Artigos
Recepção: 22 Abril 2019
Aprovação: 13 Agosto 2020
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v19i3.1238
Resumo: No presente artigo analisamos o entendimento e o uso da filosofia kantiana pelo físico filósofo alemão Werner Heisenberg, prêmio Nobel de Física de 1932, formulador do princípio de incerteza. Heisenberg parece adotar uma compreensão neokantiana da natureza da ciência, segundo a qual a ciência não trataria do real em si, mas apenas do modo como ele aparece, o que depende, inescapavelmente, da interação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. No entanto, a despeito de tal posição, Heisenberg considera que as definições kantianas de “espaço”, “tempo” e “causalidade” não são compatíveis com os desenvolvimentos da mecânica quântica. Nesta oportunidade nos deteremos com mais atenção na concepção de ciência e no problema da causalidade.
Palavras-chave: Teoria física, Epistemologia moderna, Mecânica quântica, Unidade da natureza, Física experimental.
Abstract: In the present article we analyze the understanding and the use of the Kantian philosophy by the German physicist Werner Heisenberg, Nobel Prize of Physics of 1932, formulator of the principle of uncertainty. Heisenberg seems to adopt a neo-Kantian understanding of the nature of science, according to which science would not deal with the real itself, but only with the way it appears, which inescapably depends on the interaction between the subject and the object of knowledge. However, in spite of this conception, Heisenberg considers that the Kantian definitions of "space", "time" and "causality" are not compatible with the developments of the quantum mechanics. In this opportunity we will see more carefully the conception of science and the problem of causality.
Keywords: Physical theory, Modern epistemology, Quantum mechanics, Unity of nature, Experimental physics.
Introdução
Este trabalho analisa como a filosofia kantiana influenciou a filosofia da física de Heisenberg destacando dois pontos: (1) como o conceito de realidade física de Heisenberg é marcado pela distinção kantiana entre “fenômeno” e “coisa em si” e (2) o modo do físico filósofo entender e recusar a definição kantiana de causalidade enquanto categoria do entendimento.. Para tanto analisamos a incompatibilidade entre o princípio de incerteza de Heisenberg e uma descrição causal clássica dos eventos físicos, tal como ressaltada por Heisenberg e Weizsäcker. Ilustramos o princípio de incerteza e a quebra da causalidade clássica por meio dos experimentos do interferômetro de Mach-Zender e da escolha retardada de Scully.
Neste sentido, não tratamos aqui da teoria do conhecimento de Kant, mas de como ela foi compreendida e empregada por Heisenberg em sua epistemologia da física moderna. Não é nossa intenção, portanto, discutir o quanto Heisenberg teria compreendido Kant, mas sim qual o uso epistemológico que o físico filósofo fez da filosofia da Kant na elaboração de uma epistemologia que visou abarcar não somente a mecânica quântica, mas a ciência natural de modo mais amplo, embora a MQ seja, de fato, o grande referencial de tal programa epistemológico.
Heisenberg, como é comum aos físicos filósofos europeus (sobretudo aos de cultura alemã) do século XIX e da primeira metade do século XX., teve uma sólida formação filosófica. Tomando obras como Física e Filosofia (1974), A imagem da natureza na ciência moderna (1981), A ordenação da realidade (2009), Além da Física (1987) e A Parte e o Todo (1996), chegamos a centenas de páginas de investigação filosófica. Em tais estudos o autor versa sobre elementos de ontologia, epistemologia, lógica, axiologia e outros campos, tratando, por exemplo, de Aristóteles, Platão, Kant, Descartes e Goethe.
O realismo nomológico ou “desubstancializado” e “a coisa em si”
A importância de Kant para Heisenberg se deve ao fato de que, para o físico filósofo a própria ciência natural é, antes de tudo, um discurso acerca do nosso entendimento do real, e não do real em si. A ideia kantiana de que a “coisa em si” é incognoscível se estende, em Heisenberg, para toda a ciência natural: a ciência não trata da natureza independente do sujeito do conhecimento, mas do modo como ela nos aparece e é objeto do entendimento.
O físico atômico teve por isso que resignar-se a considerar a sua ciência apenas como elo da cadeia infinita de contatos do homem com a natureza e aceitar que esta sua ciência não pode falar simplesmente da natureza “em si” (HEISENBERG. 1995, p. 14).
Entretanto, objeta Heisenberg, a “natureza em si”, embora não sendo “direta” e “evidentemente” cognoscível, pode ser deduzida da experiência de modo indireto, revelando-se por meio do formalismo matemático da mecânica quântica.
Podemos considerá-lo um “realista nomológico”, ou “realista matemático-nomológico”, por defender que o real é unificado e ordenado por princípios matemáticos de simetria, que constituiriam o nível ontológico fundamental. No nível mais profundo e fundamental do mundo não encontraríamos a partícula elementar, a matéria, mas a ordem expressa por relações matemáticas. Antonio Augusto Passos Videira fala em realismo desusbstancializado em Por que os Físicos acreditam que as coisas existem? ao tratar do pensamento metafísico de Heisenberg, que teria retirado a ideia de substância, de matéria, de sua posição central na ontologia da física.:
Para Heisenberg, hoje, as simetrias matemáticas são mais adequadas para explicar os fenômenos do que os corpos elementares. As partículas elementares da física atômica são melhor expressas por simetria, e não podem ser considerados ‘entes’ – não são eternas e imutáveis (VIDEIRA. 2017, p. 103).
Tal concepção o aproxima do que ele entende como “idealismo platônico” presente no Timeu.. Mas o nível da realidade, que emerge de uma “ordem central”, não pode ser apreendido diretamente. Podemos representá-lo por meio do formalismo matemático da física que não guarda uma conexão direta com a experiência:
A “coisa em si” é, no final das contas, para o físico, caso ele faça mesmo uso desse conceito, uma estrutura matemática; essa estrutura, todavia, é – contrariamente ao que pensava Kant – deduzida indiretamente da experiência (HEISENBERG. 1987, p. 71).
A experiência alcançaria, desta forma, o fenômeno, aquilo que “aparece”, que podemos observar diretamente. A física experimental ao lidar com observações, mensurações, experimentos, abordaria o nível fenomenológico do real. Neste sentido, haveria dois lugares para a matemática. Ou ela estaria a um passo afastada do real, da coisa em si, ou um passo mais próxima.
Figura 1: A matemática está presente em todos os níveis
No primeiro caso o formalismo matemático seria uma linguagem desenvolvida para representar simbolicamente os dados da experiência. No segundo, o formalismo matemático expressaria regularidades, simetrias, relações ontológicas, enfim, a ordenação do real. Nosso entendimento atual é o de que Heisenberg não compreende essas dimensões da matemática como antagônicas. Nessa compreensão, a matemática se encontra antes e após a experiência. Toda experiência pressupõe uma base teórica, um sistema de enunciados e regras lógicas, um arcabouço conceitual e uma linguagem simbólica, elementos sem os quais não pode se realizar. Realizada a experiência, seu resultado deve ser interpretado e representado também por meio de uma linguagem lógico-matemática.
Outro ponto relevante na filosofia da natureza de Heisenberg. é que na Interpretação de Copenhagen da mecânica quântica não há como separar o observador do sistema observado – ambos estão entrelaçados, uma vez que o processo de medida empreendido por quem observa altera a configuração do que está sendo observado. Certamente os observadores e os sistemas observados são entidades distintas, mas a ciência não pode, para nosso autor, ser tomada como discurso acerca do mundo, antes ela se dá como parte da nossa relação com o mundo, porque toda vez que experimentamos o mundo nós o modificamos.
Daqui resulta que as leis da natureza que nós formulamos matematicamente na mecânica quântica não se referem às partículas elementares em si, mas ao conhecimento que nós temos delas. O problema da existência destas partículas “em si”, no tempo e no espaço, não pode já apresentar-se sob esta forma, visto podermos falar sempre e só dos processos que têm lugar quando queremos inferir o comportamento da partícula pela ação recíproca entre ela e qualquer outro sistema físico, por exemplo, o aparelho de medida (HEISENBERG. 1995, p. 14).
Esta noção epistemológica de Heisenberg, de que as estruturas matemáticas que aparecem na mecânica quântica, “descrevendo” as regularidades dos “comportamentos” das partículas elementares não representam propriedades da natureza em si (mas propriedades do nosso entendimento acerca de tais partículas) pode nos levar, novamente, a reencontrar Kant, pois é exatamente esta a proposta que temos na Crítica da Razão Pura (A125): “Assim, a ordem e regularidade nas aparências, o que chamamos Natureza, nós mesmos as introduzimos” (KANT, 1987, p. 172-173).
No entanto, temos que ressaltar que ao fazer tais afirmações, a epistemologia de Heisenberg ainda está fortemente vinculada ao programa filosófico da Interpretação de Copenhagen. Posteriormente, esse elemento “kantiano” cederá o lugar a uma concepção cada vez mais “platônica”. Com efeito, na maturidade, Heisenberg se comprometerá com a tese de que os fundamentos últimos da realidade são estruturas matemáticas, como simetrias. De fato, nos parece que Heisenberg em nenhum momento indicou que teria dificuldades em compatibilizar a epistemologia kantiana com a ontologia platônica neste caso específico (ver figura 1). A coisa é si, o real, é o ente matemático ideal, a forma pura platônica. A simetria é o eidos de matéria, uma vez em que a partícula elementar é como um produto das simetrias fundamentais (HEISENBERG, 2006). Os entes matemáticos ideais são objetivos, fundamentais, embora não possam ser conhecidos em sua completude. A teoria física é um contínuo esforço de aproximação e desvelamento do real, sempre parcial, mas cada vez mais refinado. Aquilo que percebemos, que se apresenta aos nossos sentidos, não é o real “em si”. Tomar o que . pelo que parece ser, é confundir o ente ideal real com o objeto sensível que é a sua “sombra”.
Heisenberg considera, assim, que o desenvolvimento da ideia de “coisa em si” foi um passo importante de Kant na direção do tipo de realismo filosófico fundamental para a ciência moderna. Ao distinguir o que percebemos de . e o que . é em si, estamos assumindo não só a realidade objetiva do mundo, mesmo que incognoscível, como endossamos a necessidade de duas escolas de investigação científica – as “ciências da percepção”, que devem investigar por que o que me parece . me parece ., e as “ciências da natureza”, que, mesmo tendo a “coisa em si” como incognoscível, dela deve achegar-se por aproximações indiretas cada vez mais refinadas (HEISENBERG, 1987). Esta tradição investigativa, talvez, poderia ser fomentada somente por um ambiente intelectual no qual predomina o tipo de realismo filosófico com o qual, segundo Heisenberg, a filosofia kantiana se mantém ligada:
A questão bastante incômoda de se “as coisas realmente existem”, ou não, que deu lugar ao empirismo filosófico, aparece também no sistema kantiano. Kant, todavia, não seguiu a linha de Berkeley e Hume, embora tal escolha teria sido logicamente consistente. Preservou ele a noção da “coisa em si” como sendo diversa daquilo que é percebido e, dessa maneira, manteve alguma ligação com o realismo filosófico (HEISENBERG. 1987, p. 69).
Parece-nos, contudo, que, de acordo com Heisenberg, a importância dos trabalhos de Kant para o desenvolvimento das ciências naturais, e mais especificamente da física teórica, não ultrapassa esses aspectos – se para Heisenberg a filosofia de Kant é fundamental por afirmar a impossibilidade de conhecermos a “natureza em si”, outros elementos de seu pensamento, por sua vez, não são compatíveis com a ciência moderna, como é o caso das noções de tempo, espaço e causalidade da filosofia kantiana..
Elementos a priori de um sistema fechado de proposições
Além de não admitir espaço e tempo. como representações a priori10, Heisenberg chama atenção para o fato de que, na filosofia kantiana, há outros conceitos físicos fundamentais, tidos como a priori, que não poderão ser considerados assim pela nova física:
No que diz respeito à física, Kant tomou, como julgamento a priori, além de espaço e tempo, a lei da causalidade e o conceito de substância. Em estágio ulterior de seu trabalho, ele tentou incluir, na mesma categoria, a lei da conservação da matéria, a igualdade da “ação e reação” e, mesmo, a lei da gravitação. Nenhum físico estaria inclinado a seguir Kant nesse seu ponto de vista caso a expressão a priori fosse usada no sentido absoluto que lhe foi atribuído pelo filósofo de Königsberg. Em matemática, Kant aceitou o caráter a priori da geometria euclidiana (HEISENBERG. 1987, p. 69).
Heisenberg considera que a física contemporânea não pode admitir conceitos a priori em sentido forte ou absoluto, quer dizer, tais como são admitidos, em seu entender, no sistema de Kant11. Todavia, admite que há certos saberes a priori na ciência natural, em um sentido mais moderado. Com efeito, considera que determinados conceitos, como “espaço”, “tempo” e “energia” devem ser tidos como fundamentos a priori dentro de um sistema fechado de proposições (que formam a estrutura de uma determinada teoria), embora não sejam pré-condições para o “entendimento humano” de um modo geral. O que chamamos de “sistema fechado de proposições” é o conjunto de elementos de uma teoria, isto é, seus postulados, hipóteses, axiomas, enunciados e conclusões, elementos que não precisam ser compartilhados por outras teorias. Para recorrer a um exemplo, podemos nos referir ao sistema de proposições da mecânica clássica. É perfeitamente aceitável concordar que esse sistema só tem sentido, de fato, se tomarmos os conceitos de “espaço”, “tempo” e “força” como conceitos a priori. Portanto, embora não sejam pré-condições do entendimento, esses conceitos são pré-condição para o entendimento deste sistema específico de proposições. Tais conceitos são a priori mesmo se tal sistema não for verdadeiro (não for fiel à realidade), e mesmo se tais ideias forem dispensáveis para a construção lógica de outros sistemas fechados de proposições.
Kant considerou a causalidade como uma categoria do entendimento12. Deste modo, para Heisenberg, não poderíamos, a partir da definição de Kant, elaborar uma visão da natureza, intuitiva ou formal, que não pressuponha a lei de causalidade, em outros termos, assim como não podemos pensar a existência de um corpo sem antes pensarmos a existência do espaço e do tempo, também não poderíamos fazê-lo sem levarmos em conta as relações de causalidade. Portanto, dizer que . existe é dizer que no espaço . e no tempo . existe alguma coisa que podemos chamar de ., ou, que . ocupa ao menos uma fração do espaço . e dura ao menos um instante do tempo .. Isto não quer dizer que . e . sejam entidades físicas reais, mas que, antes de tudo, são formas a priori da intuição, uma vez que qualquer operação de entendimento do mundo físico deve previamente supô-las – pensar qualquer evento físico sem a pressuposição de . e . careceria totalmente de sentido, aliás, e proposição bem mais forte, pensar que um corpo não ocupa nenhuma fração do espaço e não dura nenhum instante de tempo seria o mesmo que pensar que tal corpo não existe.
Da mesma forma, Kant defende que as relações de causalidade são condições prévias do entendimento. Dada uma série de eventos físicos, tais como (..., c-3,c-2, c-1, c0, c1, c2, c3,...,) não podemos pensar que cada elemento da série surgiu do nada, sendo completamente independente dos demais elementos. Deste modo, se temos um evento c2 isto implica dois outros eventos: um evento factual c1 e um evento possível c3, respectivamente “causa” e “efeito” de c2.
A mecânica quântica introduziu o indeterminismo no coração da ciência. Conforme Paty, “A física quântica foi a ocasião para a crítica mais viva feita contra não somente o determinismo, mas também a causalidade” (PATY. 2004, P. 481). De acordo com Weizsäcker (1974), na física clássica, “causalidade” não quer dizer nada mais do que uma conexão entre estados físicos em diferentes medidas de tempo, ou seja, conexões entre eventos. Tecnicamente, isto quer dizer que se um estado é completamente conhecido em um determinado momento, é possível calcular os valores deste estado em qualquer outro ponto temporal, anterior ou posterior, tal como defendera Laplace (1995). Não é o caso que a causalidade seja falsa no escopo da estrutura formal da mecânica quântica. Weizsäcker defende que a lógica da mecânica quântica deve pressupor os conceitos de “Aplicável” (A) e “Não-aplicável” (~A). Deste modo, a proposição “Dado o sistema de proposições da mecânica quântica, as proposições de causalidade são falsas” é falsa. Na verdade, a lei de causalidade é não-aplicável ao sistema de proposições da mecânica quântica. Isto ocorre porque para todo sistema quântico analisado, as relações de incerteza de Heisenberg devem ser consideradas.
O princípio de incerteza (ou indeterminação) de Heisenberg descreve a impossibilidade de conhecermos simultaneamente a posição e o “momento” de uma partícula quântica13. Se obtivermos com precisão a posição, seu momento se torna completamente incerto, se obtemos seu momento, sua posição se torna completamente incerta. De acordo com a interpretação ontológica de tal princípio, isto não se deve nem a uma limitação da razão nem a uma limitação tecnológica experimental, mas se trata de uma propriedade elementar da natureza. Em Causalidade e acaso na física moderna David Bohm enfatiza como o princípio de incerteza, chamado por ele de “princípio de indeterminação”, contribuiu para abalar a filosofia da física moderna consolidada nos últimos séculos14:
O princípio de indeterminação levantou certo número de novas e importantes questões filosóficas que não apareciam na mecânica clássica. Como veremos, essas questões ajudaram a levar os físicos a renunciar ao conceito de causalidade no domínio atômico e, por conseguinte, a adotar um ponto de vista filosófico diferente daquele que prevalecera até o advento da moderna teoria quântica. (BOHM. 2015, pp. 176-177).
Conforme a incerteza de Heisenberg, em mecânica quântica, nunca podemos conhecer com exatidão a localização de uma partícula. Isto implica que não podemos pensar em trajetórias, no sentido da física clássica. Deste modo, não podemos estabelecer uma conexão exata entre eventos de transição temporal de um mesmo sistema. Tecnicamente, se não conhecemos com exatidão um determinado estado, não podemos calcular a situação deste estado em eventos posteriores ou anteriores, o que equivale a dizer que não podemos pensar as conexões entre os eventos quânticos em termos de causalidade. Por isso Heisenberg não poderá admitir, com Kant, que a causalidade é um “conceito puro do entendimento”, sem o qual uma representação dos eventos físicos não é possível.
O processo causal é um evento contínuo de conexão entre o estado de um sistema físico no tempo . e este mesmo estado em todos os tempos anteriores e posteriores a t. Dizer que o estado . é causa do estado ., neste sentido, não é simplesmente dizer que de . se segue y, mas que há um evento de transição contínua por meio do qual . “se torna” .. Todavia, os processos quânticos são descontínuos, e esta é a principal característica da natureza quântica. De acordo com Einstein e Infeld:
Se tivéssemos de caracterizar a ideia principal da teoria quântica em uma sentença poderíamos dizer: deve ser admitido que algumas quantidades físicas até agora consideradas contínuas são compostas de “quantas” elementares (EINSTEIN; INFELD. 1980, p. 202).
Não somente a matéria é composta por “quantas”, isto é, descontínua, mas também os eventos quânticos são descontínuos, uma vez que obedecem às relações de incerteza de Heisenberg. Sendo assim, não podemos dizer que um estado . é causa de um estado ., simplesmente porque “entre” . e . há uma descontinuidade. Entretanto, podemos prever probabilisticamente o resultado de tal descontinuidade, e considerarmos que de um estado . descontínuo se seguirá um estado . descontínuo . vezes a cada . casos.
Pensemos, por exemplo, em um experimento quântico em que feixes de partículas γ são disparados a uma velocidade constante c contra um alvo A. Depois de x disparos, notamos que mesmo sob a preservação de todas as condições de disparo em cada um dos x casos, diferentes regiões do alvo foram atingidas. Dizemos que tal variação é intrinsecamente estatística, e que não podemos determinar uma causa para tal fato.
Em física clássica, se repetíssemos tal experimento com bolas de gude e assegurássemos (tal experiência só pode ser uma “experiência de pensamento”) (1) que todas as partículas possuíssem exatamente as mesmas propriedades, e (2) que fossem projetadas na mesma direção com a mesma velocidade, (3) que as condições iniciais de todo o sistema fossem idênticas (pressão, temperatura, correntes de ar, valores de campos elétricos, gravitacionais, etc.) então todas deveriam acertar a mesma parte do alvo. Se as condições iniciais do experimento fossem as mesmas em muitas ocasiões, então o resultado do experimento também seria o mesmo. Realizamos . experimentos . e constatamos que em todos os casos obtemos o valor exato de . como resultado. Dizemos que a “causa” disto acontecer pode ser deduzida das condições iniciais ..
Todavia, o “comportamento” quântico é diferente. Na experiência de pensamento em questão, 100% dos disparos ocorreram com velocidade ., estando o projetor na posição .. 90% dos feixes atingiram a região “d”, conforme a previsão clássica. Aproximadamente 9% dos feixes sofreram um desvio estatístico quântico e foram detectados na região “a”. Cerca de 1% dos feixes sofreu desvio estatístico e foi detectado em outras regiões. Se realizássemos um experimento no qual fossem disparados um elevado número de fótons isolados contra um ou dois alvos, verificaríamos que quanto maior a quantidade de fótons disparados, mais nítida é a formação de um padrão de difração nos alvos. Tal padrão é próprio dos fenômenos ondulatórios.
Podemos perceber a não-causalidade quântica por meio da simulação de um experimento com o interferômetro de Mach-Zender15. O experimento virtual foi desenvolvido pela equipe da Prof.ª Fernanda Ostermann do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com o desenvolvimento das ciências computacionais, as simulações tornaram-se importantes instrumentos científicos.
Figura 2: Simulador de Mach-Zender da UFRGS
Programas que realizam simulações de eventos físicos são softwares configurados com dados empíricos projetados para antecipar os resultados físicos reais a partir da relação entre as propriedades físicas constituintes dos sistemas em questão. As simulações, portanto, podem prever como determinados eventos ocorrerão se variáveis específicas forem levadas em conta, com mais de 90% de acerto. Em um simulador de Mach-Zender, após 3778 fótons disparados a uma taxa de 10 fótons por segundo contra dois alvos, A e B, 1880 atingem o alvo A e 1889 atingem o alvo B, formando um padrão de difração próprio dos fenômenos ondulatórios. A formação de tal padrão não pode ser prevista classicamente, isto é, não pode ser descrita em termos de causalidade, posto que de acordo com as leis da física clássica, se disparamos partículas contra alvos, além de ser altamente improvável a formação de um padrão de difração (com isto queremos apenas dizer que não é matematicamente impossível, embora a probabilidade seja remotíssima), tal formação não é necessária, ao contrário do que se passa na mecânica quântica.
Tal experimento revela três características fundamentais para o entendimento dos sistemas quânticos: dualidade onda-partícula, caráter estatístico dos processos quânticos e eventos não-causais. Esse último elemento ilustra a negação de Heisenberg em relação ao entendimento kantiano da causalidade como categoria do entendimento. A dualidade onda-partícula deve ser encarada ontologicamente, e não apenas hermeneuticamente, isto é, não se trata apenas de conjugar estas duas realidades no discurso científico, mas de admitir que tais realidades estão conjugadas na natureza. Mesmo quando disparamos partículas isoladamente, obtemos um padrão de difração. Defendemos que tais elementos fazem parte do núcleo heurístico da mecânica quântica, ou seja, que figuram entre as características mais fundamentais da mecânica quântica a serem compreendidas pelo investigador da física contemporânea. Com relação a dualidade onda-partícula, em um experimento como o interferômetro de Mach-Zender, enquanto a quantidade de partículas não for suficientemente grande, tudo se passa como se o alvo fosse atingido por corpúsculos isolados.
Outros experimentos16 por meio do qual podemos ilustrar a não-causalidade quântica foram realizados por Marlan Sculli e colaboradores.
Figura 3: Ilustração simplificada do experimento de Marlan Scully
No experimento de “escolha retardada” de Scully17, um fóton é disparado por um projetor . contra um alvo .. A meio caminho há um alvo transversal . formando 90˚ em relação ao projetor. Dada a velocidade da luz . e a distância entre o projetor e o alvo, podemos calcular que o fóton levará 1 nano-segundo entre . e .. Em alguns casos, a equipe de Sculli introduziu um desvio de 90˚ na metade do trajeto entre . e p, de modo que o fóton atingisse o alvo ., se desviado. Entretanto, tal desvio sempre foi introduzido bem depois de ½ nano-segundo, i.e. do fóton ter passado por aquela região, de acordo com o cálculo clássico. O acréscimo de tal desvio, em sentido clássico, não deveria significar nada, o que quer dizer que as relações de causalidade dependem tanto do espaço quanto do tempo, e o tempo possui uma seta, uma direção inviolável. Eventos no tempo t3 não poderiam influir sobre o estado de sistemas em t2, dada a direção do fluxo temporal. As setas temporal e causal avançam na mesma direção e são interconectadas transversalmente, i.e., cada evento em um ponto de uma das setas está necessariamente correlacionado a um evento em um ponto da outra seta.
Todavia, o experimento de Scully demonstra a quebra da causalidade clássica, pois foi verificada a ocorrência de casos em que o fóton atingiu o alvo ., ou seja, eventos em que o acréscimo do desvio em t3 gerou a modificação do estado em t2. Em tais eventos, a seta causal foi quebrada, o que contraria a causalidade clássica. Isto somente poderia acontecer caso (i) a informação de que o experimento foi alterado retrocedesse no tempo, fazendo com que o fóton fosse desviado pelo espelho que, ainda não estava ali quando ele passou, ou se (ii) o estado do fóton antes da observação fosse uma realidade superposta das duas possibilidades (atingir o alvo A ou B), e que somente a intervenção experimental sucedida pela verificação observacional pôde selecionar estas duas possibilidades, efetivando uma das duas. No caso em que o espelho é colocado, a probabilidade de que o fóton atinja o alvo B é efetivada, e a outra descartada e vice-versa. Os efeitos de superposição são fenômenos previstos pela teoria quântica e de certo modo já evidenciados por experimentos como a “dupla fenda”.18
Considerações finais
Em suma, o que Heisenberg e Weizsäcker defendem e que experimentos como os de Scully e o interferômetro de Mach-Zender confirmam é que, no nível quântico, a causalidade clássica é quebrada, ou, em termos lógicos, que o conceito de causalidade clássica não é aplicável ao sistema de enunciados da mecânica quântica. Sendo assim, Kant, na concepção de Heisenberg, estava enganado quando sustentou, mantendo-se ligado à tradição clássica, que a causalidade é a categoria sem a qual nenhum entendimento acerca do mundo físico é possível. A física contemporânea teria demonstrado o contrário: a causalidade clássica é inaplicável a priori sempre que o objeto do entendimento for quântico.
No entanto, é preciso deixar claro que em termos filosóficos isso não significa que Heisenberg admita que a natureza é desprovida de ordem, harmonia, e que os eventos quânticos sejam aleatórios, colocando o acaso no centro do real. A impossibilidade de uma descrição causal física do mundo não significa um rompimento com o ordenamento da realidade. Heisenberg considerava que a ordem, ainda que não possa ser completamente apreendida pelo sujeito do conhecimento, está na base do real. Porém, a causalidade clássica não é a única forma de ordenamento do mundo. Os eventos quânticos, embora não causais, são expressões de simetrias, estruturas matemáticas ideais, subordinadas a uma “ordem central”. Vimos que no entendimento de Heisenberg, Kant é um autor indispensável para compreendermos a concepção de natureza que surge com a ciência moderna. Heisenberg discorda da concepção kantiana de causalidade, considerando inaplicável à mecânica quântica, mas, por outro lado, herda de Kant a concepção de que a ciência apreende o nível dos fenômenos. A natureza, em si, não pode ser alcançada.
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Contribuição dos(as) autores(as): Vinícius Carvalho da Silva: Redator do manuscrito original. Realisou a pesquisa sobre Heisenberg e o entendimento deste da filosofia kantiana. Judikael Castelo Branco: Revisor do texto original, redator de notas de rodapé e de passagens sobre os conceitos kantianos. Pesquisou os conceitos kantianos e sua aplicação ao campo da filosofia da física. Os(As) autores(as) aceitaram e aprovaram a versão final do artigo.
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Autor(a) para correspondência: Vinícius Carvalho da Silva.Universidade Estadual do Tocantins, 108 Sul Alameda 11 Lote 03, Cx. Postal 173, 77020-122, Palmas – TO, Brasil. viniciusfilo@gmailcom