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Arte e virtude em Montaigne e Diderot
Art and virtue in Montaigne and Diderot
Arte e virtude em Montaigne e Diderot
Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 156-165, 2019
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 21 Abril 2019
Aprovação: 11 Agosto 2019
Resumo: Montaigne e Diderot foram filósofos, humanistas e defensores de um ceticismo crítico. Seus escritos se caracterizam por um estilo de escrita fluído, privado e cômico. Em Diderot vemos um filósofo dramaturgo, autor e crítico de peças teatrais. Em Montaigne um filósofo não acadêmico, um magistrado avesso ao perfeccionismo da filosofia escolástica, que instaurou um novo estilo de escrita. Há um traço em comum na forma como ambos compreendem a filosofia. Para Montaigne e Diderot, ética e estética são dois domínios da filosofia que possuem uma estreita relação. A obra de arte é um elemento essencial que possui o poder de despertar o espírito humano e conduzi-lo à vivência da verdadeira virtude.
Palavras-chave: Montaigne, Diderot, Ética, Estética, Filosofia.
Abstract: Montaigne and Diderot were philosophers, humanists, and defenders of critical skepticism. His writings are characterized by a fluid, private, and comic writing style. In Diderot we see a philosopher playwright, author and critical theatrical. In Montaigne a non-academic philosopher, a magistrate averse to the perfectionism of scholastic philosophy, which instituted a new style of writing. There is a common trait in how they both understand philosophy. For Montaigne and Diderot, ethics and aesthetics are two domains of philosophy that have a close relationship. The work of art is an essential element that has the power to awaken the human spirit and lead it to the experience of true virtue.
Keywords: Montaigne, Diderot, Ethics, Aesthetics, Philosophy.
Uma das principais características, que estão no cerne da tragédia tradicional, é o que Peter Szondi denomina coup de thêatre. O objetivo do golpe teatral é causar uma reviravolta na condição das personagens e dessa forma surpreender o espectador. Esse efeito é o que Aristóteles denomina, na Poética, de katharsis: uma combinação de medo e terror, que provém de um acontecimento inesperado e drástico.. No drama burguês de Diderot observamos uma forma diferente. O tableau, ao contrário do golpe de teatro, é uma condição estável, que dá às personagens uma disposição natural, que perdura durante toda a peça.. Essa nova forma surge da conduta racionalista e diligente da burguesia, avessa ao acaso e à indecência do gênero trágico.
O drama burguês surge como uma consequência da revolta da burguesia contra a nobreza e tinha um propósito moral de disseminar a ética protestante. É de suma importância enfatizar o aspecto histórico que indica a mudança da tragédia clássica para o drama burguês moderno.
Ao programar a supressão do “golpe de teatro” e sua substituição pelo “quadro” [...], Diderot põe fim, ao menos na teoria, ao modelo neoaristotélico. Os dramaturgos franceses do século XVII jamais souberam com precisão [...], o que era a katharsis trágica. Mas o que é certo é que, sem golpe de teatro (peripeteia) – associado ou não a um reconhecimento (anagnorisis) – não poderia haver para Aristóteles, a catarse e, assim, tampouco tragédia. No drama projetado por Diderot, a fábula (mythos) não é mais, como em Aristóteles, a “alma” da peça – pelo menos não como “sistema de fatos” fundamentado na concatenação das ações e na progressão dramática. O curso da ação se interrompe, a história se fragmenta segundo o princípio de uma sucessão de quadros. O quadro suspende o tempo da ação, a corrida em direção à catástrofe: em um único “instante prenhe”, ele concentra o passado, o presente e o futuro. Colocado diante do quadro, o espectador sem dúvida sente emoção, mas uma emoção a tal ponto permeada de reflexão que não poderia causar essa descarga afetiva coletiva, provocada pelo terror ou pela piedade, que pressupõe a catarse trágica (SARRAZAC, 2013, p. 3).
A ascensão da burguesia trouxe consigo uma nova tendência estética. Ao invés de transmitir ao espectador o terror e o medo do gênero trágico, o drama burguês leva uma sentimentalidade mais amena, em que prevalece a confiança e a benevolência. Jean-Pierre Sarrazac aprofunda ainda mais a discussão em torno da mudança do coup de thêatre para o tableau. Ao abrir mão de dispor desse recurso dramatúrgico (golpe de teatro), o drama burguês perde o recurso cênico de provocar a catarse na plateia, o que, como veremos mais adiante, não será encarado como um imbróglio pelo Diderot. No drama burguês não há um encadeamento rigoroso entre as cenas e os atos como na tragédia clássica. Porque o quadro cênico viabiliza ao autor sustar o curso da peça e concentrar passado e futuro em um único momento, autônomo frente à peça como um todo e concentra em si mesmo o enredo da obra.
Em O filho natural, de Diderot, observa-se alguns vestígios de tragédia. O amor entre Rosali e Dorval é um grande exemplo disso. Rosali é noiva do seu amigo Clairville, o que torna a expectativa desse amor ignominiosa para Dorval. No entanto, o componente trágico não reside nesse ponto. Há algo que Dorval e Rosali não sabem, que só será descoberto no final da peça com a chegada do pai de Rosali. O teor trágico surge com a vinda de Lysimond, que para a surpresa de todos, não era somente pai de Rosali mas também de Dorval. Nada como a interdição do incesto para dar uma pincelada de tragédia à peça. Mas ao contrário da tragédia Édipo Tirano, de Sófocles, em que a união incestuosa se consuma, em O filho natural há um outro desfecho. Ao descobrirem que eram irmãos, ambos se conformam espontaneamente com a impossibilidade desse amor. Rosali depois de passar a peça inteira desprezando o seu companheiro, acaba por aceitar a sua união com Clairville. Encontramos também algum traço de comédia nessa peça.. Na cena nove do ato II, Constance, irmã de Clairville, encontra uma carta que Dorval havia escrito para Rosali, que dizia o seguinte: “Eu a amo, e fujo... pobre de mim! Tarde demais... demais! Sou amigo de Clairville... Os deveres da amizade, as leis sagradas da hospitalidade?...” (DIDEROT, 2008, p. 52). Constance lê a carta por engano pensando que Dorval estivesse se declarando pra ela. É um momento cômico, quando Dorval não consegue desmentir sobre a verdadeira destinatária e fica extremamente constrangido com a situação.. Dessa cena e do seu desenvolvimento será proposto que examinemos dois aspectos da teoria do drama burguês de Diderot.
Nessa confusão com a carta de Dorval poderíamos ver um exemplo de quadro cênico; nela encontramos o passado e o porvir da peça; além de ser uma cena decisiva para o enlace da obra. Devo destacar que essa interpretação sobre a nona cena do ato II é contradita por uma fala de Dorval, nas Conversações, citada na terceira nota desta apresentação, que trata da distinção entre coup de thêatre . tableau. Nessa passagem ele afirma que o segundo ato da peça começa a partir de um quadro e termina com um golpe de teatro. De tal forma que a confusão em torno da carta de Dorval – ao contrário do que foi aqui defendido – consistiu, na realidade, em um golpe de teatro. O que porventura dificultaria essa possível interpretação.
O outro aspecto a ser ressaltado, sobre a teoria do drama burguês, é a inclinação de Diderot pela comédia séria em detrimento da jocosa.
Conhecidos os motivos que fizeram Diderot preferir o drama burguês à tragédia de príncipes e à ação política tradicionais, torna-se patente a motivação que o leva a optar pela “comédia séria”, à custa da comédia jocosa tradicional. “O honesto [...]” – afirma no Discurso sobre a poesia dramática – “nos comove de forma mais íntima e doce do que aquilo que estimula nosso desprezo e nosso riso” (CE. E., p. 195; a partir da trad. De Szondi). O exemplo da virtude cativa mais que o exemplo do vício, diz-se em O filho natural (SZONDI, 2004, p. 136).
A comédia séria seria, então, segundo o próprio Diderot no Discurso sobre a poesia dramática, mais adequada às pretensões do drama burguês. Voltando ao exemplo de O filho natural, observarmos no desenrolar da confusão com a carta que o lado cômico do acontecido se torna tênue, já que a consequência é severa para o desfecho da peça. Após o mal-entendido com a carta, Constance e Dorval se aproximam e passam a dialogar mais intimamente. Rosali, por outro lado, dá demonstrações de ressentimento quanto à suposta afeição de Dorval por Constance e muda drasticamente a maneira carinhosa e apaixonada de lidar com seu afeto. É significativo que o aspecto jocoso que aparecia em um primeiro momento, logo desaparece, sobrevindo uma expressão mais séria da comédia. O ápice é o final da peça, no qual Dorval acaba cedendo à Constance e inesperadamente se casando com ela. Outro aspecto imprescindível, que caracteriza o caráter sério da comédia em Diderot, é o propósito de prover a plateia com um exemplo de virtude e bom caráter. Um bom exemplo é a recusa de Dorval, que não se entrega à Rosali, mesmo com ela dando plenas condições pra isso. Ao abrir mão da própria felicidade, por respeito e consideração ao seu amigo e pelo bem geral das pessoas envolvidas na trama, Dorval traz um extraordinário exemplo de dignidade e bondade.
A água, a terra, o fogo, tudo é bom na natureza; o furacão que se ergue no fim do outono sacode as florestas, lançando as árvores umas contra as outras, quebrando e separando os galhos mortos; a tempestade que castiga as águas do mar, purificando-as; o vulcão, que derrama de seu flanco entreaberto ondas de matérias incandescentes, elevando aos ares o vapor que os depura. Não se deve acusar a natureza humana, mas as miseráveis convenções que a pervertem. Com efeito, o que nos comove tanto quanto a narrativa de uma ação generosa? E que desgraçado ouviria friamente as lamúrias de um homem de bem? (DIDEROT, 1986, p. 43).
A discussão sobre a bondade do homem no estado de natureza teve excepcional relevância para a França do século XVIII, sobretudo para Rosseau, que defendia algo semelhante àquilo que seu contemporâneo Diderot argumenta nessa passagem.. Segundo a perspectiva desses dois filósofos, o homem possui uma predisposição natural para o bem viver e a sua decadência resulta dos artifícios e ardis das convenções sociais que corrompem a verdadeira essência da natureza humana. Em O filho natural a confiança na bondade humana beira à inocência. Além de abrir mão de ficar com a sua amada, Dorval articula uma maneira de mandar dinheiro para o pai de Rosali, que havia perdido sua fortuna ao ser raptado pelos ingleses. Mesmo com o sacrifício de Dorval e todo sofrimento que envolve a trama, a peça tem um desfecho venturoso. Uma expressão característica ao drama burguês de Diderot; os males não tendem a durar muito e o bem tão logo acaba por prevalecer.
O drama burguês de Diderot sofreu influência tanto da tragédia quanto da comédia. Nas Conversações ele nos dá detalhes sobre como cada um desses gêneros serviram de inspiração.
O gênero sério comporta monólogos; donde concluo que ele tende mais para a tragédia que para a comédia; gênero no qual eles são raros e curtos. No gênero sério, os personagens são, com frequência, tão gerais quanto no gênero cômico; mas serão sempre menos individuais que no gênero trágico (DIDEROT, 2008, pp. 154-155).
Na composição das tragédias é recorrente a presença de monólogos. Um traço em comum com o drama sério, gênero em que esse tipo de cena é frequente. Por esse ângulo, Diderot considera o drama burguês mais identificado à tragédia, uma vez que na comédia os monólogos são raros. Em contrapartida, a característica das personagens do drama burguês é mais semelhante ao gênero cômico. As personagens da tragédia, de um modo geral, se referem a uma figura histórica e conhecida. Era na comédia que apareciam as personagens comuns, de cunho genérico, que não faziam referência a nenhuma personalidade em particular. Isso ocorria em razão da cláusula dos estados, que vedava personagens burgueses na tragédia e excluía os nobres da comédia. Peter Szondi trata dessa questão, no início do segundo capítulo da Teoria do drama burguês. “A tragédia deve sua dignidade e sua grandeza não às circunstâncias de seus heróis serem reis e rainhas, mas ao quadro verdadeiro, o tableau dos sentimentos que os movem. Tableau e verité são duas palavras-chave da estética de Diderot” (SZONDI, 2004, p. 100). Mais do que a condição social, a ação da personagem e o lado humano por trás dela, seriam então aquilo que, na tragédia clássica, produziria a identificação no espectador. Isso, é claro, do ponto de vista de um dramaturgo do século XVIII. O próprio Aristóteles não teria se ocupado dessa questão. Segundo Szondi, Corneille aponta um suposto equívoco, em uma reinterpretação da Poética de Aristóteles, que culminou na cláusula dos estados. Houve uma mudança de perspectiva, onde foi dada demasiada relevância ao status da personagem, em detrimento da dinâmica e do conteúdo representado. O que contraria o próprio Aristóteles, que vê no recurso ao peso histórico da personagem um adorno que não é determinante para a beleza da obra. Tableau enquanto termo formal que rege a composição das peças, verité enquanto exigência de um conteúdo realista, simples e puramente humano. Não obstante, Diderot parece não querer adotar uma posição definitiva e mantém tal problemática histórica em aberto para outras possíveis interpretações.
Ainda que em O filho natural não haja personagens burgueses, nos seus escritos teóricos Diderot defende a tese de que a condição burguesa das personagens torna a plateia burguesa mais suscetível, íntima e influenciável pelas personagens.. Se, por um lado, podemos dizer que o drama de Diderot se situa entre a tragédia e a comédia, por outro, devemos considerar a sua diferença para o drama burguês de sua época. Como afirma Szondi, “uma reação ao derramar de burguesas e civilizadas lágrimas” (SZONDI, 2004, pp. 108-109). A manifestação explícita do sentimento humano, que o drama clássico falseia, em Diderot aparece como um fundamento temático e cênico: “é o tremor na voz com o qual aquelas palavras foram pronunciadas; as lágrimas, os olhares que a acompanharam” (DIDEROT, 2008, p. 120). A pantomima é extremamente valorizada por Diderot, que acredita que os gestos assim como toda forma de expressão não verbal, devem ser implementadas com uma maior liberdade pelo ator..
Montaigne, ao contrário de Diderot, não se dedicou a escrever peças teatrais. Mas foi um apreciador da poesia e do teatro, de tal modo que o seu gosto pela arte influenciou profundamente a elaboração dos Ensaios, o que se nota pelas diversas referências literárias que permeiam a sua obra, dando ao texto um estilo muito peculiar. Peter Burke compara o estilo montaigniano à linguagem dos dramaturgos da antiguidade.
Em certa ocasião descreveu seu estilo dizendo que era “cômico e privado” (un stile comique et privé). Por cômico não significava que queria provocar o riso do leitor; a palavra tinha um significado técnico. Os dramaturgos clássicos empregavam um estilo “elevado” ou artificial para escrever suas tragédias dedicada à vida pública dos grandes, mas usavam um estilo “vulgar” ou ordinário (sermo humilis) em suas comédias que tratavam da vida privada de pessoas comuns. Montaigne seguia os padrões clássicos do que era adequado (decorum) ao escrever em tom de conversação acerca de “uma vida comum, sem distinção”, como dizia que era a sua (BURKE, 2006, p. 85).
Montaigne é um filósofo que possui um estilo de escrita que lhe distingue de toda a herança da tradição filosófica que lhe antecede. Seus escritos são essencialmente assistemáticos e possuem um caráter muito mais literário do que propriamente filosófico. O estilo simplório dos Ensaios contrasta com o gênero trágico que emprega uma forma de linguagem pretensiosa e dissimulada. A comédia é um gênero no qual prevalece a expressão espontânea e descontraída, muito próxima ao estilo de Montaigne. É o dizer natural e com franqueza que conferem beleza e legitimam a poesia. Essa sabedoria Montaigne busca nos autores antigos, poetas gregos e latinos, mestres com os quais a relação de aprendizado possuía uma dimensão esotérica. No ensaio Dos Livros, tendo como referência o dramaturgo romano Terêncio, Montaigne exalta o talento dos bons poetas da antiguidade:.
[A] Os antigos poetas, os que brilham pela imaginação, logram o efeito visado sem se agitar exageradamente nem se picar para se excitarem; têm com que provocar o riso sem necessidade de cócegas; os outros precisam de ajuda estranha; quanto menos espírito têm, mais precisam de corpo [B] e montam a cavalo porque não podem sustentar-se sobre as pernas (MONTAIGNE, 1972, p. 198).
Esse trecho não pode ser encarado como uma crítica à inspiração poética. Sem dúvida nenhuma Montaigne acredita nesse lado espiritual e até mesmo místico da poesia. Sua crítica é ao excesso de afetação e ao caráter artificial, pensado no âmbito de uma produção consciente e friamente pensada pelo autor. Seu gosto pela poesia não é algo afastado da filosofia. Montaigne não busca estabelecer distinções entre o poético e o filosófico, e parece considerar a arte da escrita como um complexo envolvido pelas diversas referências artísticas e filosóficas. No mesmo ensaio, Montaigne enaltece o estilo de Sêneca e de Plutarco, os dois filósofos com quem possuía uma maior afinidade. Há um ideal de beleza semelhante tanto nas comédias de Terêncio como na performance dos discursos filosóficos de Sêneca e Plutarco.10 No ensaio Dos livros, Montaigne está em busca de um espectro do passado, movido pelo desejo de beber na fonte desses autores clássicos e enobrecer a sua obra através dos seus ensinamentos. Plutarco é um dos filósofos mais enaltecidos. Para Montaigne, a narrativa histórica é capaz de analisar mais claramente o homem em sua completude e por isso considera os historiadores como as melhores referências. O estilo pouco sistemático e realista de Plutarco exerceu forte influência na composição do ensaio enquanto estilo de escrita, sobretudo, pelo uso descompromissado e improvisado de narrativas com uma generosa tolerância com as digressões, onde variam mitos e anedotas. Além da semelhança entre os temas filosóficos, a centralidade da ética, o gosto pelas intrigas políticas e discussões de natureza moral. Montaigne foi inspirado pelo exemplo de Plutarco e isso se faz presente na essência da sua forma de pensar a filosofia.
Montaigne é um leitor assíduo da poesia clássica latina e isso se nota pelas referências à diversos poetas, como Horácio e Virgílio, ao longo dos Ensaios. Um dos fatores que caracterizam o Renascimento enquanto movimento histórico e intelectual, é o desejo de romper com os paradigmas da tradição cristã medieval. Durante a Renascimento foram descobertos inúmeros textos, alguns da Antiguidade tardia, como Diógenes Laércio e Sexto Empírico, que trouxeram uma nova compreensão sobre a história da filosofia ocidental. Montaigne se enquadra nesse contexto, de ruptura com o aristotelismo dos teólogos escolásticos. Surgiram novas tendências em um ambiente onde prevalecia uma tendência de retorno ao helenismo, principalmente pelas influências do ceticismo e do estoicismo. Tudo isso em Montaigne se converte na criação de um novo estilo, mais literário e poético.11 Os tratados de Aristóteles contribuíram significativamente na formação do estilo dos filósofos cristãos, como Tomás de Aquino, o mais notório dos escolásticos. Ao contrário do ensaio, o tratado é um gênero sistemático e argumentativo. Nesse ponto cabe ressaltar que a fronteira entre o poético e o filosófico é quase que imperceptível em Montaigne. O ensaio nasce como um estilo livre do cientificismo aristotélico, muito mais próximo de um texto literário. Para Montaigne, a escrita deve ser produzida com a mesma autenticidade de uma conversa factual, e isso se reflete em uma espécie de transposição da espontaneidade e da liberdade do mundo oral, que penetram e residem no âmago do texto dos Ensaios.
Em Montaigne não há uma linha clara que separe a estética do âmbito da ética. Como afirma o crítico literário francês Alan Thibaudet.12 O fluxo espontâneo e natural da linguagem montaigniana, que reconhece as incertezas e as limitações da natureza humana, de alguma maneira expressam sua concepção sobre a virtude, como algo volúvel que não se pode ter a posse permanente, algo que se faz tangível no próprio estilo dos Ensaios. O grande tema de Montaigne é a complexidade da natureza humana. Em razão da variedade dos costumes e da arbitrariedade das convenções, não é possível estabelecer um ideal de virtude que ultrapasse o próprio contexto histórico no qual se está inserido. No ensaio Da virtude podemos observar a perspectiva montaigniana, que vê na virtude um bem variável e incerto que não podemos ter plena posse.
[A] Na vida desses heróis do passado, observam-se às vezes ações prodigiosas, que parecem exceder de muito as nossas forças; mas trata-se em verdade de feitos passageiros, e não podemos conceber que suas almas tivessem impregnado de ideias tão elevadas a ponto de se lhes tornarem inerentes (MONTAIGNE, 1972, p. 326).
A virtude consiste, então, em algo alcançado após um esforço e sacrifício momentâneo, que não garantiria a sua fruição contínua e inabalável. Nesse ensaio, Montaigne apresenta um bom exemplo sobre essa condição da virtude, a partir de Pirro, o precursor do ceticismo. Mesmo um filósofo que segue uma doutrina tão rígida como Pirro, que duvida constantemente das sensações e da razão humana, suspendendo o juízo sobre qualquer acontecimento, no final das contas não consegue ser plenamente fiel a sua doutrina. Montaigne também trata das mulheres indianas que buscam cativar os seus maridos, com o propósito de ganhar o direito de acompanhá-los e serem sacrificadas para seguirem com eles além da morte. Assim como dos gimnosofistas, ascetas hindus que seguiam um incrível rito funerário, ao atingir certa idade e estarem com a saúde debilitada, ocorria uma grande festa, em que era erguida uma fogueira com um leito brilhantemente ornamentado. Após a alegre comemoração, com uma assombrosa determinação, o gimnosofista deitava-se no leito e era consumido pelo fogo, sem esboçar nenhuma reação. Os dois últimos exemplos, mais do que trazer à tona o lado efêmero e instável da virtude, nos chama atenção ao ponto de vista antropológico. A determinação das mulheres hindus e dos gimnosofistas aparecem como uma admirável lição de virtude, que para a mentalidade de um europeu cristão pode parecer estranha, mas que não pode ser descaracterizada nem desvencilhada do seu contexto cultural.
Tendo em vista esses dois aspectos fundamentais da noção montaigniana de virtude, seria plausível encontrar alguma afinidade, em como o tema da virtude aparece no drama burguês de Diderot, sobretudo na peça O filho natural e nas Conversações? “Posso ser o mais infeliz dos homens, mas, nem por isso, vou tornar-me vil... Virtude, ideia doce e cruel! Caros e bárbaros deveres! Amizade que me acorrenta e dilacera, a ti obedecerei. Ó virtude, o que és tu se não exiges sacrifício algum?” (DIDEROT, 2008, pp. 66-67). Nessa fala de Dorval vemos uma manifestação da dificuldade enfrentada por ele, de conseguir resistir à tentação e tomar a decisão correta. Chama atenção a ideia do sacrifício, as ações virtuosas de Dorval lhe trouxeram consequências árduas e dispendiosas durante boa parte da peça. Não há uma unidade de caráter na personagem de Diderot e as ações virtuosas de Dorval se efetivam em momentos pontuais e decisivos não sendo uma condição estável do seu caráter. Um ponto em comum, que podemos traçar com Montaigne, é a maneira singular e momentânea de encarar a virtude. A desconfiança de Montaigne em relação ao cético Pirro, de que seria uma vã ilusão acreditar na viabilidade de viver ininterruptamente de acordo com a sua doutrina, se justifica especialmente em razão da condição instável e imperfeita da natureza humana. Montaigne, de fato, leva isso muito a sério. Por isso recusa até mesmo o ascetismo dos estoicos, filósofos que propunham um ideal de imperturbabilidade e perfeição da virtude, que desafia o homem a perseguir um horizonte inatingível.13
Na tragédia, como se observa na Poética de Aristóteles, pouco importa a questão da virtude da personagem. As personagens não são boas nem más e encontram o destino trágico simplesmente por um erro ou uma falha cometida. Montaigne parece compactuar
com essa visão trágica da realidade. Diderot caminha em uma outra direção e parece mais confiante na bondade humana. O que é um traço que distingue o drama burguês da tragédia clássica.
Dorval – Mas o senhor sabe qual foi a consequência da união da superstição nacional com a poesia? O poeta não pôde dar a seus heróis caracteres muito marcados. Ele teria tido que duplicar os seres; teria mostrado a mesma paixão sob a forma de um deus e sob a de um homem.
Essa é a razão pela qual os heróis de Homero são quase personagens históricos.
Mas quando a religião cristã escorraçou dos espíritos a crença nos deuses do paganismo, e obrigou o artista a buscar outras fontes de ilusão, o sistema poético mudou; os homens tomaram o lugar dos deuses e deram-lhes um caráter mais uniforme.
Eu – Mas a unidade de caráter tomada rigorosamente a sério não é uma quimera? Dorval – Sem dúvida.
Eu – Abandonou-se então a verdade?
Dorval – De forma alguma. Lembre-se de que, em cena, trata-se de uma única ação, de uma circunstância da vida, de um período muito curto durante o qual é verossímil que um homem conserve seu caráter (DIDEROT, 2008, p. 172).
A quimera, da qual o alter ego de Dorval fala nas Conversações, é atribuir uma unidade de caráter à personagem. Com a expansão do cristianismo esse ideal se tornou mais expressivo dentro da poesia. No antigo paganismo os heróis homéricos eram apresentados com uma conduta contraditória e inconstante, e assim também eram os deuses, que possuem características nitidamente humanas. O drama burguês, talvez por uma influência direta do protestantismo, teve como um dos seus princípios a crença neste ideal, a atitude espiritual do protestantismo ascético em que prevalece a vocação e a predestinação, que Max Weber denomina ascese intramundana. Ninguém melhor que a personagem Dorval de O filho natural para adotar como exemplo. Dorval não representa exatamente esse ideal, mas nele podemos ver uma expressão do aspecto do drama familiar sentimental, a importância de um exemplo de virtude e retidão, longe da promiscuidade e da imprevisibilidade do trágico. Diderot recebeu uma educação religiosa e estudou no colégio jesuíta de Langres, sendo educado, portanto, em um ambiente católico. O que não elimina a influência da reforma prostestante e do espírito do capitalismo sobre ele. A França do século XVIII era um país predominantemente católico, mas nas redondezas da Europa o protestantismo já havia se expandido consideravelmente e junto com ele uma nova forma, puritana e melancólica, de ver o mundo.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015.
BIRCHAL, Telma. O dilema de Diderot em Entretien d’um père avec ses enfants. Analytica, Rio de Janeiro, vol. 17, p. 45-58, 2013.
BURKE, Peter. Montaigne. Tradução Jaimir Conte. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
CARNEIRO, Alexandre. Exercícios espirituais profanos: leitura, ensaio e inspiração poética em Montaigne. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, p. 43-57, 2009.
DIDEROT, Denis. Discurso sobre a poesia dramática. Tradução de Franklin de Matos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
DIDEROT, Denis. Obras V: O filho natural. Tradução de Fátima Saadi. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.
GILLOT, Hubert. Denis Diderot: l’homme, ses idées philosophiques, esthétiques et littéraires. G. Courville, París, 1937,
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. Porto Alegre: Editora Globo S.A., 1972.
OCHOTECO, Cristina Lasa. Diderot como lugar del encuentro: estética, ética y retórica en el sobrinho de rameau. Universidad del País Vasco, 2010.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
SARRAZAC, Jean-Pierre. Sete observações sobre a possibilidade de um trágico moderno – que poderia ser um trágico (do) quotidiano. Tradução de Lara Biasoli Moler. Pitágoras 500, vol. 4, 2013.
SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês. Tradução de Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2004.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. Tradução de Raquel Imanishi Rodrigues. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2011.
THIBAUDET, Albert. Montaigne. Gallimard, París, 1963.
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Autor(a) para correspondência: Bruno de Figueiredo Alonso, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Largo São Francisco de Paula, 1 - Centro, 20051-070, Rio de Janeiro – RJ, Brasil. brunoalonso@id.uff.br