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O prólogo de a condição humana e a pergunta de Arendt: “o que estamos fazendo”?
The prologue of the human condition and Arendt and "what we are doing"?
O prólogo de a condição humana e a pergunta de Arendt: “o que estamos fazendo”?
Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 280-293, 2019
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 15 Abril 2020
Aprovação: 09 Agosto 2020
Resumo:
: Este artigo aborda algumas passagens do prólogo de A condição humana de Hannah Arendt e destaca algumas projeções sobre o futuro. O propósito da investigação é acompanhar a pergunta da autora sobre o que “estamos fazendo”? Este acompanhamento assinala que as realizações científicas daquela época, em meados do século XX, circunscreveram o contexto de fundo da autora. Mas, passados mais de meio século, esta pergunta feita por Arendt motivada pelas realizações científicas, deve ser recolocada em um contexto mais atualizado. O artigo se dedica a esta atualização, para tanto aprofunda as principais preocupações de Arendt com o futuro. A resposta encontrada após o desenvolvimento do texto em duas partes, ainda com o foco na pergunta sobre “o que estamos fazendo?”, reflete as dinâmicas tecnológicas e sociais dos anos mais recentes. De forma mais precisa, a resposta assinala uma preocupante ligação entre a geração de um artificialismo e a “objetividade do mundo”.
Palavras-chave: Condição humana, Reconfiguração, Animal laborans, Protagonismo.
Abstract:
: This article analyzes some passages from the prologue to The Human Condition of Hannah Arendt and highlights some projections about the future. The purpose of the investigation is to follow the author's question about what "we are doing"? This monitoring points out that the scientific achievements of the time, in the middle of the 20th century, circumscribed the author's background. But, after more than half a century, this question asked by Arendt motivated by scientific achievements must be put back in a more up-to-date context. The article is dedicated to this update, to further deepen Arendt's main concerns with the future. The answer found after the development of the two-part text, still focusing on the "what are we doing?" question, reflects the technological and social dynamics of recent years. More precisely, the answer points to a worrying connection between the generation of artificiality and the "objectivity of the world."
Keywords: Human condition, Reconfiguration, Animal laborans, Protagonism.
A filosofia não é uma área de conhecimento que realiza previsões a respeito da sociedade e da economia. Outras áreas podem fazer previsões com ferramentas apropriadas e com uma base teórica direcionada a diferentes implementações objetivas dentro do mundo. No entanto, os filósofos podem se aproximar do mundo concreto e acompanhar o desenvolvimento de alguns de seus aspectos, ampliando o seu próprio leque de análise e projetando, assim, uma perspectiva sobre o futuro. Mas, é inevitável que esta projeção da perspectiva assuma apenas os fatos do tempo presente e, por causa, disso, sejam parciais. Assim, as previsões adquirem o caráter de sugestões pretensiosas nem sempre bem acabadas, mas, não obstante, podem ser persuasivas. Dentro deste contexto, constata-se que alguns filósofos fazem previsões, e esta atitude surge quando há possibilidades de grandes mudanças de época. Dentro deste contexto, os filósofos não somente estão envolvidos pelos acontecimentos, mas, também, interpretam estes acontecimentos e prevêem o futuro. Mais uma vez, é inevitável que, as suas previsões, sejam matizadas por seus específicos percursos filosóficos.
Seria didático fazer uma distinção inicial entre o que seriam as previsões desejadas e as previsões pessimistas ou negativas, as quais teriam caráter de alerta ou de advertência. Estas últimas serviriam como uma exortação para que evitemos o que é previsto. Em ambos os casos não importa o grau de acerto ou erro destas previsões. O que importa é o fato de que, elas constem em alguns textos filosóficos e que tratam sobre fatos possíveis do futuro: seja qual for o grau de acerto destas previsões dos filósofos. Estas previsões podem ser avaliadas. Elas podem ser confrontadas, no futuro em que deveriam se concretizar. No nosso caso, em pleno século XXI, podemos elencar cientistas da computação, historiadores e, também, ativistas para estabelecer um confronto. Desenvolver este confronto significa fazer uma espécie de “atualização” e, a atualização em si é o fio condutor deste artigo. Hannah Arendt realiza algumas projeções de futuro no prólogo de A condição humana e, estas projeções serão abordadas neste artigo.
As observações feitas por Arendt não visavam fornecer uma exata descrição do futuro, mas apenas tinham um caráter conjectural ou de advertência frente a um futuro possível e indesejado. Inclusive, estas projeções não representam o ponto principal da obra A condição humana, elas são lacunares e procuram complementar qual seria o sentido do político perante a “situação criada pelas ciências” (ARENDT, 2001, p.11). Esta “situação criada pelas ciências”, na época de Arendt, ou seja, em 1958, agora já se tornou um passado e não é mais a da nossa atualidade. O período de tempo transcorrido criou uma distância entre o prognóstico e sua realização, suficiente para permitir uma análise. O mundo previsto por Arendt, situado no futuro, não é nosso mundo, embora devesse ser, ou pelo se aproximar daquilo que autora procurou antever. Para decidirmos o quanto as afirmações de Arendt sobre o futuro se aproximam ou se afastam da realidade, nós precisamos nos atualizar sobre o que significa a “situação criada pelas ciências” conforme a nossa época. A motivação para realizar esta atualização reside no que pudermos compreender nesta distância temporal das perspectivas previstas e não mais vigentes.
Diante deste contexto e, uma vez atualizada a “situação criada pelas ciências”, recolocaremos e procuraremos responder a pergunta de Arendt sobre o que “estamos fazendo?” Ou seja, passados os mais de sessenta anos desde a publicação de A condição humana, podemos dar uma continuidade a este questionamento e sugerir algumas respostas. Este é o propósito deste artigo.
Na primeira parte, vamos nos deter na antecipação do futuro e que foi realizada por Arendt. O escopo será delimitado pelo livro A condição humana e, nós mostraremos que as realizações científicas provocam questionamento político importante. Na segunda parte, vamos enfatizar as realizações científicas como uma espécie de mote secundário escolhido por Arendt, mas cujo desenvolvimento específico ultrapassa até mesmo o que a própria autora vivenciou. Neste sentido, destacaremos alguns dos avanços científicos mais atuais. Estas duas partes devem permitir um prosseguimento e uma tentativa de resposta à pergunta: o que “estamos fazendo?” ao longo destes mais de sessenta anos.
As projeções sobre o futuro
Arendt assume que três instâncias compõem a condição humana: o labor, obra. e a ação. Segundo a autora, sem estas três instâncias nós não poderíamos ser considerados “humanos”. Mas, a vida dos humanos se estende ao longo de uma história pregressa, o que permite um confronto entre os diferentes períodos de tempo. Neste sentido, uma análise da gênese destas três instâncias, a gênese grega antiga, deve ser reposta nas épocas posteriores, na época moderna e na época moderna avançada, ou contemporânea. Isto, em parte, explica porque a obra se detém em fenômenos mais atuais, frutos do desenvolvimento científico. Assim, o escopo da investigação desenvolvida por Arendt pode ser didaticamente dividida em duas frentes: uma delas diz respeito às três instâncias ou três condicionamentos da vida humana (compreendida como vita activa). A outra frente permite que ela se detenha sobre o mundo dos anos 50 (século XX) e constate os avanços científicos da época e pergunte: “o que estamos fazendo?” (ARENDT, 2001, p.13). A pergunta remete ao mundo concreto da sociedade, da economia e da política, dentro de um determinado contexto.
A situação geral, no final dos anos 50, estava marcada pelo impacto de várias realizações científicas. Diante disso, Arendt propõe: “uma reconsideração da condição humana”. (ARENDT, 2001, p.13). Nesta proposta, ela se coloca a difícil tarefa de uma exposição sobre o que significaria laborar, construir uma obra e agir nos dias atuais. A condição humana possui, então, uma forma de ser compreendida e abordada, entretanto, o que não se mantém no quadro geral são os vários aspectos macros: a sociedade, a economia e a política. E, para reforçar esta diferença, os avanços científicos constituem um bom ponto de distinção.
Em outras palavras, o contexto externo se modificou e dentre as instâncias da condição humana, a “ação” circunscrita pela vita activa sofreu alterações (ARENDT, 2002, p.7,8), principalmente em função do contexto externo. Um exemplo é a oposição entre vita activa e vita contemplativa. Esta alteração mostra a complexidade implicada nas análises da época atual. Neste sentido, a preocupação da autora sobre o “estamos fazendo” permite uma renovação da sua pesquisa com o foco em aspectos macros mais atuais, temporalmente distantes dos anos 50 quando ela estava escrevendo A condição humana. Esta renovação do questionamento se faz ainda mais urgente, quando o foco é o das realizações científicas. Diante de todo este conjunto de observações, uma etapa razoável, para atualizarmos o enfoque de Arendt, é retomar o que ela projetava para o futuro, mesmo que isto signifique caminhar em uma perspectiva pessimista.
As projeções de Arendt são apresentadas de forma ampla no prólogo de A condição humana. A retomada destas passagens deve ser suficiente para alcançar a visão de mundo da autora e constatar os problemas decorrentes de um incremento possível nos fenômenos por ela referidos.
A autora começa com um comentário sobre o lançamento do satélite Sputnik, embora ela não o tenha nomeado explicitamente, este lançamento ocorreu em Outubro de 1957. Em seguida, aconteceu uma série lançamentos de satélites soviéticos com a denominação também de Sputnik. Tratavam-se de satélites que carregavam animais, insetos e plantas, para finalmente chegar a viagem de Gagarin.
Arendt se mostra impactada pelo lançamento de 1957. Ela imaginava uma reação geral de “orgulho” ou “assombro” diante do feito grandioso. Entretanto, a reação assumiu um outro aspecto. E, será esta inesperada reação que ela tomará como ponto de abertura do seu livro e como motivador da sua pergunta sobre a condição humana. Para assinalar o impacto desta reação ao lançamento do satélite, ela escreve:
Este evento, que em importância ultrapassa todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo, teria sido saudado com a mais pura alegria não fossem as sua incômodas circunstâncias militares e políticas. O curioso, porém, é que essa alegria não foi triunfal; o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar uma de suas obras, não foi orgulho nem assombro ante a enormidade da força e da proficiência humanas. A reação imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro “passo para libertar o homem de sua prisão na terra”. (ARENDT, 2001, p.9).
Arendt considera como algo “curioso” que a reação das pessoas seja um “alivio ante o primeiro ‘passo para libertar o homem de sua prisão na terra’”. Isto a surpreende e ela inicia aprofundamento sobre o que significaria estar na “prisão na terra”. Neste breve aprofundamento, ela lembra de que o cristianismo considerou a terra como um “vale de lágrimas” e, também, recorda a concepção de “prisão” de alguns filósofos. Estes consideravam o corpo uma “prisão da mente e da alma” (ARENDT, 2001, p.10). Finalmente, ela expressa toda a sua surpresa: “ninguém na história da humanidade tinha concebido a terra como prisão do corpo” (ARENDT, 2001, p.10).
A noção de que a terra possa ser “uma prisão” não para a mente ou para a alma, mas para o “corpo” revela um materialismo que se manifesta na época. Este materialismo causa curiosidade ou espanto. E, o “alívio” que se segue ao lançamento bem sucedido significa uma liberação de uma determinada energia, energia contraposta a ideia de que a terra possa ser ou tenha sido uma “prisão”. Todo este conjunto apresenta alguns problemas. Para Arendt, a terra cumpre um papel importante. O planeta está vinculado à existência humana. A terra permite a “vida em si”. E, por meio da vida, o homem liga-se aos outros organismos. Portanto, a importância da terra não é gratuita, romântica ou passível de desprezo. Ela participa da definição do que seja o humano. E, se é correto que a definição de humano pressupõe uma relação essencial com o planeta, o “alivio” após o lançamento do primeiro satélite artificial é difícil justificação. Uma parte importante deste raciocínio é esta relação do ser humano com a terra. Abaixo vejamos como Arendt compreende tal relação:
A terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos. (ARENDT, 2001, p.10).
A vida possui uma diferença importante em relação ao “mundo”: ela não é artificial e nos vincula a tudo que é vivo e a vida está na terra. Esta relação entre “mundo – artifício humano” e “a vida em si”, é complexa. Na medida em que a terra se torna cada vez mais “humana” (ou colonizada pelo humano), aumenta a dificuldade de se separar e compreender a noção de uma “vida em si”. Não somente a terra é fundamentalmente importante como a “vida em si” e a ligação com os “outros organismos vivos” também é. Pois, esta é base na qual se assenta a concretude humana, mesmo quando esta concretude te cada vez mais a forma do artifício. Não precisamos nos esforçar para respirar na terra e, por isto, podemos viver e fabricar aquilo que pode se tornar duradouro. Neste sentido, ficar fora terra, ou sentir “alívio” por ter a capacidade sair da terra, soa estranho.
Esta estranheza adquire uma determinada realidade, quando nos perguntamos: o que o homem está fazendo? O que nós estamos fazendo? Para a pergunta no prólogo do livro de 1958 a resposta mais simples e direta era: estamos gerando artificialismo, produzindo artificialismo. Talvez esta resposta se mantenha.
Um aprofundamento a respeito deste artificialismo pode ter como orientação fiel as realizações científicas. E, é esta direção que a Arendt escolhe ao antever os cenários futuros e, especular sobre as pretensões científicas da sua época. A sua abordagem mantém o foco na discussão sobre a atividade da ação e a vida humana, porque é esta vida, identificada como “humana” que perfaz e une uma “vida em si” com o “mundo artificial”. Arendt afirma o seguinte:
Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar uma vida numa proveta, no desejo de misturar, “sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores” e “alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função”; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite de cem anos. (Arendt, 2001, p.10).
Estes dois fatos: o lançamento do satélite artificial e a pretensão de “tornar ‘artificial’ a própria vida”, conduzem a autora a um questionamento original: queremos ou não percorrer o caminho anunciado pelas ciências? Não se questiona a possibilidade mesma da realização destes feitos: a saída da terra ou a modificação da vida. A possibilidade se tornou, de alguma forma, real. O questionamento visa a decisão do ser humano, como iremos agir? Visa a nossa ação. Evidentemente, isto é parte da pergunta: o que “estamos fazendo” e, logo, é parte de uma possível resposta:
Esse homem do futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza e, portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais. (ARENDT, 2001, p.10-11).
A questão converge ao âmbito político e se torna uma “questão política de primeira grandeza”. O agir é que decide a como se responde a pergunta. Quando Arendt questiona sobre qual a direção queremos adotar para “usar” nosso conhecimento científico, o agir deve ser suposto como vinculado à política. Mas, não se trata da política tal qual nós a conhecemos contemporaneamente, trata-se de uma política dentro da qual há questões de “primeira grandeza”. A “política de primeira grandeza” exclui os cientistas profissionais e aqueles que Arendt, diligentemente, denomina de “políticos profissionais”. O tratamento dado aos “políticos profissionais” não é desenvolvido no prólogo, mas, o próprio termo: “políticos profissionais” pode ser compreendido quando Arendt, ao tratar sobre a polis afirma que: “A política não podia, em circunstância alguma, ser apenas um meio de proteger a sociedade” (ARENDT, 2001, p.40). E, retornando, ela compara o discurso da ciência, dotado de várias simbolizações matemáticas, com um discurso sem sentido, um discurso que não pode adequado para a política:
[...] a situação criada pelas ciências tem grande significado político. Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político. Mas, a seguirmos o conselho que ouvimos com tanta freqüência, de ajustar nossas atitudes culturais ao estado atual de realização científica, adotaríamos sem dúvida um modo de vida no qual o discurso não teria sentido. Pois atualmente as ciências são forçadas a adotar uma “linguagem” de símbolos matemáticos que, embora originalmente destinada a abreviar afirmações enunciadas, contém agora afirmações que de modo algum podem ser reconvertidas em palavras. (Arendt, 2001, p.11-12).
Portanto, há uma distância entre o discurso das ciências e o discurso necessário para uma questão política de “primeira grandeza”. No mundo atual (assim como o mundo do final dos anos 50 do século XX), aqueles que poderiam e podem agir conforme uma “política de primeira grandeza”, não conseguem prescindir das realizações científicas, pois elas mesmas propiciam uma série de recursos e interfaces. Assumindo os termos usados por Arendt, podemos afirmar que as realizações científicas não somente fazem parte ainda da atualidade do “mundo artificial”, como, também, o mundo se torna cada vez mais artificial. Assim, a junção entre o “artifício humano” e a ”vida em si”, é atualmente uma junção entre o artificialismo intensificado (como no discurso mediante dispositivos eletrônicos) e aquilo que denominamos vida. A “junção” entre “artifício humano” e “vida em si” é desempenhada por nós mesmos. Mas, nós igualmente estamos perante a necessidade de decidir uma “questão primeira grandeza”. O problema da nossa dependência frente à tecnologia acompanha esta questão.
Arendt expressa ainda mais a sua perplexidade além do impacto referente ao alívio com o lançamento do primeiro satélite artificial. Em 1957, ela menciona, os efeitos de um provável “advento da automação”. Estes efeitos, segundo a autora, chegariam antes de nossa saída do planeta:
Mais próximo e talvez igualmente decisivo é outro evento não menos ameaçador: o advento da automação, que dentro de algumas décadas provavelmente esvaziará as fábricas e libertará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição da necessidade. Mais uma vez, trata-se de um aspecto fundamental da condição humana; mas a rebelião contra esse aspecto, o desejo de libertação das “fadigas e penas” do trabalho é tão antigo quanto a história de que se tem registro. Por si, a isenção do trabalho não é novidade: já foi um dos mais arraigados privilégios de uma minoria. Neste segundo caso, parece que o progresso científico e as conquistas da técnica serviram apenas para a realização de algo com que todas as eras anteriores sonharam e nenhuma pôde realizar. (ARENDT, 2001, p.12).
Esta realização da qual “todas as eras anteriores sonharam e nenhuma pôde realizar” se torna um problema para o que a época moderna “trouxe consigo”. Em um trecho próximo ao citado acima, ela afirma que a herança moderna é: “a glorificação teórica do trabalho” (ARENDT, 2001, p.12). Isto fornece um terceiro elemento à pergunta “o que estamos fazendo”? A resposta completa possui três elementos ou tópicos a serem desenvolvidos: (1) a procura dos meios para sair da terra; (2) a busca de meios para modificar a vida; e (3) a automatização das fábricas. Este último conflita com própria época moderna, pois esta celebra a valorização do trabalho. Uma atualização sobre o “o que estamos fazendo”, implica que os três tópicos devem ser reverificados. O resultado mostrará que, em alguma medida, eles se intensificaram.
O prólogo escrito por Arendt apresenta estes três tópicos acima mencionados, os quais possuem um eixo principal, de forma alguma ignorado pela autora. Este eixo é a ciência, suas realizações e suas possíveis direções futuras. A pergunta sobre “o que estamos fazendo?” deixou apenas uma orientação para uma resposta: as decisões que envolvem a ciência são decisões políticas. A partir desta via de análise, a ausência ou não desta perplexidade, entre nós, depende do que consideremos ou não uma questão política de “primeira grandeza”. Mas, as próprias realizações científicas merecem uma espécie de atualização para retomar plenamente o que significa o tensionamento desta questão. Um quadro geral atualizado deve auxiliar o enfretamento da “exigência” de “primeira grandeza” nos que diz respeito à ação e, por isto, igualmente no que diz respeito à política. Para iniciar, em alguns aspectos, esta atualização, apresentaremos na próxima seção a perspectiva de outros autores.
As realizações científicas e o início de uma atualização
As realizações científicas, que constituíram este cenário contra o qual se defrontava Arendt, modificaram-se e devem ser recolocadas em suas formas mais atuais. Esta parte do artigo procurará prover, em alguma medida, um conhecimento sobre a nossa época. Uma época caracterizada por estar imersa em dispositivos e em tecnologias que alimentam um modo de vida consumista.
A discussão da autora a partir das três instâncias da condição humana (labor, obra e ação) é transpassada pelas realizações científicas e produtivas. A atualização dos efeitos causados sobre a sociedade, a economia e a política nos apresenta um cenário diferente daquele dos anos 50. Um exemplo atual, do âmbito político, mas vinculado às realizações científicas é o uso de programas automatizados (ou robôs de software e não de hardware) para influenciar a opinião de um grande número de pessoas por meio das redes sociais. Este exemplo pode ser verificado no estudo desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas: “Robôs, redes sociais e política no Brasil: estudo sobre interferências ilegítimas no debate público na web, riscos à democracia e processo eleitoral de 2018”. Para, tornar mais claro o que é esta interferência que visa um efeito político direto, nós definiremos primeiramente o que é o “robô”, utilizado nas redes sociais:
Os robôs sociais (social bots) são contas controladas por software que geram artificialmente conteúdo e estabelecem interações com não robôs. Eles buscam imitar o comportamento humano e se passar como tal de maneira a interferir em debates espontâneos e criar discussões forjadas. Com este tipo de manipulação, os robôs criam a falsa sensação de amplo apoio político a certa proposta, ideia ou figura pública, modificam o rumo de políticas públicas, interferem no mercado de ações, disseminam rumores, notícias falsas e teorias conspiratórias, geram desinformação e poluição de conteúdo, além de atrair usuários para links maliciosos que roubam dados pessoais, entre outros riscos. (RUEDIGER, 2017, p.9).
Um sumário das ações do robô pode ser percebido nesta passagem que anuncia um dos casos tratados no estudo:
Automatização de ferramentas de publicação possibilitou o surgimento e a propagação de robôs — contas controladas por softwares se fazendo passar por seres humanos que já dominam parte da vida nas redes sociais e participam ativamente das discussões em momentos políticos de grande repercussão. O estudo feito pela FGV/DAPP aponta que esse tipo de conta chegou a ser responsável por mais de 10% das interações no Twitter nas eleições presidenciais de 2014. Durante protestos pelo Impeachment, essas interações provocadas por robôs representaram mais de 20% do debate entre apoiadores de Dilma Rousseff, que usavam significativamente esse tipo de mecanismo. Um outro exemplo analisado mostra que quase 20% das interações no debate entre os usuários favoráveis a Aécio Neves no segundo turno das eleições de 2014 foi motivado por robôs. (RUEDIGER, 2017, p.6).
Outros casos do uso dos robôs, mencionados neste estudo, são: os das eleições municipais em São Paulo em 2016, o da greve geral de abril de 2017 e o da votação da reforma trabalhista em julho de 2017. Os aspectos levantados, uma vez que dizem respeito diretamente ao âmbito político, surpreenderiam ainda mais Arendt. Pois, os dispositivos e as tecnologias relatadas no estudo não existiam no tempo de Arendt.
A atualização dos efeitos dos avanços científicos, não é fácil de realizar, porque precisamos de um critério de seleção. Neste caso, o critério de seleção poderia ter em vista os núcleos teóricos do livro A condição humana. Estes núcleos seriam os seguintes: a liberdade, a política, os três condicionamentos (labor, obra ação) e os dois âmbitos: o privado e o público. Mas, a explicitação e a manutenção destes núcleos como parâmetros não é uma tarefa fácil e exeqüível em um espaço pequeno de um artigo. Precisamos, portanto, assumir uma via mais direta e nos basear nas citações específicas retiradas do texto de A condição humana.
Certo é que, partir da época moderna, a autora já identificava distorções que ocorriam na prática política. Estas distorções diziam respeito aos condicionamentos que explicitavam a existência humana. Trata-se sempre de uma relação “com aquilo com o qual” entramos em contato no mundo:
A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos. (Arendt, 2001, p.17).
Ela abre possibilidade de tornar estas “coisas produzidas pelos homens” um tema de discussão. Não se trata efetivamente de uma discussão separada, mas de um recorte possível que enseja um aprofundamento. Este aprofundamento contribui para a atualização do cenário para além desta época próxima a 1957-58. Arendt abre a possibilidade do recorte/aprofundamento quando menciona uma relação entre a condição humana e a “objetividade do mundo”:
A objetividade do mundo – o seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se estes artigos não fossem condicionamentos da existência humana. (ARENDT, 2001, p.17).
A pergunta não explícita com relação à objetividade do mundo refere o estatuto da política e da condição humana quando tal “objetividade do mundo” possui dinâmicas que conseguem provocar uma modificação na política. Esta modificação seria a realização científica atual, assumida pelos softwares denominados de robôs nas redes sociais. Qual é o estatuto da condição humana, quando estes softwares alcançam, também, um protagonismo nas nossas vidas? Este protagonismo deste tipo pode ser exemplificado por aplicativos inteligentes que administram a nossa mobilidade urbana, a nossa produtividade profissional e até mesmo o ambiente familiar e sentimental. Estas perguntas estão comprometidas com uma análise da “objetividade do mundo”, um recorte metodológico que pode ser aprofundado.
Outras análises da “objetividade do mundo”, considerando cenários bem mais atuais, nos quais as próprias “coisas” que nos cercam assumem o protagonismo. Estas análises são encontradas em outros autores como Jonathan Crary e Yuval Noah Harari. Estes dois autores se ocupam em compreender o homem dentro da “objetividade do mundo” nos dias atuais.
Crary afirma que a cultura atual se voltou para a idéia de uma “gratificação individual” a partir de uma “imitação” dos “dinamismos impessoais da mecanização” (CRARY, 2014, p.66). Esta imitação do ritmo da mecanização impessoal provocou uma indistinção peculiar: entre o trabalho e o lazer. A dedicação aos dispositivos facilita uma “harmonização com as exigências funcionais”, as quais contribuem para esta “indistinção” entre “trabalho e lazer” (CRARY, 2014, p.66). Esta indistinção se traduz na crescente e na constante necessidade de administrar a nossa vida ou o nosso perfil, por exemplo, em uma rede social. Neste sentido, pode-se afirmar que a unidade do eu individualizado contemporâneo começa a se desmoronar, e surge assim uma espécie de eu administrável que emerge na relação de corpo a corpo com os dispositivos eletrônicos:
A habituação individual a esses ritmos a acarretou consequências sociais e ambientais devastadoras e fez do ciclo incessante de deslocamento e descarte a norma coletiva. Como a perda é continuamente engendrada, a memória, atrofiada, deixa de reconhecê-la como tal. Muda a composição fundamental das narrativas de vida: em vez de uma sequência convencional de lugares e eventos associados a família, trabalho e relacionamentos, o principal fio condutor de nossa história de vida são as mercadorias eletrônicas e serviços de mídia por meio dos quais toda a experiência é filtrada, gravada ou construída. À medida que desaparece a possibilidade de um único emprego ao longo da vida, o trabalho mais duradouro para a maioria das pessoas é elaborar sua relação com os dispositivos. Tudo que antes era vagamente considerado “pessoal” é reconfigurado de maneira a facilitar a invenção de si mesmo a partir de um aglomerado de identidades que existem apenas como efeitos de dispositivos tecnológicos temporários. (CRARY, 2014, p. 67).
As modificações da atualidade apontam para uma ruptura no “fio condutor de nossa história pessoal”. Esta ruptura é caracterizada pela expressão utilizada por Crary: a de que todo caráter pessoal é “reconfigurado”. Esta reconfiguração visa ”facilitar a invenção de si mesmo”. Mas, tal “invenção depende dos “dispositivos tecnológicos temporários”, pois ela é apenas um efeito de tais dispositivos. Sem os dispositivos e sem a invenção, não há reconfiguração e nos colocaremos fora do mundo de nossa época.
Certamente, este cenário é diferente daquele sobre o qual Arendt se debruça e descreve a sua perplexidade diante do “alívio” com relação ao primeiro satélite artificial. No cenário atual, caminhamos, com o passo seguro, em uma espécie de vitória do “animal laborans” sobre o homo faber (ARENDT, 2001, p.326ss) Alguns aspectos dessa “vitória” são mais familiares quando a autora aborda uma “mudança mais radical”:
A mudança mais radical da condição humana que podemos imaginar seria uma emigração dos homens da Terra para algum outro planeta. Tal evento, já não inteiramente impossível, implicaria em que o homem teria de viver sob condições feitas por ele mesmo, inteiramente diferentes daquelas que a Terra lhe oferece. O labor, o trabalho, ação e, na verdade, até mesmo pensamento como conhecemos deixariam de ter sentido em tal eventualidade. Não obstante ainda seriam humanos; mas a única afirmativa que poderíamos fazer quanto a sua “natureza” é que são ainda seres condicionados, embora sua condição seja agora, em grande parte, produzida por eles mesmos. (ARENDT, 2001, p.18).
A “invenção de si mesmo” referida por Crary equivale a um condicionamento dos seres humanos, sob condições “produzidas por eles mesmos”. Embora, os seres humanos não tenham, ainda, emigrado para outros planetas, a sua vida individual está cada vez mais regida por uma interface com os “dispositivos tecnológicos temporários”. Pode-se dizer que este caráter temporário dos dispositivos se deve ao fluxo do mercado de consumo. Manter-se neste fluxo é uma exigência da reconfiguração mencionada mais anteriormente. O que se destaca na aproximação entre a “mudança mais radical” (Arendt) e a reconfiguração que facilita a “invenção de si mesmo” (Crary) é o protagonismo dos dispositivos que nos cercam na atualidade, principalmente smartphones.
Na produção de suas próprias condições, o animal laborans, assume o lugar central frente às demais instâncias da vida humana assinaladas pela obra e pela ação. No mundo automatizado, o animal laborans delega o encargo de prover a manutenção de sua existência às máquinas. Esta mudança mais radical que inclui a reconfiguração. A sua consequência é que o mundo do capitalismo associado com a tecnologia se desdobra em uma “sociedade de consumidores”. O modo de vida central neste mundo é aquele do animal laborans, mas na peculiar situação da liberação de suas forças deprimidas pela carência e pela necessidade de laborar dentro dos sistemas produtivos. Trata-se, agora, de uma outra realidade, cujos traços são seguintes:
Um dos óbvios sinais do perigo de que talvez estejamos a ponto de realizar o ideal do animal laborans é a medida em que toda a nossa economia já se tornou uma economia de desperdício, na qual todas as coisas devem ser devoradas e abandonadas quase tão rapidamente quanto surgem no mundo, a fim de que o processo não chegue a um fim repentino e catastrófico. Mas, se esse ideal já estivesse realizado e não passássemos realmente de membros de uma sociedade de consumidores, já não viveríamos mais num mundo, mas simplesmente seríamos impelidos por um processo em cujos ciclos perenemente repetidos as coisas surgem e desaparecem, manifestam-se e somem, sem jamais durar o tempo suficiente para conterem em seu meio o processo vital (ARENDT, 2001, p. 147).
A afirmação de Arendt sobre os “ciclos perenemente repetidos” ilustra a sua concepção de que a mortalidade é o “mover-se ao longo de uma linha reta em um universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico” (ARENDT, 2001, p.27). Mas, a mortalidade do homem contém “em seu meio o processo vital”. Isto significa que parte do que compõe o humano se difere do animal laborans, pois não permanece no “ciclo perenemente repetido” de suprir as necessidades para a vida. Surge uma possibilidade de resistência, ou de um movimento a contrapelo, após a derrota do homo faber, quando o ciclo vital do animal laborans se traduziu em consumismo e começou a se consolidar em fluxo constante. O modo de ser do animal laborans não resumiria tudo o que significa ser humano. Mas, isto não será desenvolvido aqui neste artigo.
O ciclo consumista e a administração da vida do animal laborans e sua possível prática política diz respeito à “objetividade do mundo” na época atual. Há protagonismo dos “dispositivos tecnológicos temporários” que podem ser ilustrados pelas palavras de Yuval Noah Harari, historiador, cujo livro Homo deus – uma breve história do amanhã causou um impacto recente nos últimos dois anos. Harari diz:
No passado, havia muitas coisas que somente os humanos podiam fazer. Mas hoje robôs e computadores estão assumindo esse papel e logo poderão sobrepujar os humanos no cumprimento da maioria das tarefas. É verdade que o funcionamento dos computadores é muito diferente do dos humanos, e parece improvável que eles se tornem humanóides em pouco tempo. Em particular, não parece que computadores estejam prestes a ter consciência, nem emoções e sensações. As últimas décadas assistiram a um avanço imenso na inteligência de computadores, mas o avanço na consciência dessas máquinas foi nulo. Até onde sabemos, computadores não são, em 2016, mais conscientes do que seus protótipos na década de 1950. No entanto, estamos à beira de uma grave revolução. Humanos correm o perigo de perder seu valor porque a inteligência está se desacoplando da consciência. (HARARI, 2016, p.313).
Esta passagem de Harari propõe a sua tese de que há um desacoplamento progressivo entre inteligência e consciência. Para o autor, nos dias atuais a inteligência não precisa mais estar vinculada à consciência. A consciência se torna opcional:
Isso levanta uma nova questão: o que é realmente importante, a inteligência ou a consciência? Enquanto andavam de mãos dadas, discutir seus valores relativos era apenas um passatempo para filósofos. Porém, no século XXI, isso está se tornando uma questão política e econômica premente. E é sensato dar-se conta de que, ao menos para exércitos e corporações, a resposta é simples e direta: a inteligência é mandatória, mas a consciência é opcional. (HARARI, 2016, p.314).
A inteligência está sendo cada vez mais compreendida com processo de otimização. E, esta compreensão concorda com a “objetividade do mundo” reconfigurada mediante a interface entre pessoas e dispositivos. O uso da inteligência nos processos otimizadores busca desempenhar a função de personalizar o mundo do consumo orientando-se pelas necessidades do animal laborans. Para ilustrar esta reconfiguração, podemos citar um renomado pesquisador americano de softwares, denominados especialmente de softwares de aprendizado de máquina (ou machine learning). O pesquisador Pedro Domingos da Universidade de Washington, situada em Seattle. Ele os explicita desta forma:
A sociedade está mudando ao ritmo de cada algoritmo de aprendizado que é produzido. O machine learning está recriando a ciência, a tecnologia, os negócios, a política e a guerra. Satélites, seqüenciadores de DNA e aceleradores de partículas sondam a natureza em detalhes cada vez menores, e os algoritmos de aprendizado transformam torrentes de dados em novo conhecimento científico. As empresas conhecem os seus clientes como jamais conheceram. O candidato com os melhores modelos de eleitores vence, como Obama contra Rommey. Veículos não tripulados pilotam a si próprios na terra, no mar e no ar. Ninguém programou nossas preferências no sistema de recomendação da Amazon; um algoritmo de aprendizado as descobriu sozinho, tirando conclusões a partir de nossas compras passadas. O carro autodirigível do Google aprendeu sozinho como permanecer na estrada. Nenhum engenheiro escreveu um algoritmo para instruí-lo, passo a passo, como ir de A a B. Ninguém sabe como programar um carro para dirigir sozinho, e não precisamos saber, porque um carro equipado com um algoritmo de aprendizado aprende observando o que o motorista faz.
O machine learning é algo novo em nossas vidas: é uma tecnologia que constrói a si própria. (DOMINGOS, 2017, p.16).
As afirmações de Domingos não são previsões, elas remetem ao presente, ao que está acontecendo, ao que já está produzido e que já está funcionando. Este é, sem dúvida, um aspecto perturbador das realizações científicas no século XXI. Os algoritmos de aprendizado tomam decisões e são programados para aprenderem sozinhos. A expressão utilizada por Arendt: “objetividade do mundo”, em uma atualização para a nossa época, deve incluir estes softwares que aprendem e, em alguns casos, exemplificado pelo carro autônomo, tomam decisões.
Uma outra situação mostra que a disponibilidade própria dos “dispositivos tecnológicos temporários” contribuem para a mudança direta da realidade política. Essa situação pode ser exemplificada pelas palavras de J. Assange, quando, após ser perguntado sobre possível influência de seu site de divulgação de denúncias no movimento da “Primavera árabe”, ele respondeu:
A Anistia Internacional disse isso no último relatório e acadêmicos e ativistas tunisianos também disseram. [...]
Com certeza influenciamos. E foi realmente uma coisa muito importante. Sei com certeza que mudamos o resultado das eleições quenianas em 2007. Tiramos o escalpo de muitos ministros, muita gente teve que renunciar e por aí vai. Foram ações concretas e claras. (ASSANGE, 2015, p.102).
O acesso e a disponibilidade virtuais da informação, por meio de telefones celulares, se mostraram decisivos na alteração de contextos políticos. Isto significa basicamente que há uma relação direta entre as realizações científicas e a ação política. O que repercute um dos receios apresentados por Arendt no prólogo de A condição humana. Trata-se, então, de uma radicalização da interferência das realizações científicas na elaboração dos tipos de discurso. Ao mencionar o problema vinculado às “verdades” científicas “demonstradas em fórmulas matemáticas”, ela afirma:
Ainda não sabemos se esta situação é definitiva; mas pode vir a suceder que nós, criaturas humanas que nos pusemos a agir como habitantes do universo, jamais cheguemos a compreender, isto é, a pensar e a falar sobre aquilo que, no entanto, somos capazes de fazer. Neste caso, seria como se o nosso cérebro, condição material e física do pensamento, não pudesse acompanhar o que fazemos, de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de máquinas que pensassem e falassem por nós. Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaríamos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja. (ARENDT, 2001, p.11).
Nos tempos atuais, a realização dessa previsão parece muito mais próxima. Embora, sob um ponto de vista mais amplo, não seja comum que as realizações científicas sejam identificadas como mortíferas. Mas, se trata de uma avaliação que deve ser feita, por isto a importância de comitês de ética, algo que deve ser abordado em outro estudo.
A interferência dos “dispositivos tecnológicos temporários” é dupla. Em geral ela se situa na assistência fornecida por softwares personalizados. Eles administram algumas das nossas atividades (agenda, mobilidade urbana etc.) e, selecionam ofertas de consumo segundo um processamento específico de preferências (para isto utilizam modelos de machine learning). No outro modo da interferência, está a modificação de contextos políticos, por meio do uso de robôs (softwares automatizados que atuam em postagens nas redes sociais) ou por meio de estratégias eleitorais baseadas em modelos (criados por machine learning). Portanto, o cenário atual é bem diferente daquele da época de Arendt. Na atualidade, há uma participação que não pode ser desprezada dos softwares na nossa vida pessoal, incluindo a atuação política. A base científica é diferente, as realizações de ciência são diferentes e as interferências são mais diretas, constituindo uma outra “objetividade do mundo”.
Conclusão
No ensejo de contribuir para uma atualização do cenário das realizações científicas e responder a pergunta de Arendt sobre o que “estamos fazendo?”, podemos agora, passados mais de sessenta anos que nos separam da publicação de A condição humana, sugerir algumas respostas. Para conseguir estas respostas passamos por duas partes.
A primeira parte deste artigo enfocou o prólogo de A condição humana, destacando a surpresa de Arendt após a reação de “alivio” diante do sucesso do lançamento do primeiro satélite artificial. A autora pergunta sobre “o que estamos fazendo e apresenta projeções do futuro a partir das realizações científicas da época quando escreveu o seu livro (final dos anos 50, século XX). Ela sugere as seguintes respostas: (a) estamos tentando sair da terra; (b) estamos tentando criar vida artificial e (c) estamos tentando automatizar as fábricas. Todas estas realizações dependem do progresso da ciência. Por isto, há o desafio de uma questão qualificada como questão “política de primeira grandeza”. Arendt refere que somente uma política de tal grandeza poderia responder se queremos ou não seguir adiante nestas três direções apontadas pelas realizações da ciência. Esta parte conclui que: para além da surpresa de Arendt e das respostas sugeridas, é necessário um esforço de atualização a respeito das realizações científicas. Tudo indica que estas realizações científicas, talvez, possam estar interferindo mais no campo da política do que imediatamente possamos perceber.
A segunda parte procurou mostrar as diferenças entre a época em que Arendt escreveu o seu livro A condição humana e a nossa época atual. O foco selecionado foram, novamente, as realizações científicas. A conclusão no final desta parte mostrou que há vários elementos atuais oriundos da pesquisa científica que foram convertidos em produtos do mercado de consumo. Estes produtos não existiam na época em que foi escrito A condição humana. Os elementos ou produtos atuais interferem diretamente nos nossos cotidianos individuais e podem ser e são utilizados para direcionar e interferir em contextos políticos. Essas ações tecnológicas não podem ser desprezadas e colocam necessidade de uma advertência frente ao crescente “protagonismo” artificial (oriundo de softwares) dentro da “objetividade do mundo”.
Após estas duas conclusões parciais podemos afirmar que a projeções de futuro mais pessimistas de Arendt a respeito do que estamos fazendo, estão se confirmando. Ainda está pendente a questão sobre qual direção assumir diante da nossa capacidade científica, mas não temos uma “política de primeira grandeza” que permite resolver esta questão. Na realidade, o quadro político parece cada vez mais confuso por causa da interface entre humanos e softwares organizadores da vida pessoal. Neste sentido, o que estivemos fazendo, desde a publicação de A condição humana, é respondido, também, de modo pessimista. Estamos cada vez mais nos artificializando. Sim, estamos a cada dia, a cada inovação e a cada algoritmo produzido, respondendo artificialmente e incautamente, a pergunta sobre “o que estamos fazendo”.
Referências
ARENDT, H. A condição humana. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2001.
ARENDT, H. A vida do espírito: o pensar, o querer e o julgar. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
ASSANGE, J. Quando o Google encontrou o WikiLeaks. São Paulo: Boitempo, 2015.
CRARY, J. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo, Cosac Naify, 2014.
DOMINGOS, P. O algoritmo mestre. São Paulo: Novatec Editora Ltda., 2017.
HARARI, Y.N. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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Autor(a) para correspondência: Itamar Soares Veiga. Universidade de Caxias do Sul, Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130 - B.Petrópolis, 95070-560 - Caxias do Sul – RS, Brasil. inpesquisa@yahoo.com.br