Artigos
Recepção: 23 Junho 2019
Aprovação: 27 Agosto 2019
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i3.1272
Resumo: Ao longo desse texto intencionamos desenvolver a ideia segundo a qual há uma estreita conexão estrutural entre categorias como vontade, razão, autonomia, liberdade e causalidade no interior da filosofia prática de Kant. Assim, partindo da identificação de vontade e razão procuraremos demonstrar que esse paralelismo só é possível por meio da purificação da vontade e pela atribuição de uma função prática à razão. Entretanto, somente a purificação da vontade ainda não será suficiente para permitir a identificação entre vontade e razão. Com efeito, para identificá-las devemos demonstrar como passar da liberdade da vontade, da liberdade considerada negativamente, portanto, para a liberdade da razão prática, enquanto liberdade em sentido positivo.
Palavras-chave: Kant, Liberdade, Razão prática, Vontade, Autonomia.
Abstract: Throughout this text we intend to develop the idea that there is a close structural connection between categories like will, reason, autonomy, freedom, and causality within Kant's practical philosophy. Thus, starting from the identification of will and reason, we will try to demonstrate that this parallelism is possible only through the purification of the will and the attribution of a practical function to reason. However, only the purification of the will not yet be enough to allow the identification between will and reason. In fact, to identify them, we must demonstrate how to pass from the freedom of will, from, therefore, the freedom considered negatively, to the freedom of practical reason, as the freedom in the positive sense.
Keywords: Kant, Freedom, Practical reason, Will, Autonomy.
Introdução
O tema da autonomia, na filosofia kantiana, inscreve-se no horizonte de reflexões sobre a moral. Nesse sentido, a autonomia figura como um análogo próximo de seu aspecto teórico – a espontaneidade. E, tal como essa, possui uma estreita ligação com a noção de liberdade. Com efeito, autonomia e espontaneidade são ambas representações da liberdade na filosofia prática e na filosofia teórica, respectivamente. Quanto à ideia de liberdade, Kant é herdeiro de uma tradição que começa com Maquiavel e a liberdade política, passa por Lutero e a liberdade religiosa e chega a Rousseau e o contrato social, fonte de onde Kant colhe este conceito para transpô-lo ao contexto moral, na forma da autonomia da vontade.
Nesse sentido, a autonomia, enquanto representação da liberdade na filosofia prática, supõe, conforme veremos, uma dupla relação com a vontade: a primeira é a independência da vontade com relação a qualquer forma de dependência; a segunda, a capacidade da vontade de autolegislar-se. A vontade, enquanto faculdade pura, nos permite a compreensão de sua independência. Porém, essa mesma vontade, representada como submetida à leis próprias, mostrar-se-á como a fonte de sua própria legislação. A aparente contradição entre os dois modos da vontade, entretanto, somente será superada com a compreensão da distinção entre leis da natureza e leis da liberdade, bem como com o alinhamento de vontade, liberdade e razão. Com isso, pensamos que, para compreender o que seja a autonomia da vontade, teremos primeiro que esclarecer o que Kant entende por 'vontade'.
Para não realizar essa aproximação de modo arbitrário e comprometê-la pela falta de legitimidade de seu método, vamos nos apoiar na arquitetônica da filosofia crítica, já iniciada na primeira crítica, onde a distinção entre diferentes faculdades é o principal ponto sobre o qual Kant se apoia para toda sua construção teórica. Desse modo, na primeira Crítica encontraremos duas faculdades fundamentais para o conhecimento, a saber, a faculdade da sensibilidade e a faculdade do entendimento, já na segunda Crítica, essa distinção, aplicada à faculdade volitiva, ficará por conta da faculdade de desejar inferior e da faculdade de desejar superior. Com efeito, apesar de sua utilidade hermenêutica e do termo 'faculdade' atravessar todo o edifício crítico e de ter aí uma importância fundamental, Kant nunca o define ou analisa suficientemente. Essa dificuldade, todavia, pensamos poder superá-la a partir da compreensão de que o termo alemão para faculdade (Vermögen) traduz a ideia de uma capacidade, potencial ou poder para realizar algum fim e, com isso, pensamos que o termo reflete antes uma estrutura teórica de inteligibilidade do que a ideia de partes estanques de um sistema. Tendo por fio condutor a arquitetônica da filosofia crítica pretendemos, portanto, nas páginas seguintes, demonstrar a conexão estrutural entre conceitos como vontade, razão, autonomia, liberdade e causalidade no interior da filosofia prática de Kant, bem como elaborar a compreensão do conceito de autonomia da vontade. Desse modo, a vontade, inserida na arquitetônica da filosofia crítica, para ser corretamente compreendida, deverá ser antes traduzida em termos de faculdade de desejar inferior e faculdade de desejar superior, nossa próxima tarefa.
Vontade e razão prática
Na Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant começa identificando claramente vontade e razão prática (KANT, 1974, p. 217). Resulta disso, que nos bastaria definir o que Kant entende por razão prática para termos o adequado conceito de vontade. As coisas não são, entretanto, tão simples assim. Primeiro, porque o próprio conceito de razão prática não está livre de ambiguidades; segundo, porque, para identificarmos vontade e razão prática, precisamos antes distinguir o que em Kant se chama razão prática empiricamente condicionada e razão prática pura. Quanto às ambiguidades, já que não é possível superá-las de todo, para evitar escolhas arbitrárias, preferimos, como já mencionado, seguir como método a estrutura geral da filosofia crítica. Assim, tendo uma linha mestra por seguir, poderemos tentar estabelecer as diferenças entre razão prática empiricamente condicionada e razão prática pura, para sabermos, ao fim, em que essa distinção afeta o conceito de vontade.
Apesar de não ser desenvolvida explicitamente, a distinção entre razão prática empiricamente condicionada e razão prática pura já pode ser localizada na Fundamentação. Aí, introduz Kant, em primeiro lugar, a ideia de razão prática: “como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática” (KANT, 1974, p. 217). Além da já mencionada identificação entre vontade e razão prática, devemos notar a importante função atribuída à razão. Com efeito, só porque a razão pode derivar ações de leis é que ela pode ser prática, isto quer dizer que, somente porque a nossa vontade pode agir segundo fundamentos racionais (leis) é que ela pode ser razão prática. Na sequência do parágrafo citado, em termos hipotéticos, Kant lança então aquela que será a futura distinção interna na razão prática. Segundo o filósofo,
se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário (KANT, 1974, p. 217).
Nesse sentido, se a razão, em sentido geral, fosse o único fundamento da determinação da vontade, ela não só se mostraria como prática, mas também pura, ou seja, livre de todo móbil empírico. Com isso a razão, enquanto razão prática pura, e a vontade, enquanto vontade pura, se veem alinhadas, pois as ações objetivamente necessárias coincidem com aquelas que são subjetivamente necessárias (KANT, 1974, p. 199). Em seguida Kant introduz a segunda hipótese:
mas se a razão só por si não determina suficientemente a vontade, se esta está ainda sujeita a condições subjetivas (a certos móbiles) que não coincidem sempre com as objetivas; numa palavra, se a vontade não é em si plenamente conforme a razão (como acontece realmente entre os homens), então as ações, que objetivamente são reconhecidas como necessárias, são subjetivamente contingentes (KANT, 1974, p. 2017).
Segundo essa hipótese, no caso da vontade não ser determinada unicamente pela razão e, consequentemente, as ações objetivamente necessárias não coincidirem com aquelas apenas subjetivamente necessárias, então a razão prática já não poderá ser pura, mas apenas empiricamente condicionada. De acordo com isso, podemos compreender que razão e vontade, se nem sempre identificadas, encontram-se, contudo, alinhadas na medida em que a razão torna-se prática; seja empiricamente determinada, seja pura. De outra forma, razão e vontade apareceriam como faculdades distintas. Este procedimento, em verdade, não é estranho a Kant, pois a distinção de diferentes faculdades percorre todo o sistema crítico. Nesse sentido, a separação entre razão e vontade está plenamente de acordo com o método kantiano. Mas também está de acordo com o sistema da crítica, a dualidade entre entendimento e sensibilidade, faculdade de desejar superior e inferior, presente em todas as faculdades, seja internamente seja entre as distintas faculdades. Assim, falar de razão e vontade, não só como faculdades idênticas mas também como ou pura ou empiricamente condicionada, está igualmente de pleno acordo com o sistema kantiano.
Na Crítica da razão prática, a distinção entre razão prática empiricamente condicionada e razão prática pura já aparece desenvolvida e apresentada de forma bem mais clara. Na 'Introdução' a esta obra, Kant inicia por esclarecer o que entende por uso prático da razão. Assim, escreve o filósofo, que, “neste uso, a razão ocupa-se dos princípios determinantes da vontade” (KANT, 1999, p. 23). Nesse sentido, aqui a razão ocupa-se com os princípios determinantes do seu uso prático. Nesse uso, porém, a razão talvez possa “pelo menos bastar para a determinação da vontade” (KANT, 1999, p. 23), e, com isso, ser razão prática pura. Com efeito, Kant não questiona a existência de um uso prático da razão, mas questiona a possibilidade desse uso prático poder ser puro, ou seja, que, além de um uso prático empiricamente condicionado, a razão também possa ser incondicionalmente prática, isto é, pura. De acordo com o filósofo, “aqui se põe, pois, a primeira questão: se a razão se basta a si mesma para determinar a vontade ou se ela pode ser um princípio de determinação apenas enquanto empiricamente condicionada” (KANT, 1999, p. 23). Esta distinção “esclarece suficientemente porque é que esta crítica não se intitula Crítica da razão pura prática, mas simplesmente Crítica da razão prática em geral” (KANT, 1999, p. 11). Com efeito, o uso prático da razão é dado como fato para todo ser racional, mas que esse uso possa ser puro já não é coisa tão evidente assim, tanto que Kant dedica toda essa obra para “apenas demonstrar que existe uma Razão pura prática” (KANT, 1999, p. 11).
Podemos compreender, com isso, que, em termos gerais, Kant pode usar os conceitos de razão e vontade como que apontando faculdades distintas, ainda que relacionadas. Porém, que, enquanto identificadas, vontade e razão compõem a razão prática. Nesse sentido, se o princípio de determinação da vontade provêm unicamente da razão, então ela é uma vontade pura, ou seja, razão prática pura; mas se junto a este princípio se misturam móbiles empíricos, então a vontade será vontade empiricamente condicionada, isto é, razão prática empiricamente condicionada. Com isso, portanto, pensamos ter esclarecido em que a distinção entre razão prática empiricamente condicionada e razão prática pura influencia na compreensão do conceito de vontade, enquanto identificado com o de razão prática.
Os princípios práticos e a determinação da vontade
Como acontece com as demais faculdades ao longo de toda a filosofia crítica, embora seja o lugar de uma síntese, a sua análise procede pela decomposição da faculdade em matéria e forma. Assim aconteceu com a sensibilidade e com o entendimento e, assim, também acontece com a vontade. Somente por meio da decomposição da vontade é que podemos, pois, falar em vontade pura e vontade empiricamente condicionada. A vontade, enquanto tal, “está colocada entre o seu princípio a priori, que é formal, e o seu móbil a posteriori, que é material, por assim dizer numa encruzilhada” (KANT, 1974, p. 208). Se na primeira crítica a questão era limitar o uso dos conceitos puros à experiência, pois estes pretendiam alcançar conhecimentos para os quais já não era possível nenhuma experiência correspondente, agora, no uso prático da razão, onde a questão não é mais de saber o que ., mas o que deve ser, já não é necessária nenhuma síntese, pois no conhecimento moral, onde o que está em jogo é a possibilidade da moralidade, portanto da liberdade da vontade, a crítica deve poder demonstrar que na encruzilhada onde a vontade se encontra é possível não só a sua determinação pela matéria do querer, a qual, por ser de natureza empírica, não oferece a universalidade que uma lei exige, além do que, por repousar sobre um objeto, só prova a possibilidade da vontade ser determinada por um elemento externo, fato do qual não podemos deduzir nem a liberdade da vontade e nem a possibilidade da moralidade, motivo pelo qual Kant pretende mostrar que além da matéria, a vontade não só possui um elemento formal, o qual oferece a universalidade exigida por uma lei, mas que pode até mesmo ser determinada inteiramente por esse elemento, resultado que lhe permite, ao fim, pensar a moralidade no agir e, portanto, a liberdade da vontade. Isto quer dizer que, se na primeira crítica o importante era demonstrar o caráter sintético do conhecimento, aqui na razão prática, pelo contrário, o que importa a Kant é distinguir claramente cada elemento do agir a fim de demonstrar a possibilidade de princípios práticos absolutamente puros. Com efeito, segundo o filósofo, e este é o seu pressuposto fundamental, “se se admitir que a razão pura pode conter em si um fundamento prático, isto é, suficiente para a determinação da vontade, existem lei práticas; se não, então todos os princípios práticos serão simples máximas” (KANT, 1999, p. 29).
Ora, a vontade é considerada como a capacidade de agir segundo princípios (KANT, 1974, p. 217). Por princípios, entretanto, compreende Kant, as “proposições que contêm uma determinação geral da vontade, a qual inclui em si várias regras práticas” (KANT, 1999, p. 29). Aqui, como acontecia com a primeira crítica, onde Kant unificava as regras do entendimento mediante princípios da razão, as regras do querer também são unificadas por princípios, ou seja, são conduzidas a uma unidade mais elevada, uma unidade na qual os princípios nos permitam “que outros juízos possam ser provados a partir deles, não podendo eles próprios, porém, serem subordinado a nenhum outro” (KANT, 1992, p. 129). Esses princípios podem ser ou objetivos ou subjetivos. “São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como válida unicamente para a sua vontade” (KANT, 1999, p. 29). Pelo contrário, “são objetivos, ou leis práticas, quando essa condição é reconhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de todo o ser racional” (KANT, 1999, p. 29). A máxima representa, assim, uma norma de conduta que o sujeito, em determinadas circunstâncias, impõe-se a si mesmo, porém, sabendo que ela vale somente para a sua vontade e, por isso, não alcança o valor de uma lei. Nas máximas, apesar de os juízos poderem possui uma relativa generalidade, falta-lhes a verdadeira universalidade e necessidade, pois apresenta-se como verdadeiro apenas para o sujeito. Nos princípios objetivos, pelo contrário, os juízos apresentam-se como válidos para todos os seres racionais. Nesses casos, a regra prática “é designada por um dever (Sollen), que exprime a obrigação (Nötigung) objetiva da ação, e significa que, se a razão determinasse inteiramente a vontade, a ação dar-se-ia inevitavelmente segundo essa regra” (KANT, 1999, p. 29). Com isso, os princípios não só seriam objetivos, mas leis necessárias e universais, as quais Kant denomina de imperativos.
As máximas são princípios práticos, mas, como elas não possuem nenhuma obrigação, isto é, nenhuma necessidade e universalidade, não são imperativos. Estes, por sua vez, podem ser categóricos ou hipotéticos. São imperativos hipotéticos aqueles que determinam “as condições da causalidade do ser racional, enquanto causa eficiente, simplesmente em relação ao efeito e à capacidade para o produzir” (KANT, 1999, p. 30). Os imperativos categóricos, pelo contrário, são aqueles que determinam “unicamente a vontade, que ela seja ou não suficiente para o efeito” (KANT, 1999, p. 30). Os primeiros, porque “não determinam a vontade simplesmente como vontade, mas apenas em vista de um efeito desejado” (KANT, 1999, p. 30), são apenas preceitos práticos. Diferentemente, os imperativos categóricos, porque “devem determinar suficientemente a vontade, ainda antes de eu perguntar se tenho a faculdade necessária para um efeito desejado, ou o que devo fazer para o produzir” (KANT, 1999, p. 30), é uma lei prática da razão que impõe uma ação à vontade, não como meio para outra coisa, mas absoluta e incondicionalmente, ou seja, como objetivamente necessária em si mesma.
Conforme temos visto, somente o imperativo categórico é um princípio prático que determina a vontade ao modo de uma lei, isto é, universal e necessariamente. Aqui, porém, coloca-se a questão: como é que podemos compreender o paradoxo, de que o imperativo categórico deve “determinar suficientemente a vontade como vontade, ainda antes de eu perguntar se tenho a faculdade necessária para um efeito desejado, ou o que devo fazer para o produzir?” (KANT, 1999, p. 30) Isto quer dizer: como a razão pode determinar a vontade a priori? Para responder a essa questão, Kant estabelece dois teoremas, dos quais deduz senão a necessidade, ao menos a possibilidade da razão determinar a vontade a priori. O primeiro teorema reza que todos os “princípios práticos que pressupõe um objeto(matéria) da faculdade de desejar, enquanto princípios determinantes da vontade, são no seu conjunto empíricos e não podem fornecer nenhumas leis práticas” (KANT, 1999, p. 31). Kant entende por matéria da faculdade de desejar o “objeto cuja realidade é desejada” (KANT, 1999, p. 31). Evidentemente que, na medida em que o desejo do objeto precede a norma de conduta e é a condição para a aceitarmos, este princípio será sempre empírico. O segundo teorema reza que “todos os princípios práticos materiais são enquanto tais, no seu conjunto, de uma só e mesma espécie e classificam-se sob o princípio geral do amor de si ou da felicidade pessoal” (KANT, 1999, p. 32). Sempre que o meu agir é determinado pelo desejo de um objeto, o que busco é o prazer que este objeto pode me proporcionar. Nesse caso, o sentimento proveniente do objeto apoia-se na sensibilidade particular de cada sujeito e, por isso, os princípios práticos materiais são manifestações do amor-próprio ou da busca da felicidade pessoal. A consequência retirada destes dois teoremas é a de que
todas as regras práticas materiais colocam o princípio determinante da vontade na faculdade de desejar inferior e, se não existissem leis puramente formais que determinassem suficientemente a vontade, também não poderia admitir-se uma faculdade de desejar superior (KANT, 1999, p. 32 ).
Kant introduz, aqui, a distinção entre faculdade inferior e superior de desejar, segundo o querer da vontade seja determinado a posteiori pelo sentimento de prazer e desprazer ou a priori por um princípio da pura razão. No primeiro caso, é indiferente se as representações que estejam ligadas ao sentimento de prazer tenham sua origem nos sentidos ou no entendimento, pois, na medida em que o querer está em função de um sentimento, a determinação da vontade carece de fundamento objetivo. No segundo caso, precisamente por ser determinado a priori pela razão é que o princípio da vontade pode ser elevado a princípio objetivo ou lei prática.
Assim, a consequência final reza que
o princípio da felicidade pessoal, por muito que aí se utilizem o entendimento e a razão, não compreenderia, porém, em si, no tocante à vontade, nenhum outro fundamento de determinação a não ser os que se ajustam à faculdade de desejar inferior, e, então, ou não existe nenhuma faculdade de desejar superior, ou a razão pura deve, por si mesma apenas, ser prática, isto é, sem pressuposição de um sentimento qualquer, por conseguinte, sem representações do agradável ou desagradável enquanto matéria da faculdade de desejar, que é sempre uma condição empírica dos princípios (KANT, 1999, p. 35).
As consequências tiradas da impossibilidade de deduzir princípios práticos puros da esfera inferior da faculdade de desejar conduz Kant ao terceiro de seus teoremas: quando um “ser racional deve conceber as suas máximas como leis gerais práticas, só pode concebê-las como princípios que contêm a base de determinação da vontade, não segundo a matéria, mas unicamente segundo a forma” (KANT, 1999, p. 37). Como já vimos, da matéria dos objetos do desejo somente podemos retirar princípios subjetivos que determinam o querer da vontade pelo sentimento de prazer ou desprazer. Assim, descartada a matéria, apenas nos resta a mera forma da lei. A lei moral não pode, pois, ter outro conteúdo que a sua simples forma ou caráter de lei. Qualquer determinação material do conteúdo da lei submeteria a vontade às condições empíricas e, consequentemente, destruiria a necessidade e universalidade da lei. Assim, um ser racional “ou não pode pensar os seus princípios subjetivos práticos, isto é, as suas máximas, como leis universais, ou deve admitir que a sua simples forma, segundo a qual aqueles se capacitam para uma legislação universal, faz deles por si mesma leis práticas” (KANT, 1999, p. 38).
Com isso, devemos poder compreender que Kant equipara as representações das leis, produzidas pela razão, com uma forma específica de princípios práticos; os princípios práticos puros. As leis são caracterizadas pela sua necessidade e universalidade. Todo elemento, porém, derivado da experiência não pode fornecer nem universalidade estrita e nem necessidade absoluta. A experiência diz respeito à matéria da faculdade de desejar, assim como acontecia na primeira crítica entre o entendimento e a sensibilidade, razão pela qual, da matéria da faculdade de desejar, não podemos retirar a necessidade e universalidade que uma lei objetiva requer. Precisamente por isso as máximas podem ser consideradas como princípios práticos materiais, sem, contudo, o poderem ser como leis, pois sua necessidade é apenas subjetiva. Com efeito, um princípio prático, para ser objetivo, isto é, uma lei, tem de oferecer universalidade e necessidade absolutas. Motivo pelo qual os imperativos hipotéticos podem ser considerados como princípios práticos, mas não como leis, já que a sua universalidade e necessidade estão vinculadas ao fim que se pretende atingir por meio da ação e não em si mesmos. De acordo com o visto, somente os imperativos categóricos podem ser considerados leis práticas, pois a sua universalidade e necessidade repousam apenas sobre a simples forma do querer, que, por ser transcendental, não só é pura e a priori, mas possibilita ainda outros conhecimento a priori; como é o caso da liberdade. Portanto, uma vez a vontade despojada
de todos os estímulos que lhes poderiam advir da obediência a qualquer lei, nada mais resta do que a conformidade a uma lei universal das ações em geral que possa servir de único princípio à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal (KANT, 1974, p. 209).
Com efeito, a vontade, enquanto razão prática pura, é uma vontade “determinada completamente por princípios a priori e sem quaisquer móbiles empirícos” (KANT, 1974, p. 199), ou, o que dá no mesmo, é uma vontade pura. Uma vontade, portanto, que “não se relaciona com a matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva” (KANT, 1974, p. 220).
Os princípios práticos e a autonomia da vontade
Seguindo a distinção entre vontade pura e vontade empiricamente condicionada chegamos, por fim, àquele que é o primeiro aspecto da autonomia da vontade em Kant. Com efeito, segundo o próprio filósofo, “a vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem” (KANT, 1974, p. 243). O primeiro aspecto da autonomia é, pois, a liberdade da vontade com relação a todos os elementos externos. Assim, só podemos falar de uma vontade livre porque podemos falar de uma vontade pura, isto é, determinada inteiramente pela mera forma de seus princípios práticos (KANT, 1974, p. 199). Esta vontade, portanto, abre espaço para Kant pensar a liberdade como independência de condicionamentos externos.
A definição da liberdade como independência de toda forma de dependência é, contudo, segundo o próprio Kant, apenas um conceito negativo de liberdade (KANT, 1974, p. 243). Precisamente por isso é que será o conceito positivo de liberdade que nos permitirá compreender a correta extensão da ideia de autonomia da vontade. Para essa compreensão precisamos, no entanto, de dois conceitos que até agora não só não foram tematizados, mas em certa medida também evitados, pois procurávamos dar ênfase à relação entre razão e vontade, para chegarmos ao conceito de liberdade apoiado na formalidade da vontade, da sua pureza, portanto.
Estes conceitos e suas funções já aparecem expostos da Fundamentação, naquele capítulo em que Kant tratará de modo mais filosófico a questão da autonomia e da liberdade. O próprio subtítulo da terceira seção já traz a ideia que pretendemos trabalhar. Com efeito, segundo o nosso filósofo lá escreve, “o conceito da liberdade é a chave da explicação da autonomia da vontade” (KANT, 1974, p. 243). E abre o segundo parágrafo deste mesmo capítulo, onde define a liberdade positiva, nos seguintes termos:
como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis segundo as quais, por meio de uma coisa a que chamamos causa, tem de ser posta outra coisa que se chama efeito, assim a liberdade, se bem que não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais, não é por isso desprovida de leis, mas tem antes de ser uma causalidade segundo leis imutáveis, ainda que de uma espécie particular, pois de outro modo uma vontade livre seria um absurdo (KANT, 1974, p. 243).
Nesta citação aparecem claramente as duas ideias que nos permitirão agora falar da liberdade, enquanto autonomia da vontade em sentido positivo, a saber: a ideia de lei e de causalidade. Se até agora só tínhamos tratado da vontade como uma faculdade passiva, e essa era a intenção porque pretendíamos destacar a compreensão segundo a qual a vontade, enquanto determinável pelo imperativo categórico, isto é, segundo a mera forma dos princípios práticos, o que os faz princípios absolutamente puros, podia ser entendida como pura e como livre de condicionamentos externos, ou seja, que a vontade podia não só separar a matéria da forma de seus princípios, mas que ainda era-lhe possível pensar princípios simplesmente formais, princípios esses que tornam possível a ideia de uma vontade pura, determinada pela sua mera forma. Portanto, se até agora tínhamos tratado da vontade apenas como faculdade passiva é hora de também a tratarmos como faculdade ativa.
Com efeito, na medida em que a vontade é concebida como faculdade, é-lhe, como acontece com todas as outras faculdades, atribuída tanto uma matéria quanto uma forma. Forma essa sob a qual a matéria será determinada. Ainda que Kant não dê muito destaque para as consequências desse fato, isto cria em todas as faculdades, sejam teóricas ou práticas, uma dupla relação no interior da própria faculdade, pois, pelo lado da matéria, a faculdade é receptiva, porém, pelo lado da forma, toda faculdade também é atividade. Assim, uma distinção como aquela que aparece na primeira crítica, em que Kant distinguia sensibilidade e entendimento, enquanto capacidade de receptividade e capacidade de espontaneidade (KANT, 1997, p. 88), não é de todo exata, pois a sensibilidade se é por um lado passiva quanto aos dados, por outro é ativa, na medida em que possui também as formas puras de espaço e tempo, que sintetizam as sensações. Semelhante caso é o do entendimento, pois se as categorias são ativas, conformadoras, são também, entretanto, receptivas; receptividade sem a qual não lhes seria possível a relação de síntese com a matéria vinda da sensibilidade. Com isso, também a vontade, se é passiva quanto aos conteúdos do querer, se a vontade é a faculdade de desejar inferior, entretanto também é ativa quanto às formas puras, formando a faculdade de desejar superior. É precisamente como faculdade de desejar superior, ou seja, como razão prática pura (KANT, 1999, p. 35) que a vontade se manifesta como lei, na forma do imperativo categórico, o qual é o único princípio prático puro da moral.
Na filosofia teórica, era a fusão de forma e matéria que formava o conhecimento, na filosofia prática, porém, é justamente a distinção entre forma e matéria do querer, que se não prova, ao menos torna compreensível a possibilidade de uma vontade pura, uma vontade inteiramente formal. Como na filosofia crítica há um claro paralelismo entre formalidade e atividade, a vontade, do ponto de vista formal, é a mesma vontade vista pelo lado da atividade. E é desta atividade que Kant extrai sua lei moral. Se a vontade é livre de condicionamentos externos, internamente é submetida à lei. A liberdade da vontade pode ser, portanto, entendida tanto como independência de condicionamentos externos quanto como submissão à sua lei imanente.
Com a formalidade dos princípios puros, Kant abre espaço para a segunda característica da autonomia da vontade: a imanência da lei. Na própria Fundamentação, ainda que Kant experimentasse outros candidatos a princípios práticos, já podemos encontrar essa ideia. Lá, escreve ele que a “autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças a qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer)” (KANT, 1974, p. 238). Na Crítica da razão prática a autonomia já não concorre mais com nenhum outro princípio e é aclamada como “o único princípio de todas as leis morais e dos deveres a ela conformes” (KANT, 1999, p. 44). A autonomia como auto-legislação é possível, pois, por meio “da relação de uma vontade consigo mesma enquanto essa vontade se determina só pela razão” (KANT, 1974, p. 228). Tanto na Fundamentação quanto na segunda crítica, entretanto, a lei moral e princípio prático puro já são um e o mesmo, que, formulados ao modo de um imperativo, porque puro e a priori, universal e necessário, em uma palavra, porque transcendental, o imperativo que representa aquela lei e aquele princípio também é categórico e deixa-se compreender em sua primeira e mais geral formulação da seguinte maneira: “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KANT, 1999, p. 42). Na Fundamentação, porém, esta formulação ainda não é definitiva, e o imperativo aparece com alguma diferença. A sua primeira formulação e mais geral é a seguinte: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1974, p. 223).
O contrário da autonomia é a heteronomia. Essa acontece
quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus objetos (KANT, 1974, p. 239).
Ao contrário do que acontecia na autonomia, na heteronomia não é a vontade que dá a lei a si mesma, mas o objeto, através de sua relação com ela (KANT, 1974, p. 239).
Como temos visto, é o conceito de lei que permite a Kant falar da liberdade, em sentido positivo, como expressão da autonomia da vontade, porque “a vontade não está pois simplesmente submetida à lei, mas sim submetida de tal maneira que tem de ser considerada também como legisladora ela mesma, e exatamente por isso e só então submetida à lei” (KANT, 1974, p. 231). Com efeito, a liberdade é a propriedade da causalidade pela vontade e o conceito de lei é o que nos permite compreender a vontade como atividade. Com isso, porém, coloca-se a Kant o problema de explicar o paradoxo entre uma vontade livre e uma vontade submetida à leis, paradoxo esse que reveste a compreensão da autonomia da vontade.
Com efeito, a vontade, enquanto vontade pura, é inteiramente independente de qualquer forma de condicionamento externo. Porém, essa mesma vontade, enquanto vontade empiricamente condicionada, está sob as leis da causalidade na natureza. Ao próprio Kant, na Fundamentação, este problema já é evidente. Na terceira seção desta, o filósofo o expõe com clareza, no seguinte parágrafo:
mostra-se aqui – temos que confessá-lo francamente – uma espécie de círculo vicioso do qual, ao que parece, não há maneira de sair. Consideramo-nos como livres na ordem das causas eficientes, para nos pensarmos submetidos a leis morais na ordem dos fins, e depois pensamo-nos como submetidos a estas leis porque nos atribuímos a liberdade da vontade; pois liberdade e própria legislação da vontade são ambas autonomia, portanto conceitos transmutáveis, um dos quais porém não pode, por isso mesmo, ser usado para explicar o outro e fornecer o seu fundamento, mas quando muito apenas para reduzir a um conceito único, em sentido lógico, representações aparentemente diferentes do mesmo objeto (KANT, 1974, p. 246).
É agora o momento de trabalharmos com o segundo conceito, da já anterior citação., da qual dizíamos que eram os conceitos de lei e de causalidade que permitem a Kant justificar a liberdade da vontade em sentido positivo. A correta distinção entre lei da causalidade natural e lei da causalidade pela liberdade será, portanto, o meio através do qual o filósofo tentará superar o paradoxo entre liberdade e necessidade.
Com efeito, a saída deste círculo, Kant a procurará na tese segundo a qual, “quando nós nos pensamos, pela liberdade, como causas eficientes a priori, não adotamos outro ponto de vista do que quando nos representamos a nós mesmos, segundo as nossas ações, como efeitos que vemos diante dos nossos olhos” (KANT, 1974, p. 246). O problema para Kant se estabelece precisamente na dificuldade de conciliar liberdade e necessidade natural, pois estes dois conceitos se excluem mutuamente. Se há necessidade não pode haver liberdade, se há liberdade não pode haver necessidade. Este problema já foi, porém, verdadeiramente resolvido por Kant na primeira Crítica. Lá, nas 'Antinomias da razão pura', o 'terceiro conflito das ideias transcendentais' contrapõe a causalidade segundo as leis da natureza com a causalidade pela liberdade. O próprio fundamento da filosofia prática já está, portanto, estabelecido pela filosofia teórica.
O argumento conciliador de Kant inicia na Crítica da razão pura pela exposição da ideia central, que diz respeito à tese e à antítese, da terceira antinomia, cuja solução procurará demonstrar que “só é possível conceberem-se duas espécies de causalidade em relação ao que acontece: a causalidade segundo a natureza ou a causalidade pela liberdade” (KANT, 1997, p. 462). De certa forma, para o nosso propósito, a exposição realizada na primeira Crítica é mais precisa do que aquelas levadas a termo na Fundamentação e na segunda Crítica, pois nela o acento recai sobre a ideia de causalidade, enquanto que nas duas outras obras, Kant destacará mais a relação entre necessidade e liberdade.
A causalidade segundo a natureza é definida, na Crítica da razão pura, como “a ligação de um estado com o precedente, em que um se segue ao outro segundo uma regra” (KANT, 1997, p. 462). A definição do conceito de necessidade natural aparece formulada na Crítica da razão prática quase que nos mesmos termos. Vejamos: “todo o acontecimento, por conseguinte, também toda a ação que ocorre num momento do tempo, é necessário sob a condição daquilo que era no momento precedente” (KANT, 1999, p. 110). A causalidade na natureza é o resultado da aplicação da lei de causa e efeito aos fenômenos, isto é, aos elementos cuja configuração esteja sob as relações temporais. Como toda a natureza só pode se manifestar ao sujeito por meio de relações espaço-temporais, toda a natureza está sob as relações necessárias de causa e efeito.
A causalidade pela liberdade é, ao contrário, a ação “de iniciar por si um estado, cuja causalidade não esteja, por sua vez, subordinada, segundo a lei natural, a outra causa que a determine quanto ao tempo” (KANT, 1997, p. 463), ou seja, a causalidade pela liberdade traz “a ideia de uma natureza não empiricamente dada e, no entanto, possível através da liberdade; consequentemente, de uma natureza supra-sensível” (KANT, 1999, p. 56). Parece, portanto, como já afirmamos, contraditório tentar unir em uma mesma ação necessidade e liberdade. Contudo, é isso que exige a causalidade, se ela deve justificar tanto as leis da natureza como as leis práticas.
Assim, para resolver a contradição entre a causalidade pela natureza e a causalidade pela liberdade, Kant não encontra outra saída senão recorrer à distinção entre fenômenos e númenos. Na Crítica da razão pura esta distinção está formulada em termos de um duplo ponto de vista para a causalidade:
toda a causa eficiente, porém, tem de ter um caráter, isto é, uma lei da sua causalidade, sem a qual não seria uma causa. Num sujeito do mundo dos sentidos teríamos então, em primeiro lugar, um caráter empírico, mediante o qual os seus atos, enquanto fenômenos, estariam absolutamente encadeados com outros fenômenos e segundo as leis constantes da natureza, destas se podendo derivar como de suas condições, e constituindo, portanto, ligados a elas, os termos de uma série única da ordem natural. Em segundo lugar, teria de lhe ser atribuído ainda um caráter inteligível, pelo qual, embora seja a causa de seus atos, como fenômenos, ele próprio não se encontra subordinado a quaisquer condições da sensibilidade e não é, mesmo, fenômeno. Poder-se-ia também chamar ao primeiro caráter, o caráter da coisa no fenômeno, e ao segundo o caráter da coisa em si mesma (KANT, 1997, p. 466).
Empiricamente este sujeito
estaria submetido, enquanto fenômeno, a todas as leis da determinação segundo o encadeamento causal e, sendo assim, nada mais seria do que uma parte do mundo sensível, cujos efeitos, como qualquer outro fenômeno, decorreriam inevitavelmente da natureza (KANT, 1997, p. 467).
Porém, pelo seu caráter inteligível,
teria esse sujeito de estar liberto de qualquer influência da sensibilidade e de toda a determinação por fenômenos […], este ser ativo seria, nas suas ações, independente e livre de qualquer necessidade natural como a que se encontra unicamente no mundo sensível (KANT, 1997, p. 468).
Na Fundamentação, este raciocínio aparece formulado sinteticamente quando Kant escreve que o sujeito possui
dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si mesmo e reconhecer leis do uso de suas forças, e portanto de todas as suas ações: o primeiro, enquanto pertencente ao mundo sensível, sob lei naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na razão (KANT, 1974, p. 248).
O importante é, entretanto, deixar claro que a diferença não está propriamente na lei da causalidade, pois em ambos os pontos de vista a questão da lei é ainda a questão da relação entre causa e efeito e, portanto, do que se trata é ainda da lei da causalidade; o importante é, assim, ver que a diferença não está na lei, porém no uso que a razão está fazendo do conceito puro do entendimento, que pertence à categoria de relação e que diz respeito à causalidade e à dependência. Com efeito, a razão teórica, na aplicação desta categoria, só pôde fazê-lo com relação aos fenômenos, do que resultava a natureza, como natureza fenomênica; a razão prática, porém, por não estar limitada ao mundo fenomênico, pode agora utilizar a mesma categoria para pensar não os fenômenos, mas a condição de todos os fenômenos, a coisa em si e, assim, identificar vontade pura, liberdade transcendental e razão prática pura.
A lei da causalidade na natureza se refere, assim, às coisas, enquanto sua existência está determinada no tempo. Se não houvesse, pois, outro modo de nos representar a existência das coisas, teríamos de abandonar a liberdade como um conceito vão e impossível.
Por consequência, se se quer ainda salvá-lo, não resta nenhum caminho a não ser atribuir a existência de uma coisa enquanto é determinável no tempo, portanto, também a causalidade segundo a lei da necessidade natural, ao fenômeno apenas, e a liberdade, porém, a este mesmo ser como coisa em si (KANT, 1999, p. 110).
Kant pensa, portanto, que se não nos fosse possível uma dupla perspectiva para situar o homem e sua causalidade, o mundo fenomênico e o mundo numênico, ou seja, se não houvesse a possibilidade do homem pensar-se como coisa em si, não haveria como representar-se a liberdade como a causalidade pela vontade.
Conclusão
Ao longo deste texto tivemos a intenção de desenvolver a ideia segundo a qual há uma estreita conexão estrutural entre categorias como vontade, razão, autonomia, liberdade e causalidade no interior da filosofia prática de Kant. Assim, partimos da identificação de vontade e razão procurando demonstrar que esse paralelismo só era possível por meio da purificação da vontade e pela atribuição de uma função prática à razão. Essa purificação representa a liberdade em sentido negativo e a liberdade definida negativamente deve ser “concebida como independência de todo o elemento empírico e, portanto, da natureza em geral, quer ela seja considerada como objeto do sentido interno, simplesmente no tempo, ou também dos sentidos externos no espaço e no tempo simultaneamente” (KANT, 1999, p. 112). Munido desta ideia, Kant pôde, então, pensar a vontade como pura e, assim, preparar a sua identificação com a razão. Com efeito, a vontade, livre de toda a matéria do querer, abre espaço para o nosso filósofo representá-la simplesmente como forma e, porque formal, também pura e a priori.
Entretanto, somente a purificação da vontade ainda não era suficiente para permitir a identificação entre vontade e razão. Mas, chegado a esse ponto, Kant já estava em condições de passar da liberdade da vontade, da liberdade considerada negativamente portanto, para a liberdade da razão prática, enquanto liberdade em sentido positivo. Com efeito, sendo a razão considerada por Kant como a faculdade de unificar regras mediante princípios (KANT, 1997, p. 300) e sendo os princípios práticos definidos como “proposições que contêm uma determinação geral da vontade” (KANT, 1999, p. 29), então pôde o filósofo atribuir uma função prática à razão; função essa que, pela sua atividade, pode ser representada como vontade, mas apenas enquanto vontade pura, formal, portanto.
A compatibilização entre razão e vontade, por outro lado, somente se tornou possível mediante um terceiro termo – a liberdade – ao mesmo tempo comum tanto à vontade quanto à razão, e esse terceiro termo, por sua vez, foi alcançado mediante dois movimentos simultâneos e complementares, a saber: por meio da purificação da vontade e da atribuição de um uso prático à razão. Com isso, razão e vontade são aproximadas de tal maneira que chegam ao ponto de permitirem sua identificação.
Já a liberdade positiva, para Kant, tem de ser considerada como uma causalidade segundo leis, pois uma liberdade absoluta seria absurda (KANT, 1974, p. 243). Na primeira crítica, contudo, apenas ficou estabelecida a possibilidade da causalidade pela necessidade na natureza. Assim, pensa Kant, que se também
se discernisse a possibilidade da liberdade de uma causa eficiente, se reconheceria também não só a possibilidade da liberdade de uma causa eficiente, se reconheceria também não só a possibilidade, mas até mesmo a necessidade da lei moral, como lei prática suprema de seres racionais, aos quais se atribui a liberdade da causalidade da sua vontade (KANT, 1999, p. 109).
Para justificar uma causalidade livre, Kant se vê obrigado, todavia, a apelar para a distinção entre fenômenos e númenos. Com efeito, segundo o filósofo
o mesmo sujeito que […] é consciente de si mesmo enquanto coisa em si, considerada igualmente a sua existência, na medida em que não se encontra sob condições temporais, e a si próprio como determináveis unicamente por leis que ele se dá a si mesmo por intermédio da razão; e nesta sua existência, nada precede a determinação de sua vontade, mas toda a ação e, em geral, toda a determinação da sua existência alterando-se em conformidade com o sentido interno, mesmo a série total da sua existência, enquanto ser sensível, não deve considerar-se na consciência da sua existência inteligível a não ser como consequência, jamais, porém, como princípio determinante da sua causalidade, como númeno (KANT, 1999, p. 113).
Estabelecendo um duplo ponto de vista sobre o sujeito, pôde, então, Kant pensar que o
conceito de causalidade, como necessidade natural para a diferença desta mesma causalidade enquanto liberdade, concerne unicamente à existência das coisas, na medida em que são determináveis no tempo, por conseguinte, como fenômenos, por oposição à sua causalidade como coisa em si (KANT, 1999, p. 110).
A causalidade pela liberdade, portanto, “consiste na representação racional de uma lei que, enquanto lei da liberdade, a razão se dá a si mesma e se revela assim como prática a priori” (KANT, 1999, p. 78). Com efeito, vai ser precisamente a atividade da razão, realizada por meio de princípios, que permitirá a Kant falar em uma causalidade pelas leis da liberdade. Por isso, segundo o filósofo, a razão
com inteira espontaneidade criou para si uma ordem própria, segundo ideias as quais adapta as condições empíricas e segundo as quais considera mesmo necessárias ações que não aconteceram e talvez não venham a acontecer, sobre as quais, porém, a razão supõe que pode ter causalidade (KANT, 1997, p. 472).
Uma destas ideias é a liberdade. A liberdade é compreendida, assim, como causalidade pela razão prática – como liberdade prático-positiva. A lei da causalidade pela liberdade é, portanto, apenas “uma lei formal, isto é, uma lei que nada mais prescreve à razão, para a condição suprema das máximas, do que a forma da sua legislação universal” (KANT, 1999, p. 78). Pensamos, por fim, que tendo uma compreensão clara destes conceitos, conceitos esses que são a base da filosofia prática de Kant, já podemos encerrar esse périplo.
Referências
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: Ed. 70, 1999.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. In: Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. Col. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1974.
KANT, Immanuel. Lógica. RJ: Tempo brasileiro, 1992.
________________________________________________________________________________
Autor(a) para correspondência: Rogério Vaz Trapp. Universidade Federal da Fronteira Sul, Rodovia SC 484 – Km 02, Fronteira Sul, 89815-899, Chapecó – SC, Brasil. rogerio.trapp@uffs.edu.br