios princípios e por seus próprios valores, de resolver seus problemas internos e evoluir de modo estável ao longo do tempo. (c) Uma noção restritiva, endógena, fechada e autônoma de modernidade-modernização ocidental que consiste fundamentalmente na correlação, separação e tensão-contradição entre modernidade cultural e modernização econômico-social, racionalidade cultural-comunicativa e racionalidade instrumental, mundo da vida e sistemas sociais, silenciando-se sobre e apagando-se o colonialismo como parte constitutiva e consequência do processo de modernidade-modernização ocidental, de modo a se purificar a modernidade cultural como plataforma normativa universalista e a se culpar exclusivamente a modernização econômico-social pelos problemas sociais dessa mesma modernidade-modernização ocidental de modo mais amplo. (d) Uma concepção de modernidade-modernização ocidental linear, reta e direta, que vai da Europa moderna ao Primeiro e ao Segundo Mundos e, portanto, que não apenas exclui o colonialismo como base, princípio e consequência da modernização, conforme já dito acima, senão que também desatrela o Primeiro Mundo (e mesmo o Segundo Mundo) relativamente ao Terceiro Mundo e, assim, reduz a modernidade-modernização ocidental à Europa em primeiro lugar e ao capitalismo tardio (Primeiro Mundo e Segundo Mundo) em segundo lugar. E, por fim, (e) a compreensão de que a modernidade cultural não é um princípio exclusivo e singular apenas da Europa – que incrivelmente foi a pressuposição, o objetivo fundamental da teoria da modernidade de Habermas –, mas do próprio gênero humano como um todo e de cada sociedade-cultura em particular, o que transforma a modernidade-modernização ocidental em ápice do gênero humano, o gênero humano em um grande processo de modernidade-modernização europeia e cada sociedade-cultura em particular como uma proto-modernidade, de modo a sustentar-se, para além do contextualismo e do relativismo que ele gera (diferenças culturais que são apenas o aspecto externo de cada sociedade-cultura humana particular, mas não sua base, que é a racionalidade cultural-comunicativa, que é a mesma base de todas as sociedades-culturas e, ao fim e ao cabo, do próprio gênero humano), o universalismo-globalismo pós-metafísico da e como modernidade. Com isso, por meio desses cinco pontos problemáticos da construção da teoria da modernidade habermasiana, concluímos que Ailton Krenak tem razão em acusar a modernidade-modernização ocidental de ser um mundo completo, fechado, autorreferencial, autossuficiente e autossubsistente, que não precisa do outro da modernidade, que o minimiza, deslegitima e, por fim, o assimila exatamente com esse argumento de que ele representa um passo evolutivo a ser superado pelo processo de modernidade-modernização.
Nesse sentido, também argumentaremos por duas atitudes teórico-políticas fundamentais por parte de sujeitos e contextos subalternos, periféricos à modernização central, no que diz respeito a uma crítica da modernidade-modernização ocidental: a afirmação do colonialismo como teoria da modernidade, que permite a desconstrução da singularidade, do exclusivismo, da autorreferencialidade, da autossuficiência e da autossubsistência absolutos da modernidade-modernização ocidental relativamente ao outro da modernidade, a complementação e a mútua dependência entre modernidade cultural, modernização econômico-social e colonialismo como base para a reconstrução e o enquadramento do processo de modernidade-modernização ocidental, bem como a ampliação do conceito de modernidade ocidental, que passa a integrar modernização central e modernização periférica ou, na linguagem da Guerra Fria que demarca o conceito de modernidade ocidental utilizado por Habermas, Primeiro Mundo, Segundo Mundo e Terceiro Mundo (lembrando que, para ele, modernidade ocidental diz respeito ao Primeiro e ao Segundo Mundos); e, por meio do colonialismo como teoria da modernidade, a visibilização e o protagonismo de sujeitos, histórias, experiências, práticas e valores subalternizados-periferizados em termos do processo de modernização ocidental, que nos explicitariam suas histórias, experiências e visões do que foi e é esse grande, complexo e contraditório processo universalista-globalista que é a modernidade-modernização ocidental que tem no colonialismo seu eixo dinamizador fundamental, apresentando, inclusive, projetos alternativos de desenvolvimento e de integração e, sobretudo, propiciando a crítica, a reflexividade e a correção da modernidade pelo outro da modernidade. Aqui, inverte-se a lógica por trás da autocompreensão normativa da modernidade-modernização ocidental: não é ela que serve como guarda-chuva normativo do outro da modernidade, senão que este, enquanto produto daquela sob a forma da violência simbólico-material colonial, é quem oferece a base paradigmática, de caráter político-normativo, garantidora da crítica, da reflexividade e da emancipação, em que o outro da modernidade é a base para a compreensão e a transformação da modernidade.
Do discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia como uma perspectiva autorreferencial, autossubsistente, autossuficiente, endógena e autônoma
Em que sentido podemos perceber o discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia por si mesma e desde si mesma como uma “monocultura de ideias”, como “um mundo em si”, como “um mundo acachapante que não precisa de colaboração” e que “não abre espaço para que se ofereça uma crítica a essa visão tão completa”, tal como se expressou Ailton Krenak nas epígrafes que abrem este nosso texto? Primeiramente, é interessante de se perceber que a construção de um discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia por si mesma e desde si mesma é uma das chaves-de-leitura fundamentais para a compreensão da atividade teórico-política que dinamiza tanto a filosofia moderna e sua recepção e reestilização na contemporaneidade quanto a emergência e o desenvolvimento das ciências sociais europeias desde meados do século XIX. Sem essa percepção de que é o europeu que se pergunta pela especificidade, pelo caminho e pelos princípios constitutivos de sua – mas também universal – visão de mundo (ou caminho evolutivo), nós não conseguiríamos entender esse espanto com a particularidade-especificidade-singularidade (que é exatamente a sua universalidade) apresentada pela sociedade europeia moderna como ápice em termos de desenvolvimento do espírito humano como (e por meio da) racionalização. Da mesma forma, sem essa percepção de que esse mesmo europeu considera o caminho evolutivo e constitutivo da Europa como o caminho modelar pelo qual se desenvolve – e se desenvolverá – todo o gênero humano, também perderíamos de vista essa característica sui generis do discurso filosófico-sociológico das teorias da modernidade europeias, que, ao apresentar a evolução do gênero humano como um caminho progressivo e marcado por passos, processos, princípios e valores qualitativamente mais emancipatórios, inclusivos e abertos que os momentos anteriores (suprassumindo, inclusive, tais momentos, e com isso, permitindo o olhar do contemporâneo sobre aquilo que já passou e que ele entende, posto que sua sociedade-cultura já vivenciou – e superou – aqueles momentos prévios), têm condições de correlacionar a sua própria evolução-constituição com a evolução-constituição do gênero humano como um todo, imbricando, portanto, modernização e/como gênero humano enquanto tendência, condição e caminho fundamentais, finais desse mesmo gênero humano.
Essas, de todo modo, são a linha e a dinâmica de pensamento fundamentais disso que chamaremos, aqui, de discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia por si mesma e desde si mesma, que dinamizou o grosso das ciências sociais e da filosofia europeias contemporâneas – lembraremos e utilizaremos como exemplares desse discurso Max Weber e, principalmente, Jürgen Habermas, ressalvando o fato de que eles não são os únicos neste vasto leque de autores do primeiro mundo (para usarmos uma expressão da guerra fria que demarca, por exemplo, os textos de Jürgen Habermas, onde ela aparece correlacionada aos dois caminhos evolutivos próprios à modernização europeia e sua evolução direta ao capitalismo tardio, o capitalismo de Estado de bem-estar social e o socialismo de Estado) que efetivamente colocam o modelo de cultura, de instituição e de socialização ocidentais (leia-se: da Europa ocidental e da América do Norte) como uma perspectiva axiológico-metodológica superior, posto que racionalizada, pós-tradicional, pós-convencional (pense-se, por exemplo, ainda em Axel Honneth e Rainer Forst etc., para os quais o conceito de eticidade tradicional, retirado dessa e fundado nessa noção específica de modernização ocidental própria à evolução da sociedade-cultura europeia que alcança o capitalismo tardio, tem um papel central na construção de suas respectivas teorias)..
Nesse sentido, quando rastreamos e reconstruímos o desenvolvimento do gênero humano ao longo do tempo, descambaremos inevitavelmente no fato de que a evolução humana tem um caminho muito, digamos, linear, direto, reto, sendo esse caminho constitutivo-evolutivo marcado, entre outras ideias, pela superação da menoridade e a conquista da maioridade do e pelo gênero humano, pela gradativa obliteração do tradicionalismo e pela consolidação da modernidade como base paradigmática, de menos consciência para mais autoconsciência, de menos racionalidade para mais racionalidade, do contextualismo (próprio ao tradicionalismo) para o universalismo-globalismo (próprio à modernidade), de uma perspectiva essencialista e naturalizada para uma postura eminentemente pós-convencional e pós-tradicional ou pós-metafísica, de caráter político, cultural e histórico. Em outras palavras, há uma intuição por trás do discurso filosófico-sociológico da Europa por si mesma e desde si mesma, a saber, de que a evolução humana vai do tradicionalismo como visão de mundo fechada, contextual, essencialista e naturalizada e, por isso, fundamentalista e dogmática para a modernidade-modernização como uma visão de mundo racionalizada e racionalizante, fundamentalmente universalista, não-egocêntrica e não-etnocêntrica. O discurso filosófico-sociológico da modernidade, por conseguinte, constitui-se na reconstrução normativo-empírica do conjunto de eventos, de valores e de peripécias dessa grande odisseia que é a modernidade-modernização e, em particular, ele representa a autoconsciência que a modernidade-modernização ocidental e seus filhos têm de seu presente, do que foi seu passado e, em tudo isso, do seu significado como ápice do caminho evolutivo – presentemente, em verdade, o seu discurso filosófico-sociológico da modernidade apresenta-se como ponta-de-lança, como interpretação-representação da culminância da evolução humana que é a própria caminhada da e como modernidade-modernização. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o filho da modernidade ocidental reconstrói as matrizes e as dinâmicas que fizeram da Europa isso que ela é hoje, ou seja, efetivo universalismo-globalismo epistemológico-moral de caráter pós-metafísico com base na racionalização, ele tem condições de se colocar, por causa do próprio discurso por ele construído e pela consequente auto-atribuição de universalidade tanto de sua civilização quanto de sua condizente estrutura de pensamento, de fundamentação e de aplicação, como a lupa pela qual a compreensão do passado das demais sociedades-culturas e o enquadramento, a crítica e o repensar do presente de si e do outro da modernidade – com o projetar do futuro que lhes possibilita seu horizonte – são efetivamente feitos por todos e para todos, mas desde a perspectiva epistemológico-política oferecida pelo paradigma normativo da modernidade como universalismo-globalismo pós-metafísico com base na e por meio da razão.
Com efeito, o pressuposto fundamental, a hipótese de pesquisa basilar que demarca a constituição e a dinâmica do discurso filosófico-sociológico da modernidade consiste na associação de modernidade-modernização ocidental, racionalização e/como universalismo, o autêntico universalismo, diga-se de passagem, que não pode ser dado por isso que se convencionou chamar de tradicionalismo, mas somente pela racionalização. Essa associação, na verdade, que é o pressuposto inicial e dinamizador do discurso filosófico-sociológico da modernidade, é acompanhada de outra, que serve como antípoda daquela e que justifica fortemente a singularidade da Europa como universalismo-globalismo via racionalização: trata-se da ideia de que o resto, todo o resto das sociedades-culturas pode ser ensacado na conceituação de tradicionalismo em geral e, aqui, definido pela correlação de fundamentações essencialistas e naturalizadas, contextualismo estrito, fundamentalismo e dogmatismo. No primeiro caso, o da associação de modernidade-modernização, racionalização e/como universalismo-globalismo (que é a tendência fundamental do gênero humano, como argumentaremos mais adiante a partir de Habermas), gera-se uma perspectiva aberta, não-egocêntrica e não-etnocêntrica, independente e sobreposta às malhas do contextualismo, possibilitando-se crítica, mobilidade social e transformação política, a partir do enquadramento e da dissecação das tradições; no segundo, institui-se uma postura fechada, egocêntrica e etnocêntrica, impedindo-se grandemente a crítica, a mobilidade e a transformação, dado que bases essencialistas e naturalizadas ossificam a cultura, despolitizando a sociedade, seus sujeitos, suas práticas e seus valores basilares.
Assim, o começo e a pressuposição de fundo do discurso filosófico-sociológico da modernidade – isto é, as correlações de modernidade-modernização, racionalização e universalismo-globalismo e de tradicionalismo, contextualismo e fundamentalismo, com sua consequente oposição – apontam para quatro núcleos epistemológico-políticos fundamentais desse mesmo discurso, que passam a constituir isso que chamamos aqui de autocompreensão normativo-antropológica da modernidade europeia por si mesma e desde si mesma: (a) seu caráter salvífico, enquanto sociedade-cultura-consciência pós-metafísica ou pós-tradicional ou pós-convencional que gera – ela e somente ela – o universalismo epistemológico-moral, concomitantemente ao sentido particular, contextualista e fechado (e por isso grandemente acrítico) do tradicionalismo em geral, próprio de todas as outras sociedades-culturas; (b) sua singularidade como que absoluta, posto que somente na modernidade ocidental essa correlação de racionalização cultural-axiológica e de universalismo-globalismo teria se desenvolvido e encontrado maturação; (c) sua autorreferencialidade, sua auto-subsistência e sua endogenia, uma vez que o processo de modernidade-modernização ocidental é um trabalho da razão por si mesma e desde si mesma, desde dentro de si mesma (como contendo todos os momentos evolutivos do próprio gênero humano como um todo), isto é, da Europa por si mesma e desde si mesma (descambando diretamente para o, no padrão constitutivo-evolutivo das sociedades do capitalismo tardio, de eticidade pós-tradicional), como um mundo efetivamente fechado e completo; e, não obstante essa autorreferencialidade, (d) a associação de modernidade-modernização, racionalismo, universalismo-globalismo e/como gênero humano, a modernidade-modernização, em sua evolução, em sua condição e em sua constituição internas, como significando a evolução, a condição e o núcleo constitutivos e dinâmicos do gênero humano como um todo – colocando-se, por conseguinte, a evolução do gênero humano como modernização, de modo que esta passa a ser a base normativa para o enquadramento de si mesma, mas também do gênero humano de um modo geral e das sociedades-culturas fora da modernidade em particular..
De fato, o discurso filosófico-sociológico da modernidade começa, no caso de Max Weber, com um real espanto acerca da singularidade da Europa moderna quando comparada a todas as outras sociedades-culturas, singularidade essa que evidentemente deve ser explicada. Ora, e qual seria o núcleo dessa especificidade como que absoluta da Europa moderna que a diferencia essencialmente das outras sociedades-culturas? Weber responde: a correlação de racionalização, historicidade e universalismo. Senão vejamos:
O filho da moderna civilização ocidental, que trata de problemas histórico-universais, o faz de modo inevitável e lógico a partir da seguinte dinâmica: que encadeamento de circunstâncias possibilitou que aparecessem no Ocidente, e somente no Ocidente, fenômenos culturais (pelo menos como os representamos a nós) que apresentam uma direção evolutiva de alcance e de validade universais?” (WEBER, 1984, p. 11; os destaques são nossos).
Note-se essa ênfase importante, por parte de Weber: o filho da modernidade não pode deixar de se admirar de sua singularidade, que, como dissemos acima, é marcada por uma cultura em que há uma relação intrínseca entre historicidade e universalismo. Essa relação certamente destoa da compreensão metafísico-teológica própria à tradição filosófica ocidental que, não por acaso, Weber e, depois, em sua esteira, Habermas acreditam ter sido superada pela modernização como racionalização cultural-comunicativa, como queda – sob a forma de racionalização – das imagens mítico-religiosas e/ou metafísico-teológicas de mundo. Ora, esse ponto é importante: o universalismo epistemológico-moral tradicionalmente foi pensado e legitimado pelo argumento da objetividade da realidade, que existiria em si mesma e por si mesma, independentemente da consciência humana (esta, de todo modo, estaria ligada àquela, dependente daquela), tendo um sentido essencialista e naturalizado baseado, em última instância, na ontoteologia (metafísica clássica e/ou ontologia-teologia medieval), ou pelo argumento da natureza humana enquanto razão normativa, que produz, como núcleo e dinâmica fundantes, representações objetivas sobre o mundo e sobre o homem (antropologia moderna). Em ambos os caso, um profundo sentido a-histórico, essencialista e naturalizado serviria de base ao universalismo epistemológico-moral, o que confundiria comunidade ética, cultural e étnica com o próprio universalismo, dando-lhe, inclusive, contornos biologicistas e teológicos. Como vimos pela afirmação de Weber, a modernização ocidental enquanto racionalização das imagens metafísico-teológicas de mundo leva exatamente a uma perspectiva historicista no que tange à compreensão e à fundamentação dos valores, mas, não obstante isso (ou mesmo por causa disso), conduz ao universalismo epistemológico-moral, no sentido de que a cultura e a consciência cognitivo-moral do homem moderno sempre colocam a pergunta pelo universal e desde um prisma universal como a dinâmica e o mote de sua compreensão e de sua ação no mundo. De todo modo, essa autocompreensão normativa do homem moderno é o ponto a ser explicitado, a ser provado pelo discurso filosófico-sociológico da modernidade por si mesma e desde si mesma, isto é, de que somente ela é, ao mesmo tempo, universalista e/porque historicista, ao passo que as demais sociedades-culturas são contextualistas e/porque tradicionalistas, no sentido de que, nestas, fundamentações essencialistas e naturalizadas possuem um caráter a-histórico, eminentemente localista, constituindo-se como o cerne dos processos de socialização e de subjetivação. Qual a causa dessa diferenciação entre a modernidade europeia como universalismo e todo o resto das sociedades-culturas como tradicionalismo-contextualismo, para Weber? A resposta foi dada acima: a racionalização cultural como característica e postura fundamentais da dinâmica própria à e geradora e orientadora da modernização. Mais uma vez é Max Weber que nos fala, mas agora apontando diretamente para a diferenciação estrita entre a singularidade moderna e todo o resto das sociedades-culturas com base na, por causa da racionalização. Ele questiona:
Por que, nestes lugares, não ocorreram seja a evolução científica, seja o desenvolvimento da ciência, seja o desenvolvimento da arte e do Estado, assim como o da economia, pelos caminhos da racionalização que são característicos do Ocidente? Pois é evidente que, em todos os casos mencionados, se trata de um “racionalismo” de tipo especial da cultura ocidental (WEBER, 1984, p. 20; o destaque é de WEBER).
O que gostaríamos de salientar, nessa passagem, é o fato de que tal singularidade é, muito mais do que uma delimitação teórica de um objeto de pesquisa específico, situação muito própria ao trabalho de pesquisa científico, uma pressuposição epistemológico-política, um juízo de valor sobre o que constitui e o que é esse mesmo Ocidente. Com efeito, o Ocidente é singular nessa sua correlação de racionalização, de historicismo e de universalismo, e devemos investigá-lo, uma vez que ele destoa de outro padrão normal de sociedade-cultura, o tradicionalismo em geral. Mas de qual Ocidente estamos falando? Evidentemente da Europa moderna, que se desenvolve e se consolida gradativa e progressivamente a partir do século XVII – aqui nenhuma palavra foi dita, por exemplo, acerca do colonialismo, da imbricação de modernização e colonialismo, pois simplesmente se assumiu que a modernidade-modernização é primariamente um fenômeno europeu que tem como caminho evolutivo, já no século XX, a Europa ocidental e a América do Norte (sociedades do capitalismo tardio), além de, como seu outro caminho falido, o socialismo de Estado. Habermas, utilizando essa pressuposição da teoria da modernidade de Max Weber, isto é, da singularidade absoluta da Europa nessa correlação de racionalismo, historicismo e universalismo, é bem claro ao afirmar que a Europa moderna constitui-se, por meio da racionalização cultural-comunicativa, como uma estrutura societal-cultural e uma forma de consciência cognitivo-moral descentralizada, pós-convencional, pós-tradicional e/ou pós-metafísica, querendo com isso significar que seu universalismo epistemológico-moral funda-se exatamente na correlação de racionalização e de historicismo de que falava Weber enquanto característica fundamental dessa mesma Europa moderna. E, evidentemente, Habermas vai mais longe: somente essa forma de universalismo epistemológico-moral é efetivamente universal, posto seu qualificativo como pós-metafísico. Como ele diz enfaticamente, enquanto seu ponto de partida fundamental e definidor da constituição da teoria da modernidade europeia como universalismo-globalismo pós-metafísico: “[...] o nível pós-tradicional da consciência se torna acessível em uma cultura, e mais precisamente na cultura europeia [...]” (HABERMAS, 2012a, p. 355; os destaques são de Habermas)..
Ora, em que sentido Habermas vai mais longe do que Weber? No fato de que Habermas não está apenas construindo uma interpretação do fenômeno da modernização europeia e de seu caminho evolutivo ao capitalismo tardio (Europa ocidental e América do Norte), senão que também está afirmando que a modernização como racionalização cultural, que leva a uma estrutura societal-cultural e a uma consciência cognitivo-moral pós-tradicionais, é o caminho evolutivo fundamental ao próprio gênero humano. Sua interpretação da modernização ocidental é acompanhada de uma fundamentação normativa que trabalha com a evolução do próprio gênero humano a partir da linguagem como médium basilar na constituição e no desenvolvimento deste (cf.: HABERMAS, 2004a, p. 31; HABERMAS, 1997, p. 140-154; HABERMAS, 1999, p. 31; HABERMAS, 1990a, p. 11-20). Com isso, Habermas julga eliminar o sentido etnocêntrico do discurso filosófico-sociológico da modernidade ao assumir uma fundamentação normativo-antropológica que – sob o nome de ética comunicativa – defende que a linguagem é o núcleo constitutivo, dinamizador e evolutivo fundamental do gênero humano como um todo, colocando-se, aqui, a racionalização do mundo da vida como o princípio basilar em termos da intermediação dos processos de socialização e de subjetivação próprios a cada comunidade humana e, por isso mesmo, como garantidor e justificador do universalismo epistemológico-moral pós-metafísico que a modernidade gera e assume em cheio, mas que também é princípio basilar e dinâmica evolutiva, ainda que de modo menos intenso, de todas as outras sociedades-culturas (a racionalidade cultural-comunicativa, portanto, não é uma condição apenas da Europa, mas de todas as outras sociedades-culturas), como explicaremos mais adiante. Por ora, é importante, no caso de Habermas, enfatizar-se que seu discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia, assumindo o espanto weberiano sobre o sentido específico da Europa relativamente a todas as outras sociedades-culturas e utilizando-se dessa singularidade como princípio valorativo fundamental para a construção do discurso filosófico-sociológico da modernidade-modernização por si mesma e desde si mesma, parte da diferenciação entre visão de mundo moderna e visão de mundo tradicional, afirmando exatamente que a primeira é racional e geradora de racionalização, descambando para o universalismo, ao passo que a segunda não seria racional e nem geraria efetiva racionalização social, permanecendo contextualista. Vejamos uma passagem de Teoria do Agir Comunicativo acerca disso, antes de continuarmos com nossas reflexões:
À medida que procuramos aclarar o conceito de racionalidade com base no uso da expressão “racional”, tivemos de nos apoiar sobre uma pré-compreensão que se encontra ancorada em posicionamentos modernos da consciência. Até o momento, partimos do pressuposto ingênuo de que na compreensão de mundo moderna expressam-se certas estruturas da consciência que pertencem a um mundo da vida racionalizado e por princípio possibilitam uma condução racional da vida. Implicitamente, relacionamos à nossa compreensão de mundo ocidental uma pretensão de universalidade. Para entender o significado dessa pretensão de universalidade, recomenda-se fazer uma comparação com a compreensão de mundo mítica. Em sociedades arcaicas, os mitos cumprem de maneira exemplar a função unificadora própria às imagens de mundo. Ao mesmo tempo, no âmbito das tradições culturais a que temos acesso, eles proporcionam o maior contraste em relação à compreensão de mundo dominante em sociedades modernas. Imagens de mundo míticas estão muito longe de nos possibilitar orientações racionais para a ação, no sentido em que as entendemos. No que diz respeito às condições da condução racional da vida no sentido anteriormente apontado, constituem até mesmo uma contraposição à compreensão de mundo moderna. Portanto, na face do pensamento mítico não teriam de se fazer visíveis os pressupostos do pensamento moderno tematizados até o momento (HABERMAS, 2012a, p. 94; os grifos são nossos).
Aqui aparece, portanto, como ponto de partida da teoria da modernidade habermasiana, (a) um conceito restrito de modernidade ocidental, associado diretamente à Europa moderna (e, depois, como veremos, às sociedades do capitalismo tardio, ao Primeiro e Segundo Mundos, no jargão da Guerra Fria).; (b) a associação entre modernidade, racionalização e universalismo; (c) a contraposição entre modernidade (como singularidade absoluta – só existe ela enquanto moderna, isto é, enquanto correlação de racionalização, historicidade e universalismo) e todo o resto das sociedades-culturas como tradicionalismo em geral (e a consequente associação de tradicionalismo, contextualismo, fundamentalismo-dogmatismo, por causa da centralidade das bases essencialistas e naturalizadas, nesse modelo de sociedade); e (d), por fim, dois pontos que são fundamentais para entendermos a afirmação de Ailton Krenak de que o Ocidente é uma sociedade fechada e completa, a saber, a modernização como etapa antropológica evolutivamente superior ao tradicionalismo (colocando-se, por isso mesmo, como a verdade e o caminho, talvez até o juiz, do tradicionalismo), bem como a compreensão de que o processo de modernização é um processo endógeno, autorreferencial, autônomo e autosubsistente da Europa por si mesma e desde si mesma, sem menção ao outro da modernidade (produzindo, na verdade, o outro da modernidade como tradicionalismo em geral) e, ao fim e ao cabo, descambando, não obstante essa singularidade e essa endogenia, para o próprio ápice do desenvolvimento do gênero humano como um todo, a racionalização como princípio, caminho e apogeu do gênero humano, não apenas da Europa – de modo que o discurso filosófico-sociológico da modernidade pela modernidade vai de si para o universalismo-globalismo, colocando-se, em verdade, como universalismo-globalismo.
Como vimos na passagem acima, a Europa moderna carrega uma pretensão de universalidade de suas estruturas societais-culturais e de sua forma de consciência cognitivo-moral, sendo racional e geradora de racionalização social; em contrapartida, as sociedades tradicionais, de base metafísico-teológica, são pouco ou nada racionais, e nem geram racionalização social intensificada, colocando-se, portanto, como contextualistas, fechadas, dogmáticas e fundamentalistas. Em que sentido a modernidade europeia é racional e geradora de racionalização social, levando a uma perspectiva universalista de caráter pós-metafísico, pós-tradicional e pós-convencional? Como dissemos acima, para Habermas (e também para WEBER), a modernização é caracterizada e dinamizada pela racionalização cultural-comunicativa, o que significa que a sociedade e a cultura perdem seu caráter essencialista e naturalizado, tornando-se historicizadas e, assim, politizadas. Como consequência, a sociedade-cultura deixa de ser orientada a partir de instituições e de autoridades fortemente centralizadas, pluralizando os sujeitos epistemológico-políticos, sob a forma de uma subjetividade reflexiva acentuada que recusa uma perspectiva absolutista e teocrática relativamente à justificação das instituições, da autoridade, dos valores e das práticas – tudo passa pela subjetividade reflexiva e fundante. Ora, em uma sociedade politizada, na qual já não se pode mais recorrer a bases essencialistas e naturalizadas, somente o diálogo entre os indivíduos e os grupos sociais, fundado no melhor argumento e no respeito e na consideração recíprocos, bem como na politização abrangente, inclusiva e participativa, pode servir como médium seja da interação social, seja da validação de normas e de práticas vinculantes. Ora, como os indivíduos e os grupos modernos já não podem mais recorrer a perspectivas tradicionalistas, de cunho essencialista e naturalizado, como também o poder precisa ser justificado por e para todos/as os/as concernidos/as e envolvidos/as por/sobre ele, esses sujeitos precisam argumentar de maneira abstrata, independente e sobreposta às bases essencialistas e naturalizadas, levando em conta a alteridade em sua completa diferença, levando em conta os interesses e as condições dos demais indivíduos e grupos sociais. É nesse sentido que a cultura europeia moderna é racional e geradora de racionalização social: ela leva a que os indivíduos e os grupos substituam valores e práticas tradicionais pela política profana e secularizada, assumindo uma postura reflexiva de cunho não-egocêntrico e não-etnocêntrico relativamente à fundamentação de valores e de práticas socialmente vinculantes, em que a argumentação e o acordo intersubjetivos, calcados na neutralidade, na imparcialidade e na impessoalidade, são os únicos caminhos para a legitimação do poder, das normas e das práticas, bem como das próprias instituições. O modelo europeu de homem, calcado na racionalização, pensa na humanidade, enquanto ideia genérica, antes que desde uma perspectiva contextualista e etnocêntrica. Por isso mesmo, consequência da racionalização da cultura, da secularização das instituições e da consolidação da subjetividade fundante e reflexiva, tem-se, como base da modernidade, uma politização abrangente, inclusiva e participativa e a instauração de um procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal enquanto base da socialização e da subjetivação da sociedade-cultura moderna. É por isso, aliás, que há, nela, crítica social, mobilidade social, resistência e transformação culturais e emancipação política. Como nos diz Habermas, “[...] a descentração da compreensão de mundo e a racionalização do mundo da vida são condições necessárias para uma sociedade emancipada” (HABERMAS, 2012a, p. 146; o destaque é nosso).
As sociedades tradicionais, em contrapartida, por possuírem bases essencialistas e naturalizadas, ou mítico-religiosas, ou metafísico-teológicas, são marcadas pela férrea imbricação entre natureza, sociedade-cultura e individualidade, de modo que a natureza torna-se antropomorfizada e assume um cunho mágico-animista, a sociedade, seus sujeitos, suas relações e seus valores tornam-se naturalizados e, como consequência, a subjetividade é praticamente anulada dentro do âmbito e da dinâmica própria a essas mesmas bases essencialistas e naturalizadas. Logo, nessas sociedades, não há crítica e nem mobilidade sociais, não há resistência cultural e nem transformação política acentuadas, posto que (a) a cultura permanece naturalizada e, por isso, despolitizada, bem como (b) não ocorre a emergência de uma subjetividade reflexiva e fundante que, ao estilo da subjetividade moderna, coloca a natureza como um mundo objetivo ao estilo da res extensa, no mesmo passo em que concebe a sociedade-cultura como uma construção dos próprios seres humanos em sua interação cotidiana. No tradicionalismo, a sociedade-cultura não é reconhecida e nem afirmada como uma construção humana, senão como algo posto de modo a-histórico e verticalizado, situação que leva à despolitização geral, ao imobilismo das estruturas sociais, à ausência de crítica e de transformação. Segundo Habermas, “na medida em que se interpreta o mundo da vida de um grupo social por meio de uma imagem de mundo mítica, priva-se o participante individual tanto do ônus da interpretação quanto da chance de aproximar-se de um comum acordo criticável” (HABERMAS, 2012, p. 140). Aqui, portanto, está a diferença estrutural entre o modelo cultural moderno, calcado na e dinamizado pela racionalização, e o modelo cultural próprio ao tradicionalismo, fundado em bases essencialistas e naturalizadas: ao passo que o primeiro possibilita politização abrangente, historicização estrutural, secularização da cultura e a consolidação de uma subjetividade reflexiva que se coloca como a base da legitimação da normatividade socialmente vinculante, dos acordos políticos em geral, o segundo gera e reproduz imobilismo, fundamentalismo e dogmatismo; ao passo que o primeiro possibilita uma perspectiva não-egocêntrica e não-etnocêntrica, calcada na queda das fundamentações essencialistas e naturalizadas, o segundo, exatamente por depender destas, faz com que os indivíduos e grupos fiquem presos nas malhas do contextualismo, pensando-agindo de modo egocêntrico-etnocêntrico:
Até o momento, discutimos o “fechamento” das imagens de mundo míticas sob dois pontos de vista: primeiro, sob o ponto de vista da diferenciação deficiente que há entre as atitudes fundamentais em face dos mundos objetivo, social e subjetivo; segundo, sob o ponto de vista da reflexividade falha dessa imagem de mundo, que não se pode identificar enquanto imagem de mundo, enquanto produto da tradição cultural. Imagens de mundo míticas não são entendidas pelos envolvidos como sistemas interpretativos atrelados a uma tradição cultural, constituídos por nexos internos de sentido, simbolicamente referidos à realidade, vinculados a pretensões de validade e, portanto, passíveis de crítica e aptos à revisão (HABERMAS, 2012a, p. 109).
Por outras palavras, mundos da vida tradicionais, uma vez que estão fundados em bases essencialistas e naturalizadas, possuem uma perspectiva apolítica-despolitizada que, em grande medida, permanece imune à crítica, à politização e à transformação e, principalmente, não conseguem alcançar o ponto de visa universal da consciência cognitivo-moral, exatamente por que essa mesma cultura tradicional é incapaz de gerar racionalização abrangente: os indivíduos e os grupos sociais agem, em geral, a partir da dependência própria ao contexto e a esses valores essencialistas e naturalizados de que falamos acima, não conseguindo autonomia e reflexividade para se compreenderem e, principalmente, se posicionarem para além dessa dependência estrutural. Com isso, conforme Habermas informou acima, se pode ver que há uma diferença estrutural clara entre a visão de mundo moderna, calcada na racionalização, e a visão de mundo tradicional, calcada em fundamentos essencialistas e naturalizados, o que aponta para a universalidade da primeira, de caráter pós-tradicional e pós-metafísico, e para o contextualismo da segunda, de cunho mítico-religioso ou metafísico-teológico. A partir disso, Habermas pode seguir com a conceituação da modernidade-modernização ocidental como um fenômeno eminentemente endógeno, autônomo e autorreferencial da Europa por si mesma e desde si mesma, descambando diretamente para o modelo de socialização próprio às sociedades do capitalismo tardio ou Primeiro Mundo [lembrando que Habermas escreve sua teoria da modernidade-modernização ocidental no contexto da Guerra Fria e, por isso mesmo, as duas tendências evolutivas que ele vê como base de sua teoria da modernidade, como consequência da modernidade europeia, são (a) o capitalismo tardio, isto é, as democracias de massa do Estado de bem-estar social, e (b) o socialismo de Estado soviético – desenvolveremos esse argumento mais adiante]. Ora, e o que significa essa nossa afirmação de que o conceito e o processo de modernidade-modernização ocidental é, em Habermas, percebido e afirmado desde essa perspectiva autorreferencial, autossubsistente, endógena e autônoma, um movimento-esforço-caminho da Europa por si mesma e desde si mesma?
Ela significa exatamente que Habermas pode conceber o processo de constituição e de desenvolvimento da modernidade-modernização europeia com base em dinâmicas, sujeitos, instituições e princípios internos a essa mesma sociedade europeia, sem qualquer referência ao outro da modernidade e, em verdade, restringindo esse mesmo processo a algo que é apenas interno à Europa. Com efeito, o outro da modernidade apareceu na teoria da modernidade, mas apareceu como o antípoda desta, como uma outra forma de evolução e de constituição que esta não é, que esta superou – obviamente com a própria modernidade-modernização europeia constituindo-se em uma base societal-cultural e epistemológico-moral que o outro da modernidade não é, não alcançou. E, assim, seu papel torna-se periférico, um tema sobre o qual a teoria da modernidade europeia não falará mais e, o que é ainda mais surpreendente, um tema completamente desligado do próprio processo de expansão colonial da modernidade europeia, uma vez que se pressupôs esse conceito restrito de modernidade, que significa e implica apenas a Europa moderna (e, depois, sua consequência, o Primeiro Mundo, o capitalismo tardio, a eticidade pós-tradicional, novamente como singularidade absoluta). Por isso mesmo, Habermas pode definir o processo de modernidade-modernização ocidental ou europeia como correlação, separação e tensão entre modernidade cultural e modernização econômico-social, entre racionalidade cultural-comunicativa e racionalidade instrumental, entre mundo da vida e sistemas sociais (Estado e mercado capitalista), de modo a assumir um conceito restritivo, fechado e autossubsistente de modernidade-modernização ocidental que vai da Europa para o Primeiro Mundo, para o capitalismo tardio, para a eticidade pós-tradicional ou pensamento pós-metafísico. Assim, o discurso filosófico-sociológico da modernidade-modernização europeia pode conceber essa dinâmica restritiva, fechada, autorreferencial e autossubsistente da modernização do seguinte modo:
(p) O desenvolvimento das sociedades modernas, que são acima de tudo capitalistas, exige a incorporação institucional e a ancoragem motivacional de ideias morais e jurídicas de tipo pós-tradicional;
(q) Além disso, a modernização capitalista segue um padrão segundo o qual a racionalidade cognitivo-instrumental não se limita às esferas da economia e do Estado, alastrando-se para outros domínios da vida, estruturados comunicativamente, em que consegue obter a primazia à custa da racionalidade prático-moral e prático-estética;
(r) Esse fator provoca perturbações na esfera da reprodução simbólica do mundo da vida (HABERMAS, 2012, p. 551).
Perceba-se, portanto, na passagem acima, que Habermas está definindo o processo de modernidade-modernização ocidental como um fenômeno endógeno à Europa, específico a ela, enquanto correlação, separação e tensão-contradição entre mundo da vida e sistemas sociais, cultura e civilização material, racionalidade cultural-comunicativa e racionalização social, modernidade cultural e modernização econômico-social – essa é toda a dinâmica e este é todo o sentido da modernidade-modernização ocidental. Nem uma palavra sobre o colonialismo, sobre a relação entre modernidade e colonialismo, sobre as periferias da modernização! Naquela que é considerada a obra magna de Habermas, em que de fato se realiza uma refundação normativa da modernidade, sob a forma de racionalidade cultural-comunicativa e de pensamento pós-metafísico, e uma crítica à herança da teoria social moderna relativamente a um conceito estreito de modernização (correlacionado apenas, no entender de Habermas, à modernização econômico-social, ao Estado burocrático-administrativo e ao mercado capitalista, à razão instrumental), vemos a emergência e a defesa de outro conceito restritivo – e perpassado por uma enorme cegueira histórico-sociológica – de modernidade-modernização ocidental, agora marcado pelo silenciamento sobre o e pelo apagamento do colonialismo como parte fundante e constitutiva desse mesmo processo de modernidade-modernização ocidental. Aqui, a modernidade é só europeia, um fenômeno interno, endógeno, autorreferencial, autônomo e autossubsistente, um esforço e um caminho da Europa por si mesma e desde si mesma, que chega diretamente ao Primeiro Mundo. Nele, o outro da modernidade não tem lugar e, em verdade, parece ter uma dinâmica evolutiva e constitutiva totalmente diferente, seguindo caminhos outros que os da modernidade-modernização ocidental, isto é, europeia, do Primeiro Mundo, não tendo relação direta com ela, não havendo dependência e influenciação mútuas.
No discurso filosófico-sociológico da modernidade-modernização europeia, a modernidade começa como racionalização cultural-comunicativa, isto é, como secularização cultural-institucional e emergência e centralidade da individualidade reflexiva e fundante, situação que leva à descentralização da sociedade, à politização do poder e à tecnicificação da natureza, o que significa o surgimento de pelo menos três ordens de valores propriamente modernas, cada qual com uma dinâmica específica de fundamentação, a perspectiva técnico-epistemológica, a prático-moral e a estético-expressiva. Ora, uma vez que a sociedade é descentralizada e que existem diferentes dimensões de valores, com suas respectivas fundamentações, emergem gradativamente diferentes sistemas sociais, mormente o Estado burocrático-administrativo e o mercado capitalista, que centralizam, monopolizam e tecnicizam (despolitizando) suas áreas específicas de atuação, que passam a ser dotadas de uma lógica de funcionamento eminentemente técnica e ela também autorreferencial e autossubsistente, não-política e não-normativa, lógica essa diferenciada relativamente ao mundo da vida, de racionalidade cultural-comunicativa e, por conseguinte, de reprodução normativa. Com o tempo, a lógica sistêmica ultrapassa as fronteiras das instituições Estado e mercado, adentrando no mundo da vida, colonizando-o em termos de reificação, substituindo a centralidade dos valores de uso pela centralidade dos valores de troca. Ainda que sintética, essa é a compreensão habermasiana do processo de modernidade-modernização europeu, ou seja, repetimos mais uma vez, correlação, separação e tensão-contradição entre sistema e mundo da vida. Daqui advém a especificidade (racionalidade normativa e racionalidade técnica), a dinâmica (mutualidade e tensão recíproca), a potencialidade (reflexividade acentuada) e as patologias (reificação lógico-técnica) próprias à modernização europeia.
Note-se, entretanto, este ponto: a modernidade cultural (a racionalidade cultural-comunicativa) é anterior ontogeneticamente falando frente à modernização econômico-social (racionalidade instrumental); aquela gerou esta, mas não é responsável pelas patologias desta, senão que as patologias da modernização ocidental são culpa exclusiva da modernização econômico-social, ou seja, do Estado burocrático-administrativo (e sua patologia básica: a burocratização) e do mercado capitalista (e sua patologia básica: a monetarização). A modernidade cultural aparece intocada, pura, sem qualquer mancha em termos de patologias e, por isso mesmo, dado seu caráter ontogeneticamente primário, dado seu sentido racional e gerador de racionalização social, dado seu caráter universalista em termos pós-metafísicos, como descentração da cultura e da consciência cognitivo-moral, ela assume um sentido altamente reflexivo sobre si em primeiro lugar (em termos de gerar o universalismo epistemológico-moral sob a forma de postura não-egocêntrica e não-etnocêntrica), bem como, em segundo lugar, sobre os próprios sistemas sociais, por um duplo motivo: (a) os sistemas sociais estão situados dentro do âmbito maior composto, representado pelo mundo da vida, ou seja, a técnica não apenas foi possibilidade pela normatividade, senão que está subsumida nesta, tendo de prestar contas a ela; e, nesse diapasão, (b) a reprodução normativa do mundo da vida permite um quadro referencial para se avaliar seja o tipo, o sentido e a intensidade das patologias lógico-técnicas, seja o tipo de correção político-normativa necessário para a reorientação dos sistemas sociais em sua relação para com o mundo da vida (cf.: HABERMAS, 2012b, p. 705; HABERMAS, 2003b, p. 83-84). Em suma, por politizar a cultura, por levar à formação de uma consciência cognitivo-moral descentrada, não-egocêntrica e não-etnocêntrica e, finalmente, por ser anterior ontogeneticamente aos (e a condição para a emergência) dos sistemas sociais lógico-técnicos, a modernidade cultural (ou racionalidade cultural-comunicativa) gera crítica, reflexividade e transformação, tornando-se autocorretiva desde dentro, de modo que a modernidade, nessa interpretação dual que dela faz Habermas – correlação, separação e tensão-contradição entre mundo da vida e sistemas sociais – é capaz de enfrentar de si por si mesma todos os seus problemas internos, autocriticando-se e autocorrigindo-se. Vejamos, sobre isso, três passagens breves da Teoria do Agir Comunicativo de Habermas, que explicitam (a) a modernidade cultural europeia como estrutura societal-cultural e forma de consciência cognitivo-moral universalista, de caráter pós-tradicional, descentrado, (b) a capacidade de autocorreção, de autorreflexividade e de autotransformação internas da modernidade cultural por si mesma e desde si mesma, exatamente por causa da descentração da cultura (isto é, da independência que os sujeitos sociopolíticos modernos têm em relação à sua cultura, a todas as culturas, na verdade), e (c) tanto o caráter primário ontogeneticamente falando da modernidade cultural em relação à modernização econômico-social quanto a definição restrita de modernidade-modernização ocidental como correlação, separação e tensão-contradição entre modernidade cultural (normatividade) e modernização econômico-social (tecnicalidade). A primeira das passagens diz o seguinte:
Ao utilizar dessa maneira o conceito piagetiano de descentração como fio condutor para esclarecer o nexo interno entre as estruturas de uma imagem de mundo – do mundo da vida enquanto contexto para os processos de entendimento – e as possibilidades de uma condução racional da vida, deparamos mais uma vez com o conceito de racionalidade comunicativa. Este refere a compreensão de mundo descentrada à possibilidade de solvência discursiva de pretensões de validade criticáveis (HABERMAS, 2012a, p. 142).
A segunda:
As mesmas estruturas que possibilitam o entendimento também cuidam da possibilidade de um autocontrole reflexivo do processo de entendimento. É esse potencial de crítica alojado no próprio agir comunicativo que o cientista social pode usar sistematicamente ao se envolver como participante virtual nos contextos do agir cotidiano, bem como validá-lo, a partir dos diversos contextos, contra a particularidade deles mesmos (HABERMAS, 2012a, p. 227; os destaques são de Habermas).
A terceira:
Da perspectiva conceitual do agir orientado pelo entendimento, portanto, a racionalização aparece primeiro enquanto reestruturação do mundo da vida, enquanto um processo que, pela autonomização e pela diferenciação dos sistemas de saber, influencia as comunicações do dia a dia, apreendendo dessa maneira as formas de reprodução cultural, bem como da integração social e da socialização. Sob esse pano de fundo, o surgimento de subsistemas de ação racional-teleológico adquire outro status, se comparado ao que tinha no contexto da investigação weberiana. [...] a racionalização do mundo da vida torna possível uma espécie de integração sistêmica que entra em concorrência com o princípio integrativo do entendimento e, de sua parte e sob determinadas condições, retroage no mundo da vida de modo desintegrador (HABERMAS, 2012a, p. 588-591. Cf., ainda: HABERMAS, 2012b, p. 587-597)10.
A cultura europeia moderna é descentrada exatamente porque, estando fundada na e sendo dinamizada pela racionalização cultural-comunicativa, retira e enfraquece as bases essencialistas e naturalizadas próprias ao tradicionalismo enquanto fundamento vinculante da correlação socialização-subjetivação e, com isso, politiza e pluraliza a sociedade. Não há mais um poder e uma ordem centralizados e unidimensionais, garantidores da objetividade e da justificação, mas apenas a própria ação intersubjetiva dos e entre os indivíduos e grupos socioculturais em sua pluralidade, em sua heterogeneidade. Estes, uma vez que já não podem mais contar com bases essencialistas e naturalizadas, têm de fundamentar por si mesmos e desde si mesmos, e a partir do diálogo e da interação permanentes, da construção e da revisão pungentes das normas e das práticas socialmente vinculantes, sua vida cotidiana e os princípios comuns da convivência. Como vimos acima, esses indivíduos, ao não poderem mais apelar a bases metafísico-teológicas, têm de utilizar conceitos genéricos ou formais (a humanidade, e não mais a comunidade de sangue e de cultura, por exemplo) e argumentar e agir a partir de valores impessoais, imparciais e neutros, desde uma perspectiva não-egocêntrica e não-etnocêntrica, de modo a conseguir o consenso. Isso gera a separação dos indivíduos e dos grupos sociais modernos relativamente à cultura de que fazem parte, isto é, a descentração de que fala Habermas, no sentido de que basta-lhes apelar a conceitos formais e a valores imparciais, impessoais e neutros para sua fundamentação e ação no mundo – ainda que participantes de um mundo da vida, esses mesmos indivíduos e grupos modernos sabem, conseguem e querem transcender sua cultura, alcançando o universalismo. É nesse sentido, inclusive, que a cultura moderna gera reflexividade sobre si e sobre as instituições: ela politiza a tudo e todos, ela exige ação social ampliada como condição da validade e da transformação, colocando nas mãos dos indivíduos dentro de um contexto plural sua própria responsabilidade sobre a construção e a validação das normas, das práticas, dos valores e das instituições sociais – por isso Habermas afirmou, em uma das passagens acima, que, quando estudamos o processo de modernização ocidental, é o conceito de racionalidade cultural-comunicativa, de ação comunicativa que aparece em cheio como sua base fundante e dinamizadora em termos de socialização-subjetivação. Note-se, ademais, que a compreensão dualista da modernidade ocidental ou europeia, utilizada por Habermas, independentiza a cultura relativamente aos sistemas sociais, não apenas no sentido de que aquela é a base ontogenética destes, mas também em termos de que ela não é responsável pelas patologias destes, podendo, por isso mesmo, enquadrá-los e reorientá-los – por isso que, noutra daquelas passagens, Habermas se refere ao fato de que a ação comunicativa ou a racionalidade cultural-comunicativa permite o controle reflexivo da interação social, uma vez que (a) ela exige permanente crítica, diálogo e contraposição justificados, bem como (b) ela é ontogeneticamente falando mais basilar que a racionalidade técnica própria aos sistemas sociais (a racionalidade cultural-comunicativa é a base para a constituição, a justificação e a evolução da sociedade moderna). Com isso, a modernidade cultural pode enquadrar, criticar, corrigir, reorientar os sistemas sociais desde dentro. Essa é a primeira faceta da ideia de que a modernidade é autocorretiva desde dentro, relativamente às suas patologias – a modernidade não necessita de nada nem de ninguém externos a si mesma, isto é, entre outras coisas, ela não precisa do outro da modernidade para sua correção interna (embora o contrário não seja verdadeiro, como veremos logo a seguir). Mas também há outra faceta desse sentido autocorretivo da modernidade, e ela foi expressa na primeira das duas passagens acima, quando Habermas mencionou que o pesquisador social pode utilizar o conceito de racionalidade cultural-comunicativa como perspectiva descentrada para avaliar culturas particulares, contra o contextualismo dessas mesmas culturas. O que ele quer dizer, na verdade, é que o paradigma normativo da modernidade serve para enquadrar os próprios processos de socialização e as dinâmicas institucionais do não-moderno, como também já veremos.
Em síntese, o primeiro ponto fundamental do discurso filosófico-sociológico da modernidade se define a partir da ideia de singularidade absoluta da modernidade-modernização ocidental quando comparada ao processo evolutivo de todas as outras sociedades-culturas, não apenas instituindo-se esse caráter especial da modernidade frente às demais sociedades-culturas, mas também estabelecendo-se uma contraposição e uma fronteira férreas entre ambos os princípios de socialização, que leva à autonomia, à endogenia, à autossubsistência, à autossuficiência e à autorreferencialidade completas da modernidade, que basta-se a si mesma, que não precisa do outro da modernidade – temos a modernidade e o tradicionalismo, enquanto princípios opostos e mutuamente excludentes, no discurso filosófico-sociológico da modernidade; temos como consequência, a capacidade de a modernidade gerar desde dentro autorreflexividade, transformação e justificação, exatamente porque ela não é uma forma de vida meramente contextual, mas efetivamente universal, como Habermas disse em passagem no início deste texto, ao passo que o tradicionalismo não consegue gerar reflexividade, transformação e emancipação (ou gera muito pouco delas), por ser uma forma de vida contextual baseada em fundamentações essencialistas e naturalizadas. Desse primeiro ponto fundamental para a construção e a autocompreensão da teoria da modernidade, sua singularidade absoluta como universalismo-globalismo pós-metafísico via racionalização e sua contraposição radical a todas as outras sociedades-culturas como tradicionalismo em geral enquanto contextualismo estrito via fundamentações essencialistas e naturalizadas, passamos ao segundo ponto fundamental do discurso filosófico-sociológico da modernidade, a saber, conforme se pôde perceber na terceira das passagens acima, uma definição restritiva, endógena e fechada de modernidade-modernização ocidental como processo constitutivo-evolutivo dual, caracterizado enquanto correlação, separação e tensão-contradição entre mundo da vida e sistemas sociais, racionalidade cultural-comunicativa e racionalidade instrumental, modernidade cultural e modernização econômico-social. Nessa visão restritiva, endógena e fechada de modernidade, como vimos em passagem acima do próprio Jürgen Habermas, todo o processo constitutivo-evolutivo da modernidade-modernização ocidental, toda a sua dinâmica interna, com suas potencialidades e seus problemas, centra-se nessa correlação, nessa gradativa separação e nessa acentuada tensão-contradição entre normatividade e tecnicalidade, entre mundo da vida e sistemas sociais, entre cultura e instituições (Estado e mercado), entre modernidade cultural e modernização econômico-social. A cultura moderna, de sentido universalista, pós-tradicional, mantém-se intacta em sua capacidade de gerar reflexividade, crítica, transformação e emancipação, para si e para o outro da modernidade, uma vez sendo assumida por Habermas como autêntico e direto universalismo-globalismo pós-metafísico. Note-se que esse é o terceiro passo do discurso filosófico-sociológico de Habermas, a saber, em separando modernidade cultural e modernização econômico-social, atribuir todos os problemas da modernização ao Estado e ao mercado, à racionalidade instrumental, purificando a modernidade cultural enquanto base geradora da reflexividade, da crítica, da transformação e da emancipação, como dissemos. É por não gerar as patologias psicossociais propriamente modernas (burocratização e monetarização – nem aqui o colonialismo é visto como um problema gerado pela modernização) que a modernidade cultural é autocorretiva dos sistemas sociais e capaz de gerar um universalismo-globalismo pós-metafísico que, sob a forma do procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, Habermas coloca na base da ética comunicativa e do próprio Estado democrático de direito como herdeiros diretos dessa mesma modernidade cultural (cf.: HABERMAS, 2002a, p. 04; HABERMAS, 2002b, p. 07-08; HABERMAS, 2003a, p. 34-44; HABERMAS, 2004a, p. 66-67).
Da singularidade e do exclusivismo absolutos à correlação de modernidade-modernização europeia e/como gênero humano: sobre o não-lugar do outro da modernidade na teoria da modernidade
Mas, aqui chegados – (a) singularidade absoluta da Europa e conceituação de todas as outras sociedades-culturas de modo homogêneo, como tradicionalismo em geral; (b) concepção restritiva, endógena e fechada de modernização ocidental como um processo só da Europa e que descamba para o Primeiro Mundo, caracterizado como correlação, separação e tensão-contradição entre modernidade cultural e modernização econômico-social; e (c) modelo dual de modernidade que purifica a modernidade cultural, atribuindo-lhe um sentido salvífico (posto que universalista), condenando exclusivamente a modernização econômico-social, acusando-lhe de todos os problemas sociais modernos –, Habermas dá um passo surpreendente, embora condizente com sua intenção de justificar a universalidade da sociedade-cultura e da consciência cognitivo-moral modernas, a saber, (d) equipara a evolução da/como modernidade-modernização ocidental e gênero humano, a modernidade-modernização ocidental como ápice do gênero humano e, em verdade, essa mesma modernidade cultural, sob a forma de racionalidade cultural-comunicativa, como o núcleo central da constituição, da dinamização e da evolução do gênero humano. Este, com efeito, é o quarto momento do discurso filosófico-sociológico da modernidade, tal como ele é construído por Habermas, seu fecho de abóboda por excelência: apontar para a universalidade da modernidade-modernização em um duplo aspecto, como processo evolutivo final, por assim dizer, que supera e guarda (e anula) o tradicionalismo, e como paradigma societal-cultural e forma de consciência cognitivo-moral pós-tradicional, pós-metafísico, enquanto única possibilidade e condição para o pluralismo moral de nossas sociedades. Por um lado, se tratou de singularizar a modernidade-modernização ocidental, contrapondo-a ao restante das sociedades-culturas; no mesmo diapasão e como consequência, se tratou de concebê-la como um processo dual, interno, endógeno e autônomo, como um esforço de si sobre si mesma, como correlação, separação e tensão-contradição entre mundo da vida e sistemas sociais, colocando a modernidade cultural como a base ontogenética da modernização econômico-social, tornando-a plenamente capaz de resolver todos os seus problemas internos, tornando-a, por conseguinte, independente do outro da modernidade. Por outro, e como consequência, trata-se de associar modernidade cultural e/como gênero humano! Com efeito, não basta a modernidade, em sua constituição dual articulada, ser autorreflexiva para si; ela também sustenta o universalismo epistemológico-moral – e um universalismo epistemológico-moral pós-metafísico – porque, em última instância, essa mesma modernização é, em termos da racionalidade cultural-comunicativa, a dinâmica constitutiva e definidora fundamental do próprio gênero humano, o que faz da modernização o exemplo estrutural da evolução humana como um todo, concebendo-se esta, em consequência, como um grande processo de modernização: aqui, a modernidade espelharia todo o longo processo de superação do tradicionalismo (menoridade) e consolidação da modernização (maioridade) como o grande princípio constitutivo e o grande processo evolutivo, e o gênero humano encontraria na modernidade seu paradigma normativo garantidor de sua autocompreensão e autorreflexividade e capaz de justificar o universalismo-globalismo relativamente às perspectivas contextuais de mundo. Senão vejamos, como forma de justificar nossas afirmações e seguir com nossas reflexões, duas afirmações fundamentais de Teoria do Agir Comunicativo, de Habermas.
A primeira:
Quando partimos de que o gênero humano se mantém por meio das atividades socialmente coordenadas de seus integrantes e de que essa coordenação precisa ser gestada por meio da comunicação, e em algumas áreas centrais por uma comunicação que almeja o comum acordo, então a reprodução do gênero humano também exige que se cumpram as condições de uma racionalidade inerente ao agir comunicativo. Na modernidade – com a descentração da compreensão de mundo e a diferenciação e autonomização de diversas pretensões universais –, essas condições tornaram-se palpáveis (HABERMAS, 2012a, p. 683; o destaque é de Habermas).
E a segunda:
O teste definitivo para uma teoria da racionalidade, por meio do qual a moderna compreensão do mundo tenta se assegurar de sua universalidade, só poderia se realizar se as figuras opacas do pensamento mítico se iluminassem e se as manifestações bizarras de culturas estranhas se esclarecessem de tal modo que conseguíssemos entendem não somente os processos de aprendizagem que “nos” separam “delas”, mas também o que desaprendemos no decorrer de nossos processos de aprendizagem (HABERMAS, 2012b, p. 721; o destaque é de Habermas).
O discurso filosófico-sociológico da modernidade-modernização ocidental começou exatamente com a pressuposição de que a modernização europeia possuía uma singularidade absoluta, como universalismo-globalismo pós-metafísico via racionalidade cultural-comunicativa, o que a diferenciava totalmente do outro único princípio-processo de socialização existente, pressuposto por Teoria do Agir Comunicativo, a saber, o tradicionalismo em geral como contextualismo estrito via fundamentações essencialistas e naturalizadas. Somou-se a isso, depois, o sentido dual e restritivo da modernidade-modernização europeia, enquanto um processo interno, endógeno, fechado e autônomo da Europa por si mesma, desde si mesma e sobre si mesma, que iria direta e linearmente ao Primeiro Mundo, restando, em verdade, como horizonte privilegiado, as democracias de massa do Estado de bem-estar social – apagando-se o colonialismo, silenciando-se sobre o na época Terceiro Mundo (uma vez que a teoria da modernidade de Habermas é uma teoria do Primeiro e do Segundo Mundos como consequência e caminho diretos da modernização europeia). Porém, agora, ao fim do primeiro e do segundo tomos de Teoria do Agir Comunicativo, conforme as duas citações acima, somos impactados com a revelação, por Habermas, de que o processo de modernidade cultural e o princípio da racionalidade cultural-comunicativa não são mais uma condição exclusiva e nem uma singularidade absoluta da Europa, mas do próprio gênero humano (lembrando que eles foram utilizados, em um primeiro momento, exatamente para, ao justificar a singularidade e o exclusivismo do processo de modernidade-modernização europeu, diferenciarem-no totalmente do outro da modernidade como tradicionalismo em geral e, com isso, sustentar o fato de que a sociedade-cultura-consciência moderna é universal porque racional, situação-condição que o outro da modernidade não teria, não geraria, não seria. Como assim que a modernidade cultural e, em especial, a racionalidade cultural-comunicativa são, agora, condição fundamental e dinamizadora do próprio gênero humano e, portanto, de cada sociedade-cultura em particular? E por que isso? Porque, por um lado, busca-se entender o processo de modernização europeu e sua consequência, o Primeiro Mundo, o capitalismo tardio, com suas potencialidades e problemas (uma análise empírica em teoria social, digamos assim); mas, por outro, se associa diretamente modernidade-modernização e gênero humano, modernidade-modernização como gênero humano (uma fundamentação filosófica da normatividade, correlata àquela análise sociológica). Isso advém do fato de que Habermas não está construindo apenas um diagnóstico sociológico da modernidade-modernização europeia, mas também, sob a forma de uma teoria filosófica da normatividade, utilizando a racionalidade cultural-comunicativa própria à modernidade cultural como um paradigma efetivamente universalista, uma condição fundamentalmente humana em sentido estrutural que, por isso mesmo, gera e sustenta uma normatividade vinculante para a modernidade e para o outro da modernidade, em termos de universalismo (como condição, juiz e guia do contextualismo) (cf.: HABERMAS, 2012b, p. 715). Sua ideia central consiste em assumir seriamente um pressuposto que sempre foi caro à filosofia ocidental – passando como herança à teologia e à ciência natural –, de que um contextualismo estrito não possibilita justificação objetiva, crítica e reflexividade, uma vez que condiciona a validade e a crítica a bases essencialistas e naturalizadas, de modo que o contexto determina sempre e de modo férreo a própria validade das normas. Lembremos, no que diz respeito a isso, que sua crítica ao tradicionalismo como contextualismo estrito aponta que a consequência da centralidade das bases essencialistas e naturalizadas é a naturalização-despolitização da sociedade, a antropomorfização da natureza e, em tudo isso, a anulação do indivíduo reflexivo como sujeito da justificação, da transformação. Portanto, a fundamentação das normas e das práticas não pode ocorrer por meio de um contextualismo estrito, assim como não é possível justificar-se a emancipação, a crítica e a reflexividade na biologia e na teologia, sempre contextualistas e apolíticas-despolitizadas, mas sim por meio do apelo ao universalismo epistemológico-moral. Habermas quer mostrar, por conseguinte, que a cultura europeia moderna não é contextual, mas universal, como vimos em uma passagem sua apresentada no início deste texto, uma vez que gera processos de socialização-subjetivação que não dependem e nem se fundam na biologia e na teologia, mas na politização da cultura, na desnaturalização das instituições e das autoridades sociais, na pluralização dos sujeitos epistemológico-políticos e, em tudo isso, no reconhecimento da diferença como bases para a construção e a validade das práticas, das normas e das instituições socialmente vinculantes – por isso sua afirmação de que a estrutura societal-cultural moderna, marcada pela racionalização cultural-comunicativa, gera uma consciência cognitivo-moral descentrada, pós-tradicional, pós-metafísica, de cunho não-egocêntrico e não-etnocêntrico, dinamizada fundamentalmente por um procedimentalismo imparcial, neutro, impessoal e formal em termos metodológico-axiológicos (cf.: HABERMAS, 2002a, p. 468-483; HABERMAS, 2002b, p. 17-41). Por isso, ainda, que, nas duas citações acima, pudemos ver (a) que o gênero humano como um todo, independentemente de cada sociedade-cultura particular, se constitui, se legitima e se desenvolve por meio da centralidade da racionalidade cultural-comunicativa, bem como (b) que a evolução dessas outras sociedades-culturas, ensacadas sob o conceito de tradicionalismo em geral, dá ou dará razão, se se iluminarem internamente, se se esclarecerem internamente, isto é, se se racionalizarem gradativamente, a essa ideia de que a modernidade-modernização ocidental é e gera uma estrutura societal-cultural e uma forma de consciência cognitivo-moral universalistas de cunho pós-metafísico, pós-tradicional, descentrado, não-egocêntrico e não-etnocêntrico, via racionalidade cultural-comunicativa, uma vez que esse mesmo tradicionalismo, ao evoluir, aproxima-se mais e mais de sua meta, a modernidade-modernização cultural.
E o que significa a racionalidade cultural-comunicativa ser o princípio ontogenético fundamental e dinamizador de cada sociedade-cultura em particular e do gênero humano de um modo geral? Significa basicamente que cada sociedade-cultura em particular simplesmente não pode se estabilizar, se legitimar e evoluir ao longo do tempo sem utilizar-se de justificação permanente, do âmbito mais ínfimo às suas esferas mais centrais, dos sujeitos socioculturais mais ínfimos aos mais centrais, dos valores mais ínfimos aos mais basilares. Isso significa, portanto, que é falando e falando e falando que cada sociedade-cultura em particular, nas suas instituições, pelos seus sujeitos epistemológico-políticos centrais, no âmbito da família e das relações grupais, consegue estabelecer e legitimar a correlação de socialização e de subjetivação, validando suas normas e práticas vinculantes e instaurando processos amplos de formação, de organização e de orientação da vida social. É pela linguagem – e, como Habermas nos disse acima, uma linguagem que objetiva o comum acordo pelo menos em pontos fundamentais para a estabilização de cada sociedade-cultura – que efetivamente nos constituímos como seres humanos, como sociedades-culturas humanas no espaço e no tempo históricos. Por isso, a linguagem-cultura, e não mais, no entender de Habermas, princípios técnicos como o trabalho ou a razão científica, ou ainda a noção normativa e criadora de res cogitans cartesiana, representa o verdadeiro e fundamental núcleo antropológico, que aproxima todas as comunidades humanas particulares. A linguagem, ou, para utilizar um termo caro a Habermas, a racionalidade cultural-comunicativa – a justificação discursiva permanente das normas, das práticas e das instituições sociais, em qualquer contexto – é que constitui, determina e dinamiza a evolução do gênero humano, servindo, portanto, como núcleo comum para integrarmos os diferentes contextos comunitário-culturais humanos. O próprio Habermas nos afirma explicitamente esse ponto, quando tenta mostrar que a ideia de uma racionalidade cultural-comunicativa não significa, em primeiro lugar, que todos os conflitos sociais se resolvam por meio da fala, mas sim que a linguagem e o discurso servem como base ontogenética para a constituição, a reprodução e a evolução do gênero humano como um todo, não obstante suas diferenças particulares. Vejamos, a título de comprovação de nosso argumento, a seguinte passagem de Habermas:
Eu primeiro lugar, não afirmo que os homens gostariam de agir de modo comunicativo, mas que eles são obrigados a agir desta maneira. Quando os pais educam os filhos, quando as gerações atuais se apropriam do saber transmitido pelas gerações passadas, quando os indivíduos e grupos cooperam entre si, ou seja, quando pretendem se entender reciprocamente sem o uso de um poder dispendioso, eles têm de agir de modo comunicativo. Isso significa existirem funções socialmente elementares que só podem ser preenchidas mediante o agir comunicativo. Em nossos mundos da vida compartilhados intersubjetivamente, que se sobrepõem parcialmente, subjaz um amplo consenso que serve de pano de fundo, sem o qual a prática comunicativa cotidiana não poderia funcionar. O estado natural hobbesiano, no qual cada sujeito isolado aliena o outro, transformando-se no lobo dele (mesmo que os lobos reais vivam sempre em alcateias), não passa de uma construção artificial (HABERMAS, 2005, p. 170; os destaques são de Habermas. Cf., ainda: HABERMAS, 2004a, p. 20).
A racionalidade cultural-comunicativa é o médium fundamental que perpassa a constituição, o movimento e o desenvolvimento próprios ao gênero humano, aglutinando os diferentes contextos humanos, as múltiplas sociedades-culturas humanas ao longo do tempo em uma identidade ontogenética e normativa comuns. E a racionalidade cultural-comunicativa, como Habermas enfatiza muito na passagem acima e, principalmente, em seus textos de fundação da ética do discurso, tem por base exatamente os pressupostos da correção, da veracidade e da fiabilidade internas, no sentido de que as relações sociais, as normas e as práticas intersubjetivamente vinculantes, as instituições sociais e os sujeitos epistemológico-políticos se imbricam e se relacionam a partir desse grande pano de fundo do compromisso comum, da pertença comum, da objetividade do mundo, da sociedade, do homem, da veracidade e da efetividade das normas, das práticas, das autoridades e dos signos intersubjetivos (cf.: HABERMAS, 2004a, p. 08-09; HABERMAS, 1989, p. 143-223; HABERMAS, 1990a, p. 118, p. 153, p. 194-209; HABERMAS, 1990b, p. 65-103). Independentemente dessas particularidades assumidas como substrato teórico pela ética do discurso, o importante aqui, para nosso argumento, consiste exatamente nessa afirmação, por Habermas, de que a racionalidade cultural-comunicativa, que antes foi concebida como uma propriedade exclusiva da Europa moderna, que a singularizava de modo absoluto e a separava radicalmente frente ao outro da modernidade como tradicionalismo em geral, agora é afirmada como núcleo comum do gênero humano. Primeiro, Habermas singularizou a modernidade-modernização europeia como racionalidade cultural-comunicativa e a diferenciou radicalmente do outro da modernidade como tradicionalismo em geral por um fato óbvio: para mostrar que o universalismo-globalismo pós-metafísico é propriedade, condição, característica, princípio, movimento exclusivos da Europa por si mesma e desde si mesma, como processo fechado, endógeno, autônomo, autossubsistente, autossuficiente, autorreferencial, o que tem como consequência a percepção de que o outro da modernidade não é universal, mas contextualista, não gerando nem racionalização social, nem descentração da consciência e, assim, nem universalismo-globalismo pós-metafísico (características e condições que somente a modernidade-modernização europeia geraria). Segundo, Habermas separou racionalidade cultural-comunicativa em relação à racionalidade instrumental, a modernidade cultural em relação à modernização econômico-social: aqui, a intenção foi mostrar (a) que a culpa dos problemas da modernização (burocratização e reificação) se devem à modernização econômico-social, e não à modernidade cultural, que (b) permanece intacta e, por ser condição ontogenética da modernização econômico-social, permite autorreflexividade, autocorreção e autotransformação desde dentro. Nesses dois primeiros pontos, temos, assim, a autossuficiência e a completude plenas da modernidade europeia, caudatárias de sua singularidade, de sua endogenia e de seu fechamento absolutos – isso sem se falar na concepção restritiva de modernidade-modernização ocidental comentada por nós acima, que vai da Europa moderna ao Primeiro e ao Segundo Mundos tão somente. Nesses dois primeiros pontos, portanto, a modernidade não precisa do outro da modernidade, sendo plenamente suficiente para sua própria compreensão, para seu próprio enquadramento crítico-reflexivo e, assim, para sua própria transformação. Porém, em terceiro lugar, Habermas rompe com essa ideia de singularidade absoluta e de fechamento e de completude internos, ao afirmar que o gênero humano como um todo tem como base ontogenética a racionalidade cultural-comunicativa. Qual a intenção agora? Valorizar todas as sociedades-culturas e, principalmente, trazer para dentro do discurso filosófico-sociológico da modernidade o outro da modernidade, que ela de início diminuiu e excluiu, como não-necessário, como o totalmente estranho? Não! A colocação da racionalidade cultural-comunicativa como base ontogenética do gênero humano como um todo não tem por objetivo trazer o outro da modernidade para dentro do discurso filosófico-sociológico da modernidade, mas exatamente alçar a modernidade europeia a padrão societal-cultural e forma de consciência cognitivo-moral universalistas, e não meramente contextualistas, tanto a partir da ideia de que a razão cultural-comunicativa é esse princípio constitutivo e fundamental do gênero humano como um todo quanto de que a modernidade europeia, enquanto universalismo-globalismo pós-metafísico via racionalidade cultural-comunicativa, se constitui no ápice da evolução do gênero humano e, por isso, pode assumir a função de guia político e de guarda-chuva normativo das e pelas diferenças, dos e pelos contextos particulares (todos os outros) – guia político e guarda-chuva normativo inclusive no fato de que tem condições seja de reconstruir a constituição e o desenvolvimento do gênero humano como um todo, seja de associar-se com esse mesmo gênero humano, correlacionando-o à própria modernidade-modernização, como modernidade-modernização. Vejamos outra passagem enquanto justificativa, antes de prosseguirmos em nossas reflexões:
Se não delineamos o racionalismo ocidental a partir da perspectiva conceitual da racionalidade propositada e da dominação do mundo e, mais que isso, se tomamos como ponto de partida a racionalização de mundo descentralizada, impõem-se as seguintes perguntas: onde se expressa um acervo formal de estruturas universais da consciência? Não é, afinal, nas esferas de valor culturais desenvolvidas de maneira obstinada sob os parâmetros valorativos abstratos de verdade, correção normativa e autenticidade? O que constitui, afinal, o patrimônio da “comunidade dos homens de cultura”, presente como ideia reguladora? Não são as estruturas do pensamento científico, das noções jurídicas e morais pós-tradicionais e da arte autônoma – tal como formadas no âmbito da cultura ocidental? A posição universalista não precisa negar o pluralismo e a incompatibilidade das marcas históricas da “condição cultural própria ao ser humano”, mas percebe que essa multiplicidade das formas de vida está restrita aos conteúdos culturais e afirma que toda cultura, se fosse o caso de alcançar um certo grau de “conscientização” ou de “sublimação”, teria de compartilhar certas qualidades formais da compreensão de mundo moderna. A assunção universalista refere-se, portanto, a algumas características estruturais e necessárias próprias a mundos da vida modernos. Por outro lado, quando tomamos essa concepção universalista como coerciva somente para nós, o relativismo que se refuta no plano teórico acaba retornando no plano metateórico. Não creio que um relativismo de primeiro ou de segundo grau possa conciliar-se com o âmbito conceitual em que Weber situa a problemática da racionalização. No entanto, Weber faz restrições relativistas. Elas se devem a um motivo que só teria deixado de existir se Weber não tivesse atribuído o que há de especial no racionalismo ocidental a uma peculiaridade cultural, e sim ao modelo seletivo que os processos de racionalização assumiram sob as condições do capitalismo moderno (HABERMAS, 2012a, p. 325-326; os destaques são de Habermas).
Essa passagem possui uma miríade de afirmações importantes e impactantes, conforme pensamos. Comecemos por destrinchá-las e relacioná-las. Um ponto importante, nela, está na afirmação por Habermas de que a modernidade só pode ser vista como contextualista e, portanto, relativista se olharmos para o lado errado dela, se a avaliarmos prioritária e exclusivamente a partir de um seu princípio constitutivo equivocado, a modernização econômico-social, a racionalidade instrumental. Por outras palavras: se enfatizarmos, como grande ponto-princípio constitutivo e dinamizador do processo de modernidade-modernização ocidental, a racionalidade instrumental ou a modernização econômico-social (o Estado burocrático administrativo e o mercado capitalista), como o fizeram Marx, Weber, Adorno, Horkheimer e Marcuse, então, sim, a modernidade é contextual e relativista. Mas o racionalismo ocidental não se define e nem pode ser concebido em primeira mão como racionalidade instrumental, como tecnicalidade. Concebê-lo como e reduzi-lo à racionalidade instrumental é um modo parcial e restrito de se compreendê-lo e, em tudo isso, de se valorizar seu lugar, suas potencialidades, sua importância. Por isso, para Habermas, o grande núcleo do racionalismo europeu é a racionalidade cultural-comunicativa, a modernidade cultural como universalismo-globalismo pós-metafísico, pós-tradicional, isto é, repetimos, como estrutural societal-cultural e forma de consciência cognitivo moral descentradas, não-egocêntricas e não-etnocêntricas. Aqui está a verdadeira base ontogenética da modernidade e o seu princípio normativo por excelência. Mas, evidentemente, a racionalidade cultural-comunicativa agora já não aparece mais como uma propriedade exclusiva da modernidade europeia, senão que enquanto o fundamento do gênero humano como um todo e de cada sociedade-cultura em particular. É por isso que Habermas pode argumentar (a) que o universalismo (pós-metafísico) não nega o contextualismo como o aspecto externo de cada sociedade-cultura particular, embora não seja reduzido a ele, pois, como aspecto interno de cada sociedade-cultura e, assim, do gênero humano como um todo, nós temos exatamente esse princípio antropológico-ontogenético-normativo que é a racionalidade cultural-comunicativa. O contextualismo e o consequente relativismo estão ligados aos e dependentes dos conteúdos de cada cultura, mas não à estrutura interna dela, que é a mesma estrutura do gênero humano como um todo, de todas as sociedades-culturas e, ao fim e ao cabo, da modernidade-modernização em particular (embora, nesta, a racionalidade cultural-comunicativa tenha encontrado sua efetiva maturidade e seu pleno apogeu, como vimos na passagem citada à nota de rodapé 5, neste texto). Em consequência, Habermas também pode afirmar (b) que, se assumirmos a racionalidade cultural-comunicativa como um princípio e uma prática contextuais, então estamos aceitando que ela seja contextualista e relativista, mas não universal. Qual a consequência disso? Para Habermas, que assume como mote a pressuposição de fundo da tradição filosófica ocidental iniciada por Platão – de que o universalismo é a condição da crítica, da reflexividade e da emancipação; de que o contextualismo não gera nem crítica, nem reflexividade e nem emancipação –, sem universalismo não há como fundarmos uma perspectiva crítica, reflexiva, emancipatória, transformadora, politizada nem sobre a modernidade nem sobre qualquer cultura em particular. Se cada cultura é um mundo fechado determinado por suas próprias regras internas, então não é possível uma visão de conjunto, desnaturalizada, historicizada e politizada (os três únicos qualificativos possíveis de um efetivo universalismo epistemológico-moral pós-metafísico) de seu contexto interno, de suas instituições, autoridades, práticas e valores intersubjetivamente vinculantes. Assim, Habermas acaba defendendo, ainda conforme a passagem acima, (c) não apenas que a racionalidade cultural-comunicativa é núcleo antropológico de cada sociedade-cultura em particular e do gênero humano de um modo geral (agora não mais uma propriedade-condição-princípio absolutamente exclusivo e singular da própria modernidade-modernização europeia), mas também, e como consequência, de que, se o outro da modernidade evoluir – Habermas usa o termo conscientização societal-cultural –, ele fatalmente alcançará uma condição similar, talvez até igual, à da modernidade cultural europeia, como a historicização, desnaturalização e politização da sociedade, a individuação reflexiva e geral, a divisão e correlação de diferentes esferas de valor (epistemologia-ciência-técnica, cultura-política-ética, arte-estética-gosto etc.), uma perspectiva imparcial, neutra, formal e impessoal relativamente à intersubjetividade e à diferença, e assim por diante. Note-se a ideia: se a sociedade-cultura própria ao outro da modernidade se conscientizar, isto é, for marcada por um processo de racionalização cultural mais intenso, ela dará razão à modernidade-modernização europeia tanto como ápice do gênero humano quanto como universalismo-globalismo-pós-metafísico. Mas, se a racionalização cultural é esse núcleo antropológico fundamental a todas as sociedades-culturas, como poderia não se dar razão senão à modernidade, exclusivamente à modernidade? Porque, se a racionalidade-cultural comunicativa for a base fundamental da constituição, do desenvolvimento e da evolução de cada sociedade-cultura, então a consequência óbvia e direta está exatamente em que todas as sociedades-culturas se tornarão como a modernidade-modernização ocidental (europeia e, depois, Primeiro Mundo – o Segundo Mundo, para Habermas, enquanto socialismo de Estado e ditadura de partido único, entrou em colapso definitivo, como vimos na nota de rodapé 6 desse texto), tendo um caminho constitutivo e evolutivo similar. Enquanto proto-modernidade, cada sociedade-cultura em particular e todas as sociedades-culturas (ainda) não-modernas de um modo geral, se se conscientizarem, alcançarão a modernidade-modernização ocidental, darão razão a ela, especialmente em termos da correlação de racionalização cultural-comunicativa e universalismo-globalismo pós-metafísico. Por isso, mais uma vez, a teoria da modernidade de Habermas é uma teoria da modernidade-modernização europeia que vai ao Primeiro e Segundo Mundos, sim, mas também é, ao fim e ao cabo – e isso de modo surpreendente para quem assumiu a singularidade, o exclusivismo, a autorreferencialidade e a autossuficiência absolutos como qualificativo e mote primeiros para a construção da teoria da modernidade-modernização europeia – uma teoria do gênero humano como modernidade-modernização, ou melhor, uma teoria do outro da modernidade como proto-modernidade.
O que nossa reconstrução da teoria da modernidade de Habermas nos permite concluir? O primeiro ponto consiste em que o outro da modernidade é, quando muito, um apêndice da própria modernidade-modernização ocidental como universalismo-globalismo pós-metafísico. Ele não lhe interessa efetivamente, não lhe ajuda em nada em termos de autocompreensão e de autocorreção internas e, ainda por cima, tem como presente e futuro exatamente sua transformação em modernidade-modernização europeia e, portanto, tanto sua negação como outro da modernidade quanto sua transformação em moderno, em modernidade – uma transformação que o torna igual ou similar àquela que o negou, que o minimizou e o concebeu como completamente estranho. No mesmo diapasão e como consequência, o outro da modernidade não apenas não é trazido para dentro do discurso filosófico-sociológico da modernidade por si mesma e desde si mesma, de modo a alargar e a reflexivizar sua concepção restritiva, autorreferencial, autossubsistente, endógena, autossuficiente e autônoma de modernidade-modernização, senão que ele acaba sendo empurrado ainda mais para fora dela e esta mesma modernidade acaba sendo colocada como apogeu, que contém todos os momentos anteriores da evolução do gênero humano (incluindo o outro da modernidade), e como guia, como guarda-chuva normativo capaz de enquadrar os contextos particulares com base na própria modernização, com base na sua autoafirmação e auto-pressuposição de universalidade, na sua autoafirmação e auto-pressuposição de que ela é, e ninguém mais, o pináculo evolutivo do gênero humano como universalismo-globalismo pós-metafísico via racionalidade cultural-comunicativa. Por isso, o último movimento da teoria da modernidade de Habermas, a pressuposição de que essa mesma racionalidade cultural-comunicativa constitui-se como núcleo antropológico fundamental do gênero humano como um todo não leva nem à aproximação e ao reconhecimento do outro da modernidade pela modernidade, e nem à ampliação e à sensibilização daquele conceito restrito de modernidade-modernização ocidental como (a) singularidade absoluta e exclusivismo antropológico, com sua estilização apressada e simplista do outro da modernidade como tradicionalismo em geral e contextualismo estrito, e como (b) caminho reto, direto e linear da modernidade europeia ao primeiro e segundo mundos, mas sim, mais uma vez, ao fortalecimento da periferização, do apagamento, do silenciamento e da exclusão do outro da modernidade como parte constituinte do próprio discurso filosófico-sociológico da modernidade-modernização ocidental. Com a colocação da racionalidade cultural-comunicativa como núcleo antropológico do gênero humano e de cada sociedade-cultura em particular, bem como com a afirmação de que cada sociedade-cultura em particular, se se conscientizar, se evoluir em termos de racionalização cultural, se aproximará e se assemelhará à modernidade-modernização europeia, Habermas justifica exatamente a prossecução da modernidade-modernização ocidental como modelo societal-cultural e paradigma epistemológico-moral sob a forma de universalismo-globalismo pós-metafísico e, com isso, a periferização e a exclusão do outro da modernidade, uma vez que tais afirmativas não visam abrir a modernidade ao outro da modernidade, mas mostrar que esse outro da modernidade já contém em si os gérmens da modernização – o outro da modernidade é proto-modernidade, o gênero humano é um grande e salvífico processo de modernidade-modernização ocidental – e esta já representa o cume evolutivo ao qual aquele haverá de chegar mais dia ou menos dia, em maior ou menor medida (a evolução do outro da modernidade dará razão à modernidade, uma vez que ele se modernizará, e não o contrário).
O segundo ponto que nossa reconstrução da teoria da modernidade de Habermas permite concluir consiste em que o apagamento e a exclusão do – e o silenciamento sobre o – colonialismo como eixo constitutivo (ao lado da modernidade cultural e da modernização econômico-social) do processo de modernidade-modernização ocidental e como sua consequência têm um sentido muito claro, a saber, salvar a modernidade cultural como base normativa garantidora da crítica, da reflexividade e da emancipação, a partir do argumento, conforme já salientamos acima, de que ela não gerou e nem justifica as patologias psicossociais próprias à modernização, senão que serve como base para sua mensuração, para seu enquadramento e para sua correção. As únicas formas de patologias próprias ao processo de modernidade-modernização ocidental, aliás, são as patologias lógico-técnicas, não-políticas e não-normativas causadas pelos sistemas sociais Estado e mercado (respectivamente, burocratização e monetarização). Mas em que sentido o colonialismo poria em xeque seja a separação feita por Habermas entre modernidade cultural e modernização econômico-social, seja, como consequência, o caráter salvífico da modernidade frente a si e relativamente ao outro da modernidade? Exatamente pelo fato de que o colonialismo não é um fenômeno lógico-técnico, não-político e não-normativo, ele não é apenas racionalidade instrumental, mas, antes disso, como condição disso, normatividade, perspectiva político-cultural. Por outras palavras, na nossa compreensão, o colonialismo envolve exatamente uma perspectiva, uma prática e uma legitimação culturais, morais, religiosas, políticas e normativas (supondo que haja uma diferença estre tais qualificativos), sendo que a violência e a reificação materiais são consequências daquela base normativo-cultural, e não o contrário. Portanto, o colonialismo precisa ser excluído da teoria da modernidade – assim como essa mesma teoria da modernidade precisa separar modernidade cultural, ontogeneticamente primária, e modernização econômico-social, como causa dos problemas sociais modernos, de cunho lógico-técnico – como condição para a justificação da modernidade cultural enquanto paradigma epistemológico-moral universalista de caráter pós-metafísico, condição da crítica, da reflexividade e da emancipação da modernidade por si mesma, do outro da modernidade pela modernidade.
Considerações finais: do não-lugar do outro da modernidade na teoria da modernidade à afirmação-utilização do colonialismo como teoria da modernidade
Desse modo, ao definir a modernidade-modernização ocidental como uma monocultura de ideias, como um mundo em si, acachapante, que não precisa de colaboração e que não abre espaço para uma crítica desde fora, pelo outro da modernidade, Ailton Krenak, intelectual indígena brasileiro, alcançou e nos forneceu um ponto fundamental para compreendermos o discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia e sua pressuposição, sustentada do começo ao fim dele, de que a modernidade cultural europeia é efetivo universalismo-globalismo pós-metafísico via racionalidade cultural-comunicativa, contrariamente ao outro da modernidade, que é uma estrutura societal-cultural e uma forma de consciência cognitivo-moral contextualistas via fundamentações essencialistas e naturalizadas. Com efeito, conforme vimos acima a partir de nossa reconstrução e de nossa crítica à teoria da modernidade de Habermas (com algumas pinceladas na teoria da modernidade de Weber), vários pontos problemáticos são sustentados como condição da justificação daquela premissa, ou seja, de que o discurso filosófico-sociológico da modernidade não é apenas uma investigação empírica de uma perspectiva contextual específica, a modernidade-modernização ocidental, mas também uma reconstrução antropológica e normativa mínimas do próprio gênero humano como um todo enquanto um grande processo de modernidade-modernização e de cada sociedade-cultura em particular como proto-modernidade (aliás, é importante lembrar que a pergunta se a modernidade europeia é contextual ou universal é a base da construção de Teoria do Agir Comunicativo, por Habermas11). Nesse sentido, o primeiro ponto a ser percebido é que a singularidade, o exclusivismo, a endogenia, a autorreferencialidade, a autossubsistência e a autossuficiência absolutos da modernidade europeia por si mesma, para si mesma e desde si mesma exclui a possibilidade de uma correlação com o outro da modernidade – a não ser enquanto antonomásia, o que ela definitivamente não é, o que ele ainda não é, uma contraposição que serve como quadro normativo para legitimar a singularidade e o sentido especiais da modernidade-modernização quando comparada ao outro da modernidade (não é um quadro de reconhecimento recíproco, mas uma base político-normativa para o não-reconhecimento, para a deslegitimação, de modo que somente a modernidade é universalista-globalista, e não o outro da modernidad, que, aliás, tornar-se-á gradativamente modernidade-modernização). A conclusão disso: para contar a sua história, entender sua constituição, sua dinâmica, seu sentido, suas potencialidades e seus problemas eminentemente internos, basta a reconstrução endógena, por parte da modernidade-modernização ocidental desde si mesma, por si mesma, para si mesma, de suas estruturas, práticas, valores, princípios e sujeitos fundamentais, sem necessidade de se recorrer ao outro da modernidade para isso – inclusive porque o outro da modernidade, ao ser estruturalmente diferenciado da modernidade-modernização, não é sua consequência, não é sua produção, mas outro processo-princípio-valor, sem nada a dizer e a contribuir, por causa disso. Basta a história interna da modernidade para seu auto-entendimento, mas também para a compreensão mínima da evolução do gênero humano como um todo enquanto um grande processo de modernidade-modernização e de cada sociedade-cultura em particular como uma proto-modernidade. Enquanto tendo realizado todo o caminho evolutivo do tradicionalismo à modernidade, aliado ao fato de que o outro da modernidade enquanto tradicionalismo tornar-se-á gradativamente moderno (em termos de e por causa da racionalidade cultural-comunicativa), a modernidade-modernização ocidental tem condição de reconstruir o processo evolutivo do gênero humano (do qual a modernidade-modernização ocidental é ápice) e, com isso, julgar sobre o contextualismo concomitantemente ao fato de servir como guarda-chuva normativo amplo do outro da modernidade. Na compreensão da modernidade-modernização ocidental, portanto, o outro da modernidade não é necessário, senão que, pelo contrário, a modernidade-modernização, enquanto culminância da evolução do gênero humano como superação do tradicionalismo (contextualismo estrito fundado em bases essencialistas e naturalizadas) e consolidação da modernidade-modernização como universalismo-globalismo pós-metafísico (em termos de e como modernidade cultural via racionalidade cultural-comunicativa), é condição antropológica, estrutura epistemológica, processo cultural e princípio político-normativo basilares para a compreensão desse outro da modernidade.
Em segundo lugar, Habermas assumiu uma perspectiva dualista na reconstrução do processo de modernidade-modernização ocidental, como correlação, separação e tensão-contradição entre modernidade cultural e modernização econômico-social, racionalidade cultural-comunicativa e racionalidade instrumental, mundo da vida e sistemas sociais (Estado e mercado), normatividade e tecnicalidade. Com essa compreensão dual, embora articulada, Habermas, conforme vimos acima, coloca a modernidade cultural como base ontogenética da modernização econômico-social, entendendo aquela basicamente como esfera-princípio-dinâmica normativa, política e politizante, e concebendo esta última como um horizonte-princípio-dinâmica eminentemente técnico, não-político e não-normativo. A consequência nós vimos acima: a modernidade cultural é purificada de qualquer mancha em termos de gerar e sustentar patologias psicossociais, cuja responsabilidade acaba sendo toda dos sistemas sociais próprios à modernização econômico-social. Juntando-se essa característica distintiva do processo de modernidade-modernização ocidental àquela outra da descentração da cultura e da consciência gerada pela racionalização cultural-comunicativa, que permite à cultura e ao indivíduo modernos prescindirem das bases essencialistas e naturalizadas como práxis da fundamentação, nós somos levados a concluir, como quer Habermas, que a modernidade cultural, sob a forma de racionalidade cultural-comunicativa, pode autorreflexivizar-se, autocorrigir-se e autotransformar-se desde dentro, por seus próprios meios, valores, princípios e sujeitos. Logo, também no que diz respeito à sua transformação política interna, a modernidade ocidental não precisa do outro da modernidade, entre outras coisas porque ele não é uma estrutura societal-cultural e uma forma de consciência cognitivo-moral descentrada, reflexiva, politizada, devido à sua constituição e à sua dinâmica tradicionais. A modernidade, enquanto mundo fechado, como auto-história e auto-movimento completos, autorreferenciais, autossuficientes e autossubsistentes, na qual o próprio colonialismo não entra nem é assumido como um seu princípio, como uma sua consequência, pode responder a todas as suas necessidades internas, em particular essa de autorreflexividade, autocrítica e autotransformação desde dentro, desde si mesma e exclusivamente por si mesma. Politicamente falando, o outro da modernidade em nada pode contribuir para isso, assim como histórica, sociológica e filosoficamente ele nada pôde contribuir no discurso filosófico-sociológico da modernidade por si mesma e desde si mesma, na autocompreensão autorreferencial, autossubsistente e autossuficiente da modernidade europeia por si mesma e desde si mesma. Porém, mais uma vez, o contrário não é verdade: a modernidade pode e deve contribuir politicamente para a crítica, o enquadramento e a transformação do outro da modernidade, como ela já contribuía em termos de compreensão histórica, antropológica, cultural, normativa e epistêmica desse outro da modernidade (outro da modernidade como proto-modernidade, gênero humano como grande processo de modernidade-modernização, modernidade-modernização como ápice do gênero humano enquanto superação do tradicionalismo como contextualismo estrito e consolidação da modernidade-modernização como universalismo-globalismo pós-metafísico). Note-se, com isso, essa relação no mínimo curiosa entre modernidade e o outro da modernidade, tal como apresentada e sustentada pelo discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia: o outro da modernidade não serve e nem ajuda para a compreensão antropológica, histórica, cultural, normativa da modernidade, mas a modernidade-modernização europeia com certeza serve e ajuda para a compreensão antropológica, histórica, cultural, normativa dele; o outro da modernidade não serve e nem ajuda para a reflexividade, a correção e a transformação políticas da modernidade, mas esta com certeza serve e ajuda para a reflexividade, a crítica, a correção e a transformação políticas do outro da modernidade.
Em terceiro lugar, ao conceber o processo de modernidade-modernização ocidental de modo restritivo, como sendo marcado por um camino constitutivo e evolutivo reto, direto e linear que vai da Europa moderna ao Primeiro e Segundo Mundos e, aqui, enquanto correlação, separação e tensão-contradição entre mundo da vida e sistemas sociais, Habermas silencia sobre o e apaga o colonialismo da e como teoria da modernidade, ao mesmo tempo em que silencia sobre o e apaga o Terceiro Mundo como elemento constitutivo, dinamizador e consequência da modernização ocidental como um todo. O colonialismo, na autocompreensão normativa da modernidade europeia e em seu caminho rumo ao Primeiro e Segundo Mundos por meio de uma singularidade, de um exclusivismo, de uma autorreferencialidade, de uma autossubsistência e de uma autossuficiência absolutos, simplesmente não aparece, tendo, portanto, uma causa, uma condição e uma existência outras que o fenômeno da modernidade-modernização europeia (com efeito, em Teoria do Agir Comunicativo não temos nenhuma menção ao colonialismo, mas somente à correlação, à separação e à tensão-contradição de modernidade cultural e modernização econômico-social). Isso pode ser percebido, inclusive, no fato de que as duas únicas patologias sociais próprias ao fenômeno da modernidade-modernização ocidental são a burocratização (Estado burocrático-administrativo moderno e, depois, Estado de bem-estar social contemporâneo) e a monetarização (mercado capitalista liberal moderno e, depois, capitalismo tardio). Esses problemas de reificação possuem cunho lógico-técnico, não-político e não-normativo. É preciso mencionar que tais problemas de reificação são denominados por Habermas de colonização do mundo da vida, mas também é preciso salientar que, por tal termo, ele se refere apenas ao horizonte do Estado e do mercado e a esse sentido eminentemente lógico-técnico, não-político e não-normativo, apenas instrumental, desse mesmo conceito, dessas patologias psicossociais por ele abordadas – mantendo-se também a endogenia, o fechamento e o sentido restritivo da modernidade-modernização ocidental como correlação, separação e tensão-contradição entre mundo da vida e sistemas sociais. Nenhum sentido negativo aparece na modernidade cultural e, aqui, como fizemos ver acima, o colonialismo e a própria condição do Terceiro Mundo não são abordados, possuindo, como dissemos, outro princípio, outra condição, outra causa, outra história, outro discurso filosófico-sociológico que não o moderno, que não o da modernidade por si mesma e desde si mesma12. Evidentemente, alguém poderia argumentar que esse sentido restritivo é, antes de tudo, uma chave-de-leitura e uma delimitação teórica de um objeto de pesquisa particular. Porém, pela reconstrução que fizemos e pelas várias passagens do próprio Habermas que citamos, pudemos e podemos perceber e afirmar que não se trata em absoluto, como sua condição primária e definidora do tipo de elaboração dado ao e assumido pelo discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia, de uma chave-de-leitura e de um princípio de pesquisa delimitadores de abordagens filosófico-sociológicas, mas de um pré-conceito, de uma pré-suposição que transita do eurocentrismo para o globalismo, isto é, da singularidade, do exclusivismo, da autorreferencialidade, da autossubsistência e da autossuficiência absolutas para o contato, a correlação e a identidade interna entre modernidade europeia e o outro da modernidade, mas sempre a partir da centralidade, do protagonismo e do sentido especial da modernidade – como universalismo globalismo-pós-metafísico que é ápice do gênero humano, em que o gênero humano é um grande processo de modernidade-modernização e o outro da modernidade, em suas múltiplas manifestações exteriores (já que no fundo ele é e todas as sociedades-culturas são modernidade cultural em maior ou menor grau, em maior ou menor maturidade, mas sempre em processo de modernização), é uma proto-modernidade. Ora, ao conceber o caminho e o tipo de desenvolvimento da modernidade-modernização ocidental como indo direta, reta e linearmente da Europa moderna para o Primeiro Mundo e para o Segundo Mundo, Habermas mais uma vez ignora o outro da modernidade sob a forma do Terceiro Mundo, como se ele não tivesse relação e como se ele também não fosse consequência e parte dessa mesma modernização ocidental como estrutura, princípio e movimento sistemáticos, interligados, mutuamente dependentes. Assim, também aqui, o outro da modernidade não tem nada a dizer à modernidade, não tem nada a contribuir, a ajudar, uma vez que o discurso filosófico-sociológico da modernidade é sobre e para o Primeiro Mundo, como consequência exclusiva, direta, reta, linear, pura da modernidade-modernização europeia. O Terceiro Mundo tem uma existência, uma condição, uma base, uma dinâmica, um princípio e um valor outros que a modernidade-modernização ocidental como caminho que vai da modernidade europeia ao Primeiro Mundo. Novamente, o contrário não é verdadeiro, como se pode perceber nos conceitos de política interna mundial e de segunda chance da Europa, cunhados por Habermas (não refletiremos sobre esses pontos aqui, ressaltando apenas que eles representam (a) a condição do universalismo-globalismo moderno e (b) a continuação e a afirmação dessa vocação universalista-globalista pós-metafísica da modernidade europeia) (cf.: HABERMAS, 2003c, p. 204-205; HABERMAS, 2002b, p. 206; HABERMAS, 2004b, p. 47-53; HABERMAS, 2003c, p. 80-81; HABERMAS, 2000, p. 09-10).
Em quarto lugar, e como fecho de abóboda de tudo isso, a modernidade-modernização ocidental é um mundo fechado, completo, autorreferencial, autossubsistente e autossuficiente e, portanto, não necessita do outro da modernidade pelo fato de que, como vimos em passagem de Teoria do Agir Comunicativo de Habermas, na medida em que se conscientiza em termos constitutivos e evolutivos, isto é, se racionaliza, o outro da modernidade dará razão tanto à universalidade pós-metafísica da modernidade cultural europeia quanto ao fato de que o gênero humano é um grande processo de modernidade-modernização e cada sociedade-cultural em particular é uma proto-modernidade. Nesse sentido, poderíamos acrescentar à fala de Ailton Krenak que serve de base para nossa reconstrução e nossa crítica de pressupostos-chave do discurso filosófico-sociológico de Habermas que não apenas a modernidade é um mundo fechado e completo que não precisa de colaboração, senão que também não haverá outro mundo possível como consequência da evolução humana enquanto um grande processo de modernização e, aqui, da constituição, do desenvolvimento e da evolução de cada sociedade-cultura em particular como uma proto-modernidade. De fato, a racionalização do outro da modernidade, se assumirmos essa hipótese de Habermas, não significa somente dar razão à modernidade como caminho e ápice do desenvolvimento humano ao qual todas as sociedades-culturas chegarão mais dia, menos dia, mas sim exatamente o fim, o apagamento, a desaparição do outro da modernidade em suas identidades internas, em seus projetos civilizacionais múltiplos, o outro da modernidade como alternativa concreta, efetiva e factível à modernidade, se for o caso. Portanto, como dissemos, ele não tem nada a dizer e a contribuir à modernidade porque, em última instância, já deixou de existir, pelo menos teoricamente – falta apenas o movimento prático, por assim dizer. E, no mesmo diapasão e como consequência, estamos fadados – é nosso destino antropológico, ontogenético, quase que essencial – a modernizarmo-nos, mas, principalmente, a modernidade, por esforço interno sim, mas também quase que por determinação antropológica básica, é nosso presente e nosso futuro últimos. Se Habermas não fosse um grande humanista, quase que poderíamos conceituar-lhe como profeta ou fascista (embora não haja provavelmente diferença entre os dois, o profeta e o fascista, em última instância) com esse tipo de construção do discurso filosófico-sociológico da modernidade e das consequências que são abertas a partir daí, em particular do (não)lugar, da (não)condição, do (não)papel e do (não)futuro do outro da modernidade no grande processo de modernidade-modernização ocidental, na verdade do gênero humano como um todo, que essa mesma modernidade-modernização ocidental é e representa.
Por isso mesmo, como proposição para esta situação, sugerimos dois pontos fundamentais para perspectivas filosófico-sociológicas de crítica à modernidade, mormente, para nosso caso, em termos de pensamento brasileiro, latino-americano e africano em particular, para o pensamento decolonial de um modo geral. A primeira consiste em trazer o colonialismo e o terceiro mundo para dentro do discurso filosófico-sociológico da modernidade-modernização ocidental, de modo (a) a se alargar e reflexivizar a singularidade, a endogenia, a autorreferencialidade, a autossuficiência e a autossubsistência absolutas da modernidade-modernização ocidental por si mesma e desde si mesma; (b) a se complementar com o colonialismo essa definição eminentemente interna, autorreferencial e fechada de modernidade-modernização como correlação, separação e tensão-contradição entre modernidade cultural e modernização econômico-social, colocando, por conseguinte, o colonialismo como tão primigênio quanto modernidade cultural e modernização econômico-social e, na verdade, imbricando e dinamizando modernidade cultural . modernização econômico-social e colonialismo; e (c) a se desconstruir esse caminho reto, direto, linear e restritivo que vai da modernidade europeia ao Primeiro e ao Segundo Mundos, excluindo-se tanto o colonialismo quanto o Terceiro Mundo como eixos, dinâmicas, princípios e histórias constituintes desse grande processo de modernização ocidental. A segunda proposição, como consequência da utilização do colonialismo como teoria da modernidade, consiste em salientar as vozes, as histórias, as práticas e os valores dos sujeitos socioculturais e epistemológico-políticos produzidos, silenciados, despolitizados, excluídos e marginalizados pela modernidade-modernização ocidental em sua expansão universalista-globalista como colonialismo, de modo que, agora sim, para fazermos jus à observação e à crítica de Ailton Krenak, o outro da modernidade teria algo a dizer e a contribuir a um, para um processo de modernidade-modernização ocidental que já não é mais um movimento fechado, singular e exclusivo da Europa sobre si mesma, desde si mesma e por si mesma, totalmente autossubsistente, autorreferencial e autossuficiente, que, por isso mesmo, não precisa do outro da modernidade. Esse outro da modernidade, em seus múltiplos sujeitos, histórias, experiências, práticas e valores nos apresentaria as versões da modernização, nos faria perceber o próprio Terceiro Mundo como uma consequência produzida pela expansão da modernidade-modernização ocidental em termos de Primeiro e de Segundo Mundos e, assim, como parte fundamental dela. Sobretudo, reconhecer-se o colonialismo como teoria da modernidade, como correlacionando modernidade cultural, modernização econômico-social e esse mesmo colonialismo implica em efetivamente trazer esses múltiplos outros da modernidade, isto é, outros produzidos pela modernidade europeia e, depois, ocidental em suas histórias, experiências, valores, práticas, relatos e projetos alternativos de sociabilidade, de crítica à modernização central desde a modernização periférica enquanto um continuum, um processo correlacionado e mutuamente dependente, e não como realidades estanques e totalmente diferenciadas uma em relação à outra. O colonialismo e, portanto, os/as outros/as da modernidade, produzidos/as pela modernidade, partes constituintes e fundamentais dessa modernidade ampla, efetivamente trariam reflexividade, correção, crítica, politização e transformação para a modernidade-modernização como um todo, uma situação que o discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia desde si mesma e por si mesma e a autocompreensão normativa que ele gera, dado a cegueira histórico-sociológica que os sustentam, a romantização filosófica que os dinamizam e os motivam e, por fim, o purismo cultural e o messianismo salvífico que os impulsionam sempre adiante, já não conseguem fundar, sustentar e promover.
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Contribuição dos(as) autores(as): Leno Francisco Danner preparou o primeiro esboço do artigo, que foi lido e discutido com Julie Dorrico e Fernando Danner, os quais propuseram intervenções relativamente ao texto apresentado; Leno Francisco Danner readequou o artigo conforme as sugestões discutidas e consensuadas; o artigo foi relido e reestudado. Os(As) autores(as) aceitaram e aprovaram a sua versão final.
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Autor(a) para correspondência: Leno Francisco Danner, Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Rondônia, Campus José Ribeiro Filho, BR 364, KM 9.5, Zona Rural, 76801-059, Porto Velho – RO, Brasil. leno_danner@yahoo.com.br