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A ampliação do conceito de cidadania na redefinição de uma sociedade decente e civilizada

The expansion of the citizeship concept in the redefinition of a decent and civilized society

Wesley Felipe de Oliveira
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

A ampliação do conceito de cidadania na redefinição de uma sociedade decente e civilizada

Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 247-265, 2019

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 15 Abril 2019

Aprovação: 09 Agosto 2019

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a ampliação do conceito de cidadania em sua aplicação aos animais não-humanos e a relação com a ideia de sociedade decente e civilizada. Para isso, parte-se das discussões sobre os direitos dos animais na obra Zoopolis: a political theory of animal rights, de Sue Donaldson e Will Kymlicka. Ao contrário de teorias que enfatizam basicamente os aspectos negativos dos direitos animais, ou seja, o direito de não sofrer danos, não ser torturado etc., o presente trabalho fundamenta um aspecto mais positivo do direito, priorizando deveres e obrigações em relação aos animais para além da perspectiva ética. Essa questão leva ao desenvolvimento de uma perspectiva política do conceito de cidadania aplicado aos animais partindo do princípio de que os espaços geográficos e públicos são compartilhados e, assim, as inter-relações entre humanos e animais são inevitáveis. Nesse sentido, o presente artigo analisa esse conceito de cidadania animal e o reflete juntamente com os conceitos de humilhação e sociedade decente e civilizada de Avichai Margalit. Por fim, busca-se fundamentar uma perspectiva homo-zoopolitica da sociedade que inclua os animais nos princípios políticos.

Palavras-chave: Direitos animais, Cidadania, Sociedade política.

Abstract: The aim of this article is to analyze the expansion of the concept of citizenship in its application to nonhuman animals and the relation with the idea of ​​a decent and civilized society. For this objective, it starts with the discussion about animal rights in the book Zoopolis: the political theory of animal rights, by Sue Donaldson and Will Kymlicka. Contrary to theories that basically emphasize the negative aspects of animal rights, the right not to be harmed, not to be tortured etc., this paper grounds a more positive aspect of Right, prioritizing duties and obligations towards animals for beyond the ethical perspective. This issue leads to the development of a political perspective of the concept of citizenship applied to animals on the assumption that geographical and public spaces are shared and thus, the interrelationships between humans and animals, are inevitable. In this sense, this article analyzes this concept of animal citizenship and investigate it with the concepts of humiliation and decent and civilized society of Avichai Margalit. Finally, it seeks to base a homo-zoopolitical perspective on society that includes animals in political principles.

Keywords: Animal rights, Citizenship, Political society.

Introdução

As discussões suscitadas na obra Zoopolis: a political theory of animal rights, publicada em 2011 por Sue Donaldson e Will Kymlicka, partem de uma discussão firmemente estruturada sobre a questão da ética e dos direitos dos animais, que alcançou alguns objetivos, mas falhou em outros. Desde que o debate filosófico foi definitivamente introduzido nas discussões acadêmicas há cerca de quarenta anos, com as publicações de Libertação Animal em 1975 e posteriormenteÉtica Prática em 1979, do utilitarista Peter Singer, e The Case for Animal Rights em 1983, do deontologista Tom Regan, grande ênfase desses e dos demais filósofos destacaram de modo significativo os direitos básicos universais dos animais, mas de uma perspectiva considerada negativa, ou seja, o direito dos animais de não sofrer danos físicos e psicológicos, não ser torturado, aprisionado, separado dos de sua espécie, abusado, morto etc. Isso conduziu a alguns avanços, como a conscientização dos consumidores de produtos de origem animal, a reflexão sobre o uso de animais na experimentação científica e no ensino, propostas de leis mais punitivas aos maus tratos de animais domésticos etc.

No entanto, segundo Donaldson e Kymlicka, ao analisar a questão de uma perspectiva mais ampla e global, também é possível afirmar que o movimento ético/filosófico e social em defesa dos animais falhou nas diversas frentes que abordaram o problema. As razões, segundo os autores, se devem ao fato das teorias enfatizarem predominantemente estes aspectos negativos dos direitos animais, desenvolvendo abordagens limitadas como as perspectivas bem-estaristas, que defendem meramente um tratamento humanitário e mais compassivo aos animais. Além disso, apontam os autores, ainda permanece o conflito gerado (e até então inconciliável) entre os teóricos ecologistas, que aceitam a morte de animais individuais (se tal ação resultar no equilíbrio de um ecossistema), com os teóricos da ética e dos direitos animais, que prescrevem a obrigação moral ou jurídica dos seres humanos em preservar o direito à vida de cada animal em particular, não os sacrificando nem mesmo para a manutenção de ecossistemas como um todo ou em razão da garantia da existência de espécies.

Assim, no cômputo geral, Donaldson e Kymlicka consideram que pouca coisa avançou nestas décadas quando se observa o status dos animais não-humanos dentro dos contextos sociais, morais, políticos, econômicos e culturais. A quantidade de animais trazidos à existência e abatidos para o consumo alimentar humano (e também animal) continua aumentando conforme crescem as populações e suas condições econômicas. Os atos de maus tratos ou abandono de animais de companhia são ocorrências cotidianas nos centros urbanos. Pesquisas médicas e farmacológicas permanecem exigindo que os testes sejam realizados massivamente em diversas espécies animais para validá-las cientificamente. As políticas ambientais continuam sujeitas aos ditames econômicos, e a questão do interesse animal raramente entra em pauta nos debates públicos entre o Estado e a sociedade quando se trata de determinar princípios de justiça e a participação nos bens coletivos.

Perante esse quadro, as teses expostas na obra Zoopolis buscam superar tais limitações a partir de uma proposta que amplie ou complemente a perspectiva dos direitos animais para um aspecto mais positivo, isto é, que enfatize não apenas os direitos morais negativos atribuídos aos animais, mas também os positivos, assim como os deveres e obrigações respectivamente relacionados, como a obrigação, por parte dos humanos, em respeitar seus habitats nas tomadas de decisões que podem interferir direta ou indiretamente nesse ambiente; o dever de cuidar dos animais que se tornaram dependentes de nós e assim por diante. Do mesmo modo, os autores discutem fundamentação dos deveres relacionais, ou seja, daqueles que são originados a partir de diferentes contextos e circunstâncias da relação entre humanos e animais. Isso, por sua vez, leva os autores a desenvolverem o que pode ser denominado de uma teoria positiva relacional dos direitos dos animais, que se mostra, portanto, mais sensível às complexidades empíricas e morais que ocorrem nas inter-relações entre humanos e animais, reconhecendo-os como seres que convivem conosco de diversas formas e em variados contextos, desde as mais interativas e benéficas até as mais exploratórias e prejudiciais.

Ao contrário de algumas perspectivas que buscam estabelecer uma ruptura total no envolvimento entre humanos e animais, Donaldson e Kymlicka entendem que esta complexidade alcançou um nível de interdependência direta e indireta. Isso significa que não é mais possível apenas ‘deixar os animais em paz para viverem suas vidas longe de nós’. Ainda que um quadro abolicionista viesse a se concretizar em um curto ou longo período no tempo, isso não significaria que os seres humanos e os animais deixariam de se relacionar, que eles passariam a deixar de existir enquanto espécies ou se ausentariam do nosso convívio e dos espaços que ocupamos, tornando-se independentes de certos cuidados ou até mesmo que não buscariam a companhia humana. Nesse sentido, os autores investigam numa nova estrutura para regulamentar a relação entre humanos e animais que seja mais justa, não defendendo uma exploração bem-estarista dos animais, e, tampouco a extinção deles e das formas de relação com os seres humanos, mas, encarando o desafio de conviver com os seres de outras espécies neste quadro que se mostra complexo e cujos contatos são inevitáveis.

No presente artigo, destacarei uma parte deste aspecto positivo relacional da tese de Donaldson e Kymlicka que se dá através do conceito de cidadania aos animais não-humanos. Essa perspectiva tem como ponto crucial o entendimento de que a questão extrapola o âmbito da ética e da moral, no sentido privado, e se estende também para a esfera da política, ou seja, no âmbito de uma moral pública, uma vez que os princípios da sociedade precisam ser regulamentados tendo em vista essas relações com os animais, atentando ao quanto nossas escolhas e decisões podem interferir direta ou indiretamente, positiva ou negativamente nos seus interesses. Será analisada uma forma de efetivar a ideia de cidadania animal a partir da ideia dos colaboradores, isto é, pessoas capacitadas para identificar as expressões dos animais acerca de seus interesses e do que constitui o seu bem subjetivo a fim de levá-los em conta nas tomadas de decisão na sociedade.

Neste artigo, será sustentada a ideia de que este trabalho de colaboração se dá de uma maneira significativa por meio do trabalho de filósofos que nas últimas décadas têm fundamentado a inclusão dos animais nas comunidades morais e políticas, redefinindo os conceitos de sociedade e ampliando a abrangência do direito e do status de cidadania para além dos membros da espécie humana. Por fim, complementarei a discussão analisando a definição de sociedade decente e civilizada, conforme apresentada pelo filósofo israelense Avishai Margalit em sua obra The Decent Society de 1996, segundo o qual a condição de humilhação dos seres humanos, que compõe a sociedade, é o critério a partir do qual uma sociedade pode ser tomada como civilizada ou decente. Para o autor, a humilhação pode ser causada tanto pelas instituições do Estado quanto pelos indivíduos entre si, seja por meio das leis ou costumes privados.

A partir da reflexão a respeito do reconhecimento do status de cidadãos aos animais conforme fundamentado por Donaldson e Kymlica, será levada em consideração a definição de sociedade proposta por Margalit, incluindo, no entanto, os animais como membros de uma sociedade e que também são avaliados pelo critério da humilhação causada pelas instituições do Estado e pelos indivíduos para defini-la como decente ou civilizada. Como será proposto neste artigo, esta definição de decência e civilidade de uma sociedade se complementa ou se amplia com o critério da inclusão dos animais e do modo como são tratados, suscitando uma reflexão sobre a redefinição das estruturas institucionais do Estado para medir e regulamentar a relação entre humanos e animais na caracterização, então, de uma sociedade homo.zoopolítica decente e civilizada para os seus membros humanos e não-humanos.

Uma inter-relação inevitável

Diferentemente de muitas teorias abolicionistas, Donaldson e Kymlicka não enfatizam os direitos meramente negativos dos animais. Os autores entendem que apesar das históricas relações entre humanos e animais (e também entre os próprios seres humanos) terem ocorrido na forma de violação dos direitos morais básicos, impondo a restrição da liberdade física por meio de ações como a captura, o confinamento, a mutilação, inflição de sofrimento e morte, o presente contexto no qual a sociedade chegou torna inevitável uma ruptura completa do convívio com os animais.

Existem diferentes classes de animais que variam conforme os contextos. Donaldson e Kymlica trazem a seguinte classificação: os domésticos ou de companhia, que são aqueles com os quais convivemos intimamente nas casas ou nas ruas das cidades, principalmente gatos, cães ou aves. Há outros que também são domesticados, mas que não convivemos de modo estreitamente afetivo, como é o caso dos que são utilizados para o consumo alimentar ou ainda as espécies escolhidas e mantidas para testes científicos. Os silvestres, que embora vivam em habitats naturais e sem contato com humanos, ainda assim têm seus ambientes sujeitos a sofrerem interferências humanas que podem afetá-los. É possível identificar também a classe dos animais em situações limiares, que mesmo sendo selvagens, ainda assim convivem conosco, muitas vezes de forma invisível, em partes das sociedades, tais como espécies de aves, ratos etc., vivendo em locais com grande fonte de alimento e abrigo como lixões públicos e esgoto, ou os que migram de um habitat ao outro passando pelos ambientes urbanos.

Nesses e em muitos outros casos, as relações de dependência e independência dos animais com os humanos ou com a sociedade humana como um todo variam constantemente. Animais domésticos são totalmente dependentes dos cuidados humanos para serem alimentados, higienizados e protegidos. Animais silvestres são independentes para sobreviverem e se protegerem de predadores. Alguns animais aproximam-se do convívio humano por encontrar nisso uma boa fonte de alimento, enquanto outros se afastam para ambientes isolados. Seja como for, o fato é que as inter-relações entre humanos e animais é algo que se tornou inevitável e complexo, e essa presença constante nas convivências gera a exigência de novas estruturas conceituais, tanto morais quanto políticas, para regulamentar essas formas de convívio inevitáveis, tornando-as mais justas.

Nas abordagens tradicionais dos direitos animais, considera-se que é suficiente que apenas seja fundamentado o respeito aos direitos morais negativos dos animais. Sendo assim, historicamente pouca coisa foi dita acerca de direitos positivos ou relacionais. Para estes teóricos, os direitos positivos, tais como o de ser cuidado, de ser protegido, de ter seus interesses levados em conta nas tomadas de decisões políticas na sociedade, seriam desnecessários com o fim da exploração animal. Segundo Gary Francione, qualquer tipo de domesticação é, em si, uma violação dos direitos negativos dos animais e, portanto, antes de se tentar regulamentar essa relação com base em princípios éticos e de justiça, deveríamos nos esforçar em cessar a relação com as categorias de animais domésticos, o que significaria, mais precisamente, que esta categoria deveria deixar de existir ao longo do processo de libertação animal, e que os animais selvagens deveriam ser ‘deixados de lado’ para viverem de maneira independente e esquecidos por nós. Essa posição pode ser definida de extincionista, pois defende a extinção gradual dos relacionamentos entre humanos e animais, principalmente não trazendo mais animais para a existência.

Se aceitarmos a posição dos direitos, não devemos trazer mais não-humanos domesticados à existência. Aplico isso não apenas aos animais que usamos para a alimentação, experimentos, vestuário etc., mas também aos nossos companheiros não-humanos [...]. Devemos certamente cuidar dos animais não-humanos a quem já trouxemos à existência, mas devemos parar de fazer com que mais venham a existir. Não temos nenhuma justificativa para usar animais não-humanos – por mais "humanamente" que os tratemos. (FRANCIONE, 2007, tradução minha).

Ao contrário dessa perspectiva extincionista de Francione, os autores Donaldson e Kymlicka encaram o problema de se estruturar princípios que sejam capazes de regulamentar a relação com os animais de maneira a não excluí-los de nosso convívio social e privado. Em analogia com os casos humanos, os autores analisam que a abolição do sistema econômico de escravidão humana não compreendeu que os indivíduos libertados da condição de escravos deixassem de existir, que fossem enviados novamente a suas terras de origem ou deixados para viverem suas próprias vidas isoladamente, mas, ao contrário, novas estruturas políticas, sociais, econômicas e morais se desenvolveram ao longo do tempo para regulamentar, então, o convívio com os libertos, cuja relação com os demais indivíduos da sociedade se tornou inevitável. Do mesmo modo, os animais com os quais nos relacionamos não podem, em todos os casos, deixar de existir, serem abandonados, desamparados ou devolvidos aos seus habitats de origem. É nesse sentido e a partir dessa experiência da libertação humana que Zoopolis aborda a questão da libertação animal e suas consequências.

Nós acreditamos que é um erro, intelectual e político, para equiparar TDA [Teoria dos Direitos Animais] com direitos negativos universais, pôr de lado deveres positivos relacionais [...]. Essa imagem ignora as realidades de convivência humana-animal. Na verdade, os animais selvagens vivem em torno de nós, nas nossas casas e cidades, vias aéreas, e bacias hidrográficas. Cidades estão cheias de animais não-domesticados [...]. Esses animais são afetados cada vez que derrubamos uma árvore, desviamos o curso de água, construímos uma estrada ou conjunto habitacional, ou erguermos um prédio [...] Nós somos parte de uma sociedade compartilhada com inúmeros animais que continuaria a existir mesmo se eliminássemos casos de ‘participação forçada’ [...]. Simplesmente não é sustentável para a TDR [Teoria dos Direitos Relacionais] supor que o ser humano pode habitar um território separado de outros animais em que a interação e, portanto, o conflito potencial, pode ser largamente eliminado (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 08, tradução minha).

Assim, partindo da concepção de que a inter-relação com os animais é algo inevitável em diversos contextos e circunstâncias, os autores rejeitam a ideia de que todos os relacionamentos devem ser abolidos ou que animais sejam deixados à extinção. Deste modo, é necessário investigar a possibilidade de se fundamentar uma relação que seja moralmente positiva, não exploratória, mas respeitosa e mutualmente enriquecedora (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 10), superando, então, os limites das abordagens tradicionais que enfatizam aspectos negativos dos direitos animais. Esta análise, por sua vez, incorrerá no desenvolvimento de diversos conceitos, entre eles o de cidadania, que destacarei a partir de agora e que podem ser tomados não como uma alternativa ou substituição das teses tradicionais dos direitos animais, mas antes, como uma complementação ou ampliação delas. Tal conceito será fundamental para avaliar, posteriormente, os critérios que expandam as definições de uma sociedade decente e civilizada, incorporando também os animais.

O conceito de cidadania animal

A incorporação do conceito de cidadania aos animais parte de análises comparativas deste conceito nos casos humanos. Uma teoria da cidadania geralmente pressupõe a existência dos direitos humanos firmemente estabelecidos, o que significa, portanto, que independentemente de onde um indivíduo estiver, os seus direitos básicos universais enquanto ser humano devem ser respeitados por diversas razões, entre elas, o fato de se reconhecer que humanos são seres que possuem um bem subjetivo que lhe é importante, a autonomia para determinar suas escolhas e ações, além de sua capacidade para experimentar sensações de prazer ou sofrimento físico, mental e moral e do qual devem ser respeitados.

Apesar disso, existem também diferentes direitos relacionais, vinculados ao pertencimento ou não a uma determinada comunidade política. O direito ao voto, o de usufruir de um sistema de saúde ou educação, entrar e sair do país etc., são exemplos de direitos que existem apenas em razão do pertencimento e da relação do indivíduo com uma determinada sociedade. A condição dos estrangeiros, visitantes, refugiados, por exemplo, não contempla (ao menos inicial ou automaticamente) o exercício destes direitos específicos, embora os seus direitos universais enquanto seres humanos estejam assegurados. Donaldson e Kymlica chamam atenção para esta distinção entre os direitos humanos universais, que “não dependem de nossa relação com uma comunidade política em particular”, dos direitos de cidadania, “que são dependentes da membresia (membership) em uma comunidade política em particular” (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 52, tradução minha). Os direitos humanos universais, por sua vez, possibilitam os direitos políticos relacionais ou de cidadania.

Numa teoria da cidadania, as questões principais versam sobre distinguir os direitos de membresia (membership ritghts) nas distintas comunidades políticas, determinando, então, quais pessoas podem ter esses direitos e em quais comunidades políticas; a determinação das fronteiras dos vários corpos políticos e a regulamentação da mobilidade entre os indivíduos dessas comunidades, especificando as regras de interação entre várias comunidades autogovernadas por meio do direito internacional.

Do mesmo modo, ao se refletir sobre uma teoria da cidadania aos animais, faz-se necessário responder a questões similares, fundamentando de que maneira, então, os interesses dos animais contam na determinação e distribuição dos bens públicos e coletivos da sociedade, assim como o modo pelo qual devemos lidar com os animais, que podem ser tomados como membros permanentes ou visitantes temporários (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 54) nas variadas comunidades políticas.

Os autores consideram que essas questões podem ser esclarecidas com uma compreensão mais ampla das funções da cidadania humana e de que modo elas servem, então, para pensar a questão animal. O conceito de cidadania exerce três funções na teoria política que podem ser designadas, resumidamente, nos direito à:

a) Nacionalidade: a primeira função destacada remete-se à alocação de indivíduos em territórios, ou seja, ser um cidadão de um determinado país é ter o direito de residir no território deste país e retornar a ele sempre que se ausentar. Leis de direito internacional asseguram que indivíduos não fiquem apátridos, mas que estejam em um corpo político fixado em um território e no qual possam ter seus direitos exercidos.

b) Soberania popular: a ideia de cidadania está associada às bases da legitimidade política, ou seja, do Estado como representante do povo e a soberania popular como sendo a legitimação da vontade do povo por vias democráticas, o que significa o enfrentamento dos ditames da vontade de uma minoria, seja ela aristocrata, religiosa ou de castas.

c) Agência política democrática: com o fim dos sistemas políticos totalitaristas, o modo legítimo de soberania popular tomou forma através da abertura política multipartidária democrática em que os indivíduos têm o direito de escolha, mobilização e dissidência política por meio do livre debate público. Ser um cidadão, nesse sentido, não significa apenas estar em um território nacional ou ser membro da soberania popular, mas também ser um participante ativo no processo democrático. Isso significa estar envolvido e engajado ativamente na autoria das leis, o que pressupõe, então, as capacidades para a deliberação, reciprocidade e razão pública na defesa do que constitui bens subjetivos.

Segundo Donaldson e Kymlicka:

[...] todas essas três dimensões desempenham um papel vital e irredutível quando se pensa em cidadania, e é preciso contemplar todos os três quando se considera se e como estender a teoria da cidadania para os animais (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 57, tradução minha).

É importante observar que o terceiro ponto parece, à primeira vista, o menos propenso a incluir os animais dentro do status de cidadania, uma vez que animais não seriam capazes de se engajarem nos processos de razão pública ou deliberação racional, em termos habermasianos e rawlsianos, que compreendem que a deliberação pública não é meramente uma expressão das preferências ou a realização de ameaças ou barganhas, mas antes a capacidade de se oferecer razões que possam ser debatidas e aceitas por outros.

A contestação e análise de Donaldson e Kymlicka a respeito do conceito de cidadania detêm-se, então, sobre esses três pontos. Mas, neste artigo, gostaria de destacar mais propriamente o terceiro aspecto, por ser, possivelmente, o mais complexo em se tratando de sua aplicação aos animais. Os autores de Zoopolis compreendem que a cidadania não deveria ser reduzida e limitada apenas por esta capacidade política democrática, tanto no caso dos animais, quanto no caso dos seres humanos. O problema que eles apontam segue a forma de análise dos casos humanos marginais, tal como realizadas por Singer, Regan, entre outros, ou seja, observando de que maneira a defesa de determinados critérios para a fundamentação de um status moral ou político para seres humanos e que justificaria a exclusão dos animais, acaba por resultar, segundo o princípio de se aplicar um mesmo preceito para todos os casos semelhantes (universalizabilidade), na exclusão dos próprios indivíduos humanos, quando estes, a semelhança dos animais, não satisfazem os critérios exigidos para fundamentar necessariamente o seu pertencimento a uma comunidade moral ou política e os direitos a isso relacionado. Nas palavras de Donaldson e Kymlicka:

Se definirmos cidadania estritamente como o exercício da ação política democrática, excluímos imediatamente um grande número de seres humanos a partir de direitos de cidadania. Considere as crianças, ou pessoas com deficiência mental grave, ou pessoas com demência. Nenhuma delas é capaz de se engajar em razão pública rawlsiana ou deliberação habermasiana. No entanto, eles certamente são cidadãos da comunidade política, nos dois primeiros sentidos do termo. Ou seja, eles têm o direito de residir e voltar para o território do Estado. E eles têm o direito de ter seus interesses considerados na determinação do bem público ou na prestação de serviços públicos (por exemplo, saúde e educação) (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 57 grifo e tradução minha).

O terceiro aspecto leva os autores a investigarem de que modo as atuais reflexões sobre a questão dos seres humanos com impedimentos mentais e cognitivos, têm desenvolvido formas de estudar a manifestação das expressões de preferências e interesses destas pessoas para identificar seus bens subjetivos a serem levados em conta nas deliberações políticas, sendo, portanto, incluídos numa participação política e exercendo um papel mais ativo.

Nas teorias políticas, esse terceiro aspecto é, de fato, encarado como a afirmação de valores morais importantes como a autonomia, a ação política (agency), o consentimento, a confiança mútua, a participação, a autenticidade e a autodeterminação. Assim, “parte do que é tratar as pessoas como cidadãs é tratá-las de modo a afirmar e respeitar esses valores” (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 59, tradução minha), e isso vária enormemente, tanto no caso dos seres humanos, quanto no de animais. Embora nos dois primeiros sentidos, humanos com deficiências têm sido levados em conta como cidadãos (direito de viver em um território e ser parte do corpo soberano), ainda recentemente eles têm sido tratados, em grande parte, segundo Donaldson e Kymlicka, apenas como receptores passivos de políticas paternalistas decididas pelos seus guardiões, isto é, cuidadores, que não se preocupam em garantir uma participação significativamente efetiva das pessoas com capacidades intelectuais limitadas nas determinações dos princípios políticos. No entanto, as novas abordagens em defesa da inclusão e participação ativa dos deficientes na sociedade e nos processos de escolha dos princípios políticos, têm insistido no direito deles de exercerem sua participação e ação política (agency), manifestando consentimento ou negação acerca das políticas públicas e das tomadas de decisões que afetam de alguma maneira os seus interesses e bem-estar.

Isso tem levado as filósofas americanas Leslie Francis e Anita Silvers a desenvolverem novos modelos de “agentes dependentes (dependent agency)” ou “tomadas de decisões apoiadas para cidadãos não comunicáveis (non-communicating citizens)” (FRANCIS & SILVERS apud DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 59, tradução minha). Os antigos modelos de guardiões paternalistas estão sendo substituídos, então, por novos modelos em que “o objetivo é encontrar formas de suscitar o sentido do bem subjetivo de uma pessoa, muitas vezes através do corpo ao invés da comunicação verbal” (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 59, tradução minha). Nesses novos modelos, é possível que pessoas com deficiência exerçam mais fundamentalmente as suas funções de cidadania, mas isso exige que outras pessoas, que são denominadas por Francis e Silvers de colaboradores, ajudem estes indivíduos “a construir um script da sua concepção de vida boa, com base nas expressões verbais e não verbais da preferência” (FRANCIS & SILVERS apud: DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 60, tradução minha). Cabe aos colaboradores o papel de serem atentos às expressões e comportamentos que manifestam as preferências, os interesses e vontades destes indivíduos com necessidades especiais, tanto para aqueles que nascem com essas características, quanto para aqueles que no decorrer da vida foram acometidos por estes impedimentos e deficiências, de modo a:

[...] ajustá-los junto a uma consideração das preferências em curso que constituem uma ideia personalizada do bem e trabalhar para descobrir como realizar este bem em circunstâncias existentes [...] e trazer esta informação para o processo político, de modo que seus pontos de vista possam moldar os debates correntes sobre justiça social (FRANCIS & SILVERS apud DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 60, tradução minha).

A ação política (political agency), conforme determinada pelo terceiro aspecto da cidadania, deve ser entendida como algo inerente à relação entre os cidadãos, numa inter-relação inevitável, e não como um atributo que constitui os indivíduos que existem antes de uma interação social. Donaldson e Kymlica entendem que as capacidades psicológicas, cognitivas e morais dos indivíduos não são o que fundamentam a condição de cidadania, mas antes as interações nas quais os indivíduos se encontram, pois a incapacidade, seja ela temporária ou permanente, não nos leva a retirar o status de cidadão do indivíduo e todas as proteções morais e legais que isso lhe confere, mas antes, entendem os autores:

[...] o estabelecimento das relações de cidadania é, ao menos em parte, entrar em relações que envolvem a facilitação da ação política (agency) de nossos co-cidadãos, em todas as fases do seu curso de vida e em todos os níveis de capacidade mental (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 60, tradução minha).

É justamente nesse sentido que as novas abordagens dos casos de pessoas com impedimentos tem se concentrado, isto é, em encontrar e desenvolver formas pelas quais os chamados colaboradores possam compreender de maneira objetiva os interesses subjetivos destas pessoas, facilitando, assim, a participação e atuação política delas, de modo que seus bens subjetivos sejam levados em conta nas determinações dos bens coletivos dos quais possam participar.

Esses novos modelos para os casos de humanos com deficiências têm servido de inspiração para Donaldson e Kymlicka analisarem também a aplicação da condição de cidadania aos animais não-humanos, “ao menos para aqueles animais (domesticados) com quem vivemos nas proximidades, e que temos tornado dependentes de nós através da domesticação” (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 60, tradução minha). Assim, os autores entendem que também podemos desenvolver nossas capacidades para sermos cognitivamente sensíveis às expressões dos interesses e dos bens subjetivos dos animais, para, a partir disso, construir scripts desses interesses e colocá-los dentro de nossos processos políticos para auxiliar na determinação dos termos justos dessa interação entre as espécies. “Animais domesticados [...] devem ser vistos como co-cidadãos neste sentido, com o direito de ser representado por meio de formas de agência dependente nas nossas tomadas de decisões política” (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 61, tradução minha). Por meio desse modelo, as inevitáveis inter-relações com animais domésticos (de companhia ou consumo), seriam regulamentadas para uma forma de interação não exploratória e não paternalista, mas antes, fundamentadas no respeito aos direitos universais básicos, tanto os negativos, quanto os positivos, ou seja, de promover e garantir o bem desses animais.

É importante observar que nem todos os animais seriam considerados co-cidadãos no sentido de poderem ter uma participação política ativa por meio dos colaboradores. Os autores consideram que a “cidadania é uma relação que mantém entre aqueles que coabitam um território comum e que são regidos por instituições comuns” (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 61, tradução minha), ou seja, tal conceito se restringe mais precisamente aos animais com quem convivemos de maneira próxima e interativa em nossas sociedades, com afetações diretas de nossas ações sobre a vida deles, tais como com os animais de companhia, mas também os que foram domesticados para se tornarem produtos de alimentação, pesquisa científica, entretenimento etc. Esses animais vivem em uma condição de total ou parcial dependência dos seres humanos. As suas necessidades alimentares, higiênicas, de saúde e proteção dependem enormemente dos seres humanos. Até mesmo os animais de criação industrial, como suínos, bovinos e avícolas, precisam ser alimentados, ter seus ambientes limpados e receber suportes para preservar sua saúde, ou seja, eles são dependentes de nossos cuidados mesmo no contexto de criação para fins de atividades humanas.

Para os autores, portanto, o status de cidadania aos animais, tal como no caso dos humanos, é determinado não pelas capacidades cognitivas dos seres, mas, antes de tudo, pela natureza de suas relações com uma comunidade política particular. Por isso, tal conceito se aplica mais propriamente a esses animais com quem mantemos constante relação e que estão em uma situação de dependência e vulnerabilidade inevitável em relação a nós, mesmo em um contexto pós-libertação, pois eles perderam, enquanto espécies modificadas e adaptadas aos nossos interesses, suas capacidades de viver em habitats naturais, livres e independentes da ação humana.

A cidadania é tanto possível quanto moralmente necessária para aqueles animais (domesticados) que trouxemos em nossa sociedade, e não é necessário nem desejável para aqueles animais (silvestres) que devem ser vistos como pertencentes as suas próprias comunidades soberanas (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 61, tradução minha).

A partir da inevitabilidade dos contatos entre humanos e animais, os autores compreendem que a aplicação do conceito de cidadania aos animais é uma maneira eficiente de tornar a convivência mais justa. Neste conceito, três aspectos, portanto, se destacam para se compreender melhor a possibilidade dos animais serem incluídos na condição de cidadãos: a agência (agency) dos animais; a condição de dependência/independência, e, por fim, as dimensões geográficas desta interação.

As perspectivas tradicionais dos direitos animais compreendem que apenas os seres humanos são capazes de desejar e iniciar um relacionamento entre espécies. Sendo assim, bastaria, segundo essas perspectivas, que parássemos de interferir na vida e nos habitats dos animais que este relacionamento seria ao longo do tempo cessado, de modo que não seria necessário, então, estabelecermos uma estrutura de direitos e deveres positivos para com eles. No entanto, sendo mais atento a esta inter-relação, Donaldson e Kymlicka entendem que os animais também podem escolher estar ou evitar uma aproximação com os humanos se isso os beneficiar ou os prejudicar.

Existem literalmente milhões de animais limiares que procuram áreas de assentamento humano. E eles também podem escolher se querem evitar os seres humanos individuais, ou procurá-los por comida, assistência, abrigo, companheirismo e outras necessidades (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 66, tradução minha).

Há uma variedade de formas de relação não coercitiva e exploratória com os animais, e tal como no modelo desenvolvido recentemente para compreendermos as preferências e interesses de humanos cuja expressão ou comunicação exige uma maior atenção, do mesmo modo, entendem os autores, é possível identificarmos as manifestações que os animais podem exibir de suas preferências e sobre como eles vivem suas vidas de acordo com aquilo que lhe é próprio enquanto espécie e enquanto ser individual, sendo atentos, também, às circunstâncias nas quais essa relação ocorre.

Os animais de companhia são a classe a qual somos mais atentos e cognitivamente capazes de identificar, compreender e atender aquilo que lhe é um bem subjetivo, como a preferência por certos tipos de comida ou lugar favorito da casa, brincadeiras, interação mais próxima com algum indivíduo em especial etc. Mas, os animais de criação, que embora sejam domésticos não convivem diretamente conosco, também são capazes de expressar um bem que lhes é subjetivo. Pessoas que lidam cotidianamente com animais são mais sensíveis na percepção de que eles também possuem preferências, interesses e desejos acerca do que é bom e agradável para eles, mas, principalmente, que eles também comunicam isso de modos variados. Nesse sentido, observam os autores:

Essa comunicação de seu bem subjetivo exige que nos atentemos a eles, e aprendamos a compreender as suas formas de comunicação. Primeiro, devemos reconhecer que os animais estão tentando se comunicar, então precisamos observar cuidadosamente para interpretar os repertórios individuais, e, finalmente, temos de responder de forma apropriada - confirmando ao animal que tenta se comunicar conosco, que ele não está desperdiçando esforços (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 109, tradução minha).

A capacidade, tanto do animal em expressar e comunicar pelo seu comportamento os interesses que atendem ao seu bem subjetivo, quanto do humano em perceber e atender esse bem pressupõe a presença de espécies diferentes em um mesmo espaço, e, portanto, uma relação de dependência ou independência. Segundo Donaldson e Kymlicka, a dependência é um “contínuo multidimensional que varia para cada indivíduo de acordo com a atividade e contexto, e ao longo do tempo” (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 66, tradução minha). Por isso, animais que vivem em regiões silvestres podem, no entanto, estarem dependentes dos seres humanos em determinados aspectos, como por exemplo, a vulnerabilidade quanto às ações ou decisões indiretas dos avanços geográficos da sociedade humana sobre seus ambientes, enquanto que alguns animais domésticos podem exercer certa independência em suas atividades, ainda que estejam em uma relação mais próxima conosco.

A dependência pode ser distinguida em duas dimensões: uma inflexível e uma específica. Um hamster de estimação, por exemplo, tem uma dependência inflexível dos seres humanos, uma vez que ele não tem opções alternativas se a pessoa que o adota não lhe proporcionar água, comida e abrigo. Ele não pode simplesmente se locomover para outro local. Mas sua dependência também é específica, pois ela depende exclusivamente de um ser humano em particular para ter seus interesses básicos atendidos. Muito diferente disso é o caso de animais que vivem em lixões das cidades ou em esgotos, além de cães e gatos de rua, que são dependentes dos seres humanos como fonte de alimentos, mas não de um ser humano individual em específico. E, ainda que a fonte de alimento seja eliminada, sua condição não é inflexível, de modo que é possível a esses animais se realocarem para outros ambientes que lhes sejam favoráveis. Essas relações ocorrem de maneiras muito variáveis e dinâmicas. No entanto, é importante observar que no atual contexto os animais domésticos são dependentes dos seres humanos para terem uma estrutura básica de segurança e conforto. Com essa estrutura garantida, observam os autores, “eles são capazes de exercer agência (agency) em muitas áreas de suas vidas, seja diretamente [...] ou através de agência (agency) apoiada” (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 112, tradução minha), ou seja, é possível oferecer aos animais uma possibilidade de exercerem suas atividades autonomamente, mesmo sendo auxiliados, sem incorrer em um paternalismo nocivo que anula suas liberdades..

Uma melhor compreensão das relações entre humanos e animais conduz a uma reflexão sobre a concepção do espaço que é compartilhado. Dicotomias como urbano/rural, humano/animal, cultural/natural, desenvolvido/selvagem precisam ser revistas. Essas dicotomias sustentam concepções de relações que seriam espacialmente adequadas entre os animais e a sociedade, de modo que se constrói um cenário que considera adequado aos animais de companhia permaneçam presos e condicionados em residências, que os animais selvagens fiquem nos zoológicos ou permaneçam distantes na natureza intocada, e que os animais de criação fiquem nas fazendas industriais. A cada classe de animal se confere um espaço tomado como adequado, inflexível e intransponível. Assim, sempre que um animal é encontrado fora daquilo que é tomado como seu espaço, ele é visto como ‘algo fora do lugar’, e, portanto, sua presença se torna estruturalmente e moralmente problemática.

Tal concepção gera contradições que levam os seres humanos a incorporarem alguns animais na esfera privada de vida, garantindo e atendendo a satisfação de seus bens subjetivos, enquanto que outros são explorados e os seus interesses, que são semelhantes aos daqueles de companhia, são negligenciados ou meramente ignorados. Ao mesmo tempo, animais silvestres que vivem nos entornos das sociedades, ou ainda aqueles que não são domésticos, embora compartilhem ambientes urbanos, recebem pouca ou nenhuma consideração moral e política.

Essas dimensões espaciais na relação humano-animal interagem com a agência dos animais e as dimensões de dependência e interdependência de forma que criam uma multiplicidade de relacionamentos. Verifica-se uma variedade de origens, diferentes tipos de interação e distintos níveis de vulnerabilidade que superam as dicotomias conforme mencionadas acima, e toda a identificação dessas variações “são importantes para identificar questões de justiça relevantes e para avaliar nossas responsabilidades morais” (DONALDSON e KYMLICKA, 2011, p. 69, tradução minha). A superação dessas dicotomias nos leva a identificarmos novos tipos de prescrições morais e políticas mais sensíveis às complexidades nas relações entre as espécies, modificando, assim, a forma de abordagem e relacionamento com os animais de uma maneira mais justa e equilibrada.

Como pôde ser notado, Zoopolis amplia significativamente a questão dos direitos animais com uma proposta de direitos positivos que culminam no desenvolvimento de uma teoria da cidadania animal. Os autores esclarecem duas interpretações equivocadas do conceito de cidadania, cujas implicações comprometem não apenas sua aplicação aos animais, mas também aos seres humanos. A afirmação de que animais não podem ser considerados cidadãos repousa no equivocado entendimento de que: a) a cidadania diz respeito principalmente ao exercício da representação e ação política em razão dos interesses e bens subjetivos; e a ação política, por sua vez, exige: b) sofisticadas capacidades cognitivas para exercer uma deliberação e razão pública. Mas, como foi analisado, os autores tomam tais exigências como insuficientes para fundamentar a cidadania aos próprios seres humanos, no caso, aqueles que não satisfazem tais exigências. A cidadania é algo que vai para além da deliberação (ainda que esta característica seja importante e fundamental). No entanto, indivíduos incapazes não são relegados à exclusão da participação política, tampouco seus direitos são negados. Nesse sentido, compreende-se que a cidadania exerce diversas funções, como a alocação dos indivíduos nos territórios, a filiação como membro em uma soberania popular, a possibilidade do exercício das diversas formas de ação política que não se reduzem, necessariamente, às formas tradicionais habermasianas e rawlsianas, mas fomentam uma participação assistenciada e interdependente, através, então, dos colaboradores.

Por meio dessa proposta, Zoopolis aborda de maneira positiva o problema ‘do que fazer com os animais’. Suas teses apontam para uma perspectiva mais justa na relação com os animais, promovendo-lhes, por meio do trabalho colaborativo da filosofia moral, filosofia do direito e filosofia política os meios de se promover a inclusão dos interesses e bens subjetivos dos animais nas tomadas de decisões na sociedade como um todo. Pode-se dizer, que trabalhos acadêmicos como os que foram inaugurados por Singer e Regan, já possibilitaram as bases para o avanço da questão animal para conceitos mais complexos, como os de cidadania, soberania, participação política e outros mais discutidos na obra de Donaldson e Kymlica, mostrando que o trabalho da filosofia é uma dos exemplos mais promissores de uma das funções que os colaboradores dos animais podem exercer na sociedade política, qual seja, o de estar atento aos interesses e preferências dos animais e trazê-los para os debates morais e políticos na sociedade a fim de incluí-los nas escolhas dos princípios de justiça.

Analiso, a partir de agora, de que maneira a incorporação desse conceito defendido por Donaldson e Kymlicka redefine o modo como avaliamos a sociedade, assim como a sua civilidade e decência, não apenas, portanto, pelo viés das relações entre seres humanos, mas com vistas também ao modo pelo qual, então, os cidadãos não-humanos são considerados em duas dimensões, ou seja, tanto pelos membros da sociedade quanto pelas instituições que a compõe.

A inclusão dos animais na sociedade zoo-política decente e civilizada

Ao refletir sobre a sociedade, suas instituições constituintes e de que maneira elas se relacionam com os indivíduos que fazem parte dela, o filósofo israelense Avishai Margalit examina o que pode ser considerado como uma sociedade decente. De maneira direta e objetiva, sua concepção inicial é a de que uma sociedade decente é aquela na qual “as instituições não humilham as pessoas” (MARGALIT, 1996, p. 01, tradução e grifo meu). O autor a distingue do que ele denomina de sociedade civilizada, caracterizada pelo fato de que “os seus membros não humilham uns aos outros” (MARGALIT, 1996, p. 01, tradução e grifo meu). Assim, Margalit coloca duas formas pelas quais a humilhação pode ocorrer. Ela pode vir diretamente das instituições que estruturam o Estado, sendo tais instituições potencialmente responsáveis pelo sofrimento de seus cidadãos, como por exemplo, por meio de negligências nos serviços básicos de assistência à saúde, moradia e educação; ou então a humilhação pode ocorrer nas inter-relações privadas entre os indivíduos, como por exemplo, pela violência doméstica ou no trabalho.

As instituições podem ser descritas de duas maneiras: “abstratamente, por suas regras ou leis, ou concretamente, por seu comportamento atual” (MARGALIT, 1996, p. 01, tradução e grifo meu). Na primeira, os princípios políticos do Estado podem se revelar como a fonte da humilhação e do sofrimento dos indivíduos, como, por exemplo, as leis do Apartheid, cuja humilhação e discriminação racial tinha sua fonte nas próprias leis constituintes do Estado Sul Africano. Já as concretas, em contraste, são aquelas em que os atos de humilhação, embora não sejam institucionalizados (e até mesmo são combatidos), eles vem de alguma parte constitutiva do Estado, como, por exemplo, um abuso de poder por parte de forças de segurança. Fazer uso abusivo, arbitrário e ilimitado do poder não é uma característica institucional das forças de segurança, mas seus agentes individuais podem, contrariamente a instituição, realizar tais abusos, o que torna, portanto, seus atos ilegais. Em alguns casos, a linha que separa uma sociedade civilizada de uma decente é tênue, uma vez que as ações das instituições e dos indivíduos que as compõem se tornam, muitas vezes, inseparáveis.

Na sua análise, Margalit considera duas dimensões nas quais estas distinções estão encerradas. Para o autor, pode-se dizer que a o conceito de sociedade decente é um conceito de nível macroético, uma vez que ela abrange a sociedade e suas diversas instituições como um todo, enquanto que o de sociedade civilizada é tomado como um nível microético, centralizado, mais precisamente, nas inter-relações mantidas entre os indivíduos.

É importante compreender que nessa perspectiva Margalit define a humilhação como “qualquer tipo de comportamento ou condição que constitui uma boa razão para uma pessoa considerar a si ou o seu autorrespeito ofendido” (MARGALIT, 1996, p. 09, tradução minha). Isso pressupõe, obviamente, uma consciência de si para compreender em que medida o respeito que lhe é devido enquanto pessoa foi ofendido ou quais dos seus direitos foram violados.

No entanto, a humilhação como um fato concreto (e não apenas uma percepção psicológica) não precisa, necessariamente, estar vinculada com o aspecto cognitivo ou psicológico da condição de humilhação que possibilita a uma pessoa a experiência de sentir-se humilhada. Ainda que os indivíduos não tenham uma consciência psicológica ou moral de sua condição humilhante, lhes gerando, por exemplo, sentimentos de vergonha, isso não altera o fato concretizado de estarem inseridos em uma humilhante condição existencial e social na qual os seus direitos enquanto humanos ou cidadãos de uma determinada comunidade política foram negligenciados ou violados. A humilhação também é uma condição externa concreta e contextual na qual independe o sentimento ou a consciência. O desamparo de bebês órfãos, de crianças, idosos senis ou pessoas mentalmente limitadas, tanto pelas instituições da sociedade quanto daqueles que as deveriam cuidar, constitui uma situação de humilhação que não leva em conta se tal pessoa está psicologicamente ciente ou não deste quadro. Para Margalit:

[...] uma sociedade decente pode alternativamente ser definida como uma que não viola o direito das pessoas dependentes dela. A ideia é que apenas uma sociedade com uma noção de direitos pode ter o conceito de autorrespeito e humilhação exigido por uma sociedade decente (MARGALIT, 1996, p. 28, tradução e grifo meu).

Tome-se ainda como exemplo para corroborar essas afirmações, os casos de muitas crianças, idosos, homens e mulheres que são economicamente carentes que vivem em situações de extrema penúria. Muitos podem até mesmo serem inconscientes de seus estados de humilhação, desconhecidos que são dos seus direitos ignorados, negligenciados ou violados, não compreendendo as causas de seu atual estado. Muitas vezes, a responsabilidade por tal situação advinda do Estado lhes é desconhecida. Crianças podem ser humilhadas tanto pela negligência das instituições em lhes oferecer a garantia dos direitos básicos de saúde, segurança e educação, quanto por adultos que lhes negam os cuidados paternos básicos e necessários para o seu desenvolvimento físico, psicológico, moral e material. Portanto, percebe-se que independente da consciência ou não delas acerca da própria situação, a condição de humilhação ainda repousa sobre elas quando aquilo que lhes é de direito, enquanto seres humanos e cidadãos lhes têm sido negado ou violado.

Nesse quadro de indecência e não civilização, não é exigida a consciência moral ou psicológica para garantir o direito delas em serem retiradas desta humilhante situação de vida que se encontram. Para o autor: “condições de vida são também capazes de oferecer boas razões para sentir-se humilhado. Condições são humilhantes, no entanto, apenas se elas são resultado de ações ou omissões de seres humanos” (MARGALIT, 1996, p. 09, tradução minha). Perante tais situações, organizações não governamentais, movimentos sociais e religiosos, instituições privadas, entre outros segmentos da sociedade, atuam como colaboradores e trabalham pelo resgate da dignidade dessas pessoas e na reivindicação de seus direitos enquanto humanos e cidadãos, representando-os em suas incapacidades e trazendo os interesses deles no debate público para a estruturação dos princípios de justiça e a participação neles. A violação de seus direitos, portanto, concretiza a situação de humilhação, independente da consciência ou não disso.

Para avaliar a questão dos animais, menciono primeiramente a observação que Margalit faz acerca do que é tratar os seres humanos como se eles não fossem humanos, destacando quatro formas pelas quais isso pode ocorrer: “(a) tratando-os como objetos; (b) tratando-os como máquinas; (c) tratando-os como animais; (d) tratando-os como sub-humanos [...]” (MARGALIT, 1996, p. 89, tradução minha). Chamo atenção, nessa constatação, para a referência feita sobre tratar seres humanos como se eles fossem animais, como a ilustração de um tratamento ou comportamento de outrem que viola o respeito e os direitos dos seres humanos e os insere, portanto, em uma situação de humilhação. Ainda que possa parecer uma frase ou comparação ingênua, no fundo ela denuncia algo significante aceca do modo pelo qual, então, os animais são considerados. Tratar um humano como um animal é humilhante não porque a condição de ser animal para o próprio animal é em si algo humilhante, mas porque o modo como o animal é considerado e tratado pelos seres humanos é algo designadamente violento, degradante e humilhante.

Ao comparar a maneira que alguns humanos são tratados, como sendo algo humilhante e degradante, a referência que então é feita aos animais evidencia não apenas a humilhação dos humanos, mas essa linguagem carrega também um reconhecimento de que existe algo de moralmente estranho no modo como os animais são levados em conta e tratados. Quando dizemos ‘foram tratados como animais’, queremos dizer que foram submetidos a situações tão ou mais degradantes, humilhantes e sofredoras quanto a que os animais são submetidos pelos seres humanos. Logo, se os animais não fossem mal tratados, submetidos a situações de sofrimento e violação de seus direitos à vida e ao bem-estar, abusados, humilhados e mortos, tal comparação seria, portanto, sem sentido e não evocaria a avaliação moral que ela insere. Nota-se, portanto, uma inter-relação entre as formas de crueldade, sofrimento, violação de direitos e humilhação que são praticadas contra humanos e animais, a tal ponto que uma linguagem moral é evocada para metaforizar as práticas de humilhação de seres humanos a partir da comparação com os animais.

Animais como ampliadores da civilidade e decência social

Tomando os animais como cidadãos não-humanos, conforme Donaldson e Kymlicka sustentam, considera-se, então, a inclusão e o reconhecimento deles no status de membros da sociedade, cujos interesses devem ser levados em conta nas escolhas e determinações dos princípios políticos por meio do reconhecimento dos direitos positivos que a condição de cidadãos lhes garante. Isso os reveste da proteção que tal status lhes confere contra a violação dos seus direitos e a subjugação deles em situações de sofrimento e humilhação, tanto pelas instituições da sociedade quanto pelos cidadãos humanos.

Essa nova estrutura também impõe novos desafios para a sociedade. A partir das concepções de Margalit, pode-se ver, portanto, que a questão animal passa a ser, se incorporarmos a tese da cidadania animal de Donaldson e Kymlica, uma mácula nas nossas concepções éticas e políticas de decência e civilidade, de modo que o critério negativo de justiça trazido por Margalit, segundo o qual uma sociedade é injusta quando ela humilha seus membros por meio da violação de seus direitos a partir das suas próprias instituições e moralidades, redefine, assim, as nossas concepções acerca da sociedade. Obviamente que as peculiaridades de cada classe de cidadão marcam diferentes formas de ver este cenário. No entanto, nota-se que o Estado, por meio de suas instituições políticas, econômicas, científicas, educacionais etc., ainda perpetra formas de sofrimentos e crueldades institucionalizadas aos animais não-humanos. As leis que estruturam a sociedade e regulamentam as relações entre humanos e não-humanos ainda amparam a violação dos direitos básicos à vida e ao bem-estar dos animais, condicionando as formas de exploração e incentivando o uso deles, por exemplo, como cobaias de experimentos científicos. Em outras palavras, o aparato estatal ampara, legal e moralmente, a exclusão deles dos princípios de ética, do direito e da justiça, mantendo-os fora do circulo de ação moral e política dos cidadãos humanos e do Estado, não reconhecendo que os seus interesses e preferências devem ser levados em conta tanto nas determinações morais privadas quanto na participação dos bens públicos e nas proteções conferidas pelo Estado aos bens subjetivos dos membros (humanos e não-humanos) da sociedade.

As suas condições, portanto, permanecem na de humilhação causada por outros agentes, mesmo que, diferente do caso humano, não haja por parte dos animais este sentimento ou consciência psicológica de tal situação. No entanto, isso não se posta como uma barreira para tal avaliação na questão da humilhação animal. A situação destes seres se assemelha aos muitos seres humanos que também são inconscientes e até mesmo insensíveis a sua própria condição humilhante em que se encontram, sendo ela também originada pelas ações ou omissões, tanto no nível macroético (das instituições sociais) quanto no nível microético (das inter-relações com os demais indivíduos). A inconsciência ou ausência de um sentimento psicológico de humilhação não é razão para desconcretizar o fato de estarem inseridos em um contexto no qual os seus direitos básicos são violados, e que uma humilhação lhes é imputada por outros agentes por meio de abusos físicos, sofrimento e morte.

Com a tese de Margalit, portanto, é possível definir que a sociedade é indecente e não civilizada quando seus membros são humilhados. Com as teses de Donaldson e Kymlicka fundamenta-se o reconhecimento de que os animais também são membros da sociedade na qual eles estão inseridos, e com os quais não temos como evitar manter uma relação direta ou indireta, e cuja regulamentação deste convívio, portanto, precisa se pautar por princípios éticos e políticos que lhes sejam mais justos. Percebe-se, ao olhar para a história, que a inclusão e o reconhecimento da cidadania dos membros na sociedade sempre foi algo que se deu gradativamente. Aos animais, do mesmo modo, têm sido gradativamente reconhecido os seus direitos, desde os mais básicos, como o direito à vida, ao bem-estar, a liberdade, quando aos mais complexos e politizados, como os de cidadania e de conviverem em sociedade na qual foram inseridos pelos diversos processos de domesticação e exploração e da qual não lhes é mais possível dissociar-se.

Vê-se, na questão animal, que os filósofos têm exercido o papel de colaboradores dos animais, como proposto por Donaldson e Kymlica, e, juntamente, com demais membros da sociedade, têm buscado diminuir esta condição de sofrimento e humilhação causada aos animais tanto pelas instituições do Estado quanto pelos indivíduos em suas escolhas e decisões privadas. Os colaboradores têm trazido os interesses e os bens subjetivos dos animais para o debate público na sociedade e fundamentando a inserção deles nas tomadas de decisões políticas, com o objetivo de serem levados moralmente e politicamente em conta para redefinir as regras destas relações na sociedade. Mas, como observam Donaldson e Kymlicka, essa representação efetiva dos animais:

Exigirá reformas institucionais em vários números de níveis. Ela vai envolver representação em processos legislativos, mas exigirá também representar os animais em, por exemplo, planejamentos e decisões municipais ou em níveis governamentais de várias profissões e serviços públicos (polícia, serviços de emergência, medicina, leis, planejamento urbano, serviços sociais etc.). Em todas essas instituições, animais domesticados têm sido invisíveis e seus interesses ignorados (DONALDSON & KYMLICKA, 2011, p. 154, tradução minha).

A inclusão dos animais, portanto, se dá tanto nas esferas morais privadas quanto nas esferas políticas e públicas. A linha que divide estas esferas é bastante tênue, de modo que o macroético e o microético se misturam, e, embora uma sociedade possa ser considerada decente quando seus membros não são humilhados pelas instituições, ela pode ainda carecer de civilidade, quando os membros se humilham entre si nas inter-relações privadas. Daí a importância do debate sobre a questão animal mesclar estas duas esferas e estruturar-se não apenas como uma questão moral, conforme tradicionalmente se abordou o problema, mas também como uma questão de princípios políticos mais amplos e abrangentes conforme trazidos por Donaldson e Kymlica. A analise filosófica da dimensão macroética e microética não podem ser separadas e incomunicáveis, mas antes, conforme sustenta Nozick, deve-se compreender que:

A filosofia moral estabelece o pano de fundo e as fronteiras da filosofia política. O que as pessoas podem e não podem fazer umas às outras, limita o que elas podem fazer por meio do aparato de um Estado ou para estabelecer tal aparato. As proibições morais que podem ser impostas são a fonte de qualquer legitimidade que o poder coercitivo fundamental do Estado tem (NOZICK, 1974, p. 06, tradução minha).

Desse ponto de vista, compreende-se que as regras dos princípios políticos e dos princípios morais privados se convergem. Como salienta Kymlicka em sua obra Filosofia Política Contemporânea: “temos obrigações morais mútuas, das quais são de responsabilidade pública – impostas por meio das instituições públicas – e outras que são de responsabilidade pessoal – envolvendo regras de conduta pessoal” (KYMLICKA, 2006, p. 08). Ainda que a filosofia política trate das obrigações que justificam a existência e o uso das instituições públicas, e a filosofia moral concentra-se nas relações privadas, Kymlicka reformula a ideia de Nozick de que “o conteúdo dessas responsabilidades e a linha existente entre elas devem ser determinados por meio do recurso a princípios morais mais profundos” (KYMLICKA, 2006, p. 08). A condição dos animais e a responsabilidade para com eles é algo que permeia as duas esferas, de modo que as responsabilidades do Estado não anulam as responsabilidades dos indivíduos e vice-versa. “Qualquer consideração sobre nossas responsabilidades públicas deve se encaixar em uma estrutura moral mais ampla que dê espaço para nossas responsabilidades privadas e faça com que tenham sentido” (KYMLICKA, 2006, p. 08). Ainda que delimitações das responsabilidades dessas duas esferas sejam claramente estabelecidas, de modo que os princípios políticos sejam estabelecidos para assegurar a não humilhação dos membros da sociedade, a percepção das responsabilidades mútuas dos indivíduos entre si e para com os animais não devem ser negligenciadas.

Assim, o Estado e cidadãos compartilham, ambos, cada um dentro de seus alcances e limites, as responsabilidades mútuas no estabelecimento de uma sociedade não apenas homopolítica, isto é, gravitando apenas em torno dos interesses humanos, nem apenas zoopolítica,ou seja, baseada tão somente nos interesses dos animais, mas, uma vez que nessa configuração humanos e animais compartilham o espaço público e geográfico, deve-se pensar numa sociedade homo.zoopolítica decente e civilizada.

Conclusão

A filosofia moral e a filosofia política precisam, juntamente, reconhecer a inevitabilidade das interações entre humanos e animais no espaço geográfico e político. O presente artigo refletiu que mesmo em um contexto pós-libertação, os animais ainda assim permanecerão ocupando espaços públicos e privados, ou tendo seus habitats vulneráveis às nossas escolhas, de modo que precisamos, então, estabelecer princípios tanto éticos quanto políticos que nos orientem sobre a maneira justa de convivermos com os animais inseridos na sociedade.

Como foi analisado ao longo deste artigo, uma interpretação mais ampla e inclusiva das funções do conceito de cidadania, tanto no caso humano quanto no caso dos animais, oferece uma perspectiva promissora e positiva que amplia ou complementa as abordagens filosóficas dos direitos dos animais para uma perspectiva mais política, isto é, que vai além do âmbito de uma moralidade apenas privada. Aqui, mais uma vez, a experiência de casos humanos serviu de inspiração para demonstrar que relações éticas e políticas com as diversas formas de vida são possíveis, e que as desenvolvidas capacidades cognitivas dos seres humanos podem estar a serviço do estreitamento dos laços de convivência com aqueles que se expressam de maneiras limitadas ou simplesmente diferentes, mas que ainda assim possuem e manifestam interesses e preferências que constituem seus bens subjetivos e que lhes são importantes de serem considerados nos processos de determinação dos princípios políticos. Tal como por meio de colaboradores nos casos de humanos com deficiência, este modelo oferece, na questão animal, uma forma eficaz de tornar a relação mais atenta às necessidades dos animais, a fim de que eles possam ser levados em conta nas tomadas de decisões de princípios de justiça na sociedade.

Conforme proposto nesse artigo, a inclusão dos interesses animais nos processos de escolha dos princípios políticos redefine a sociedade e seus conceitos de decência e civilidade conforme os critérios de Margalit. A partir da proposta de Donaldson e Kymclica de atribuir aos animais o conceito de cidadania, amplia-se, então, o conceito de Margalit sobre a sociedade decente e civilizada. Animais, tomados como membros da sociedade precisam ser protegidos dos atos e das omissões por parte das instituições sociais e dos seus indivíduos, que os insere em uma situação concreta de humilhação que independe das condições e percepções psicológicas e subjetivas desta condição. Os direitos dos animais precisam ser respeitados tanto pelas esferas públicas quanto privadas, de modo que nenhuma delas se exima dessa responsabilidade outorgando-a uma à outra.

De certa forma, os filósofos dos direitos animais atuam como exemplos de formas de colaboradores dos animais na sociedade, identificando e elucidando os bens subjetivos e os interesses dos animais nas considerações e determinações políticas e morais. Certamente, os animais futuramente poderão desfrutar de uma condição existencial no mundo, numa configuração homo-zoopolítica muito mais justa, podendo viver em um contexto social mais decente e civilizado em que tanto as instituições do Estado quanto os indivíduos respeitam efetivamente seus direitos e não os submetam nas condições de humilhação.

Referências

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HARE, R.M. A linguagem moral. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

KYMLICKA, Will. Filosofia Política Contemporânea: uma introdução. Trad: Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MARGALIT, Avishai. The Decent Society. Trad. Naomi Goldblum. Cambridge: Harvard Iniversity Press, 1996.

NOZICK. Robert. Anarchy, State and Utopia. New Jersey. Basic Books BlackWell Publishers. 1974.

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SINGER, Peter. Practical Ethics. 4a. Ed. New York: Cambridge University Press, 2011.

WISE. Steven. Drawing the line: schience and the case for animal rights. Cambridge. Perseus Book, 2002.

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Autor(a) para correspondência: Wesley Felipe de Oliveira. Universidade Federal de Santa Catarina Campus Professor João David Ferreira Lima – Trindade, 88.040-9000, Florianópolis – SC, Brasil. wesley.filosofia@hotmail.com

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