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Recepção: 03 Abril 2019
Aprovação: 09 Junho 2019
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i3.1224
Resumo:
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O presente artigo tem o objetivo de aprofundar o debate sobre a noção de experiência musical, explicitando os aspectos epistemológicos de uma interpretação filosófica a qual chamamos de simbólico-transcendental. Trata-se do projeto teórico iniciado por Ernst Cassirer, e retomado por Susanne Langer, o qual defende que as manifestações da Cultura são formas simbólicas particulares, quais sejam: conhecimento, linguagem, mito, religião e arte, sendo a partir destas que é possível ao espírito humano significar o real de modo objetivo. A capacidade de simbolizar, por sua vez, constitui-se como resultado de uma função operativa, transcendental e válida a priori, a qual é o aspecto fundante que marca a diferença entre o homens e animais, por exemplo. Para que a experiência musical possa ser entendida nos termos da interpretação simbólico-transcendental que construiremos aqui, realizaremos um percurso argumentativo cujo três momentos centrais são: i) a compreensão da arte como uma forma simbólica particular, ii) a distinção entre arte e linguagem enquanto formas simbólicas e como condição necessária para a teoria da arte de Susanne Langer e iii) os aspectos constitutivos da experiência musical (significação, produção e recepção).
Palavras-chave: Experiência Musical, Simbolismo, Arte.
Abstract: The present article has the objective of deepening the debate about the notion of musical experience, explaining the epistemological aspects of a philosophical interpretation that we call symbolic-transcendental. It is the theoretical project initiated by Ernst Cassirer, and taken up by Susanne Langer, who argues that the manifestations of Culture are particular symbolic forms, namely: knowledge, language, myth, religion and art, from which it is possible to the human spirit to mean the real in an objective way. The capacity to symbolize, in turn, is constituted as a result of an operative function, transcendental and valid a priori, which is the foundational aspect that marks the difference between men and animals, for example. In order for the musical experience to be understood in terms of the symbolic-transcendental interpretation that we will construct here, we will undertake an argumentative course whose three central moments are: i) the understanding of art as a particular symbolic form, ii) the distinction between art and language as symbolic forms and as a necessary condition for the theory of art of Susanne Langer and iii) the constitutive aspects of musical experience (signification, production and reception).
Keywords: Musical Experience, Symbolism, Art.
Apresentamos neste artigo as noções de música . experiência na forma de uma única expressão – experiência musical - e no interior de um debate filosófico que ocorreu principalmente na primeira metade do século XX e que reverbera até os dias atuais. A noção ainda abstrata de experiência musical a ser tratada aqui assumirá como seu pano de fundo o debate de natureza epistemológica que, no interior do neokantismo e do positivismo lógico, girava em torno do que poderia ou não estar dentro dos limites da experiência objetiva. Para os neokantianos da Escola de Marburgo, tendo Ernst Cassirer como seu principal expoente, a revisão do pensamento de Kant se mostrava necessária na medida em que a crítica transcendental da razão deveria ser ampliada para além da ciência natural, englobando também outras formas de manifestação do espírito. Noutras palavras, a filosofia transcendental carecia de uma renovação em sua própria compreensão do que se poderia tomar como representação objetiva do mundo. Já os positivistas lógicos tentavam estabelecer um critério linguístico de demarcação a partir do qual se poderia apontar, com precisão, aquilo que estaria dentro dos limites da expressão racional, significativa e objetiva da realidade. O problema a ser enfrentado neste trabalho consiste então em como, nos termos deste debate, justificar a experiência estética e, mais particularmente, a experiência musical como um modo expressão racional dotada de significado e de objetividade.
A nossa estratégia argumentativa será articular os elementos que permitem reconstruir e expor conceitualmente a interpretação simbólico-transcendental tal como apresentada na perspectiva da filósofa norte-americana Susanne Langer. Sua resposta ao problema consiste em uma interpretação que é, por sua vez, simbólica porque entende a experiência e toda a atividade racional em termos de significação, sendo essa a marca da atividade intelectual do espírito e, ao mesmo tempo, transcendental em virtude da função simbólica ser entendida como necessária, universal e válida a priori. O primeiro passo será, portanto, o de explicitar em que sentido a arte consiste em uma atividade empírica e intelectual, de natureza simbólica e transcendental, cuja capacidade de objetivar o mundo lhe é inerente. Em seguida, explicitamos como Langer entende o conteúdo significativo da música na mesma perspectiva teórica defendida por Ernest Cassirer em sua filosofia das formas simbólicas, programa este, no interior do qual, ela pensa a questão da arte. Langer compreende a arte em geral, em especial a música, como um modo de expressão das formas universais que, em última análise, se fundamenta em uma operação subjetiva e transcendental, situando-se, como dito, na esteira do pensamento de Cassirer (INNIS, 2009, p.4).
Seguindo a filosofia das formas simbólicas de Cassirer, que pretende ser uma crítica da Cultura. e, por conseguinte, de toda a produção do Espírito, Langer assume tanto a linguagem como a arte enquanto modos distintos de objetivação do mundo. A atividade simbólica, essencialmente humana, é o universal que perpassa ambas as formas de expressão significativa, isto é, arte e linguagem são modos do simbolismo. Apesar desta identificação no simbolismo, a linguagem pressupõe uma lógica diversa do modus operandi das artes, diferenciando as formas de construção de seus conteúdos objetivos. Enquanto a linguagem expressa conteúdos conceituais na forma de proposições sintaticamente articuladas, as artes, em nosso caso a música, apresentam de maneira significativa, porém não discursiva, seu conteúdo estético, qual seja: as formas universais do sentimento humano, a vida interior. A experiência musical propriamente dita, em suas duas dimensões básicas, a produção e a recepção, só pode ser entendida na relação que o compositor e o ouvinte, respectivamente, mantêm com o conteúdo significativo específico da música.
A arte como forma simbólica
Em seu projeto de refundação da filosofia, Cassirer tenta ampliar o escopo do pensamento de Kant, mantendo ainda seu espírito formal e universalista. Ele desenvolve uma Crítica da Cultura sobre a pressuposição de que a operação subjetiva de universalização do particular, própria do conhecimento científico, não se limita a este. Os dados da experiência que, como defendia Kant, são constituídos pela estrutura transcendental do sujeito, objetivando assim nosso conhecimento sobre a natureza, por sua vez, estão suscetíveis a modos de objetivação diversos. O conhecimento sobre o mundo se inicia com a experiência, mas as representações, que são resultados dos processos de objetivação, não se restringem às científicas. O conhecimento científico é, portanto, na visão de Cassirer, uma forma particular de construção da realidade objetiva, dentre outras. O conjunto dos modos de objetivação do real são exatamente o que Cassirer designou por Formas Simbólicas..
A revolução copernicana instaurada por Kant, no âmbito da filosofia, é assumida e reelaborada por Cassirer. O elemento fundamental e essencial da atividade espiritual não se encontra no objeto, como era suposto pela metafísica tradicional, e sim no sujeito. Contudo, as condições de possibilidade das formas simbólicas, dos diferentes modos de objetivação da realidade (CASSIRER, 2001, p.18-19), não se encontram mais em uma estrutura transcendental, inerente aos sujeitos, mas em uma função espiritual formal e universal, a saber: o simbolismo.
Em vez de se exigir, tal como a metafísica dogmática, uma unidade absoluta da substância, à qual remontam todas as existências particulares, busca-se agora uma regra que domine a multiplicidade e diversidades concretas das funções cognitivas e que, sem invalidá-las e destruí-las, possa reuni-las em uma ação uniforme, em uma atividade espiritual completa em si mesma (CASSIRER, 2001, p 18).
Esta atividade completa em si mesma é a atitude inerente ao humano de produzir significados. O processo de significar, ou de simbolizar, é a ação espiritual sem a qual não há o mundo, nem o eu. O simbólico é, portanto, o medium ineliminável e constituidor de qualquer coisa que se compreenda enquanto relação entre o intelecto e a realidade. A simbolização é, assim, a condição do existir e do pensar humanos. É, igualmente, a operação espiritual que determina a experiência possível. A atividade simbólica é o essencial da existência humana, isto é, o seu fundamento. Toda a reflexão em torno da experiência e do conhecimento gerado a partir dela é construída à luz da atividade simbólica. que, para Cassirer, não se desenvolve de maneira uniforme.
A questão básica da filosofia de Cassirer, que é a mesma de Kant, é a compreensão do processo de transformação de um conteúdo sensível em conteúdo espiritual, isto é, como o espírito elabora representações objetivas na constituição da própria experiência. A atividade simbólica consiste na ação espiritual que garante a objetividade e a significação das diversas representações espirituais. A cultura é exatamente o conjunto de todas as significações espirituais engendradas por formas diferentes de atuação da consciência:
Nesse sentido, o mito e arte, a linguagem e a ciência, são criações que formam o ser: elas não são simples cópias de uma realidade existente, mas representam, ao invés, as linhas gerais do movimento espiritual, do processo ideal, no qual, para nós, o real se constitui como unidade e pluralidade, como multiplicidade das configurações que, entretanto, afinal são unificadas através de uma unidade de significação (CASSIRER, 2001, p.64).
Se agora a filosofia parte do princípio de que a investigação não se limita à justificação do conhecimento sobre o mundo, mas sim da cultura como resultado da atividade simbólica e própria do espírito, a arte, a religião e o mito, por exemplo, podem ser reconhecidas como formas específicas de objetivar o real, tendo cada uma delas um conteúdo particular e uma maneira específica de operar. A experiência possui, assim, diversas facetas. A condição humana de estar no mundo é o processo mesmo de dar sentido às experiências possíveis, bem como suas respectivas representações objetivas. Se a função simbólica é a atitude espiritual ininterrupta que torna possíveis todos os modos de universalização dos particulares, de objetivação da realidade, as ciências, a linguagem, as artes, as religiões e o mitos estão sob a égide de uma mesma matriz espiritual. O simbolismo é a atividade que permite ao espírito se expressar, objetivamente, de modos diferentes. As Formas Simbólicas têm, assim, sua condição de existência garantida pela função operativa de simbolizar.
O Transcendentalismo subjetivista de Kant é aqui mediado pela apropriação de Cassirer da noção hegeliana de espírito, mediação que resulta numa ampliação fundamental do conceito de experiência. Se em Kant o campo da experiência é delimitado pelas categorias do entendimento, com as quais se produz o conhecimento das ciências (causalidade, modo, relação etc.), o conceito de forma simbólica amplia consideravelmente a noção de experiência, pois a torna relativa ao conjunto do campo simbólico por meio de formas pelas quais a totalidade das atividades que envolvem simbolização, a totalidade das atividades da cultura, são pensáveis como experiências e assim tornadas cognoscíveis. Isso se dá justamente porque a universalidade da forma simbólica, assim como a demarcação dos seus campos particulares, fornece uma versão do conceito de experiência marcada pela unidade da função simbolizadora e não pelas separações de campos de atividade que em Kant determinam a exclusão das questões relativas à vida prática, como a de Deus, ou as questões relativas à pergunta pela teleologia na natureza ou sobre a universalidade do gosto, do campo do conhecimento objetivo exatamente na medida em que amplia, pelo conceito de forma simbólica, a dimensão daquilo do que se pode fazer experiência. Cassirer inclui a arte, assim como a religião ou o mito, numa noção de experiência impensável para o transcendentalismo de Kant. Talvez não seja ocioso aqui lembrar que a formulação de Cassirer se encontra fincada no debate filosófico alemão dos fins do século XIX e início do século XX acerca da possibilidade de validade nas “ciências do espírito”., debate que animou esferas distintas da reflexão como a história e a sociologia além da própria filosofia ou da estética.
No caso da arte, o espírito apresenta objetivamente a realidade através de sua atividade simbólica, mas de um modo distinto da ciência. Representar a realidade artisticamente, no sentido defendido por Cassirer, não tem o sentido de afigurar fidedignamente os fatos ou as coisas, mas, de certo modo, o de construir parte do mundo por uma visão universal em que subjetivo e o objetivo se confundem.. Há um “medium virtual” entre a consciência e a natureza em que pairam as formas universais expressas pela arte: .Saindo da realidade imediata das coisas, estou vivendo no ritmo das formas espaciais, na harmonia e no contraste das cores, no equilíbrio entre a luz e a sombra. É nesta absorção pelo aspecto dinâmico das formas que consiste na experiência estética” (CASSIRER, 1994, p. 248-249). Seria uma espécie de descoberta/construção da realidade de maneira diferente da ciência empírica, porque enquanto esta procura o essencial das coisas., sua substância ou características fundamentais, resumindo o real a tipos objetivos para classificações gerais, com fins muitas vezes descritivos, a arte “apresenta-nos a intuição da forma das coisas mediante um processo de concreção” (CASSIRER, 1994, p. 235).
A ciência simplifica as coisas em conceitos por meio da abstração racional e a arte se constrói sobre o que para Kant é chamado de “universalidade estética” (CASSIRER, 1994, p. 238-239).. O artista representa parte da realidade expressando a natureza em sentido diverso da ciência porque as formas universais manifestas nas obras de arte não se aplicam aos objetos particulares como se a elas coubessem descrever as coisas ou os fatos. A arte objetiva a natureza com representações unificadas e totalizantes.. Para Cassirer, a arte comunica formas universais sem que estas estejam limitadas aos objetos individuais ou à idiossincrasia do artista.
Com a ampliação do âmbito da objetividade e, ao mesmo tempo, com o estabelecimento de relações distintas, mas simétricas, entre as formas simbólicas, pois todas engendram representações objetivas, Cassirer deixa as condições mínimas para que se retome o projeto de construção de um sistema filosófico que garanta e justifique o lugar de cada manifestação intelectual particular na totalidade da cultura. O uno (função simbólica), princípio de inteligibilidade que dota de sentido as formas simbólicas, e o múltiplo (as próprias formas simbólicas) constituem a totalidade do espírito, a esfera da cultura. Este empreendimento teórico, na forma de um sistema acabado, não foi terminado por Cassirer, mas, até os dias atuais, sua obra ecoa e influencia pensadores dos campos da arte, da psicologia, dentre outros. É nestes termos em que Cassirer amplia a noção kantiana de experiência, presente na Crítica da razão pura, limitada ao âmbito do conhecimento científico. Enquanto para Kant os limites do pensar estão para além dos limites do conhecimento objetivo, para Cassirer, o simbolismo é a condição de possibilidade de todas as formas simbólicas de representação e apresentação do real.
Os limites entre Teoria da Arte e Teoria da Linguagem
Susanne Langer assume os elementos fundantes do programa das Formas Simbólicas e dá continuidade ao projeto de seu mestre, sobretudo, no que toca à arte. Sua teoria da arte assume ao menos três aspectos básicos do pensamento de Cassirer: a) o simbolismo é uma atividade espiritual e válida a priori; b) a arte é uma forma simbólica que representa10 o mundo objetivamente, fazendo da experiência estética uma atividade provida de conteúdo significativo; c) as artes particulares comunicam formas universais, sendo estas seus conteúdos significativos. A música, dentro do esforço teórico de Langer, é a arte particular a partir da qual esses três elementos são demonstrados em seus detalhes no decorrer de suas obras, bem como a expressão artística que atua como exemplo principal em sua teoria estética como um todo. Mas antes de entrarmos especificamente no caso da música, passemos às justificações construídas por Langer, cujo intuito é demonstrar a objetividade do conteúdo simbólico da arte em geral e, consequentemente, o característico da experiência artística.
Na introdução de Filosofia em nova chave, como é de se esperar de toda teoria com pretensões totalizantes, Langer tenta realinhar o debate fundamental em filosofia em torno de uma questão que, em sua compreensão, só então reaparece com grande urgência no século XX. Trata-se do simbolismo e das indagações circundantes sobre a relação signo e objeto, signo e conteúdo conceitual, significado linguístico, signos psíquicos dentre outras. Seu escopo de interlocução compreende correntes da primeira metade do século XX que passam pelo neokantismo da escola de Marburgo, pela psicologia e pela filosofia analítica da linguagem.
Parte do projeto filosófico intuído por Leibniz (CASSIRER, 1994, p.213) no século XVII defendia a hipótese de que era possível expressar todo o conhecimento científico em uma linguagem universal e desprovida de ambiguidades (CASSIRER, 2001, p.103; 1994, p. 213). A total justeza entre o mundo e as representações científicas se daria a partir do momento em que o projeto de construção de tal linguagem artificial fosse concluído. Com Leibniz, o ideal de conhecimento objetivo parece ter atingido um dos seus mais altos estágios na história do pensamento. Isso porque um dos problemas centrais que os modernos enfrentavam estava associado às dificuldades de justificação do conhecimento científico e da precisão de seus resultados. Grande era a preocupação em demonstrar que as teorias científicas revelavam a essência do real. A mecânica celeste de Galileu e a mecânica universal de Newton, na crença deles mesmos, era expressão da verdade objetiva sobre a natureza dos fatos. A experiência possível, suscetível de controle e descrição matemática, estava sob a alçada da ciência natural, restando à filosofia a tarefa de validar o conhecimento. A missão que Leibniz anunciou, mas não cumpriu, consistia na elaboração de um meio linguístico de expressão que fosse absolutamente rigoroso e imune às imprecisões lógico-epistêmicas.
Entre o final do século XIX e início do século XX, pensadores como Frege, Russell e Wittgeinstein retomaram este projeto. Abandonando as pretensões de Leibniz de uma simbólica universal11, a preocupação central da versão contemporânea do programa leibniziano era definir o escopo da linguagem, logo, os limites do conhecimento objetivo. Considerando que só é possível conhecer por meio da linguagem, o reconhecimento de seus limites identificaria, portanto, os limites do próprio mundo. Nas palavras de Wittgeinstein (2001, p.245): “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”12.
A linguagem, sendo essencialmente representativa, opera por afiguração, ou seja, uma proposição, em última instância, retrata estados de coisas. O mundo deve ser sempre o referido pela linguagem para que esta, por sua vez, possa significar objetivamente. Há aqui a pressuposição metafísica de que a linguagem e o mundo dos fatos e das coisas possuem uma identidade lógica, uma isomorfia13. Tal identidade é o que torna possível a expressão e o conhecimento do mundo pela linguagem. Nestes termos, as proposições possuem sentido linguístico quando seu conteúdo conceitual representa alguma coisa no mundo. Caso as proposições linguísticas não afigurem nenhum estado de coisas, as mesmas não terão significado objetivo e, portanto, cairão no rol das expressões linguísticas desprovidas de significados as quais são, ao mesmo tempo, sem sentido racional e sem valor epistêmico.
É importante apontar que o critério posto está absolutamente atrelado a uma concepção particular de representação do conhecimento. Em outras palavras, conhecer é representar linguisticamente. Se existem proposições que expressam algo, mas não representam, ou seja, não afigura um fato no mundo externo, elas podem ter algum tipo de valor expressivo, mas não possuem nenhum valor epistêmico. Apenas as expressões linguísticas detentoras de conteúdo proposicional, aquelas que representam estados de coisas, podem ser verdadeiras ou falsas. Apenas este tipo de expressão pode ser validado ou falseado na experiência, isto é, somente proposições representativas podem agregar ganho ao conhecimento e, tudo mais, está relegado a sua incapacidade de afirmar ou negar alguma coisa de modo significativo.
Para Rudolf Carnap (LANGER, 2004, p.92), as emoções não podem ser significativamente expressas porque não afiguram nenhum estado de coisas no mundo e, portanto, não representam nada de objetivo. As artes, por trabalharem com conteúdos privados e por não estarem aptas à validação empírica, não se constituem enquanto linguagem, sendo consequentemente, desprovidas de conteúdo racional. Segundo esse tipo de argumentação que identifica os limites do mundo com os limites da linguagem, nenhuma arte pode significar, ou melhor, representar coisa alguma. O transcendentalismo simbólico de Langer defende, dentre outras coisas, que este veredito consiste em um dos limites de compreensão do positivismo lógico. Para Langer, a linguagem é apenas uma forma particular de expressar conteúdos significativos, não a única. As artes significam de modo não linguístico.
Sendo assim, este é exatamente o limite do empirismo lógico. Representar, para os empiristas, é algo restrito às proposições, ou seja, não pode ultrapassar o âmbito da linguagem. Nos termos do transcendentalismo simbólico, é como se somente à linguagem coubesse a tarefa de simbolizar, de objetivar o mundo, de transformar o conteúdo da experiência sensível em conteúdo racional. O corolário necessário da posição empirista é de que apenas a linguagem detém conteúdo significativo, logo, o conteúdo comunicável14. Na esteira da Filosofia das Formas Simbólicas, Langer, na intenção de ampliar os limites do significativo para além do simbolismo da linguagem, indaga aos empiristas: “Qual a verdadeira função das combinações verbais e outras estruturas pseudo-simbólicas que não têm significação real, mas são usadas livremente como se significassem algo? (LANGER, 2004, p.91)”. Ela mesma responde. “De acordo com nossos lógicos, essas estruturas devem ser tratadas como expressões em um sentido diferente, isto é, como expressões de emoções, afeições, desejos. Elas não são símbolos do pensamento, mas sintomas da vida interior, como lágrimas e risos, trauteio ou blasfêmia” (LANGER, 2004, p.92).
Desta maneira, para os empiristas lógicos, tudo o que não se enquadra na configuração própria do simbolismo linguístico, nos limites da linguagem proposicional, possui função expressiva, mas não representativa. Os versos de um poema clássico, assim como as afirmações metafísicas, não são nem verdadeiros, nem falsos. Apenas expressam disposições do ânimo, dos sentimentos, e não representam nada objetivamente. Langer autoriza o simbolismo linguístico dos positivistas lógicos, mas o ultrapassa quando maximiza o poder da simbolização. Assim como Cassirer fez com Kant, apoiado no simbolismo, quando ampliou a noção de objetividade para além do conhecimento científico, Langer fez com os empiristas quando ampliou a ideia de significado para além da linguagem.
Mas a inteligência é um ardiloso freguês; se uma porta lhe estiver fechada, encontra, ou até força, outra entrada para o mundo. Se um simbolismo é inadequado, ela agarra outro; não há decreto eterno para os seus meios e métodos. Assim, acompanharei os lógicos e linguistas tão longe quanto queiram, mas não prometo ir adiante. Pois existe uma possibilidade inexplorada de genuína semântica além dos limites da linguagem discursiva (LANGER, 2004, p.94).
A epistemologia decorrente da compreensão limitada da linguagem defendida pelo positivismo lógico pressupõe dois dogmas: i) A linguagem é o único meio de pensamento articulado e ii) Tudo o que não pode ser pronunciado é sensação. A estética defendida por Langer se distancia do empirismo lógico quando argumenta que a linguagem é somente um tipo de simbolismo dentre outros. Há elementos no mundo físico que não são articulados no interior de uma sintaxe linguística, tendo em vista a expressão de seu conteúdo por meio das proposições. Há um simbolismo não-discursivo que expressa, conforme uma lógica própria, aquilo que escapa aos limites da linguagem15. Para Langer, a experiência possível, então, não se limita ao simbolismo linguístico e, portanto, os limites do mundo, ou melhor, de sua expressão com sentido, encontram em um simbolismo não-discursivo um modo distinto de manifestação pelo espírito16. A arte é a forma simbólica que articula significativamente os elementos que não podem ser mediados linguisticamente, constituindo assim, diferente do simbolismo discursivo, uma semântica apresentativa (LANGER, 2004, p.104).
Donde se infere que, a rigor, a arte e a linguagem se aproximam na medida em que são formas simbólicas, mas se distanciam consideravelmente em seus respectivos modos de funcionamento e, sobremaneira, nas versões do real construídas por ambas. Enquanto a linguagem representa o conteúdo da experiência no que concerne aos fatos e, a partir de uma sintaxe e vocabulários próprios, engendra uma versão significativa do mundo, a arte apresenta o conteúdo da experiência estética, as formas universais, significativamente e de acordo com uma lógica outra. Logo, seguindo o raciocínio de Langer, não estamos autorizados a usar expressões como: “linguagem artística”, “linguagem fotográfica” ou “linguagem musical”, pois a linguagem é diferente da arte, opera segundo outras regras e toca uma dimensão real diversa da arte (LANGER, 2004, p.103).
Resta-nos, ainda, esclarecer o que são propriamente as tais formas universais que consistem no conteúdo significativo das artes, dessa espécie de simbolismo apresentativo e não-discursivo. Compreender a experiência estética, nestes termos, é entender como essas formas são engendradas e de que maneira são comunicadas. As formas universais são abstraídas por nossos órgãos do sentido de forma habitual e inconsciente. As linhas e cores de uma pintura, por exemplo, são materiais simbólicos que podem ser devidamente articulados pela inteligência, produzindo significados altamente complexos a partir de leis bastante diversas das que encontramos na linguagem. Formas visuais universais abstraídas da natureza e reproduzidas em uma tela comunicam um conteúdo significativo porque a inteligência simbólica opera e constitui a experiência, em um ato de visão, desde apreensão do material sensível até a obra artística. Os materiais simbólicos abstraídos dos sentidos e projetados na tela pelos sentidos não são organizados em uma sequência de palavras como em uma proposição. A sensibilidade é simbolizada em todos os momentos, seja na abstração ou na realização das formas no objeto artístico. O que ocorre na experiência estética, para Langer, é uma intuição, uma apreensão de elementos naturais que são significados pelo entendimento.
A natureza fala conosco, antes de mais nada, através dos nossos sentidos; as formas e qualidades que distinguimos, lembramos, imaginamos ou reconhecemos são símbolos de entidades que excedem e sobrevivem nossa experiência momentânea. Além disso, os mesmos símbolos – qualidades, linhas, ritmos – podem ocorrer em inumeráveis apresentações; são abstraíveis e combinatórios (LANGER, 2004, p.100-101).
Nenhum esforço discursivo, por maior que seja, é capaz de superar a compreensão que temos do espaço quando o apreendemos por meio da visão, por exemplo, porque há elementos que só a intuição sensível fornece. As formas universais abstraídas pelos sentidos, operadas pelo entendimento e comunicadas na experiência estética possuem um alto poder semântico, além de apresentarem uma versão objetiva do mundo composta de elementos não-discursivos, porém significativos17. No campo das artes, a experiência é fundada na apreensão e elaboração intelectual de elementos sensórios em uma dinâmica complexa e totalizante a qual permite a função simbólica, constitutiva do humano, atuar como princípio de inteligibilidade e fonte de significação. Nesse processo, os momentos subjetivo e objetivo da experiência se misturam, a ponto de não conseguirmos mais identificar com precisão o que é do entendimento e o que é do mundo exterior. A intuição das formas universais na experiência estética está, a todo o momento, contaminada pela força inexorável do simbolismo. Não faz sentido, dentro do simbolismo transcendental de Cassirer e Langer, a ideia de que existem dados puros da experiência.
As formas universais que o intelecto expressa na experiência estética são intuídas da sensibilidade e não consistem em resultados de abstrações especulativas acessíveis apenas à razão, ou seja, os sentidos intuem formas universais que são mediadas pela função simbólica e, então, são comunicadas em uma dimensão ideal. Cassirer ajuda na compreensão quando afirma sobre o simbolismo da arte:
O verdadeiro tema não é, contudo, o infinito metafísico de Schelling, nem o Absoluto de Hegel. Deve ser procurado em certos elementos estruturais fundamentais da nossa própria experiência sensorial – nas linhas, no desenho, nas formas arquiteturais e musicais. Tais elementos são, por assim dizer, onipresentes. Livres de todo o mistério, são patentes e conspícuos; são visíveis, audíveis, tangíveis. Neste sentido, Goethe não hesitou em dizer que a arte não pretende mostrar a profundidade metafísica das coisas, mas permanece na superfície dos fenômenos naturais. Mas essa superfície não é imediatamente determinada (CASSIRER, 1994, p. 258).
As formas universais presentes nas obras de artes, aprendidas pelos sentidos e simbolicamente mediadas, são basicamente de dois tipos: externo e interno. As formas visuais e espaciais são exemplos das estruturas externas, enquanto as emoções e os sentimentos, ou melhor, a vida interior pode ser tomada como exemplo de formas universais internas. No caso da música, as formas universais que compõem sua experiência e seu conteúdo comunicado são as internas. O compositor ao executar sua obra, composta pelos materiais sonoros encontrados na natureza, comunica formas universais do sentimento, de sua vida interior. A alegria, a tristeza e a melancolia que são, também, sensações privadas podem ser expressas através da música de modo que os ouvintes compreendam quais sentimentos estão sendo comunicados.
A música é a arte que apresenta as formas universais do sentimento, de maneira não discursiva, mas igualmente significativa. Para Langer, a música é o caso mais apropriado para a devida compreensão da experiência estética porque ela é a menos literal, ou seja, a mais contra-intuitiva. Associar a forma universal do espaço a uma construção arquitetônica é bastante intuitivo, porque é clara a associação da sensação espacial com o que se encontra na obra. Já na música, por se tratar da menos representativa das artes e, ao mesmo tempo, a mais apresentativa, o seu conteúdo artístico mais profundo – as emoções ou as formas universais do sentimento – é expresso de maneira menos evidente. Passamos à próxima seção com a tarefa de compreender mais pormenorizadamente como, para Langer, opera o conteúdo significativo da música na experiência do artista, assumindo que a música é uma arte particular que detém poder simbólico para apresentar uma dimensão do real – aquela que diz respeito à vida interior – mediante a articulação de formas universais intuídas pelos sentidos, neste caso, a audição.
Experiência musical: significação, produção e recepção
O pensamento de S. Langer (2004) desenvolvido em Filosofia em nova chave possui duas preocupações centrais: mostrar como o simbólico opera na experiência artística e fornecer um critério a partir do qual se possa avaliar o poder significativo das artes18. A sua preocupação é muito mais com o caráter propriamente simbólico do conteúdo objetivo das produções artísticas do que com a sua influência no comportamento do artista. Por essa ênfase na questão do conteúdo objetivo, Langer se distingue da interpretação psicanalítica da arte que, em seu entender, está mais focada nas variáveis idiossincráticas do que no valor artístico propriamente, na medida em que tem seu olhar mais voltado para o criador do que para a criação19.
Ao considerar que a experiência artística é de natureza imanente, ou seja, alimenta-se das abstrações dos sentidos ao invés de abstrações racionais e especulativas, surge o problema da distinção entre a mera manifestação sensitiva e a manifestação artística. De que maneira classificar um conjunto de sons sequenciados como música ou como ruído? E mais, caso esse conjunto de sons seja considerado música, como classificá-la enquanto boa música, enquanto obra-de-arte? Do ponto de vista estético, é fundamental que o crítico de arte consiga separar bem essas distinções. O fato de a experiência artística estar absolutamente imersa no mundo dos sentidos poderia implicar numa enorme dificuldade teórica: os sentidos, fonte de muitos enganos, constituiriam um obstáculo a mais para o teórico das artes.
Langer reconhece que afirmar a beleza como critério de distinção entre o artístico e o não-artístico seria incorrer em mera petição de princípio. O conteúdo presente nas sinfonias de Beethoven não pode ter seu valor artístico justificado sob a alegação de que sua obra traz consigo o belo, pois isto seria pressupor aquilo que se deveria demonstrar. Ao longo da história da estética musical, o critério para se avaliar e compreender a dinâmica da produção da música mudou em vários momentos.
Na época de Kant, dependia da concepção das artes como atividades culturais, e dizia respeito ao lugar da música entre contribuições ao progresso intelectual... Helmholtz, Wundt, Stumpf e outros psicólogos para os quais a existência e a persistência da música apresentavam um problema, basearam suas indagações na suposição de que a música era uma forma de sensação prazerosa e tentaram constituir o valor das composições musicais a partir dos elementos de prazer de seus constituintes tonais (LANGER, 2004, p. 211).
Uma forte tendência que se fez muito atuante em diversas interpretações do fenômeno musical, bem como na avaliação artística de seu conteúdo, é a que destaca a capacidade sensória da música, seus efeitos no comportamento, no ânimo, isto é, em seu caráter somático. Normalmente, faz-se a relação entre a música e o sentimento que ela provoca no ouvinte. É como se a música disparasse naquele que a escuta um estado particular da alma, que seria gerado por uma disposição específica de sons. É sabido que a música pode despertar no indivíduo diferentes sensações como a vontade de chorar, de gritar, de dançar ou de sorrir. Langer não nega que essa característica seja comum à musica, a questão é saber se tal característica lhe é essencial e se é a partir desse poder de afetar o ouvinte que o seu conteúdo artístico deve ser compreendido.
Quando se aprofunda essa crença de que a essência da música é a comunicação de sentimentos ou emoções ao ouvinte, construímos rapidamente a imagem de que o compositor, por meio da sua obra, transmite ao ouvinte as suas sensações privadas. Se, ao ouvirmos as mais melancólicas canções de Billie Holiday20, sentimos uma enorme tristeza, comumente acreditamos que é a interpretação da cantora que comunica a nós o conteúdo afetivo presente na canção. A intérprete, espécie de confidente do compositor, traduziria a sensação de tristeza individual que o autor, por sua vez, deixou objetivamente em sua composição a ser transmitida ao ouvinte. Nesse sentido, a experiência musical seria fundamentalmente o processo comunicativo de sensações privadas entre o produtor e o receptor musicais21. Para Langer, esta é a doutrina mais popular sobre a função e a significação da música (LANGER, 2004, p. 216.), mas tal concepção está equivocada por provocar algumas confusões, terminando por conceber um aspecto secundário da experiência musical como se este fosse sua função primária.
Esta interpretação ordinária da experiência com a música é problemática, segundo a perspectiva de Langer, porque, obviamente, a autoexpressão de sentimentos individuais não depende de composições musicais para serem externadas. A paixão entre os amantes, a tristeza pela perda de um ente querido ou a alegria de um dia na companhia dos amigos não encontram suas condições de expressividade em estruturas musicais ou em algum tipo de princípio artístico. A autoexpressão é uma condição natural. Gritos, lágrimas e sorrisos são sim uma espécie de manifestação da vida interior, das emoções, dos sentimentos, contudo, não constituem por si expressão artística ou musical. Isso não significa que um compositor não possa estar completamente tomado por um sentimento particular de tristeza quando vivencia seu processo criativo. E, até mesmo, um ouvinte atento pode não conter suas lágrimas sempre que ouve essa mesma composição, criada em um contexto de profunda emoção. Entretanto, esse efeito somático que a música pode causar tanto em seu momento de criação quanto de recepção não consiste na função essencial da sua experiência estética, nem mesmo na manifestação de seu conteúdo simbólico.
O critério a partir do qual Langer define o conteúdo artístico e, portanto, simbólico da experiência com a música, é o que a filósofa designa por forma significativa (LANGER, 2004, p. 206). Donde se infere que o simbolismo presente na música é prioritariamente semântico e, apenas secundariamente, somático. Esse critério da forma significativa nos impõe uma compreensão objetiva do conteúdo comunicado na experiência musical, em termos semânticos à luz de uma lógica própria.
Dos elementos que arregimentamos e analisamos até agora, é possível inferir que a interpretação que S. Langer, inspirada no projeto de Cassirer, compreende a experiência musical como um tipo de experiência estética, cujos fundamentos são os órgãos dos sentidos e a função simbólica inerente ao espírito, sendo esta que torna possível a significação da própria experiência. O conteúdo simbólico desta experiência não consiste na expressão literal de emoções privadas ou da vida interior do compositor, mas na expressão de formas universais que, apesar de distintas das emoções, versam sobre elas. A compreensão da experiência musical, nestes termos, nos impele a entender que a distinção entre a mera manifestação sonora e a manifestação musical está situada no conteúdo semântico presente nesta e ausente na primeira. A música é expressão lógica dos sentimentos, não a sua expressão somática como ordinariamente se defende. Ela não possui significados literais, exceto alguns poucos casos onomatopeicos (como o cuco e os toques de corneta) (LANGER, 2004), e por esta razão é necessário que haja uma lógica do simbolismo musical que permita a expressão significativa de seu conteúdo e a nossa compreensão sobre este processo.
Neste ponto, para que se compreenda a tese de que a música é a expressão lógica dos sentimentos, é necessário que a distinção entre arte e linguagem seja reafirmada. É fato que a própria Susanne Langer demarca essa diferença, mas, o tempo inteiro, ao longo de sua argumentação, recorre à analogia com a linguagem para explicar a natureza do simbolismo da arte. Vários de seus interlocutores22 também lançaram mão dessa analogia, muitas vezes com a intenção de se exigir do simbolismo artístico (não-discursivo) o que se encontra normalmente no modo de funcionamento do simbolismo linguístico (discursivo). Aqui Langer se distancia de seus contemporâneos que negavam qualquer tipo de poder semântico da música, pois para ela a música possui uma lógica de construção e expressão de significado que a coloca, efetivamente, na condição de uma forma simbólica diferente da linguagem.
Se a música é a expressão lógica dos sentimentos, então, deve haver algum tipo de identidade entre as estruturas musicais e as formas sentimentais que possibilite a comunicação de uma pela outra. Esta mesma condição teórica foi colocada por Wittgeinstein quando defendeu que a linguagem só pode representar o mundo porque há uma “forma lógica”, metafísica, e inexprimível, que estabelece a isomorfia entre ambas e, por conseguinte, fornece capacidade para que linguagem afigure o mundo. Langer descarta a solução metafísica, mas admite que seja necessária alguma espécie de identidade, algo como uma forma lógica23. Sua defesa dessa identidade é fundamentada basicamente em argumentos filosóficos e em trabalhos do campo da Psicologia empírica, da área da Gestalt, a partir dos quais procura fortalecer sua hipótese de que “as estruturas musicais se assemelham logicamente a certos padrões dinâmicos da experiência humana” (LANGER, 2004, p.224). Mesmo com a distinção entre arte e linguagem defendida por Langer, a exigência por uma forma lógica, nos dois casos, mantém-se.
Vale destacar ao menos três das primeiras afirmações que compõe a lista de dez conclusões (LANGER, 2004, p. 228-229) de um estudo empírico realizado por Kurt Huber sobre a relação entre as estruturas musicais e reações psicológicas, assim fica mais claro qual tipo de isomorfia Langer defende:
i) “o estágio mais baixo da apreensão de tom produz meramente uma impressão de cor de tom do complexo tonal inteiro ou de uma diferença entre cores tonais dos tons separados”; ii) “Os significados transmitidos por tal mera impressão de brilho tonal sempre envolvem estados ou qualidades ou suas mudanças, isto é, mudanças passivas. A imaginação de um evento não ocorre sem uma impressão de movimento tonal”; iii) “O fator mais primitivo da percepção do movimento tonal é o sentido de sua direção” (LANGER, 2004, p. 228, grifos do autor).
Langer encontra em pesquisas como a de Huber razões para defender a identificação entre as estruturas musicais e as reações comportamentais do sujeito que vivencia a experiência com música. Depois de elencar e comentar alguns trechos de escritos de psicólogos, musicólogos e teóricos da arte24, Langer conclui que a exigência por uma forma lógica entre a música e o comportamento subjetivo esteja por ora satisfeita25.
Na visão de Langer, uma das razões que fez com que seus opositores não aceitassem a tese de que a música possui uma semântica própria, cujos conteúdos significativos são as formas do sentimento consiste, principalmente, no fato de que eles ainda estão presos às exigências típicas do simbolismo linguístico. Tais exigências esperam do simbolismo musical, por exemplo: que estruturas musicais específicas correspondam a um significado em particular; que seja possível reduzir o conteúdo da música a unidades mínimas de significado e que a experiência musical, de alguma maneira, possa ser traduzida em termos da experiência linguística. A forma significativa na música comunica conteúdos que não são passíveis de apreensão linguística e com a ambivalência sempre indesejada para a linguagem. A cisão entre símbolo significante e objeto significado, comum à linguagem, pode chegar a perder o sentido na experiência simbólica com a música, ou seja, a busca por um conteúdo conceitual bem definido cuja referência seja precisa não deve ser ensejada no simbolismo musical. Há, portanto, uma fluidez na articulação das formas universais do sentimento que é da natureza mesma dessa forma simbólica.
Tentar encontrar uma relação de correspondência direta entre estruturas musicais frequentes na obra de um compositor e uma lista nominal de sentimentos ou emoções é trabalho que não agrega ganho à reflexão sobre o simbolismo na música porque comete um erro fundamental, pois procura, normalmente como se faz com a linguagem, a elaboração de um vocabulário musical que corresponda a um vocabulário de emoções ou sentimentos. O estudo de André Pirro, de 1907, L'esthétique de Jean-Sebastian Bach26 (LANGER, 2004, p. 229), é um exemplo de pesquisa sobre o significado da experiência com a música que assume ainda a confusão entre a arte e linguagem, neste caso, entre música e linguagem. Em síntese, a aproximação entre arte e linguagem está apenas no fato de que ambas as formas simbólicas possuem uma função semântica. Qualquer tentativa de traduzir uma nos termos da outra está fadada ao equívoco. A linguagem significa e opera diferentemente das artes.
Em um rápido exercício de pensamento, imaginemos um texto científico sobre as paixões e um poema que verse sobre o mesmo tema, a pergunta seria: trata-se da mesma referência significativa? O leitor teria versões similares de sua vida interior? A forma de conhecimento e a experiência vivida seriam as mesmas? Para todas estas perguntas a resposta é negativa. A arte toca em uma dimensão do real que é inalcançável para a linguagem. Sobre aquilo que não se pode falar, a arte pode comunicar27. Langer (2004, p.230) conclui:
A analogia entre a música e a linguagem cai por terra se a conduzirmos além da mera função semântica em geral, que elas devem compartilhar. Logicamente, a música não tem características da linguagem – termos separáveis e com conotações fixas e regras sintáticas para derivar conotações complexas sem qualquer perda para os elementos constituintes.
Apesar da veemência de Langer em seu esforço de diferenciação entre a música e a linguagem, seu modo de exposição se assenta sobre um conjunto de analogias entre ambas28. Para que se evite confusões quando da aproximação e/ou distanciamento entre a linguagem e a música, chamamos de analogia por semelhança quando a intenção é evidenciar uma identidade entre as duas, como no caso da exigência pela forma lógica, e quando o objetivo é o contrário, ocorre uma analogia por diferenciação. Com a utilização de uma analogia do primeiro tipo, conclui-se que a forma lógica é uma condição necessária de toda e qualquer forma simbólica. Isso porque é exatamente a forma lógica que garante a isomorfia entre símbolo e objeto significado, no caso da linguagem, entre proposições e fatos, palavras e coisas. No campo das artes, como os sentidos e a simbolização são os elementos necessários da experiência estética cujo conteúdo é o que Langer chama de Forma significante29, é igualmente importante justificar a aproximação entre a estrutura subjetiva (dos sentidos e do intelecto) com as estruturas de criação e reprodução artísticas. De certo modo, procuramos apontar acima as saídas de Langer para essas condições. Cabe-nos explicitar, agora lançando mão de analogias por diferenciação, qual propriamente é a forma significativa da música e como o símbolo musical expressa os sentimentos, ou mais exatamente, as formas universais dos sentimentos.
A interpretação ordinária da experiência com a música a entende como sendo a “expressão” musical dos sentimentos ou das emoções literais do compositor. É como se as estruturas musicais possuíssem uma referência externa, reproduzindo assim a lógica da linguagem onde os sinais gráficos ou fonéticos mantêm uma relação biunívoca, um a um, com as coisas referidas. Segundo Langer (2011), para entender a forma significante na música é importante distinguir: “Um sinal é compreendido se serve para fazer-nos notar o objeto ou situação que indica. Um símbolo é compreendido quando podemos conceber a ideia que ele representa” (LANGER, 2011, p. 30). Uma das principais diferenças entre a música e a linguagem consiste que na primeira o sistema de símbolos não pode ser desmembrado em partes constitutivas, as quais são associadas a elementos externos e definidas na experiência possível. Na linguagem, as palavras e as articulações que podem ser geradas entre elas possuem referências determinadas tanto pela experiência quanto pelo resultado de associações. No simbolismo da linguagem, a articulação que lhe é própria permite que as partes e o todo tenham significados definidos. Palavras, associações entre palavras, sentenças isoladas e discursos podem significar com sentido. “Sua função simbólica característica é o que chamo de expressão lógica” (LANGER, 2011, p. 33).
Assim como a linguagem, a música é uma forma simbólica articulada, suas partes se integram para constituir complexos que implicarão no todo. A composição, unidade de significado na música, é resultado de uma articulação cuja estrutura interna é dada à nossa percepção e a sua diferença fundamental, frente à linguagem, reside no fato de que a música só significa enquanto todo articulado. Suas partes, ao invés do que ocorre com a linguagem, não fazem sentido fora do todo. O significado artístico da música30 não é traduzível nos termos da linguagem, isto é, seu conteúdo é completamente jungido em sua forma e plenamente implícito no todo da obra. Como não existem significados pré-fixados ou convencionados para as partes da música, esta não pode significar sem que seja em um todo articulado. Na música, como diz Vera Lúcia Felício (1971), o símbolo é não-consumado31. O que quer dizer que não possui significado, fixo, convencionado ou pré-estabelecido, pois seu modo de atuar é fluido e dinâmico.
A unidade mínima de significado é a composição que, por sua vez, não deve ser compreendida enquanto resultado de uma mera junção ou mistura de partes do vocabulário musical. A própria noção de vocabulário musical não faz sentido quando este tipo de simbolismo é entendido nesses termos. A composição é formada por estruturas musicais que pressupõem o sistema tonal que consiste em um todo articulado no interior do qual as composições ocorrem. Estas são, portanto, as obras musicais que, enquanto unidades articuladas de significado, expressam a forma artística.
Assim, a experiência musical pode ser entendida dentro da interpretação simbólico-transcendental de Langer, resumidamente, do seguinte modo. O compositor trabalha com o material apreendido pelos sentidos que, ao mesmo tempo, já é simbolizado pelo espírito, o qual dota de significação o material da abstração sensória que se converte em objeto artístico, retornando à sensibilidade na condição de sons articulados. A função simbólica que racionaliza as intuições é a condição de possibilidade da própria experiência, pois, caso não houvesse sua atuação, os dados da experiência nada significariam e não poderiam ser apresentados na forma artística32. As intuições sensíveis apreendidas na experiência musical são as emoções, os sentimentos, a vida interior. Quando significadas pelo espírito e expressas a partir de estruturas musicais concebidas no interior de um sistema tonal que, por sua vez, mantém uma similaridade com os estados anímicos das estruturas mentais do sujeito, o compositor elabora sua obra, a composição, enquanto um todo indivisível de significado que comunica ao ouvinte formas universais do sentimento. À percepção do ouvinte que contempla a composição é entregue uma apresentação simbólica e não-discursiva, mas que comunica semanticamente algo da vida interior.
A partir do momento em que há a criação musical, o conteúdo emocional se desliga do compositor e começa a habitar a dimensão lógica e ao ser articulado no todo da obra, cria-se para o ouvinte um meio virtual de comunicação de significação dos sentimentos. Isto não consiste na manifestação literal dos sentimentos particulares do compositor, e sim na expressão lógica de suas formas universais, diferentemente de como ocorre com a linguagem, pois o todo da composição não pode ser dividido em partes constitutivas sem que seja comprometido seu significado global. A comunicação entre o compositor e o ouvinte se dá no âmbito ideal da expressão das formas simbólicas cujas referências são as formas universais dos sentimentos. A música cria um âmbito ideal de partilha de formas universais de alto valor semântico, dizendo de modo diverso, seu conteúdo é sua forma significativa na qual reside seu valor artístico.
A experiência com a música, então, tem seu “meio virtual e ideal” de significação, no qual compositor e ouvinte representam momentos diferentes de uma mesma experiência simbólica de partilha de significados. O compositor objetiva simbolicamente uma dimensão do real que é intocada pela linguagem. Todo e qualquer discurso sobre a vida interior não consegue, de modo algum, ter o mesmo poder de expressão das formas universais dos sentimentos que são manifestas nas composições. O simbolismo musical que dota de sentido as estruturas sonoras acessa as profundezas das emoções humanas e as expressam idealmente na forma de sons articulados. Acordes sequenciados sustentam melodias cujo poder de expressão extrapola os limites da linguagem e as exigências da sintaxe e semântica linguísticas. Alegria e tristeza, amor e ódio, encontram nas formas significativas da música um meio de expressão que suporta a contradição e a ambiguidade dos sentimentos. Inconciliáveis no interior da estrutura rígida de uma proposição, no âmbito ideal das formas universais tais contradições e ambiguidades ganham sentido racional.
A experiência com a música é a prova de que é possível a apreensão intelectual das emoções e da nossa vida interior sem a necessidade de um discurso linguisticamente mediado. O simbolismo musical articula sensações e formas universais de tal modo a nos mostrar que por meio da arte, uma versão diferente e objetiva do real é possível. O fenômeno musical se apresenta ao intelecto, muitas vezes, como sendo uma alternativa ao fenômeno linguístico porque seu tema fundamental, as emoções, a vida interior, escapa em muitos aspectos às formas proposicionais do simbolismo discursivo e conceitual. Assim, a música enquanto forma simbólica se torna também um modo de conhecimento particular, uma forma de cognição. Na experiência estética, o intelecto comunica e é comunicado acerca da vida interior. As formas universais articuladas e expressas na obra musical criam o laço significativo entre compositor e ouvinte, onde ambos ganham do ponto de vista epistêmico a possibilidade de conhecer mais sobre a vida interior. Outra consequência necessária da interpretação de Langer é que, uma vez demonstrada que a linguagem não é a única forma simbólica ou o único modo de objetivação do real, mediante a representação figurativa, abrem-se novas possibilidades para o conhecimento. Conhecer não é apenas representar. A experiência musical, enquanto forma de apresentar objetivamente a vida interior, passa a ser um modo de conhecimento possível.
Referências
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Autor(a) para correspondência: Ivânio Lopes de Azevedo Júnior. Universidade Federal do Cariri, Av. Tenente Raimundo Rocha, 63048-080, Juazeiro do Norte – CE Brasil. ivanio.azevedo@ufca.edu.br.