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Intercursos entre a psicologia genética e a ética do discurso de Jürgen Habermas
Carlos Henrique de Aragão Cavalcante; Francisco Romulo Alves Diniz
Carlos Henrique de Aragão Cavalcante; Francisco Romulo Alves Diniz
Intercursos entre a psicologia genética e a ética do discurso de Jürgen Habermas
Interchanges between the genetic psycology and the etichs of the discourse of Jürgen Habermas
Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 166-176, 2019
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: Neste artigo visa-se demarcar os intercursos da ética do discurso de Habermas e da psicologia genética de Lawrence Kohlberg. Se, por um lado, para o filósofo alemão a sua proposta ética pode contribuir para suprir os déficits da psicologia genética em relação ao desenvolvimento moral, por outro lado, a ética do discurso se apoia nas pesquisas empíricas realizadas pelos teóricos da psicologia e, com isso, reforçam a tese da universalidade ética defendida por Habermas e Carl Otto-Apel. No entanto, há limites na demarcação da filosofia e da psicologia por se tratar de campos nos quais as metodologias não se identificam e por assumirem perspectivas epistemológicas distintas, descritiva para a psicologia do desenvolvimento e prescritiva para a ética do discurso. Ainda assim, a filosofia de Habermas pretende estabelecer uma relação com campos distintos de saberes, a partir dos quais garante a interdisciplinaridade e a abertura para o diálogo constante entre saberes diversos.

Palavras-chave:Psicologia do desenvolvimentoPsicologia do desenvolvimento,Ética do DiscursoÉtica do Discurso,Psicologia GenéticaPsicologia Genética.

Abstract: In this article we aim to demarcate the interchanges of the ethics of Haberma’s discourse and the genetic psychology of Lawrence Kohlberg. If, on the one hand, for the German philosopher his ethical proposal can contribute to fill the deficits of genetic psychology in relation to moral development, on the other hand, discourse ethics is based on the empirical researches carried out by psychology theorists and, with this, reinforce the thesis of the ethical universality defended by Habermas and Carl Otto-Apel. However, there are limits on the demarcation of the philosophy and the psychology because the are fields in which the methodologies are not identified and and because they assume different epistemologics perspectives, descriptive for the psychology of development and prescriptive for Habermas’ philosophy intends to establish a relation with different fields of knowledge, from which it ensures interdisciplinarity and openness to the constant dialogue between diverse knowledge.

Keywords: Developmental psychology, Discourse Ethics, Genetic Psychology.

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Artigos

Intercursos entre a psicologia genética e a ética do discurso de Jürgen Habermas

Interchanges between the genetic psycology and the etichs of the discourse of Jürgen Habermas

Carlos Henrique de Aragão Cavalcante
Universidade Estadual Vale do Acaraú, Brasil
Francisco Romulo Alves Diniz
Universidade Estadual Vale do Acaraú; Faculdade Luciano Feijão, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 166-176, 2019
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 01 Abril 2019

Aprovação: 09 Junho 2019

A contribuição da psicologia genética para o desenvolvimento da ética do discurso

Jürgen Habermas (1929), criador da teoria do agir comunicativo, considera a ética do Discurso como uma ciência reconstrutiva (NOBRE E REPA, 2012) e como tal se apoia em reconstruções hipotéticas que exigem confirmações. (HABERMAS, 1989, p. 143). Sendo uma ciência reconstrutiva, depende de outras teorias para realizar indiretamente as confirmações necessárias a fim de garantir um lugar entre as demais teorias morais. Nesse sentido, podemos entender e justificar os motivos pelos quais Habermas lança mão da teoria do desenvolvimento da consciência moral de Lawrence Kohlberg (1927-1987).

Tanto para Jean Piaget (1896 – 1980) quanto para Kohlberg, o desenvolvimento da capacidade de julgar moral tem início na infância, passa pela adolescência e chega, finalmente, à idade adulta, sempre de forma invariável. Segundo Habermas, há pontos congruentes entre a ética do Discurso e a teoria de Kohlberg, como ele bem afirma: “o ponto de referência normativa da via evolutiva analisada empiricamente é constituído por uma moral guiada por princípios: nela a ética do Discurso pode se reconhecer em seus traços essenciais”. (HABERMAS, 1989, p. 144)

Além desse aspecto, Habermas discorre sobre algumas vantagens que a teoria do desenvolvimento moral oferece como resposta aos relativistas, opositores das éticas universalistas, argumentando que outras culturas dispõem de concepções morais diferentes, e acusando as suas propostas de eurocêntricas. (WHITE, 1995, p. 64) Para Habermas, a teoria de Kohlberg oferece a possibilidade de reduzir a multiplicidade empírica das concepções morais a uma variação de conteúdos em face das formas universais do juízo moral e explicar as diferenças estruturais que ainda subsistam como diferenças dos estádios de desenvolvimento da capacidade de julgar moral..

Outro aspecto importante destacado por Habermas entre a ética do discurso e psicologia do desenvolvimento é a divisão de trabalho. Neste aspecto, há uma inovação no modo como a ciência e a filosofia passam a colaborar, como também, na perspectiva filosófica, é possível perceber uma diferença importante entre a ética do Discurso que busca uma fundamentação última, como a proposta por Karl-Otto Apel (1922 – 2017) com uma ética do Discurso que caminha no sentido de uma destranscendentalização e se orienta para uma proposta de trabalho que associa a filosofia e as ciências. Habermas passa então a demonstrar como a psicologia do desenvolvimento da consciência moral oferece uma prova indireta das hipóteses da filosofia moral e como, por sua vez, a psicologia do desenvolvimento se utiliza de concepções filosóficas já sedimentadas.

Kohlberg utiliza, na construção de sua teoria, de alguns pressupostos filosóficos básicos. Segundo Habermas, ele se situa na tradição do pragmatismo norte-americano e faz uso da ética rawlsiana, (Cf. RAWLS, Uma teoria da Justiça, 2008, pp. 560-622) e introduz na sua teoria premissas que são próprias da filosofia como o cognitivismo, o universalismo e o formalismo. Kohlberg, ao se referir à natureza dos juízos morais, afirma, de acordo com Habermas, que “o raciocínio verdadeiramente moral envolve aspectos tais como imparcialidade, universalizabilidade, reversibilidade e prescritividade”. (HABERMAS, 1989, p. 146)

A fim de demonstrar a relação entre a ética do discurso e a psicologia genética, Habermas propõe, inicialmente, três objetivos: 1 – explicar por que a ética do Discurso é a que melhor se presta a explicar o ponto de vista moral sob as perspectiva do cognitivismo e do formalismo; 2 – mostrar em que medida a ética do Discurso requer o mesmo conceito de “aprendizado construtivo” com que operam Piaget e Kohlberg; e 3 – mostrar como a ética do Discurso pode complementar a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg, quando esta nos remete para uma teoria do agir comunicativo. Todos estes objetivos se confluem num ponto que é a reconstrução vertical dos estádios de desenvolvimento do juízo moral.

Muito embora os três aspectos com os quais Kohlberg tenta aclarar o conceito do que é moral encontra-se dentro da tradição kantiana, Habermas afirma que a vantagem da ética do Discurso é que esses três aspectos derivam do Princípio “U”, que ele aclara em seguida:

cognitivismo. – Visto que o princípio da universalização possibilita enquanto regra da argumentação um consenso sobre máximas passíveis de universalização, com a fundamentação de ‘U’ fica demonstrado ao mesmo tempo que as questões prático-morais podem ser decididas com base em razões. (Grifo nosso). Os juízos morais têm um conteúdo cognitivo; eles não se limitam a dar expressão às atitudes afetivas, preferências ou decisões contingentes de cada falante ou ator. (HABERMAS, 1989, p. 147)

O objetivo aqui é demonstrar que os juízos morais podem ser fundamentados, ao mesmo tempo em que, sob a perspectiva da teoria de Kohlberg, os juízos morais têm que pressupor a possibilidade de distinguir juízos morais corretos e incorretos.

Universalismo. – de ‘U’ resulta imediatamente que quem quer que participe de argumentações pode, em princípio, chegar aos mesmos juízos sobre a aceitabilidade de normas de ação. [...] Se os juízos morais não pudessem erguer uma pretensão de validade universal, uma teoria do desenvolvimento moral que pretendesse comprovar a existência de vias de desenvolvimento universais estaria condenada de antemão ao fracasso. (HABERMAS, 1989, p. 147/148)

Quanto ao aspecto do universalismo, ao mesmo tempo em que se opõe ao relativismo ético, busca-se uma característica que não pertence unicamente à filosofia, mas das ciências em geral, na medida em que pretende que seus juízos sejam necessários e universalmente válidos, outra característica da filosofia prática de Kant. Para Habermas,

Formalismo. – ‘U’ funciona no sentido de uma regra que elimina, a título de conteúdos não passíveis de universalização, todas as orientações axiológicas concretas, entrelaçadas ao todo de uma forma de vida particular ou da história de uma vida individual e, assim, dentre as questões valorativas do “bem viver” só retém como argumentativamente recidiveis as questões de justiça estritamente normativas. (HABERMAS, 1989, p. 148)

Além dos aspectos já mencionados, Kohlberg ainda toma emprestado da filosofia, ou melhor, da teoria comunicacional de George Mead a “ideal role taking”,. que, por sua vez, exprime-se no princípio da ética do discurso na forma do próprio Discurso ou simplesmente ‘D’. Cabe destacar que, segundo Habermas, “a ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo”. (HABERMAS, 1989, p. 148)

Pode-se, claramente, entender a ética do Discurso como uma ética procedimental, não como uma ética produtora de normas, mas uma ética que examina a validade de normas que são consideradas hipoteticamente. Esse é um dos aspectos que diferencia a ética do Discurso de outras éticas que apresentam inclusive os mesmos aspectos expressos anteriormente, tais como o cognitivismo, o universalismo e o formalismo.

Todo o procedimento é marcado por pressuposições próprias do discurso que, por sua vez, remete a uma lógica que preserva o princípio de uma ‘lógica prática’, formulada segundo o critério da contradição performativa.. As normas são o resultado do discurso empreendido por todos aqueles que forem capazes e estiverem em condições de efetuá-lo e, ao mesmo tempo, serem por elas determinados.

É nesse sentido que ‘U’ e ‘D’ servem de ponto de referência normativos para o desenvolvimento dos juízos morais. É a partir desse ponto que Kohlberg passa a distinguir os seis estádios do juízo moral, que, segundo Habermas, podem ser compreendidos quanto à reversibilidade, a universalidade, e a reciprocidade. Contudo, não vamos abordar todos os pormenores da teoria de Piaget e Kohlberg, apenas aqueles aspectos que são necessários a compreensão da teoria habermasiana da moral.

A Teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg.

Kohlberg divide os estádios morais em três níveis: pré-convencional, convencional e pós-convencional. No nível pré-convencional situa-se o Estádio I e II que se refere a “castigo e obediência”. O conteúdo central desse Estádio constitui-se no “direito à obediência literal às regras e à autoridade, evitar o castigo e não fazer mal físico”. O Estádio II se refere ao objetivo instrumental, individual e da troca.

O nível Convencional situa-se o Estádio III e IV. O Estádio III trata das expectativas interpessoais mútuas dos relacionamentos e da conformidade; e o IV trata da preservação do sistema social e da consciência. O conteúdo do Estádio III consiste no seguinte: “O direito é desempenhar o papel de uma pessoa boa (amável) é preocupar-se com as outras pessoas e seus sentimentos, manter-se leal e conservar a confiança dos parceiros e estar motivado a seguir regras e expectativas”. (HABERMAS, 1989, p. 152) Nesse mesmo Estádiohá também dois aspectos o do direito e das motivações. No Estádio IV o conteúdo consiste no seguinte: “O direito é fazer o seu dever na sociedade, apoiar a ordem social e manter o bem estar da sociedade ou do grupo”. (HABERMAS, 1989, p. 153). E aqui também Habermas explica quais são os direitos e as suas motivações. Nesse estádio o indivíduo tem duas referências uma externa, ditada pelas normas sociais e outra interna ditada pela consciência que age em consonância com as regras externas. Assim, não é simples definir o grau de motivação uma vez que aquele que age pode fazê-lo por obediência irrestrita à lei.

Por fim, o nível pós-convencional, ou seja, aquele baseado em Princípios. Segundo Habermas, nesse nível “as decisões morais são geradas a partir de direitos, valores ou princípios com que concordam (ou podem concordar) todos os indivíduos compondo ou criando uma sociedade destinada a ter práticas leais e benéficas”. (HABERMAS, 1989, p. 153). Nesse nível, situam-se os Estádios V e VI. O V trata dos direitos originários e do contrato social ou da utilidade; o VI trata dos princípios éticos universais. O conteúdo do Estádio V consiste no seguinte: “O direito é sustentar os direitos, valores e contratos legais básicos de uma sociedade, mesmo quando entram em conflito com as regras e leis concretas do grupo”. (HABERMAS, 1989, p. 153). Habermas passa em seguida a explicitar o que é direito e as motivações da ação no nível pós-convencional no estádio V. E, por fim, o Estádio VI que tem como conteúdo a orientação por princípios éticos universais os quais toda a humanidade deveria seguir. De acordo com Habermas nesse estágio o que é direito se define através de princípios éticos universais.

as leis ou acordos sociais particulares são, em geral, válidos porque se apoiam em tais princípios. Quando as leis violam esses princípios, a gente age de acordo com o princípio. Os princípios são princípios universais de justiça: a igualdade de direitos humanos e o respeito pela dignidade dos seres humanos enquanto indivíduos. Estes não são meramente valores reconhecidos, mas também são princípios usados para gerar decisões particulares. (HABERMAS, 1989, p. 154)

Já as razões para fazer o que é direito consiste, segundo Habermas, no fato de sermos racionais e capazes de perceber a validade dos princípios e com eles comprometer-se. O passo seguinte consiste em explicar como se dá a passagem de um estádio para outro. Ora, o que se vê aqui é uma tentativa de Habermas, conforme aponta Stephen White (1995, p. 66), de “usar os insights de sua teoria da ação comunicativa para construir um esquema de uma ordenação lógico-desenvolvimental de tipos de interação”. A questão seguinte consiste em responder como se passa de um estágio a outro.

Kohlberg, assim como fez Piaget, justificam essa passagem como um processo de aprendizagem. Assim, a pessoa transforma as estruturas cognitivas já disponíveis à medida que cresce e em cada estádio consegue resolver melhor do que anteriormente a mesma espécie de problemas, o que, para Habermas, consiste numa solução consensual de conflitos de ação moralmente relevantes.

Aqui também Habermas enxerga dois pontos nos quais a teoria do Discurso e a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg se encontram. O primeiro ponto é a ideia de construção da aprendizagem e que envolve a formação discursiva da vontade e o segundo é a mudança de atitude, pois, à medida que cresce, a criança passa a desenvolver a capacidade comunicacional e esse processo se expande quando ela passa de um a outro estádio. Consequentemente, temos um elo entre o desenvolvimento moral e o desenvolvimento da linguagem e da capacidade comunicacional..

Para Habermas, quando argumentamos, levantamos pretensões de validade que nos auxiliam e nos orientam na prática comunicacional. Contudo, quando nos deparamos com normas controversas elas são suspensas e, somente após um confronto entre argumentantes, é que tais normas passam a ser dignas de reconhecimento ou não. Porém, o que decide o status da norma é o processo argumentativo a ela associado e os devidos valores que lhes são pressupostos à norma.

O passo seguinte do argumento habermasiano consiste em fazer uma análise do modelo por estádios. De forma direta apresentamos as três hipóteses que, segundo Habermas, auxiliam Kohlberg a desenvolver a sua tese. Ei-las:

I.Os estádios do juízo moral formam uma sequência de estruturas discretas que é invariante, irreversível e consecutiva. Com essa suposição fica excluído: que os diferentes sujeitos testados alcancem o mesmo objetivo por diferentes vias de desenvolvimento; - que os mesmos sujeitos regridam de um estádio superior a um estádio inferior; que saltem um estádio no curso de seu desenvolvimento.

II.Os estádios do juízo moral formam uma hierarquia no sentido que as estruturas cognitivas de um estádio superior “superam” as estruturas dos respectivos estádios inferiores, isto é, tanto substituem como conservam essas estruturas sob uma forma reorganizada e diferenciada.

III.Todo estádio do juízo moral pode ser caracterizado como um todo estruturado. Com essa suposição fica excluída a possibilidade de que um sujeito testado tenha que avaliar num dado momento diferentes conteúdos morais em diferentes níveis. Mas não se excluem os chamados fenômenos de decalagem que indicam um ancoramento sucessivo de estruturas recém-adquiridas. (HABERMAS, 1989, p. 158)

Para o dusserdolfense, a segunda hipótese, sustentada numa sequência hierarquicamente ordenada de estruturas, é central para o modelo de estágios. Além do conceito de ordem hierárquica é também empregado por Piaget e Kohlberg o conceito de lógica do desenvolvimento. (HABERMAS, 1989, p. 157). Porém, essa lógica do desenvolvimento não pode ser realizada de modo lógico-semântico, muito embora os estágios mantenham entre si relações que Habermas denomina intuitivamente identificáveis.

Contudo, segundo Habermas, Kohlberg justifica essas relações pela correlação com perspectivas sócio-morais correspondentes. Resumidamente os estádios sociais são por ele classificados do seguinte modo: o primeiro consiste num ponto de vista egocêntrico; a segunda consiste numa perspectiva denominada individualista concreta;. o terceiro estágio denominamos de perspectiva do indivíduo;. o próximo é o ponto de vista societário;10 no estágio seguinte o indivíduo adota a perspectiva do prioritário-em-face-da-sociedade;11 e, por fim, o estádio no qual o indivíduo adota um ponto de vista moral a partir de um fundamento. Segundo Habermas, “a perspectiva é a de qualquer indivíduo racional que reconhece a natureza da moralidade ou a premissa moral básica do respeito por outras pessoas como fins, não como meios”. (HABERMAS, 1989, p. 160)

Ora, uma vez apresentadas as perspectivas sócio-morais de Kohlberg, Habermas as considera problemáticas. Pois, segundo ele, algumas questões possuem déficit de fundamentação e outras apresentam uma confusa descrição que mistura as condições com as estruturas sócio cognitivas dos juízos morais. E, além disso, Kohlberg não esclarece porque a sequência exprime uma hierarquia no sentido da lógica do desenvolvimento. (HABERMAS, 1989, p. 160).

A contribuição da ética do Discurso

Habermas sugere que a ética do Discurso possui as condições para colaborar e aclarar conceitualmente a relação da lógica do desenvolvimento moral com as perspectivas sócio-morais apresentadas por Kohlberg. Desse modo ele introduz a sua teoria do agir comunicativo, na forma específica, da ética do Discurso. Essa teoria Habermas a concebe como sendo o suporte tanto para o desenvolvimento de uma ética do Discurso quanto para, no caso da teoria de Kohlberg, contribuir para a reconstrução dos estádios da consciência moral. (HABERMAS, 1989, p. 162).

No passo seguinte, Habermas se propõe fazer uma análise conceitual de “mundo social” e “interação guiada por normas” à luz da Teoria do Discurso. Segundo ele, “o conceito do agir comunicativo presta-se como ponto de referência para uma reconstrução dos estádios da interação”. (HABERMAS, 1989, p. 163). O projeto habermasiano, nesse sentido, consiste em fundamentar os estádios do juízo moral, reduzindo os estádios morais a estádios de interação. A partir desse ponto, ele recupera alguns resultados da teoria do agir comunicativo com o intuito de mostrar como o conceito de “mundo social” constitui um componente da compreensão descentrada do mundo.

Para Habermas, há duas formas de orientação, uma para o entendimento mútuo e outra para o sucesso.12 Ele considera que as relações sociais oscilam entre cooperatividade e estabilidade mais ou menos instáveis, e é a partir dessa oscilação que se põe a questão da teoria social acerca da possibilidade da ordem, e como ela corresponde à teoria da ação. No contexto da teoria do agir comunicativo, a teoria da ação consiste do procedimento no qual, pelo menos dois participantes num determinado processo de interação, podem coordenar seus planos de ação a fim de que se evite o conflito entre ambos e uma consequente ruptura da interação. Habermas configura uma resposta a esta questão nos seguintes termos:

na medida em que os atores estão exclusivamente orientados para o sucesso, isto é, para as consequências do seu agir, eles tentam alcançar os objetivos de sua ação influindo externamente, por meio de armas ou bens, ameaças ou seduções, sobre a definição da situação ou sobre as decisões ou motivos de seus adversários. A coordenação das ações de sujeitos que se relacionam dessa maneira, isto é, estrategicamente, depende da maneira como se entrosam os cálculos de ganho egocêntricos. (HABERMAS, 1989, p. 164/165).

Neste caso, a estabilidade resultará do jogo de interesses de cada participante. Isto não implica que as relações sejam completamente pacificadas, considerando, pois, que não há limite para os interesses e nem regras que venham a delimitar o quanto se deve expandir os interesses de cada um dos participantes. Obviamente, esses interesses passam a ser regulados por normas externas ou legais ou, ainda por determinações internas, tais como as crenças e os valores.

Outro aspecto é o agir comunicativo, que Habermas resume nos seguintes termos: “quando os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só perseguir suas respectivas metas sob a condição de um acordo existente ou a se negociar sobre a situação e as consequências esperadas”. (HABERMAS, 1989, p. 165). Muito embora, as duas formas de ação pressuponham uma teleologia, elas diferenciam-se em função da orientação. Assim, a ação estratégica está orientada para o êxito, o sucesso, enquanto a ação comunicativa está orientada para o entendimento mútuo dos compactuantes.

Habermas vê o entendimento mútuo como um mecanismo que tem por fim coordenar as ações entre os agentes, e não necessita ser reduzido ao agir teleológico, pois, segundo ele, “os processos do entendimento mútuo visam um acordo que depende do assentimento racionalmente motivado ao conteúdo de um proferimento”. (HABERMAS, 1989, p. 165). Esse acordo assenta-se na razão que é posta como motivação.

Isto significa que a aceitação do acordo deve ser realizada de forma livre e não de modo impositivo, deve ser produto do convencimento com base em razões e não através de artifícios linguísticos ou persuasivos. Compreendemos, ainda, que as razões sejam veiculadas sob a forma da linguagem expressas em proferimentos e como tal eles tornam-se atos de fala.13 Contudo, para Habermas, “o ato de fala de um só terá êxito se o outro aceitar a oferta nele contida, tomando posição afirmativamente, nem que seja de maneira implícita, em face de uma pretensão de validez em princípio criticável”. (HABERMAS, 1989, p. 165). No entanto, é necessário distinguir a situação de fala da situação de ação. Essa distinção parte da compreensão comum de que o agir consiste em dominar situações. É desse “dominar situações” que, segundo Habermas, o agir comunicativo extrai o aspecto comunicativo da interpretação comum das ações, principalmente para a formação de um consenso.

A carência de entendimento mútuo é suprida por um tipo de ação especial: os atos de fala. Neles os falantes assumem papéis diversificados, tais como, falantes, na medida em que atuam por meio de proferimentos; destinatários, na medida em que estão inclusos no ato da fala e pessoas presentes, pois a fala é situada não somente na pessoa do falante, mas no contexto da fala daquele que exerce o direito ao proferimento.

Para Habermas, o sistema de perspectiva do falante está entrelaçado com um sistema de perspectiva do mundo. Contudo, para ele, há uma perspectiva anterior denominada de pano-de-fundo do mundo da vida, na qual as ações comunicativas, entre outras, encontram-se inscritas. É neste contexto que o agir comunicativo é compreendido como um processo circular no qual o agente desempenha um duplo papel: de iniciador, que por meio de ações imputáveis, domina as situações e é também produto das tradições, pois se encontra inserido em contextos sociais marcados por valores, crenças, ideologias, etc. Para Habermas, o mundo da vida (Lebenswelt) não somente fornece o contexto para o processo de interação, mas também concede os recursos interpretativos e interativos.

Em seguida, para que o entendimento mútuo venha a realizar-se, através dos proferimentos inteligíveis, se faz necessário elucidar as pretensões nele contidas: a primeira delas é que o enunciado formulado seja verdadeiro; a segunda é que o ato de fala seja correto em relação a um contexto normativo existente e a terceira, é que a intenção manifesta daquele que profere seja vista segundo a maneira como a mesma é proferida. (HABERMAS, 1989, p. 167/168). Estes aspectos são respectivamente os aspectos da verdade, da correção e da sinceridade. Um proferimento é pleno quando ele atende aos três aspectos ou preenchem as funções acima descritas, conforme afirma Habermas, (1989, p. 168) nas linhas seguintes: “ele ou bem não se harmoniza com . mundo dos estados de coisas existentes, ou bem com o nosso mundo de relações interpessoais legitimamente ordenadas, ou bem com o mundo particulardas vivências subjetivas”. São, enfim, as pretensões de verdade, de validade e de sinceridade que marcam as condições necessárias para o entendimento mútuo.

Chegamos ao último dos aspectos conceituais orientados para o entendimento mútuo, que são as perspectivas do mundo. Habermas parte das opções que dispõe um locutor competente, para o entendimento mútuo. O locutor pode escolher entre os modos cognitivos, interativo . expressivo da linguagem que correspondem aos atos de falaconstatativos, regulativos e representativos, para deles fazer uso seja em relação a questões de verdade, de justiça, de gosto ou para a simples expressão pessoal. Que podem, ainda, ser ditas em termos de atitude que o falante pode assumir, tais como: uma atitude objetivante, uma atitude conforme a normas ou ainda uma atitude expressiva.

Diante disso, Habermas distingue as perspectivas do mundo das perspectivas do falante. O ponto de referência são as atitudes que, considerando-se os três mundos possíveis, o falante pode assumir: em face das coisas uma atitude objetivante; em face das relações interpessoais legitimamente reguladas, atitude conforme as normas; e, em frente das próprias vivências uma atitude expressiva. (HABERMAS, 1989, p. 169).

Considerações finais

Relacionar a teoria discursiva de Habermas com a teoria genética de Lawrence Kohlberg é um empreendimento teórico que nos aponta para algumas questões. A primeira delas consiste em saber se tal relação é significativa para ambas as teorias. De um lado, Habermas se apropria da psicologia genética, uma vez que ela daria um suporte fático a uma teoria que se pretende universalista sob o ponto de moral, para corroborar sua pretensão de universalidade. Por outro lado, a teoria do desenvolvimento moral carece de pressupostos filosóficos e Habermas os oferece a partir de sua teoria do Discurso.

Se o esforço teórico de Habermas surte algum efeito no mundo prático ainda é uma questão a se pensar. No entanto, como parte dos teóricos críticos a perspectiva prática deve estar inscrita já na sua filosofia. Assim, deve-se pensar a partir do que se deve ser (papel da filosofia crítica e também da ética do discurso) e não apenas do que se é. Habermas pretende, não apenas em Consciência moral e agir comunicativo, encontrar formas de relacionar duas formas de discurso, os descritivos e os prescritivos, sem reduzir a filosofia à ciência, respeitando os escopos próprios de cada área de saber.

Se resta dúvidas quanto aos alcances do empreendimento habermasiano, não passa despercebido seu esforço de solucionar questões que estão na base de seu pensamento desde, por exemplo, Teoria e Práxis. Ali se encontra uma orientação para a solução dos problemas que só vemos claramente postos em 1983. Pois, articular a teoria do desenvolvimento moral com a teoria do discurso nos parece responder a como articular duas áreas das ciências humanas – a filosofia e a psicologia – sem negar a cada uma àquilo que lhe é próprio.

Habermas nos pôs no caminho da interação cognitiva como pressuposto para a resolução de problemas teóricos que demandam soluções interconexas de saberes. Se para ele, a filosofia não mais se encontra voltada a fundamentações metafísicas do real, resta a ela o espaço do diálogo entre os saberes, como forma de constituição ou mesmo interpretação do real. Assim, nos parece, o caminho assumido ao relacionar a teoria do discurso e a psicologia genética.

Se esse é o futuro da filosofia – dialogar com outras áreas dos saberes – parece-nos que a esses faz-se necessário abertura para, pelo menos no campo das ciências humanas, realizar interações, sejam elas metodológicas, conteudística, procedimentais, etc., como forma de resguardar os saberes constituídos (mesmo que historicamente) e preservar a humanidade no sentido de perceber a sua pluralidade de saberes e fazeres. O que esse artigo se prestou, antes de qualquer outra intenção, foi apontar para esse aspecto dialógico entre a filosofia e a psicologia.

Material suplementar
Referências
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Contribuição dos(as) autores(as): Carlos Henrique de Aragão e Francisco Romulo Alves Diniz participaram da discussão, redação e revisão do artigo. Os autores aceitaram e aprovaram a versão final do texto.
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Autor(a) para correspondência: Francisco Romulo Alves Diniz , Av. Da Universidade, 850, Betânia, 62040-370, Sobral – CE, Brasil. Romulodiniz40@gmail.com
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