Artigos

Um ensaio de um “anti-orfeu”: perspectivismo cosmológico como contraponto à esferologia de Sloterdijk

An “anti-orpheus” essay: cosmological perspectivism as a conterpoint to Sloterdijk’s spherology

Maurício Fernando Pitta
Universidade Federal do Paraná; Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Um ensaio de um “anti-orfeu”: perspectivismo cosmológico como contraponto à esferologia de Sloterdijk

Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 177-196, 2019

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 09 Junho 2019

Aprovação: 14 Setembro 2020

Resumo: Este artigo problematiza o antropocentrismo na “esferologia” de Peter Sloterdijk, com sua narrativa da antropogênese como construção imunológica da “casa do ser”, na qual o humano, rompendo a “jaula” animal, constrói esferas, ilhas imunológicas de coexistência humana. O mito de Orfeu simboliza para Sloterdijk a imunologia: ao perder a amada, Orfeu reconstrói imunologicamente o complemento, neutralizando o espectro ausente como linguagem. Propomos um experimento filosófico, o “Anti-Orfeu”, no qual o perspectivismo cosmológico de Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima, pensado de um ponto de vista topológico, serviria de contraponto para pôr em perspectiva a imunologia, apontando para a variação da diferença entre dentro e fora e para a “antropofagia”, como outra distribuição topológica que permite outra relação com a alteridade que não a imunologia. Com isso, apontamos para uma “esferologia do ponto de vista do inimigo”, da alteridade, permitindo modular a esferologia, evidenciando-a como diagnóstico da “autoimunidade” de esferas imunológicas.

Palavras-chave: Eduardo Viveiros de Castro, Imunologia, Martin Heidegger, Perspectivismo, Peter Sloterdijk, Topologia.

Abstract: This paper questions the anthropocentrism of Peter Sloterdijk’s “spherology”, with its anthropogenesis as the immunological making of the “house of Being” in which humans break from animal “cage” and build spheres, immunological islands of human coexistence. Orpheus’s myth represents immunology to Sloterdijk: in losing his loved one, Orpheus immunologically rebuilds the supplement, neutralizing the absent ghost as language. One proposes a philosophical experiment, the “Anti-Orpheus”, in which Viveiros de Castro and Tania Stolze Lima’s Cosmological perspectivism, topologically reframed, serves as counterpoint in order to put spherology into perspective, pointing to a variation of inside and outside and to “anthropophagy” as another topological distribution that allows a non-immunological relation with otherness. With this, one points to a ‘spherology from the enemy’s point of view’, i.e. from otherness standpoint, opening ways to modulate spherology and showing it as a diagnosis of the “autoimmunity” of immunological spheres.

Keywords: Eduardo Viveiros de Castro, Immunology, Martin Heidegger, Perspectivism, Peter Sloterdijk, Topology.

Introdução

Este artigo tem o objetivo de preparar, a partir de determinado contraponto da antropologia contemporânea, uma problematização de alguns pressupostos da “esferologia” proposta pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk, apresentados em sua trilogia Sphären (1998; 1999; 2004), em Im Weltinnenraum des Kapitals (2005) e em Domestikation des Seins (2001). Nosso ponto de partida se encontra em uma provocação levantada pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, em, Metafísicas canibais (2015), sobre certo antropocentrismo da antropogênese sloterdijkiana.

O problema do antropocentrismo na obra de Sloterdijk é relevante dada a participação do filósofo nos debates ecológicos sobre a centralidade da ação humana no desastre ambiental, que configura o que alguns cientistas têm batizado de “Antropoceno”, época geológica em que o humano se tornou uma força de transformação geológico-climática global. No primeiro capítulo de Was geschah im 20. Jahrhundert? (SLOTERDIJK, 2016), o Sloterdijk propõe resolver o problema do Antropoceno com a articulação consciente da imunologia, como a relação topológica própria do humano pela qual o que é alheio, exterior ao mundo humano, é “domesticado” ou “civilizado” ao ser nele inserido. Sendo o Antropoceno fruto de causas antrópicas, levantam-se suspeitas de que a própria imunologia, a configuração topológica do anthropos, esteja no centro da catástrofe. A imunologia, ao manter uma relação de exploratória com o fora, não engendraria, no limite, uma autoimunidade, tendo em vista que a devoração aglutinadora e exterminadora do Outro exaure a própria “vida” da qual a própria imunologia se serve para constituir seu modo particular de vida? Assim, é necessária e urgente a crítica ao antropocentrismo na obra de um dos principais nomes do atual debate ecológico.

No que aqui propomos, o problema não estaria apenas no antropocentrismo de suas narrativas esferológicas, mas também na pressuposição antropocêntrica de Sloterdijk de que a configuração topológica do humano em geral possa ser explicada pela imunologia — ou seja, na pressuposta universalidade humana da condição imunológica, em preponderância hierárquica com relação ao não-imunológico. Se a imunologia influencia o Antropoceno, relativizá-la implica dizer que nem todo coletivo humano participa da mesma forma das transformações ambientais e que é a parcela preponderantemente imunológica da espécie que mais possui peso no desequilíbrio ecológico.

Os contrapontos da etnologia de povos não-Ocidentais, sobretudo por parte da chamada “antropologia reversa” que, a partir de Roy Wagner (2017), assume a autonomia ontológica e epistêmica dos coletivos estudados, expõem fragilidades na universalização irrestrita da imunologia esferológica ao todo da espécie humana. Como nosso (contra)ponto de apoio, em um primeiro momento, nos serviremos de ideias da etnografia de Viveiros de Castro sobre os Araweté do Alto Xingú, Araweté: os deuses canibais (1986), pois o ritual antropofágico desse povo e sua concepção de Pessoa abrem caminho para o “perspectivismo ameríndio” ou “perspectivismo cosmológico” de Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima, conceito antropológico que servirá, aqui, de base para a dissecação topológica desses dois modelos de “devoração”, como relação do interior do coletivo com a alteridade: a devoração imunológica e a devoração antropofágica.

Nesse sentido, intentamos articular brevemente, em um primeiro momento, a antropogênese descrita por Sloterdijk em Domestikation des Seins, texto ao qual se refere Viveiros de Castro, e a concepção de imunologia que aparece em Sphären, a fim de arregimentar elementos suficientes para, com o contraponto Araweté e o perspectivismo ameríndio, expormos um esquema provisório topológico-conceitual (o “perspectivismo topológico”) que servirá para modular a esferologia e apontar seu antropo(topo)centrismo. Propomos, por fim, a possibilidade de pôr em perspectiva a predominância da imunologia como única configuração topológica da espécie humana. Assim, sobre problemáticas ecológica (o Antropoceno) e topológica (a relação entre subjetividade, perspectiva e lugar) de base, supomos ser factível, como um experimento filosófico, deslocar a esferologia para o posto de descrição diagnóstica da autoimunidade da própria imunologia, isto é, de sua consequente autodevoração antropocênica, modulando-a como base teórica para pensar prognósticos possíveis.

Esferologia: antropogênese e imunologia

Bastaria a proposta de construção do humano como o não-dado por excelência, criador de si e construtor de mundo, para pensar a humanidade em toda sua multiplicidade? Aliás, é lícito ainda falar em “humanidade”, mesmo do ponto de vista da pretensa falta constitutiva do humano, como se a carência de essência fosse sua característica específica, seu caractere diferenciador, aquilo que o mantem afastado, por deficiência, do domínio da não-humanidade, garantindo-lhe, no entanto, direitos irrevogáveis sobre ela? Pode a configuração específica de vida do homem ocidental falar pela variedade de figuras, formas e forças do vivente, seja humano ou não-humano (e como demarcá-los?), em toda sua extensão? É sobre questionamentos como esses que Viveiros de Castro posiciona a incompatibilidade entre, por um lado, o “obstinado esforço antropocêntrico de ‘construir’ o humano [...] como a essência mesma do não-dado”, figurado até pela “orientação mais, digamos, avançada” de Sloterdijk, e, por outro, da “pressuposição antropomórfica do mundo indígena” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 54), no qual, ao contrário do anterior, é a “cultura” (ou a “humanidade”) que é pressuposta como unidade “primordial” — virtual, intensiva —, dado de todo vivente, ante a multiplicidade extensiva dos corpos, mundos e etologias, tomados como perspectivas distintas.

De acordo com Viveiros de Castro, a construção filosófica do humano a partir do primado do não-dado faz com que o autor de Sphären, a despeito de sua forma radical de problematizar a condição humana, recaia em uma espécie de antropocentrismo no qual a noção de humano ainda mantém-se sob os auspícios da ontologia ocidental, incompatível com outros tipos de perspectiva como, por exemplo, em algumas etnias ameríndias do Alto Xingú, mediadas pelo antropólogo. Seguindo o apontamento de Viveiros de Castro, e considerando como divergem as configurações de mundo de povos ameríndios e de povos esferológicos, evidencia-se a necessidade de uma relativização da equivalência entre os habitantes de esferas e a espécie humana, proposta por Sloterdijk na articulação de uma narrativa, em Domestikation des Seins, da antropogênese “onto-antropológica”.

A base para a narrativa antropogenética de Sloterdijk vem da concepção heideggeriana de Dasein, “ser-no-mundo”, único ente que existe em sentido primário, projetando possibilidades de ser sobre uma totalidade aberta de entes (HEIDEGGER, 2012). O humano é aquele que “habita, poeticamente”, a “casa do ser”. Contudo, a lacuna da ontologia fundamental de Heidegger está, para Sloterdijk, em não tematizar o processo de construção da “casa do ser”: ao renegar a antropologia como ciência maculada por um sentido já dado de ser, a analítica heideggeriana ignora as características, ônticas, concretas e técnicas do próprio mundo humano. Para Sloterdijk, é necessário pensar seriamente a questão da poiesis do Dasein, da produção do mundo humano, a partir de uma perspectiva híbrida, entre ontologia e antropologia, que tome o ponto de partida “pré-Dasein”, pré-humano animal da filogênese humana, ao mesmo tempo que assuma o ponto de chegada ontológico do “mortal na clareira do ser” (SLOTERDIJK, 2001, p. 157). Essa empreitada, que Sloterdijk batiza de “onto-antropologia”, cuja intenção é investigar as técnicas filogenéticas do humano a partir da inexistência primeira da morada ontológica do homem, aparece no título de uma das sessões do texto, Etsi homo non daretur (ibid. p. 154) — “mesmo se o humano não estivesse dado”.

Tanto a constituição da casa quanto a do humano são tomadas em conjunto na antropogênese sloterdijkiana, que se configura como um “drama silencioso de suas formações espaciais [Raumbildungen]”. (SLOTERDIJK, 2001, p. 157), em que o pré-humano e o humano potencial engendram relações circulares de feedback na construção híbrida do edifício da “cultura”. Seu ponto de partida é a “jaula ontológica” (ibid. p. 161) do pré-humano, que o mantém preso no limite de seus desinibidores. O humano, ou seja, tanto o mundo humano quanto a espécie humana, constrói-se a investidas graduais inconscientes contra as jaulas dessa prisão animal, em um movimento de isolamento não intencional dos coletivos pré-humanos, constituindo um horizonte cultural de possibilidades de verdade (o “aberto”). A narrativa da antropogênese, portanto, é uma narrativa da desconstrução do mundo ambiente natural, que fornece a matéria-prima para a constituição do mundo humano, chamada por Sloterdijk de domesticação (Domestikation), como construção do domus, da casa do ser (ibid. p. 172).

A casa humana é o que Sloterdijk denomina como “esfera”, um aparato de proteção contra o exterior que corresponde à própria relação íntima entre os habitantes do lugar humano. Esferologia, portanto, é uma teoria do lugar do humano, uma antropotopologia, cujo foco se situa mais nos coletivos humanos como sujeitos do que no humano individual, e cuja característica principal está no seu funcionamento imunológico, no qual o interior da esfera tem de se relacionar com o que lhe é exterior como uma célula lidando com um patógeno. Outra figura que aparece na esferologia para denominar esse lugar humano e que evidencia esse funcionamento é a metáfora da “estufa” (Treibhaus), onde a esfera adquire as características de “lugares de ressonância interanimal e interpessoal nos quais o tipo e o modo em que os seres viventes convivem adquire força plástica” (SLOTERDIJK, 2001, p. 172), como um orquidário em clima interior assimétrico com relação ao exterior. Esse clima de diferenciação indica a contraposição rígida entre o interior e o exterior, que Sloterdijk chamará de diferença topológica: entre o interior de sentido e o exterior de ruído, há um abismo incomensurável, no qual o último só pode pertencer ao domínio do primeiro se cindido, clareado e limitado, conferido de sentido. Diante do exterior, a esfera devora, como por “fagocitose”, o estranho, transformando-o em familiar — domesticando-o —, como um ser vivo imunológico, filtrando e transformando patógenos exógenos em elementos endógenos.

Por isso, a imunologia é uma forma de devoração, compreendida aqui como a relação do próprio para com a estrangeiridade; um “gerador de redundância ou [...] máquina de hábito, cuja tarefa é dividir em familiares ou não-familiares a massa de sinais que chegam ‘do mundo’, candidatas a ser significativas” (SLOTERDIJK, 2004, p. 520). Imunologia, portanto, é, para Sloterdijk, a configuração topológica do humano em geral. Ela é o modo de relação da unidade topológico-imunológica, a “esfera”, com aquilo do qual ela se insula, no qual o excluído é sempre tomado como patógeno a ser neutralizado ou eliminado. Com isso, a imunologia é também uma “poética”, no sentido compreendido por Heidegger: a imunidade pro-duz um interior circunscrito de sentido (um tópos) no qual o humano habita “poeticamente”, em contraposição ao exterior “u-tópico” de não-sentido, abstrato e desqualificado. Esse interior é a “casa do ser” da linguagem em sentido fundamental, isto é, o âmbito do lógos como princípio de reunião topológico, no qual se faz “presença da ausência”, configurando um mundo claro frente a um fundo velado de mistério e possibilidade (HEIDEGGER, 1985, p. 197-198).

A questão da palavra poética, se pensada nesse sentido, é a questão da cisão de Orfeu e Eurídice: diante da perda da parceira para o fundo indiferenciado da morte, Orfeu toca a lira para recompor o complemento — faz presença neutralizada e familiar do que já se tornou estranho, alheio, exilado do domínio dos homens. Essa prática, contudo, já era, em si, órfica, dantes da morte de Eurídice: o poeta já traduzia o exterior — a não-humanidade de pedras e animais — em interior, neutralizando e subsumindo o fora para torná-lo familiar, “parte da mobília da casa do ser”; assim, domara Orfeu mares com os argonautas e fizera ele dormir o Cérbero na descida ao submundo, domesticando-o — e assim, também, Orfeu fez com Eurídice, figura espectral que ele tenta resgatar das mãos de Perséfone, “redomesticando-a”. A linguagem poética de Orfeu, o lirismo órfico, como técnica de familiarizar o que é estranho, domesticar as feras selvagens, é um exemplo paradigmático da imunologia, para Sloterdijk, surgindo reiteradas vezes em meio à Sphären I (SLOTERDIJK, 1998). A tragédia de Orfeu e Eurídice, o mito grego do poeta por excelência é, por isso, “mito chefe do europeu” (SLOTERDIJK & HEINRICHS, 2016, p. 168), no sentido em que seria o mito que mais expressaria o modus vivendi do Ocidental.

Pela rigidez da diferença topológica, onde “dentro” e “fora” são tidos como posições rígidas na dinâmica imunológica, que se pode falar que devoração imunológica é uma relação com a alteridade tal que ela sempre aparece como inimigo a ser aglutinado ou aniquilado. Sloterdijk afirma que o próprio do humano é ser um animal domesticado, ou seja, um animal neutralizado pela imunologia que ele mesmo gera em seu processo antropogenético. Nesse sentido, a relação do humano com o não-humano só pode ser, a seus olhos, da ordem da domesticação, na qual inclui-se, por neutralização, o elemento estrangeiro na esfera, ou impõe-se a necessidade de eliminá-lo, pela integridade do interior imunitário. Remetendo seu conceito de imunologia à história da expansão ultramarina europeia do século XVI, em Im Weltinnenraum des Kapitals (2005), compreende-se que, na visão de Sloterdijk, o habitante da casa do ser europeia só tinha como opção, frente aos povos estranhos, “inimigos”, que, a sua frente, se descortinavam, a conversão jesuítica para a “civilidade” (a domesticação), ou a escravidão e o aniquilamento imperial, como práticas expansionistas.

Com isso, e levando em conta que, em Domestikation des Seins e no segundo volume de Sphären, Sloterdijk correlaciona o habitar esferológico à constituição do Homo sapiens e de toda organização social humana, das “hordas” ao mundo globalizado, o autor parece justificar a colonização europeia, dado que a devoração imunológica parece ser o único tipo de relação com a alteridade possível para a espécie humana. O que estaria em jogo, por exemplo, no confronto entre ibéricos e autóctones, quando da exploração das Américas, seria, para Sloterdijk, a sofisticação de seus habitats imunológicos, donde segue-se que a Europa teria apenas um “sistema imunológico mais resistente” — basta conferir a argumentação de Sloterdijk sobre a vitória dos missionários salesianos sobre os Bororo matogrossenses em Sphären II (SLOTERDIJK, 1999, cap. 2).

Além disso, se a estratégia sloterdijkiana para lidar com o Antropoceno, em Was geschah im 20. Jahrhundert? (SLOTERDIJK, 2016), é a de pensar no design imunológico da Terra como habitáculo imunológico “monogeísta”, Sloterdijk está estrapolando o mero “neocolonialismo” para o domínio interespecífico: são, no limite, todos os não-humanos, porque toda a Terra, que tem de ser “domesticados” para frear as transformações antrópicas dos coletivos imunológicos — os mesmos coletivos que são motores do Antropoceno. Além disso, como pensar que a imunologia, motriz antropocênica, é a única forma de devoração viável para lidar com a própria catástrofe quando, por constituir uma relação com o fora na qual a “natureza” é tomada como estoque de recursos inanimado, homogêneo e meramente entrópico, ela acaba engendrando uma espécie de “autofagocitose” ao constituir uma imunidade tão rígida contra o exterior que termina por se devorar também a si própria, porque devora sua própria base vital, ‘natural’, de sustentação?

Contraponto canibal

Esse estratagema aparentemente simétrico, mas distinto da “antropologia simétrica” de Latour e da “antropologia reversa” de Wagner, e problemático por várias razões, algumas das quais citadas acima, torna-se ainda mais frágil ao considerarmos práticas etnológicas mais sofisticadas, que partem da própria pressuposição de autonomia ontológica dos povos estudados, como no diálogo entre Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert (2015), que, em sua interlocução, abriram um enorme precedente para uma revisão profunda da antropologia como um todo, por ser um dos casos paradigmáticos em que a voz do índio (no caso, de Kopenawa) soa em mais alto tom para ouvidos “domesticados” como os nossos do que a do europeu.

Focaremos, no momento, no estudo de Eduardo Viveiros de Castro sobre os Araweté do Alto Xingu, e no “perspectivismo ameríndio” ou “cosmológico” de Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima (LIMA, 1996; VIVEIROS DE CASTRO, 1998), pois é no ritual antropófago araweté que melhor encontramos a chave interpretativa para, além de relativizar a imunologia, propormos a existência de outra forma positiva de devoração que não implica em domesticação do outro e autodeglutição.

Em vista da antropogênese explicitada acima, o que se pode depreender do uso feito por Viveiros de Castro, em Metafísicas canibais, do termo “incompatibilidade” ao comparar o perspectivismo ameríndio e concepções ocidentais do humano como a de Sloterdijk? Como, a despeito de seu caráter radical, em muito inspirada por algumas das principais referências do antropólogo, como Gilles Deleuze, Félix Guattari e Bruno Latour, tal antropogênese pode ser descrita como um esforço antropocêntrico incompatível com a pressuposição antropomórfica ameríndia? Afinal, tanto Sloterdijk quanto Viveiros de Castro pretendem imbricar, de uma forma ou de outra, filosofia e antropologia — o filósofo, por um lado, com sua “onto-antropologia” e o antropólogo, por sua vez, com seu multinaturalismo perspectivista. Como compreender a incompatibilidade diante da proximidade?

Seguindo-se a leitura de Metafísicas canibais, pode-se perceber que, ao citar a diferença, na obra do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, entre o totemismo e o sacrifício, Viveiros de Castro (2015, p. 165-166) usa novamente o termo, agora no interior da obra do pesquisador francês. Nesse contexto, o antropólogo brasileiro compara a noção de incompatibilidade àquela do físico Niels Bohr, na qual o conceito implica “complementaridade”. Para Bohr, segundo Paul McEvoy, “era necessário que a incompatibilidade entre fenômenos complementares fosse refletida em uma incompatibilidade dos experimentos associados a eles; portanto, resultados contraditórios nunca poderiam ser exibidos simultaneamente em um experimento” (2001, p. 160). Nas palavras de Viveiros de Castro, “[...] totemismo e sacrifício designariam duas descrições simultaneamente necessárias mas mutuamente exclusivas de um mesmo fenômeno geral [...]” (2015, p. 166). Em fenômenos físicos como o da luz, vistos sob o prisma da física quântica, a complementaridade evidencia-se com mais clareza: não é possível analisar a luz ao mesmo tempo do ponto de vista da partícula e da onda, a despeito de sua pertença necessária a ambos os fenômenos. Será que é possível pensar o perspectivismo ameríndio e a esferologia ocidental como perspectivas heterogêneas, assimétricas, mutuamente incompatíveis, embora complementares, como que por disjunção inclusiva., do mesmo fenômeno, a saber, da mesma “humanidade” — termo este, aqui, equívoco, já que “humanidade” não quer dizer o mesmo para as duas perspectivas, mas em diferentes estratos e sem esgotar outras possibilidades?

No perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro e Lima, grosso modo, deparamo-nos com o humano e o cultural tomando o lugar da natureza como fundo cosmológico comum. Em outras palavras, não é a natureza que se dá de pronto, como na metafísica europeia, mas a “cultura”, na qual o “intervalo entre natureza e sociedade é ele próprio social” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 364), sociocósmico. A própria divisão entre natureza e cultura torna-se imanente a cada componente desse meio sociocósmico, que, nesse sentido, é reflexivo, isto é, assume a posição de sujeito. “[...] os animais [...], como os humanos, são outra coisa ‘no fundo’: eles têm, em outras palavras, um ‘fundo’, um ‘outro lado’; são diferentes de si mesmos” (id. 2015, p. 61). Isso é importante, tendo em vista que esclarece a equivocidade da “humanidade” (e, portanto, da “subjetividade”): para os coletivos perspectivistas, “ser humano” ou “ser sujeito” não é uma qualidade exclusiva da espécie Homo sapiens, herdada a partir de uma suposta antropogênese singular, mas é uma condição de agencialidade virtual: todo existente é, virtualmente, sujeito ou “humano” para si mesmo.

Para evitar que tal pressuposição de uma “humanidade” de base cosmológica pudesse ser tomada por antropocentrismo, Viveiros “radicaliza a característica insubstancial dos predicados antropomórficos” (VALENTIM, 2013, p. 11).. “Humanidade”, então, não poderia ser compreendida como substância, substantivo (“o homem”), mas como pronome de agência, pronome de quem ocupa a posição de sujeito (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 373). Não se trata de uma mera inversão: “natureza” e “cultura”, cada qual, para o ocidental, divergem totalmente de como são pensados pelo ameríndio, a “cultura” sendo do domínio sociocósmico de qualquer um que possa virtualmente tomar uma posição reflexiva, e a “natureza” sendo do domínio da diversidade de pontos de vista ao qual o sujeito pode aceder. “Assim, as autodesignações coletivas de tipo ‘gente’ significam ‘pessoas’’, não ‘membros da espécie humana’; e elas são pronomes pessoais, registrando o ponto de vista do sujeito que está falando, e não nomes próprios” (ibid. p. 372).

Sendo assim, enquanto a cultura ou a “humanidade” surgem como pano de fundo, a natureza aparece, agora, como o âmbito da diferenciação, da multiplicidade desses mesmos pontos de vista coextensivo à humanidade virtual, nos quais cada espécie é “sujeito”, “pessoa” ou “humano” — isto é, agente reflexivo cindido de si mesmo —, vendo os outros, pelos corpos, como não-humanos, ainda que virtualmente humanos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 379-380). “A humanidade é ‘recíprocamente’ reflexiva (o jaguar é um homem para o jaguar [...]), mas não pode ser mútua (no momento em que o jaguar é um homem, o queixada não o é, e vice-versa)” (id. 2015, p. 62). Assim, o indígena, por exemplo, se vê como humano (como indígena), ao passo que outros tipos de entidades são virtualmente humanas, mesmo assumindo a forma de animais ou espíritos, e o mesmo, aliás, vale para o jaguar — e, em consequência, não vale mais para o indígena. Assim, a condição de “humano” — o lugar do sujeito — mantém-se em eterna disputa, a ponto de um indivíduo da espécie humana, ele mesmo, poder deparar-se com outro indivíduo, de outra espécie, de repente se revelando como sujeito, o que leva o primeiro a se questionar se é o caso de ele mesmo, talvez, não ser mais humano — condição perigosa a quem não seja xamã (cf. VALENTIM, 2014).

Se a humanidade é a “alma” de fundo que faz de toda perspectiva um sujeito virtual, a perspectiva é o próprio “corpo” que disputa a posição “anímica” de sujeito — mas no sentido especial, mais próximo daquele que atribuira Jakob von Uexküll (2010) aos animais em geral: um mundo ambiente próprio (Umwelt), como uma etologia particular, uma rede semiótica de sentido e afeto, como as capacidades e afecções possíveis de um corpo de afetos. Nas palavras de Viveiros de Castro:

Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo. Ser capaz de ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma potência da alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre os pontos de vista — e um ponto de vista não é senão diferença — não está na alma. [...] Não estou me referindo a diferenças de fisiologia [...], mas aos afetos que atravessam cada espécie de corpo, as afecções ou encontros de que ele é capaz [...], suas potências e disposições. [...] é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus, um ethos, um etograma. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 65-66)

Vale notar, sendo assim, que a questão da complementariedade que foi colocada mais acima é espinhosa e todo cuidado é pouco na hora de tratar da própria noção ameríndia de perspectiva. Como reitera Viveiros de Castro a partir de Deleuze (cf. 2012, p. 39-42), a perspectiva não cria o objeto (o “fenômeno”), mas o sujeito, ou melhor, “[...] será sujeito quem se encontrar ativado ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 373). Por isso, pensar na complementariedade dessas perspectivas, de maneira, aqui então, diversa à de pensar na complementariedade de um fenômeno físico como a luz, não implica em tomá-las como perspectivas sobre o mesmo fenômeno humano (como espécie, objeto científico, “tipo humano” ou humankind), mas perspectivas, incompatíveis, mas complementares, (a partir) da mesma “humanidade” de fundo (como “condição humana”, Humanity, isto é, como a virtualidade de toda perspectiva de ocupar a posição de sujeito) (ibid. p. 379-382).

De pronto, a teoria de Viveiros já parte da pressuposição de uma multiplicidade de perspectivas sobre o corpo e a natureza, isto é, de um multinaturalismo, incompatível, ao menos de início, com a esferologia sloterdijkiana (talvez mais próxima de um multiculturalismo sui generis, na forma da “poliesferologia” que caracteriza o capitalismo individualista ocidental [cf. SLOTERDIJK, 2004]). Essa multiplicidade perspectivista busca, antes do que reduzir o todo a dualismos, “proliferar a multiplicidade”, “‘irreduzir’ e ‘imprecisar’” a fronteira “que une-separa ‘linguagem’ e ‘mundo’, ‘pessoas’ e ‘coisas’, ‘nós’ e ‘eles’, ‘humanos’ e ‘não-humanos’” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 28), e se contrapõe, por sua vez, ao problema principal da antropologia ocidental, a saber, “o que é o homem?” — no qual também recai Sloterdijk, apesar de transformar a questão do “que” na questão do “onde”, respondendo-a com “o humano habita esferas”, “o humano é esferológico”.

A noção deleuze-guattariana de hecceidade ou singularidade, “individuação sem sujeito”, “feixe de linhas” (INGOLD, 2015, p. 138) particular e pré-subjetivo e dimensão intensiva de uma multiplicidade (ZOURABICHVILI, 2009, p. 102), entrelaçada ao conceito deleuzeano de perspectiva., está no centro do perspectivismo de Viveiros de Castro. O que importa no multinaturalismo ameríndio não é a construção de um interior imunológico “cultural” e subjetivo em cisão com a “natureza” circundante, transcendente, dada e assubjetiva, mas a pressuposição de uma multiplicidade de perspectivas conflitivas e mutuamente excludentes, “naturais” — no sentido multinaturalista: corpos, afetos, mundos —, imanentes a um sociocosmos animista e pré-subjetivo, mas ativo e permeado de agentes, “sujeitos” virtuais enquanto singularidades que podem aceder a uma perspectiva, agenciar-se em determinada variação; um “espaço interperspectivista” (MARQUES, 2003, p. 194) ou, como argumenta Tim Ingold, um “entrelaçamento dessas trajetórias que sempre se estendem”, dessas hecceidades, em que “não há interiores ou exteriores”, como em Sloterdijk, mas “apenas aberturas e veredas” (INGOLD, 2015, p. 138). Daí, o porquê de se chamar tal concepção de “multinaturalista”, divergindo do multiculturalismo de matriz europeia: naquele, os corpos, não as almas, é que assumem papel de pontos de vista múltiplos, assimétricos e conflituosos, não se limitando a agenciamentos específicos, resultados da cristalização de variações perspectivistas. Em outras palavras, antes de “ser-em-esferas” (1998, p. 46), é necessário que haja linhas, fluxos ou hecceidades.

Por outro lado, e sobretudo pela dissidência de interpretações. Sloterdijk toma a noção de hecceidade para revertê-la no contexto esferológico: esfera, tomando o lugar da hecceidade, é a constituição humana de uma subjetividade que precede o indivíduo e o individual já de início, transposta à relação de proximidade imunológica (SLOTERDIJK, 1998, p. 45). Contudo, ao fazê-lo, o filósofo alemão termina, como Heidegger, por cristalizar a dinâmica entre “Terra” e “território” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 115), hecceidade e agenciamento, humanidade e perspectivas, isto é, o ritornelo entre territorialização, desterritorialização e reterritorialização (ZOURABICHVILI, 2009, p. 95), no movimento humano de transferência — entre habitar e evadir esferas para, ao cabo, constituir novas esferas, novas subjetividades.. De novo, opera a pressuposição antropocêntrica apontada por Viveiros de Castro: a transferência humana entre esferas esgota, em um agenciamento específico, isto é, no agenciamento esferológico, as possibilidades de devir.

Se a interpretação que Sloterdijk faz da obra dos filósofos franceses leva ele a inverter algumas das ideias básicas dessa obra, talvez por construir sua narrativa sobre certos princípios antropocêntricos de clara influência heideggeriana, o perspectivismo ameríndio, como contraponto, parece oferecer uma porta de entrada a uma espécie de contracrítica perspectivista da esferologia, a ponto de podermos abrir campo para a irrupção de uma multiplicidade de perspectivas alheias à imunologia.

Por isso, longe de nós está opor-nos às colocações de Viveiros de Castro sobre seu papel de antropólogo amerindianista, mais do que filósofo (cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2017), e de mediador da própria “contra-antropologia” ameríndia. Não queremos, posicionando Viveiros de Castro e Sloterdijk em contraposição, transformar o antropólogo, para quem a ontologia aparece como “matéria de preocupação antropológica” (HOLBRAAD & PEDERSEN, 2017, cap. 4)., em filósofo ou em construtor de uma concepção filosófica universalista. Tampouco intentamos transformar em antropólogo Sloterdijk, que usa de referenciais antropológicos específicos, operando uma “mal-explicada redução da filosofia a uma antropologia acrítica” (NODARI, 2011, p. 9), sem sequer fazer, ele próprio, uma experiência etnográfica legítima. Pelo contrário, queremos utilizar do papel problemático que a antropologia ocupa na esferologia sloterdijkiana para, assim, relativizar a construção proposta por Sloterdijk como uma configuração topológica possível, destacando a coincidência entre humanidade e imunologia no discurso esferológico e demonstrando que a última é contingente com relação à primeira— tanto em seu sentido específico (humankind), quanto em seu sentido proposicional (Humanity).

Assim, posicionar em diálogo teorias ao mesmo tempo tão próximas e tão distintas, como as de Viveiros de Castro e de Sloterdijk, teria a função não de resolver uma pela outra ou de buscar uma síntese e um ponto final, mas de pôr em questão a esferologia sobre o humano ocidental frente à multiplicidade perspectivista; abrir linhas de fuga no cerne das próprias construções esferológicas e fazer explodir uma iridescência de virtualidades topológicas até mesmo no mundo humano ocidental — ou, adaptando a proposta sintetizada por David Lapoujade, fender a esfera.. Esse é nosso problema: como fender a esfera, encontrar as linhas de diferença e extrapolação nos limites das configurações sedimentadas do Ocidente?

Perspectivismo topológico

O “inimigo” da etnografia de Viveiros de Castro sobre os Araweté é aquele que expõe a configuração de vida canibal do ameríndio, e que pode nos ajudar na empreitada de fender a configuração topológico-imunológica da esfera. Descrito, aqui, sem os importantes detalhes da extensa etnografia do antropólogo, o ritual antropófago araweté apresenta o inimigo cativo sendo morto pelo guerreiro para ser devorado pela comunidade. O matador não come o inimigo; sua função é a de efetuar o jogo perspectivista, contra-efetuando sua posição de sujeito. Assim, ao realizar a morte do cativo, o guerreiro canta a canção do inimigo sobre si mesmo. As posições de atividade e passividade, de predador e presa ou de sujeito e objeto são, por isso mesmo, refletidas: o inimigo, que tem sua canção entoada, é tornado sujeito, e o matador se reduz à posição de inimigo, nos versos do poema cantado. Em outras palavras, ao cantar a visão do inimigo, isto é, do outro, o predador põe em jogo seu “eu”, faz passar sua predação à presa, e se vê, então, como inimigo, condição que faz, do outro, um agente: “[...] o que se comia era a relação do inimigo com seu devorador [...]. O canibalismo e o tipo de guerra indígena a ele associado implicavam um movimento paradoxal de autodeterminação recíproca pelo ponto de vista do inimigo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 160). Em sua diferença, predador e presa, o eu e o outro, o familiar e o estranho espelham-se e interferem-se mutuamente.

Essa noção de canibalismo, ainda que servindo de ilustração para uma relação com a alteridade ainda intraespecífica — entre índios arawetés e índios inimigos —, parece mostrar uma configuração topológica diferente da imunologia esferológica, ou, em outras palavras, uma “economia da alteridade predatória” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 162), na qual vigora

[...] a ideia de que a ‘interioridade’ do corpo social é integralmente constituída pela captura de recursos simbólicos — nomes e almas, pessoas e troféus, palavras e memórias — do exterior. [...] eis o essencial da ‘metafísica da predação’ de que falava Lévi-Strauss: a sociedade primitiva como uma sociedade sem interior, que não é senão fora de si. Sua imanência coincide com sua transcendência. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 162)

Aqui, a canção de alteridade do inimigo contrapõe-se à canção de intimidade domesticadora de Orfeu: ao invés de transformar o Outro (pedras, animais) no conjunto dos humanos, a canção antropofágica afirma a subjetividade do ponto de vista do inimigo sobre o matador, que, entoando a canção do inimigo sobre si, se põe na posição de “objeto” frente ao sujeito cativo.

Reiteramos que o ritual é muito mais sofisticado do que o descrito aqui, e pode ser encontrado em detalhes na etnografia de Viveiros de Castro sobre os Araweté, bem como em outras obras do autor. O que importa apontar do ritual antropófago, contudo, é o jogo de inversão de perspectivas: quem era sujeito, perde o posto, o que implica em afirmar que o lugar de sujeito nunca está garantido — em ordem diretamente inversa à canção imunológica, que garante à perspectiva antrópica-ocidental o lugar do sujeito por excelência, opondo outras perspectivas (o Outro) como patógeno a ser subsumido. Isso pode ser melhor explicado pelo perspectivismo ameríndio, que contém as duas cláusulas seguintes, já explanadas no item passado:

A) Todo existente é virtualmente “humano”, enquanto posição proposicional de sujeito agente (cláusula animista);

B) Apenas um existente, atualmente, é humano de cada vez, e a posição de humanidade encontra-se em eterna disputa (cláusula etnocentrista).

Encontram-se, nos pressupostos do perspectivismo ameríndio, a imprecisão e a problematização do Grande Divisor da ontologia ocidental (natureza-cultura), apontado já por Bruno Latour em Nous n’avons jamais été Modernes (2013) e que, apesar da radicalidade e da proximidade de Sloterdijk com Latour, opera também na esferologia. Quando o filósofo alemão reconstroi a antropogênese a partir do insulamento dos coletivos pré-humanos frente à não-humanidade, com a consequente diferenciação topológica, ele não faz nada mais que separar o humano do animal (e a cultura esferológica da natureza informe) a partir da excepcionalidade topológica do lógos.

Contudo, para compreender como a imunologia sloterdijkiana, especificamente, contrasta com o perspectivismo antropófago, é preciso ir um passo adiante. Propomos, aqui, “brincar” com as cláusulas perspectivistas, pensando-as do ponto de vista da topologia, enquanto teoria do lugar fundada na diferença topológica.

Como pode-se depreender do ritual araweté, a diferença entre interior e exterior, para a antropofagia, é uma diferença que tem, na variação da própria diferença topológica, sua condição de possibilidade — em contraste direto com a imunologia, que pressupõe uma diferença topológica rígida. Essa distinção corresponde a uma diferença forte entre dois regimes de devoração, aos quais já vinhamos aludindo: as devorações imunológica e antropofágica10 — correspondentes respectivamente a duas configurações topológicas: uma “topologia da permanência”, identitária, e a uma “topologia da inconstância”, diferencial. A diferença entre essas duas devorações pode ser explicada conceitualmente se atentarmos para a distribuição de certos conceitos entre as duas cláusulas: os conceitos de “lugar”, “subjetividade” e “perspectiva”. Nesse sentido, propomos um perspectivismo topológico, como uma releitura do perspectivismo ameríndio a partir do jogo entre esses três conceitos e que permite observar a maneira como as duas topologias mencionadas acima se configuram, em termos topológicos, epistemológicos e ontológicos. Explicamos, a seguir, esses conceitos em termos pouco rigorosos, do ponto de vista filosófico, dado o caráter preparatório e experimental deste intento.

Por “lugar”, entendemos um conceito formal, que implica apenas circunscrição ou finitude, sentido e posição. Ele valeria tanto para altas dimensões (impérios, religiões, comunidades), como para baixas (relações, corpos individuados, acontecimentos pré-individuais), e está emaranhada com a oposição sujeito-objeto — ou, em outros termos, com a diferença topológica entre dentro e fora.

Pensamos a “subjetividade”, por sua vez, como a condição de agência e de reflexividade: é sujeito aquele que se percebe “sujeito”, ou seja, polo ativo de uma relação entre dois polos. Talvez, um termo melhor para o que pretendo como condição de agência, talvez, seria o de “uma vida”, inorgânica e impessoal, em sentido semelhante ao de Deleuze em Imanência: uma vida… (2002), tendo em vista que “subjetividade”, em sentido estrito, só se daria após a circunscrição e atualização no lugar — onde o interior passa a corresponder à subjetividade e o exterior, à “objetividade”, ou seja, em uma relação bidirecional e variável entre agente (sujeito) e paciente (objeto) (GELL, 1998, p. 22). Nesse sentido, a subjetividade inscreve-se no que Simon O’Sullivan chamou de “relação finito–infinito” (O’SULLIVAN, 2012), referindo-se, entre outros, a Bento de Espinosa, Deleuze e Guattari — onde, de uma perspectiva deleuze-guattariana, “finito” pode ser entendido por “atual”, e “infinito”, por “virtual”, e onde “uma vida” virtual modula-se como “subjetividade” ao se atualizar. Poderia-se dizer que a subjetividade, emaranhada com a noção de lugar, enquanto circunscrição topológica da vida, seria “como uma apropriação finita de uma parte do infinito [“uma vida”]” (ibid. p. 27).

Por “perspectiva”, enfim, compreendemos um éthos, um mundo circundante (Umwelt) todo que serve como uma rede semiótica de sentido — como o mundo de três desinibidores do carrapato de von Uexküll. Ela também é o “corpo” de afetos espinosano, conforme entendido por Deleuze (2017), que se constitui em um encontro, um acontecimento — e que, por isso, não pode confundir-se a uma instanciação fisiológica de um organismo individual. Assim, “perspectiva” não é uma perspectiva sobre um mundo, no qual varia-se o sujeito e o mundo permanece igual (ou seja, ela não inscreve-se no registro do multiculturalismo, em que variam-se as culturas sobre a mesma natureza unitária de fundo), mas uma perspectiva do mundo, onde o que é variável é justamente o mundo todo — como no “multinaturalismo” da antropologia de Viveiros de Castro, em que pressupõe-se, de fundo, a variação de mundos, não de subjetividades.

Tais termos distribuem-se nas duas cláusulas do perspectivismo da seguinte forma:

A) Cláusula animista: virtual, ausência circunscrição (lugar) da “subjetividade”/”uma vida”/anima, que “espalha-se”, de modo coextensivo, nas múltiplas perspectivas);

B) Cláusula etnocentrista: atual, presença de circunscrição (lugar) de “uma vida”, com sua transformação em subjetividade circunscrita, ou subjetividade equivalente ao lugar), perspectivas disputando o lugar do sujeito — nesse sentido, poderíamos chamar essa cláusula também de “topocentrista”.

Ao conceber a cláusula animista (ou seja, a cláusula na qual a anima, “uma vida”, está distribuída pelas perspectivas) como primordial, a antropofagia permite que, na ocupação topocêntrica do lugar do sujeito, outras perspectivas sempre tenham a possibilidade de irromper e furtar esse lugar. Assim, no ritual canibal dos araweté, o matador, que antes ocupava o lugar do sujeito, desocupa-o para que, pela canção do inimigo, o cativo ocupe tal posição. O mesmo acontece, por exemplo, no encontro cosmopolítico perigoso entre um xamã e um jaguar na floresta, como na cosmologia yanomami descrita por Kopenawa, em que a própria fronteira especista já não faz mais sentido, a não ser como baliza formal entre perspectivas diversas: deve-se sempre ter muito cuidado com tais encontros, porque a onça pode revelar-se sujeito, arrancando com garras e dentes (literalmente) o xamã do lugar.

Utilizo desses termos para compreender a relação entre imunologia e antropofagia justamente porque a imunologia se diferencia, enquanto modo de relação com a alteridade, pela rigidez da diferença topológica. Como a imunologia encaixa nesse esquema, e como ele ajuda a explicar a cristalização da diferença? Antes de tudo, é necessário, primeiro, compreender como, para Sloterdijk, a relação intra-esferológica é próxima de um perspectivismo: há, entre duas pessoas em uma esfera, por exemplo, um jogo de variação pelo lugar do sujeito, no qual uma assimetria dinâmica sempre constitui-se entre um e outro, ora um assumindo posto de sujeito, ora o outro — ora um deles servindo de continente subjetivo, ora o outro (SLOTERDIJK, 1998, p. 87-88). Sloterdijk chega a chamar o interior da esfera de “animista” (1999, p. 225), remetendo-a à noção de “espaço interior do mundo” (2005, p. 308), da poesia de Rainer Maria Rilke. “[...] por meio da formação de esferas, aquilo que a tradição denomina espírito [Geist] se estende originariamente no espaço” (1998, p. 45). Contudo, é justamente para fora da esfera que a diferença se torna rígida.

Se, no interior da esfera, vigora um animismo, mas no exterior, o animismo é excluído — onde a diferença entre o habitar e explorar vacila (SLOTERDIJK, 2005, p. 89-90) —, a própria imunologia esferológica evidencia uma circunscrição do animismo, o que é o mesmo que dizer, partindo das definições expostas acima:circunscrição da subjetividade ou circunscrição da vida. Ao invertermos as duas cláusulas e subsumirmos o animismo ao topocentrismo, temos que, já de início, a cláusula animista (a subjetividade ou “uma vida”, em sentido deleuzeano) possui validade apenas para o domínio do lugar ocupado por certa perspectiva — excluindo, assim, toda possibilidade de subjetividade em outra perspectiva, ou, para ser mais coerente, de outra perspectiva podendo assumir o lugar do sujeito — porque, virtualmente, ela já não o é.

Essa inversão constitui outro sentido para o conceito de “inimigo”, diferente do antropofágico. A propósito, podemos, em outros termos, caracterizar a diferença topológica como o que Byung-Chul Han chamou, a partir de Carl Schmitt, de “princípio amigo/inimigo” (2018, p. 47), no qual o que muda, entre antropofagia e imunologia, é o próprio tipo de relação entre o dentro (“amigos”) e o fora (“inimigos”). Para a antropofagia, que põe o animismo como cláusula primária, o inimigo é aquele que, por ser virtualmente sujeito, pode tirar do eu o posto da subjetividade e, nesse sentido, é um “objeto” (um sujeito) digno de respeito e impossível de ser subsumido pelo interior do meu corpo social, fazendo com que a própria “identidade” subjetiva, em sua relação com o objetal, esteja em perpétuo estado de variação.

Por outro lado, para o “princípio amigo/inimigo imunológico” (HAN, 2018, p. 45), a inimizade constitui a coesão do animismo interior, a “configuração” (Gestalt) comunitária de que fala Schmitt (ibid. p. 39) e que calcifica os limites do lugar do sujeito. O inimigo, dessa forma, não marca mais que os limites do corpo social, definindo-o e dando a ele, coesão. Desse ponto de vista, o inimigo, cindido da possibilidade de ocupar o posto de sujeito, entra no domínio do informe, do indiferenciado, e é tratado como um objeto de exploração, “recurso” (Ressource) análogo ao “fundo de reserva” (Bestand) da discussão heideggeriana sobre a técnica moderna (Gestell) (HEIDEGGER, 2000, p. 177). Em outras palavras,

Nas colônias e nos mares, para lá da linha, experimenta-se o exterminismo que, no século XX, regressa aos europeus sob a forma do estilo de guerra total. Quando ela se desenvolve no exterior, a luta contra um inimigo já não pode ser claramente distinguida da eliminação de uma coisa. Carl Schmitt chamou justamente a atenção para o papel das ‘linhas de amizade’ sobre as quais tinham entendido-se as potências marítimas europeias e cujo sentido era o de balizar um espaço civilizado, para lá do qual o exterior podia, literalmente, começar sob a forma de espaço sem direito. (SLOTERDIJK, 2005, p. 178)

Esse pressuposto imunológico de “inimizade objetiva” como relação com o fora é o que permitiu indistinguir, nas navegações ultramarinas do século XVI, “captura e achamento — graças à transferência de um antigo habitus” (SLOTERDIJK, 2005, p. 163, grifo nosso), fazer do Brasil “[...] um grilo de seis milhões de kilometros [sic] talhado em Tordesilhas” (BOPP apud NODARI, 2009, p. 132), e fazer com que aquilo que é tido como alteridade máxima — a “natureza” — pudesse ser tomado como estoque de recursos disponíveis para usufruto humano.

Isso porque, com a reversão de animismo e topocentrismo, aniquila-se toda possibilidade de variação topológica, já que a diferença topológica já é cristalizada de início — como era a dinâmica entre Terra e território em Heidegger, para Deleuze e Guattari. Além disso, mais do que um topocentrismo rígido, a perspectiva imunológica configura um antropo-topo-centrismo, em que o anthropos (o humano greco-europeu “civilizado”, habitante de esferas) é a perspectiva que ocupa, sempre, o lugar hegemônico do sujeito, e em que a diferença topológica rígida se exprime na forma de um problemático especismo.

Sem a variação da diferença topológica e com um antropotopocentrismo reinante, restam, no limite, apenas três alternativas à esfera imunológica: ou o ensimesmamento solipsista, como o grande problema das filosofias modernas; ou a implosão autoimune, o que Han chama de “depressão [...] como uma desordem narcísica” (HAN, 2018, p. 46); ou a exploração do fora, com a domesticação ou o extermínio do Outro, na projeção do Outro como inimigo a ser exterminado a fim de manter coeso e significativo o espaço interior e fugir às duas alternativas anteriores (ibid.). Ao comparar a personagem Ishmael, do Moby Dick de Herman Melville, com os navegadores ibéricos das Grandes Navegações, Sloterdijk apresenta esses mesmos extremos da imunologia: “[...] com o mosteiro [solipsismo] e o suicídio [implosão], a marinha [exploração] apresenta-se como a terceira opção possível que permite a uma pessoa desembaraçar-se de uma vida que se tornou invivível em terra” (SLOTERDIJK, 2005, p. 126, grifos nossos).

Para que se torne possível sair desse ciclo destrutivo de implosão e explosão, “seria necessário restaurar uma relação com o outro, uma relação para além do princípio inimigo/amigo de Schmitt e de sua concomitante violência da negatividade. [...] uma relação que não provoque uma defesa imunológica destrutiva.” (HAN, 2018, p. 47, grifo nosso) Como constituir, para Orfeu, uma devoração que “afirme [o outro] em sua alteridade” (ibid.), sem que, com isso, o Outro seja subsumido à condição de domesticado ou aniquilado, se não através da afirmação positiva do discurso desse Outro sobre Orfeu?

Por uma esferologia do ponto de vista do inimigo

Se Orfeu é um mito que serve para pensar o modo de funcionamento imunológico da topologia, no qual o animismo é sempre interiorizado, via domesticação, por uma poética antropotopocentrista, aglutinadora e exclusivista, que, no limite, é causa de sua própria destruição, gostaríamos, por fim, de propor a seguinte experiência de pensamento: sabendo que, em algumas versões do mito de Orfeu, o poeta é morto pelas mênades ou bacantes, seguidoras de Dioniso, por se recusar a deixar de cantar a Eurídice, o que aconteceria com a poesia de Orfeu se, ao invés de ele ser morto pelas bacantes, agenciasse com elas um devir-canibal e as devorasse, entoando as vozes e os pensamentos das seguidoras de Dioniso sobre seu lirismo “apolíneo” e, assim, fosse posto na posição de “objeto”, expelido da subjetividade?

A esferologia não necessitaria passar por isso, isto é, ser posta do ponto de vista do inimigo, dado seu antropo(topo)centrismo, para ser reposta como uma perspectiva possível? Se Orfeu é o personagem mítico usado por Sloterdijk para representar o indivíduo que, diante da perda de seu complemento, constitui para si uma configuração de vida específica, não seria válido constituir um Anti-Orfeu, antídoto para pretensão universalizante, englobante e colonizadora e, no limite, suicida da imunologia? Pode o orfismo esferológico, que explica muito bem o homem europeu do Humanismo, ainda que de forma radical e “pós-humanista”, se aplicar, sem mais, a configurações de vida tão distintas como a dos ameríndios? — isso sem contar as minorias cindidas da configuração poliesferológica do Palácio de Cristal capitalista.

Com esse tipo de problema, esse artigo pode servir de preâmbulo para um intento maior de desenvolver esses pontos a fim de pôr em perspectiva a construção filosófica de Sloterdijk — não para abandonar a esferologia, mas para, reconhecendo nela uma descrição interessante do modo de vida ocidental mediano, encontrar fissuras que permitam pensar a alteridade em sua diferença e abrir caminho para minorias virtuais que são excluídas da narrativa sloterdijkiana, bem como modular a esferologia como diagnóstico da autoimunidade ocidental. Em suma, liberar espaços para o canto das Eurídices sem a necessidade do resgate de Orfeu, o poeta da civilização.

Afinal, como configurar-se-ia uma poética anti-órfica? Se a poética heideggero-sloterdijkiana é a poética da presença neutralizada da ausência, que sempre mantém um resto inefável, à espera de uma apreensão impossível, e que acaba sendo neutralizado ao ser inserido na linguagem (ou seja, no mundo do poeta), como pensar uma poética (ou seja, uma constituição de mundo) anti-órfica, “outra”, que envolva presença sem neutralizar o ausente, envolva relação com o Outro mantido em sua alteridade, e que não simplesmente domestique “pedras e animais”, mas preserve suas próprias poéticas em suas positividades e heterogeneidades? Como constituir uma poética que extrapole o animismo, ao invés de, simplesmente, recortar e distorcer elementos exteriores para um animismo aos moldes esférico-antrópicos? De que forma seria possível compreender uma poética do Outro? Como pensar imunossupressores para, de forma semelhante ao que propõe Isabelle Stengers (2005, p. 1003), “desacelerar” a imunologia e abrir espaços para outras formas de devoração? Como fazer, também, nossa poética “variar” — e que lições podemos aprender com as poéticas variantes das “topologias da inconstância”, cuja principal característica é já, de início, partir de uma “esfera fendida”, uma diferença topológica não estática, mas em variação?

Em síntese, colocar a imunologia e a antropofagia como duas perspectivas possíveis sobre a distribuição de subjetividade, perspectiva e lugar nas cláusulas topoperspectivistas implica em determinar o papel da esferologia, enquanto descrição da imunologia antropocêntrica, como expositora da deficiência autoimune do modus vivendi do homem ocidental: diante do Antropoceno e do desastre ecológico, a imunologia, uma configuração de vida, se mostra como destruidora da vida em geral e, portanto, como, no limite, suicida. Desse ponto de vista (ecológico), a preferência (política) pela "antropofagia" (bem entendido: pelo modus vivendi cosmopolitico dos ameríndios, que tem por vetor de constituição a alteridade, e não o insulamento) é uma preferência em favor da vida, e não da morte. Daí, a necessidade de um Anti-Orfeu: modular a esferologia.

A esferologia deixa, então, de ser a descrição universal do modo de vida do humano em geral (após rearticulação de vários conceitos do pensamento ocidental sobre o que é o homem) para ser modulada como a descrição de uma possibilidade entre outras de configuração de vida humana. Essa modulação é a própria canção do Anti-Orfeu, do Outro, sobre Orfeu, entoada por Orfeu no momento de seu devir-canibal. Com essa modulação, todos os conceitos e características das esferas que servem para que Sloterdijk se afaste da tradição e descreva de maneira mais concreta, pós-metafísica, o modo de vida do humano em geral passam a figurar como, justamente, os conceitos e características por excelência que colocam o humano esferológico como causa eficiente da dissolução da vida e da destruição do ambiente: a imunologia, o insulamento, a subjetividade, o "inimigo" como objeto, o fora como campo de exploração, a tensão vertical etc.

Por isso, Orfeu (a esferologia) passa a figurar como um enquadramento efetivo para a crítica de si próprio (o Anti-Orfeu, a contra-esferologia). Os conceitos sloterdijkianos passam, depois dessa modulação, à caracterizar parâmetros para uma crítica da cultura ocidental, como conceitos com os quais deve-se, agora, fazer oposição prática ou rearticulação política. Assim, a postura política, filosófica, ecológica e topológica a ser assumida passa a ser a de buscar rearticular nosso modus vivendi a fim de aproximá-lo de algo não-imunológico, não-insular, a-subjetivo ou pós-subjetivo, que lide com o "inimigo" como potência de alteridade, com o fora como campo político (como “Cosmopolis”, não como “Ultramar”), como rizoma transversal e não como verticalidade contraposta a uma horizontalidade homogênea e exterior etc.

Se Sloterdijk, ao mesmo tempo em que faz uma rearticulação da filosofia, coloca-se no debate filosófico-ecologico da atualidade enquadrando conceitos da ecologia (como o de Antropoceno) a partir do referencial de sua esferologia, e se Latour considera que Sloterdijk faz uma "filosofia da natureza" que "nos prepara a viver com e em Gaia, ao invés de contra ou fora dela" (LATOUR em SLOTERDIJK, 2014, quarta capa)11, como ele afirma na citação da quarta capa das traduções norte-americanas da trilogia Sphären, é necessário entender que tipo de filosofia da natureza consoante à irrupção de Gaia é essa que reitera o humano como esse ente antropogênico que se constitui contra a exterioridade, se valendo dela como repositório de "mimos" a serem "domesticados" imunologicamente, e que, dessa forma, estrangula, na rigidez da diferença topológica, a própria vida que também sustenta esse humano?

Referências

DALLA VECHIA, R. O(s) perspectivismo(s) de Nietzsche. Tese (Doutorado em Filosofia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.

DANOWSKI, D; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental, 2017.

DE ANDRADE, O. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. Introdução de Benedito Nunes. v.4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. (Col. “Obras Completas”)

DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o barroco. 6.ed. Trad. de Luiz B.L. Orlandi. Campinas: Papirus, 2012.

DELEUZE, G. Espinosa e o problema da expressão. Trad. do GT Deleuze – 12, coord. De Luiz B.L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2017. (Col. “TRANS”)

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Trad. de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010. (Coleção “TRANS”)

GELL, A. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon, 1998.

HAN, B.-C. Topology of violence. Trad. de Amanda Demarco. Cambridge; Londres: The MIT Press, 2018.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo; Sein und Zeit [ed. bilíngue]. Trad., org., notas etc. de Fausto Castilho. Campinas: Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012. (Col. “Multilíngues de Filosofia Unicamp”)

HEIDEGGER, M. Unterwegs zur Sprache. v.12. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1985. (Col. “Gesamtausgabe”)

HEIDEGGER, M. Vorträge und Aufsätze. v.7. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2000. (Col. “Gesamtausgabe”)

HOLBRAAD, M; PEDERSEN, M. The ontological turn: an anthropological exposition. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.

INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Trad. de Fábio Creder. Petrópolis: Vozes, 2015.

KOPENAWA, D; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Trad. de Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

LAPOUJADE, D. Deleuze, os movimentos aberrantes. Trad. de Laymert G. dos Santos. São Paulo: n-1 Edições, 2015.

LATOUR, B. An inquiry into Modes of Existence: an anthropology of the Moderns. Trad. de Catherine Porter. Cambridge: Harvard University Press, 2012.

LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Trad. de Carlos I. Costa. São Paulo: Ed. 34, 2013.

LATOUR, B. Spheres and networks: two ways to reinterpret globalization. Harvard Design Magazine, n.30, p. 138-144, fev. 2009.

LIMA, T.S. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana: Estudos de Antropologia Social, v.2, n.2, Rio de Janeiro, Museu Nacional (UFRJ), p. 21-47, 1996.

MARQUES, A. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003.

MCEVOY, P. Niels Bohr: reflexions on subject and object. v.1. San Francisco: Microanalytix, 2001. (Col. “The Theory of Interacting Systems”)

NODARI, A. “A posse contra a propriedade”: pedra de toque do Direito Antropofágico. 2007. 168 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Departamento de Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.

O’SULLIVAN, S. On the production of subjectivity: five diagrams of the finite-infinite relation. Londres: Palgrave MacMillan, 2012.

SLOTERDIJK, P. Im Weltinnenraum des Kapitals: für eine philosophische Theorie der Globalisierung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005.

SLOTERDIJK, P. Nicht gerettet: Versuche nach Heidegger. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001.

SLOTERDIJK, P. Sphären I (Mikrosphärologie): Blasen. v.1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998.

SLOTERDIJK, P. Sphären II (Makrosphärologie): Globen. v.2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999.

SLOTERDIJK, P. Sphären III (Plurale Sphärologie): Schäume. v.3. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004.

SLOTERDIJK, P. Spheres volume 2: Macrospherology. v.2. Trad. de Wieland Hoban. South Pasadena: Semiotext(e), 2014.

SLOTERDIJK, P. Was geschah im 20. Jahrhundert? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2016.

SLOTERDIJK, P; HEINRICHS, H.-J. Die Sonne und der Tod: dialogische Untersuchungen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2016.

STENGERS, I. The cosmopolitical proposal. In: LATOUR, B; WEIBEL, P. [org.]. Making things public: atmospheres of democracy. Cambridge: MIT Press, 2005, p. 994-1003.

VALENTIM, M.A. Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamental. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie, 2018. (Col. ‘species’)

VALENTIM, M.A. “Talvez eu não seja um homem” – Antropomorfia e monstruosidade no pensamento ameríndio. Campos, n.15, v.2, p. 9-26, 2014. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/campos/article/view/42905 >. Acesso em 14 ago. 2018.

VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

VIVEIROS DE CASTRO, E. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; ANPOCS, 1986.

VIVEIROS DE CASTRO, E. Cosmological Perspectivism in Amazonia and elsewhere: four lectures given in the Department of Social Anthropology, Cambridge University, February–March 1998. Introdução de Roy Wagner. v.1. Manchester: HAU Journal of Ethnographic Theory, 1998. (Col. “HAU Master Classes”)

VIVEIROS DE CASTRO, E. Encontros. Org. de Renato Sztutman. Rio de Janeiro: Beco de Azougue, 2010.

VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

VIVEIROS DE CASTRO, E. Metaphysics as Mythophysics or, why I have always been an anthropologist. In. CHARBONNIER, Pierre; SALMON, Gildas [et al.] [ed.]. Comparative Metaphysics: Ontology after Anthropology. Londres; New York: Rowman & Littlefield International, 2017. (E-book, s/p.)

VON UEXKÜLL, J. A foray into the world of animals and humans; A theory of meaning. Trad. por Joseph D. O’Neil. Posfácio de Geoffrey Winthrop-Young. Minnesota: University of Minnesota Press, 2010. (Col. “Posthumanities”)

WAGNER, R. A invenção da cultura. Trad. de Marcela C. de Souza. São Paulo: Ubu Editora, 2017. (Col. “Argonautas”)

ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2009. (Col. “Conexões”).

________________________________________________________________________________

Autor(a) para correspondência: Maurício Fernando Pitta. Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de Filosofia – IFILO, bloco 1U, sala 130, Av. João Naves de Ávila, nº 2121, Bairro Santa Mônica, 38.400-902, Uberlândia – MG, Brasil. mauriciopitta@hotmail.com

HMTL gerado a partir de XML JATS4R por