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Vida enquanto absoluto incondicionado: sobre a materialidade da essência da manifestação na fenomenologia de Michel Henry

Life as absolute unconditioned: about the materiality’s essence of manifestation in the Michel Henry’s phenomenology

Symon Sales Souto
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

Vida enquanto absoluto incondicionado: sobre a materialidade da essência da manifestação na fenomenologia de Michel Henry

Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 105-114, 2019

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 24 Março 2019

Aprovação: 10 Agosto 2019

Resumo: A Fenomenologia Material de Michel Henry nos desvela o imenso domínio da vida que nos supõe outro conceito de absoluto, a saber, essa vida originária em cada cogitatio enquanto auto-afecção, onde nem a vida e tampouco o desvelado por ela são meros conceitos abstratos, mas uma realidade carnalmente passível. Este saber da vida se abre contra-redutivamente, de modo que, na passibilidade radical da vida, a partir de um sentimento que sempre ocorre na ipseidade de sua carne patética, Verbo e carne permanecem desde sempre unidos enquanto começo absoluto independente de representações. Nesta medida, ir à ‘coisa mesma’ desta fenomenologia não intencional implica em descobrir o ser na transparência de sua vinda a si, absolutamente autônoma, cujo processo de fenomenalidade dispensa uma distância. Assim, Henry insiste no pathos que ego sum sem nos obrigar a passar por uma representação, graças ao primado do aparecer em sua própria aparição, no entanto, nos permanece como questão latente entender em que consiste essa vida enquanto absoluto incondicionado. Como é possível falarmos desta vida que leva a cabo a experiência de si, identificando com tal movimento? Para tanto, este trabalho tem como base central L’Essence de la Manifestation de Michel Henry que, ao nosso ver, defende como tese o devir fenomênico do ser como pura afecção de si num corpo próprio e, nesta medida, apresentar-se-ia como um bom fundamento por converter da transcendência para uma imanência pura o desvelar do próprio ser.

Palavras-chave: Vida, Absoluto, Essência da Manifestação, Fenomenologia Material.

Abstract: The Material Phenomenology of Michel Henry reveals the immense life domain that supposes another concept of absolute, namely, this originating life in each cogitatio as auto affection, where nor the life and neither the revealed about her are mere abstract concepts, but a carnally susceptible reality. This life knowledge opens counter-reductively, so that the radical life passibility from a feeling that always occurs in the ipseity of its pathetic flesh, Verb and flesh had always been together as absolute beginning independent of the representations. In this measure, to go to the ‘same thing’ of this non-intentional phenomenology implies in discovering the being in the transparency of its itself coming, absolutely independent, whose phenomenally process dispenses a distance. Thus, Henry insists on the pathos that ego sum without forcing us to pass by a representation, thanks to the primacy of appearing on its own apparition, however, remains as latent question to understand in what consists this life as unconditioned absolute. How is it possible to talk about this life that carries out the experience of itself, identifying with such movement? Therefore, this work has as central base L’essence de la Manifestation by Michel Henry that, in our view, defends as thesis phenomenal becoming of the being which a pure affection of himself in his own body, and in this measure, would be presented as a good foundation per converting from transcendence to a pure immanence the unveiling of the own self.

Keywords: Life, Absolute, Manifestation’s Essence, Material Phenomenology.

A vida enquanto absoluto incondicionado: solo originário da manifestação.

A Fenomenologia Material de Michel Henry procura se distanciar de “sinalar condições de possibilidades lógicas ou subjetivas e caminha em direção ao ser mesmo como última condição” (GARCÍA-BARÓ, p.05 in HENRY, 2003); no entanto, como é possível falarmos desta experiência de si do ser? É notório observar que Michel Henry opta por diversas maneiras para comprovar sua tese, desde o cogito de Descartes, passando pelo inconsciente de Freud, as ressonâncias de Kandinsky, o contínuo resistente de Maine de Biran, o cristianismo de Kieerkeggard, além de mostrar-nos a dificuldade da fenomenologia em oferecer uma resposta ao como do aparecer da fenomenalidade pura enquanto tal, dentre outros. Para nós, nos importa como objeto de pesquisa compreender o movimento imanente do puro ato de aparecer do ser como subjetividade que, ao nosso ver, caracteriza-se como espinha dorsal de sua Fenomenologia Material.

O devir fenomênico do ser que de que nos fala Henry não é mera descrição, mas pura afecção de si num corpo próprio e, nesta medida, apresentar-se-ia como um bom fundamento por converter da transcendência para uma imanência pura o desvelar do próprio ser. Comentando a respeito, Furtado nos indica que a essência dos fenômenos na Fenomenologia Material “não se opõe à fenomenalidade que ela torna possível, não está além ou aquém da manifestação que é sua obra. Ela se manifesta em outro lugar, de uma outra forma, de forma imanente, através da afetividade da vida” (2008, p. 237). Sobre a afetividade desta essência, sentimo-la em nossa carne. e seu processo de fenomenalização:

Não é uma auto-posição, uma auto-objetivação, ela não se põe diante de si para afetar-se de si mesma, no sentido de uma manifestação de si que seria a manifestação do objeto. Com efeito, é isso que a vida não pode ser. A vida se afeta, é para si, sem se propor a si mesma na objetivação da ek-stasis, ela se sente sem que isso seja pela intermediação do sentido, de um sentido interno nem de um sentido qualquer em geral (HENRY, 2011, p.207).

Ao que vemos, o ego transcendental enquanto solo apodítico seguro alcançado pela abstração eidética na fenomenologia intencional de Edmund Husserl adquire, com Michel Henry, uma radicalidade essencial, isto é, uma referência de maior verdade, sem que para isso lhe fosse preciso que o ser se distanciasse de si mesmo. Nessa medida, o devir fenomênico do ser na fenomenologia material desvela-se em uma interioridade abissal. Em outras palavras, Rosa comenta que:

Na auto-revelação da vida absoluta, como doação passiva para si mesma, que também cada Soi-même é dado e vem a ser, não apenas como eu transcendental, mas como vivente, singular, concreto, nas suas moções mais secretas e humildes e em todos os seus poderes. Não é, portanto, a vida irreal, noemática, essência abstrata, mas a vida concreta dos viventes (o Pedro, a Ivete) [...]. As modalidades subjetivas mais imediatas para nós desta passividade são o sentir-se a sentir, o ver-se a ver (videre videor) o padecer-se (de pathos), ser para si mesmo uma doação originária (2006, p.12).

Aceito esse pressuposto, toda e qualquer experiência no tocante às subjetividades dever-se-ia ser repensada, afinal, “o ser não precisa negar-se em sua universalidade para se dar o momento de sua particularidade. Muito pelo contrário, o particular, se quisermos utilizar esta linguagem, é a essência do ser, sua possibilidade mais íntima, e o desdobramento de sua positividade” (HENRY, 2011, p. 208). Deste modo, com a Fenomenologia Material, vida e vivente tornam-se polos indissociáveis para compreendermos o devir efetivo da fenomenalidade “no já de sua condição primitiva, que é, como tal, como este ‘já’ da manifestação pura efetiva que faz possível todo o comportamento e todo passo anterior, o absoluto. O ser se manifesta ‘já’ de entrada, com anterioridade, a todo trabalho de elucidação” (HENRY, 2003, p.p 141-142); entretanto, como falar desse aparecer da vida, cujo aparecimento se faz possível toda a carne?

Para Henry, o sujeito matematizado, calculado, dissimulado da cientificidade operante desde a era moderna não era compatível com o sujeito da vida abalado em seu ser mesmo que, a partir da Fenomenologia não-intencional, torna-se passível de ser pensado “substituindo o aparecer do mundo no que se nos mostram os corpos pelo aparecer da Vida, a que pela afetividade transcendental é possível toda a carne” (HENRY, 2000, p.35). No tratamento da questão, nosso autor considera que autodoação caracteriza o advir de si do ser. Nesta medida, o que se sente a si mesmo de modo imanente apresenta-se como pura afecção de si, cujo devir fenomênico independe da odisseia de seu desvelamento, pois ocorre no seio mesmo da essência. Discorrendo a questão, Dufour-Kowalska (1980, p. 38, grifos do autor) pontua que “o processo de determinação positiva do autêntico fundamento da fenomenalidade, será chamado por Henry de ‘essência originária da revelação’”. Essa essência originária da revelação é a fenomenalização da fenomenalidade pura em seu devir fenomênico autônomo, ou seja, a vida enquanto absoluto incondicionado no experimentar-se de si mesma como uma ipseidade capaz de sentir-se a si mesma sem distância alguma. Nesta medida, quando se fala do ser do ego, conforme nos indicou Furtado, compreendemos que “é, pois, na atualidade da vida, no presente vivo que devemos encontrá-lo [...] atualidade que não pode ser senão presença imanente a si, anterior a toda projeção da vivência no horizonte retencional aberto temporalmente da consciência” (2008, p.238). A vista do que dissemos, nos permanece como questão, todavia, compreender em que medida o Filósofo de Montpellier compreende esse aparecer como uma estrutura subjetiva. No tratamento da questão diz Henry que:

Todo o ego, mas também todo o eu (moi) de todo indivíduo no sentido humano, transporta consigo um Si transcendental cuja ipseidade nasce no processo de auto-fenomenalização da vida e em nenhum outro lugar. Com efeito, é tão só o experimentar-se a si mesmo da sua fenomenalidade própria que a vida gera em si a ipseidade de um Primeiro Vivo e, assim, de todo o Si concebível. Por conseguinte, o ego nunca é primeiro, ele nasce, nasceu na vida e só nela é inteligível (HENRY, 2008, p.16).

A vida é porque aparece e seu aparecer de si é sentido em nossa ipseidade. Sobre seu devir, ela sofre de seu próprio fruir, cujo movimento é sua própria receptividade. e, por esta razão, o eu não pode separar-se de si. No entanto, para que esta a autodoação seja passível de ser pensada, o devir efetivo de sua manifestação deve se dar na obra pura de sua essência mesma, de modo a “ser a própria ação, porquanto ela se sofre originalmente, na sua passividade ontológica em relação a si” (HENRY, 2003, p.595). Mas, o que significa a manifestação ser autônoma e, nesse sentido, não dever a sua fenomenalidade à transcendência de um puro ato de ver?

Segundo Henry, a vida. recebe o próprio conteúdo sem nenhuma mediação e, por esta razão, diz o filósofo que autoafecção. caracteriza-se o modo pelo qual a essência da manifestação se manifesta, ou seja, o ser se manifesta de entrada a todo trabalho de elucidação enquanto absoluta presença de si, sentida na carne viva de um sujeito patético; uma imanência radical na autodoação de si. Comentando a respeito de sua estrutura interna, Rodríguez nos indica que:

A estrutura interna da imanência é descrita na Essência da Manifestação como passividade. Na passividade, o ser do Sou, está ligado ao estado de ânimo do sujeito. Baixo a afecção do estado de ânimo se tem a notícia do ser que se revela de primeira mão através da condição afetiva do Sou. Henry denomina a relação entre a passividade e a afecção que se desatam no Sou “passividade ontológica original”. A realização desta passividade não se dá no plano da projeção ideal, mas na mesma imanência, na qual se mostra a condição subjetiva do sou com respeito a sua afecção (2012, p.124, grifos do autor).

Não somos porque pensamos sobre a vida, mas simplesmente porque ela se manifesta em nós, cuja manifestação não supõe nenhuma separação de si. Seu dar-se é imanente e, por conseguinte, absoluto. Deste modo, a vida de que falamos apresentar-se-ia como solo originário da manifestação por ser:

Fenomenológica num sentido original e fundador. Não é fenomenológica no sentido em que também ela se mostraria, [em que seria mais] um fenómeno entre outros. É fenomenológica no sentido em que é criadora da fenomenalidade. A fenomenalidade surge originalmente ao mesmo tempo que a vida, sob a forma de vida e de nenhuma outra maneira. A fenomenalidade acha a sua essência original na vida porque a vida experiencia-se a si mesma [s’éprouve soi-même], de tal maneira que este experienciar-se é o auto aparecer do aparecer (HENRY, 2006, p.13, grifos do autor).

Este processo não é teorético mas real, ou seja, consiste no sentir originário da subjetividade, isto é, de um sujeito real mergulhado na vida que poder [amar], poder [sentir], poder [cogitar], poder [duvidar], poder [mover], poder [poder]. A prova do que lhe é exterior é possível porque cada subjetividade sente-se a si mesma na vida e permanece sentindo-se ancorada à prova que tem de si mesma. Dito de outro modo, o ser impressiona-se afetivamente em sua imanência absoluta assumindo em cada instante, em cada canto de uma ipseidade, a responsabilidade de sua autodoação. Neste ponto, indica Michel Henry que o puro ato de ver da cogitatio não seria capaz de desvelar a manifestação do ato de aparecer considerado enquanto tal, realizado pelo próprio ato de aparecer enquanto fundamento de sua própria manifestação.

Assim, a fenomenalidade do ser, em seu constante processo de fenomenalização versa um conhecimento do absoluto, pois o ser aparece como aparecendo de modo irredutível a si, em sua permanência inquebrantável de si a si mesmo, logo, não é mera contingência, mas obra sua mesma e, por esta razão, dirá nosso autor que não há possibilidade de se “separar a essência compreendida em sua pureza e o devir fenomênico que ela realiza” (HENRY, 2003, p.139). A guisa destas considerações, a vida de que falamos:

É tão só aquilo que experiencia em si mesma sem diferir-se de si, de modo que esta experiência é uma prova de si e não de outra coisa, uma auto-revelação em sentido radical [...]. É nesta Afectividade e como Afectividade que se cumpre a auto-revelação da vida. A afectividade originária é a matéria fenomenológica da auto-revelação que constitui a essência da vida. Ela faz desta matéria uma matéria impressional que jamais é uma matéria inerte, a identidade morta de uma coisa. É uma matéria impressional experienciando-se a si mesma impressionalmente e não deixando de o fazer, uma auto-impressionalidade viva (HENRY, 2000, p. 74).

A vida apresenta-se, portanto, na Fenomenologia Material como solo originário da manifestação por se tratar de uma auto doação que independe de intuições, correlações, atos, valores; isto é, ela é uma autoafecção radical que nos permite sentir, ancorados à prova que temos de nós mesmos nela como este ser humano enquanto “consciência que quer isso ou aquilo, que tende a algo desta ou daquela maneira, que age deste ou daquele modo, e assim por diante” (FABRI, 2012, p.36). Deste modo, o ser ainda que seja sempre o ser de um ente, o si vivente, uma ipseidade, diz respeito ao:

Absoluto em repetição principal da vida auto-afetando-se para sempre na sua intensidade sempre nova ou diferenciada, é o sentimento da vida enquanto nosso ‘ser sentido’ por excelência: saber plenamente que estamos mergulhados de maneira única na vida, o que significa viver enquanto indivíduo sem fuga ou subterfúgio possíveis (KÜHN, 2010, p.56, grifos do autor).

Aceito este pressuposto, conforme nos lembra Kühn, nos é “impossível colocar entre parênteses a vida como Fundo desta última, já que toda a aparência — seja ela, objeto, ideia, valor, sentimento ou situação — implica a vida enquanto tal” (2010, pp.35-36); contudo, é preciso observar que a autodoação da vida enquanto um soi-même, conforme estabelece Michel Henry, “pressupõe sempre, como sua condição, o devir afetivo da manifestação na obra pura da essência, isto é, a selbständigkeit. desta” (HENY, 2011, p. 138).

Devir fenomênico autônomo na essência da manifestação

A questão trabalhada no tópico nos indica que a manifestação imediata do ser significa a presença imediata da Presença enquanto tal, o ser presente a si mesmo. Vimos também que a manifestação do ser não depende do trabalho metodológico da fenomenologia, ao contrário, o precede e o torna possível,. mas como é possível falar de uma radicalidade no conceito de imanência? Em primeiro lugar, entendemos que o ser deve poder mostrar-se. No entanto, a partir do método intencional, seu devir fenomênico se realiza mediante o trabalho metodológico de um ego transcendental, e não em e por si mesmo. Imanência, conforme insiste Henry, implica que “o devir fenomênico deve se realizar na essência e por ela” (2003, p.138) e não sob o ser visto por uma vista pura de uma cogitatio real. Seu aparecer encontra sua realização no seio mesmo da essência, sem vislumbre de transcendente algum e, por compreender si mesma na afecção de si, ela é autônoma.

Nas primeiras páginas da seção dois de L’essence de la Manifestation, Henry dedica suas considerações fenomenológicas sobre o caráter originário da manifestação do ser e o problema da consciência natural (§17), onde nos afirma que a manifestação do ente pressupõe o devir efetivo da manifestação na obra pura da essência, isto é, “a selbständigkeit desta” (HENRY, 2003, p. 138). Essa imanência do devir fenomênico da essência do ser é, aos cuidados de nosso autor, o que funda o direito de chamá-la essência; logo, dever-se-ia ser considerada em qualquer pretensão fenomenológica, pois a fenomenologia não se preocupa com os objetos no como de sua aparição, mas com as condições de possibilidades da própria aparição.. É válido ressaltar que Henry não é contrário à ideia de que o ser seja sempre o ser de um ente. Entretanto, é preciso admitir que a finitude do ente não pode dissimular a essência, pois é “na medida em que o aparecer aparece que todo o ente em geral é suscetível de ser” (HENRY, 2008, p. 03). Assim, o devir fenomênico do ser como ente é anterior a sua representação, pois autoafecção de si implica em um ato de aparecer. Que esse ato de aparecer seja realizado pela própria essência da manifestação, isto é, “enquanto que o devir fenomênico está incluído na essência da fenomenalidade, esta encontra em si mesma sua possibilidade” (HENRY, 2003, p.139).

Henry pensa o fundamento do ser mediante sua realidade ontológica própria e observa que ele não reside na realidade humana mesmo, mas sim a partir de sua autoafecção de si. Ademais, observamos entre as páginas de L’essence de la Manifestation que a representação intencional diz respeito a uma manifestação desvelada, o ser-para-si, isto é, uma compreensão existencial de si da existência a partir de um ato determinado de captação e representação, de modo que representando o ente, representar-se-ia o ser (Cf. HENRY, 2003, §19). Porém, o que está em questão, diz Henry (2003, p. 55), “é a possibilidade de um conhecimento absoluto”, ou seja, o absoluto na absolutez de si, sem transcendente algum no ‘já’ se sua condição primitiva (HENRY, 2003, p. 142).

O dever poder manifestar-se da essência, nos mostra Henry (2003, p.141), possui um caráter ambíguo. Por um lado, quando a possibilidade que tem o ser de mostrar-se é dependente do trabalho metodológico da fenomenologia, o desvelado por ela não diz respeito ao ato de aparecer da fenomenalidade pura enquanto tal,. isto é, não a faz vir à luz efetivamente tal como é, em e por si mesma. Por outro lado, nos mostra a Fenomenologia Material que “a manifestação do ser não resulta de qualquer progresso, não depende de qualquer processo, ela não está relacionada com o devir de qualquer saber [...] porque ela é a realidade originária, ela não se fenomenaliza jamais no campo da irrealidade constitutiva de toda transcendência” (DUFOUR-KOWALSKA 1980, p. 39). Nas palavras de Michel Henry, “a relação está presente porque o ser se manifesta”. Somente sob o fundo dessa manifestação, acrescenta nosso autor, “o ente é o que é” (HENRY, 2003, p.142).

A tradição fenomenológica trata essa possibilidade do mostrar-se fenomênico da fenomenalidade a partir de um poder elucidativo de uma consciência intencional; entretanto, a verdade originária não pode ser objeto de um visar intencional, considerando que ela não é aquém ou além da consciência, jamais exterior. Ela é a manifestação do absoluto em sua absolutez, isto é, a manifestação imediata da Presença, “é a Presença na Sua Presença, o Ser presente enquanto tal, no sentido de que está presente a si mesmo. Sua manifestação é imediata e, jamais, mediata” (HENRY, 2003, p. 143). Temos insistido que a manifestação do ser não exclui que ele seja sempre o ser de um ente, porém, o ganho da Fenomenologia Material consiste em denunciar que para a efetividade de sua manifestação, ele deve pressupor sempre, como sua condição, “o devir efetivo da manifestação na obra pura da essência, a selbständigkeit desta” (HENRY, 2003, p.138). Eis, pois, o que possibilita separarmos eideticamente a essência compreendida em sua pureza e o devir que ela realiza.

Somos auto engendramento na e pela vida; imanências absolutas. É nesse sentido que o ego sente-se a si mesmo como uma verdade apodítica, pois sente-se de imediato na presença deste absoluto que é a vida, confundindo-se com ela. Este saber absoluto é o modo pelo qual essa consciência, essa carne, esse corpo vivo se compreende a si mesma, não mais a partir do mundo, mas a partir de uma compreensão ontológica radicalmente independente de toda compreensão existencial, tendo em vista que “a essência da manifestação encontra nela mesma sua realidade enquanto que a realidade efetiva da manifestação que se produz nela, encontra também nela, seu próprio fundamento” (HENRY, 2003, pp.139-140).10

O ego transcendental não pode afastar-se de si nessa relação consigo mesmo, pois sua essência é a parusia do absoluto, um sofrer de si e gozar desta autoafecção primordial que, conforme vimos, encontra na subjetividade sua realização. A doação imanente do ser em sua selbständigkeit deve, por essência, ser autodoação original da própria doação, o experimentar-se a si mesmo. É válido inferirmos, por conseguinte, que o dever poder mostrar-se do ser não se constitui “no final de um processo ou de uma história, mas originalmente. A manifestação originária do ser é o único que faz possível a manifestação do ente, e o faz porque constitui a essência mesma desta” (HENRY, 2003, p.144).11 Nesta medida, “a finitude do ente em sua condição objetiva não pode, portanto, dissimular a essência. Completamente oposto a isso, essa finitude do ente pressupõe como sua condição, a manifestação efetiva da essência em sua pureza” (HENRY, 2003, p.138). Assim, entendemos com Michel Henry que Selbst:

Não significa, por conseguinte, simplesmente, como no texto husserliano, que a coisa dada se dá em si mesma, se mostra em si mesma, na desnudez de sua realidade própria: tal como aparece e, assim, tal como é [...] Selbst e assim mesmo Selbstgegebenheit quando se trata da cogitatio, tem uma significação completamente diferente. Em primeiro lugar, o Si está vinculado a doação de uma maneira essencial de tal forma que nesta doação de si (autodoação) não há nada outro que considerar salvo a doação mesma. Em segundo lugar, a doação mesma mudou-se: já não consiste na exterioridade transcendental de um mundo, mas em uma interioridade tão radical na qual ela resulta proscrita toda exterioridade concebível. Esta interioridade da autodoação enquanto tal é justamente a imanência da cogitatio (HENRY, 2009, p. 110-111, grifos do autor).

Ao que entendemos, o devir fenomênico do ser nada depende do ser visto pela vista pura de umacogitatio real, pois percebe-se em si mesmo enquanto parusia do absoluto, isto é, a vida sofre de sua própria afecção e no padecer de si, no excesso de si, desvela-se fenômeno. Assim, em cada ‘hetero-afecção’ há uma auto afecção de si correspondente dessa abertura ontológica originária da fenomenalidade em seu devir fenomênico autônomo. Eis o absoluto ainda mais originário que, no excesso de si, goza de sua própria doação. Na Fenomenologia Material, portanto:

A determinação ontológica da realidade do sentimento como coextensiva e coexistencial a sua revelação e como idêntica a seu conteúdo, funda o caráter absoluto desta realidade, a designa e a constitui como o que, mostrando-se na aparência [l’apparence] que dá dela mesma e esgotando-se nesta aparência [apparence], coincidindo com ela e encontrando nela, a realidade de seu aparecer [apparaître] e do que ele deixa aparecer e em sua substância, sua própria realidade, sua própria substancia, se põe e se afirma na positividade de seu ser fenomenológico irrecusável e desnudo, e não se deixa discutir (HENRY, 2003, p. 694).

Considerando a estrutura interna da essência, entendemos que Michel Henry concebe a ipseidade como um constante sentimento de si da essência, entregue a si para ser o que é mediante o modo em que o ser se dá a si, o que vale dizer, o absoluto desdobra-se em seu constante esforço imanente e apropria-se de si no seu constante agir como uma imanência absoluta. É nesta medida que somos um sujeito real;12 vivo, em-carnado. Na guisa destas considerações, Dufour-Kowalska comenta que a archi-estrutura do sentimento tem uma dupla determinação. De um lado, o si se determina como afetividade, isto é, ele é o seu próprio fundamento, mas, por outro lado, a afetividade é simultaneamente um ato do si e, nesse sentido, permite conclusões como por exemplo, “o si é a substância da experiência constitutiva da afetividade; ou melhor, a afetividade em tanto que Si, o si em tanto que afetividade, formam uma substância vivente” (1980, p.55).13

A partir do que dissemos, somos capazes de compreender em que medida a “consciência não pode esquecer o ser que constitui sua essência mesma” (HENRY, 2003, p.145), pois pensar a si mesmo de modo imediato e, por sua vez, absoluto, implica nessa perfeita e completa ‘aderência’ entre fenomenalidade e seu fenômeno no seio mesmo da afetividade. Destarte:

Identidade entre ao afetante e o afetado que reside e se realiza, isto é, encontra sua possibilidade não teórica, mas real na efetividade de sua efetuação fenomenológica, na afetividade. A afetividade opõe assim a quaisquer outras, na suficiência absoluta de sua interioridade radical. A afetividade é a essência da ipseidade, todo sentimento em quanto tal, como sentimento de si, um sentimento do Si-mesmo que deixa ver, revela, constitui o ser deste (HENRY, 2003, p.581).14

Entendemos que só há relação entre consciência e objeto porque o ser mesmo já está presente. Assim, a auto evidência da cogitatio é, na Fenomenologia Material, a manifestação do absoluto em sua absolutez que, por essência, tem o hábito de sentir-se a si mesma. Contudo, essa presença, diz Henry, só é possível graças à manifestação de si do ser em sua estrutura ontológica universal e, por esta razão, a consciência intencional só é capaz de falar daquilo que aparece como aparecendo, inclusive a si mesma. O ato originário pelo qual esse movimento tem lugar precede a todo ato de captação, pois, conforme apontamos, encontra sua realização na selbständigkeit da essência.

Assim, a compreensão existencial de si se caracteriza como um modo particular da vida na consciência, uma compreensão da existência por ela mesma. É sempre um conteúdo visado, noésis e noema, uma compreensão explícita do objeto. Já a compreensão ontológica do ser, diz Henry, independe de como ela se representa; no entanto, a separação da compreensão existencial da compreensão ontológica é irreal, pois a unidade da essência com a existência constitui a ‘coisa mesma’ de uma subjetividade.15 Nas palavras de Michel Henry:

Que o ser deva poder manifestar-se não significa que a manifestação de si do ser possa ou deva aderir-se à essência do ser no transcurso ou ao término de um processo que permita a esta essência realizar-se; significa que a essência do ser é a manifestação de si. A manifestação de si é a essência da manifestação [...]. É originária, o que quer dizer que não é obra do saber filosófico, mas da essência mesma. A manifestação de si da essência não é obra do saber filosófico. Este a pressupõe constantemente como a condição mesma de seu cumprimento (2003, p.146, grifos do autor).16

A vista do que fora dito, entendemos que a representação do ser pela consciência filosófica, todavia alicerçada no monismo ontológico, esqueceu-se de que é graças a sua estrutura ontológica universal que permite a que cada consciência “tenha uma compreensão existencial implícita de si mesma” (HENRY, 2003, p.153). A representação como um modo determinado de vida da consciência, representando o ente, representava o ser; no entanto, tratar-se-ia sempre de uma manifestação desvelada, intencional, particular. Destarte, “a consciência pode existir sem que o saber verdadeiro se produza nela” (HENRY, 2003, p. 151), mas de modo algum seu contrário, ou seja, o saber filosófico não pode produzir-se sem que a manifestação de si do ser tenha realizado sua obra no ‘já’ de sua manifestação de si.

Em suma, radicalizando a doação da própria cogitatio, Michel Henry defende sua tese de que a doação do absoluto em sua absolutez de si é anterior à tomada de consciência do ato de aparecer em virtude do qual ele aparece. O saber de si, diz nosso autor, se opõe ao ser para si que nos é revelado dentro de um ato determinado de captação e compreensão (Cf. HENRY, 2003, §19). Saber de si, ou seja, sentir-se a si mesmo enquanto absoluta presença de si é “autodoação na qual todo o poder se recebe a si mesmo e é por isso investido de si” (HENRY, 2000, p. 205). Nesta medida, compreende-se que a Fenomenologia Material dita uma Fenomenologia da Vida, pois “viver, significa ser” (HENRY, 2011, p. 199). Somos no instante em que a vida nos afeta e nos faz viventes em sua auto afecção de si e, por isso, “a filosofia chega sempre, demasiado, tarde, [no que diz respeito à fenomenalidade do fenômeno], pois o que ela disse era no princípio” (HENRY, 2003, p.170, grifos nosso). Por fim, somos capazes de inferir, conforme o que já dissemos, que todo o vivente “existe por si mesmo sem nenhum contexto, sem o suporte de nenhum ser exterior” (HENRY, 2003, p.57). Ele é auto afecção de si na e pela vida.

Referências

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Autor(a) para correspondência: Symon Sales Souto, Universidade Federal de Santa Maria, Av. Roraima, nº1000, Bairro Camobi, 97105-900, Santa Maria – RS, Brasil. symonsalesouto@gmail.com

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