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A formação racional da opinião e da vontade na filosofia de Jürgen Habermas
Fabio Abreu dos Passos
Fabio Abreu dos Passos
A formação racional da opinião e da vontade na filosofia de Jürgen Habermas
The rational training of opinion and will in the philosophy of Jürgen Habermas
Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 305-326, 2019
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: A noção de opinião pública como processo, não pode circunscrever-se unicamente sobre as bases empíricas de uma teoria, deve também enfocar a posição que essa noção ocupa no que tange à interpretação da sociedade. A abordagem de Jürgen Habermas sobre a opinião pública surge a partir de sua obra clássica sobre a Publicidade Burguesa.. Como desdobramento das análises acerca da opinião pública, Habermas constrói a Teoria Normativa de Democracia, a qual se baseia nas condições comunicativas em que pode ocorrer uma Formação Discursiva da Opinião e da Vontade de um público formado pelos cidadãos de um Estado. Nessa esteira argumentativa, Habermas retoma o projeto histórico-filosófico da modernidade atribuindo à opinião pública a função de legitimar o domínio político por meio de um processo crítico de comunicação sustentado nos princípios de um consenso racionalmente motivado. O escopo do presente artigo é explicitar os elementos constitutivos das reflexões habermasianas acerca da Formação Racional da Opinião e da Vontade, uma vez que é a partir deste primordial conceito que podemos compreender a legitimação do Estado de direito. Rastrear-se-á o que levou a reflexão habermasiana a buscar as condições de uma autêntica participação dos indivíduos em um espaço público, onde há responsabilidade e solidariedade na execução das soluções dos problemas de uma comunidade, e seu consequente desdobramento que desemboca na teoria do poder político.

Palavras-chave:Opinião públicaOpinião pública,Poder políticoPoder político,Formação discursivaFormação discursiva,Espaço públicoEspaço público.

Abstract: The notion of public opinion as a process cannot be limited solely to the empirical basis of a theory, it must also focus on the position that this notion occupies with respect to the interpretation of society. Jürgen Habermas's approach to public opinion stems from his classic work on Bourgeois Advertising. Habermas constructs the Normative Theory of Democracy, which is based on the communicative conditions in which a Discursive Formation of the Opinion and Will of a public formed by the citizens of a State can take place as an unfolding of the analyzes about the public opinion. In this argumentative way, Habermas takes up the historical-philosophical project of modernity, attributing to the public opinion the function of legitimizing the political domain through a critical process of communication based on the principles of a rationally motivated consensus. The scope of this article is to make explicit the constitutive elements of the habermasian reflections on the Rational Formation of Opinion and Will, since it is from this primordial concept that we can understand the legitimation of the Rule of Law. We will trace what led the habermasian reflection to seek the conditions of an authentic participation of individuals in a public space, where there is responsibility and solidarity in the execution of the solutions of the problems of a community, and its consequent unfolding that leads to the theory of political power.

Keywords: Public opinion, Political power, Discursive formation, Public place.

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A formação racional da opinião e da vontade na filosofia de Jürgen Habermas

The rational training of opinion and will in the philosophy of Jürgen Habermas

Fabio Abreu dos Passos
Universidade Federal do Piauí, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 19, núm. 3, pp. 305-326, 2019
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 29 Junho 2019

Aprovação: 31 Agosto 2019

Introdução

Para Habermas, a noção de opinião pública como processo não pode limitar-se unicamente às bases empíricas de uma teoria, deve também enfocar a posição que essa noção ocupa em um modo geral de interpretação da sociedade. No intuito de erigir bases sólidas que possam sustentar tal tese, Habermas retoma o projeto histórico-filosófico da modernidade, o qual nosso autor compreende como “inacabado”, atribuindo à opinião pública a função de legitimar o domínio político por meio de um processo crítico de comunicação sustentado nos princípios de um consenso racionalmente motivado. Daí a justificativa para a presente pesquisa, uma vez que as reflexões que se constroem no interior da filosofia de Jürgen Habermas, principalmente no que tange às suas reflexões acerca da Formação Racional da Opinião e da Vontade, irão lançar luz em um conceito primordial – opinião pública –, o qual nos ajuda a compreender a legitimação do Estado de direito.

No afã de refletir acerca da formação racional da opinai e da vontade na filosofia de Habermas, iremos nos voltar para a discussão que Habermas trava com os filósofos Immanuel Kant (1724-1808) e com Jean-Jaques Rousseau (1712-1778), pois é a partir do paradigma da linguagem que se poderá mostrar que os dois filósofos falharam ao tentar realizar a união entre vontade e razão na autonomia moral e na soberania popular.

1. Os pressupostos fundamentais da formação racional da opinião e da vontade

No intuito de alcançar o objetivo traçado na presente pesquisa, devemos principiar nossas análises a partir dos pressupostos que fundamentam aquilo que Habermas designará como a formação racional da opinião e da vontade. Assim, no plano teórico habermasiano, os procedimentos dominantes de legitimação das democracias modernas estão relacionados a um processo de legitimação dirigido a nível administrativo:

O sistema político assegura o consentimento da população tanto por via positiva, quanto por via seletiva; positivamente capitalizando as expectativas de cumprimento dos programas próprios do Estado Social; seletivamente excluindo determinados assuntos da discussão pública. E isso pode ser feito por meio de filtros estruturais no acesso à esfera da opinião pública-política, por meio de deformações burocráticas das estruturas da comunicação pública, ou por meio de um controle manipulativo dos fluxos de informação (HABERMAS, 1997, p. 489)..

Neste parâmetro, deve-se argumentar acerca da relação entre os fenômenos da opinião pública e dos processos de racionalização historicamente conectados entre si, sem omitir a existência de diferenciações por categorias. Assim, há uma conexão entre a Ação Instrumental – a extensão do âmbito da ação técnica e o incremento das capacidades de direção e de cálculos a respeito dos processos sociais que tiveram seu espaço nas sociedades contemporâneas – e a Ação Comunicativa.

O consenso social deriva da Ação Comunicativa, ou seja, uma orientação que responde ao interesse cognitivo por um entendimento recíproco e ao interesse prático pela manutenção de uma intersubjetividade permanentemente ameaçada. Em consequência, o objetivo de uma Teoria Crítica da Democracia, fundamentada normativamente, consiste em explicar se as sociedades complexas admitem a existência de uma opinião pública baseada na garantia de condições gerais de comunicação que assegurem uma formação discursiva da vontade. Ou seja, trata-se de analisar se as democracias contemporâneas contêm a possibilidade de estruturar uma práxis pública argumentativa, que vincule as validades das normas de ação a uma justificação racional, oriunda da livre discussão dos cidadãos.

Portanto, para Jürgen Habermas, a linguagem é concebida como a garantia da democracia em seu sentido mais específico, isto é, uma forma da política derivada de um livre processo comunicativo, que possui como finalidade principal promover acordos consensuais em decisões coletivas.

.1 A gênese da formação racional da opinião e da vontade

A compreensão da Gênese da Formação Racional da Opinião e da Vontade funcionará como um fio condutor para as análises posteriores que serão desdobradas no transcorrer desta pesquisa. Neste sentido, a opinião pública e a esfera burguesa surgiram no caminho das trocas de mercadorias, ou seja, da troca de informações iniciadas com o capitalismo financeiro e mercantil.

O crescimento do comércio, o surgimento das companhias e das sociedades por ações, o desenvolvimento cada vez maior do mercado exterior, vão exigindo maiores garantias institucionais, ou seja, no caso, políticas e militares. Paralelamente, temos o desenvolvimento do Estado-nação, que nacionaliza economias antes mais localizadas, e do Estado moderno como centralização política, com administração e exército permanentes: é a consolidação do chamado “poder público”, sendo, aqui, “público” sinônimo de “estatal” (ALMEIDA, 2002, p.61).

Para Habermas, a “esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera de pessoas privadas reunidas em um público” (HABERMAS, 1984, p.42), para defender sua liberdade econômica, bem como atacar a esfera dominante vigente – a nobreza – tornado-a racional, na medida em que a submetia à opinião pública.

Pelo que acima expusemos, percebe-se que a esfera pública burguesa surge em um campo no qual há uma tensão entre o Estado e a sociedade civil, ou seja, uma tensão entre a sociedade decadente – representada pela corte – e a nova sociedade emergente.

A esfera pública política burguesa, desenvolvida e institucionalizada no Estado de Direito burguês, não apaga a sua contradição: surge apresentando uma ideia de oposição à dominação, mas sua base social – a propriedade privada – não permitiu o fim da dominação. “Enquanto os assalariados estão obrigados a trocar a força de trabalho como a sua única mercadoria, os proprietários privados se correlacionam como donos de mercadorias através da troca de artigos. Só estes são seus próprios senhores, só eles devem ter o direito de votar, de fazer uso público da razão em sentido modelar” (HABERMAS, 1984, p.134).

Diante do exposto, podemos dizer que a esfera pública tende a estar ligada aos interesses da burguesia e o Estado deve intervir na sociedade para ajudar o capital e o mercado.

.2 A dicotomia entre opinião pública e a massificação das sociedades

O contexto situacional, que mencionamos acima, começaria a entrar em colapso, demonstrando haver uma decadência da esfera pública burguesa. Como resultado desse colapso, evidencia-se os fatos da esfera pública ser manipulada e a opinião, de fato, não ser pública. Neste sentido, o Parlamento está penetrado por interesses privados e as leis surgidas por esta via deixam de ser verdades constituídas a partir do melhor argumento, passando a ser uma obrigatoriedade. “O público [agora também a massa de assalariados] enquanto tal só esporadicamente é inserido neste circuito do poder" (HABERMAS, 1984, p. 142). Neste sentido, percebemos que

Desenvolvem-se as técnicas de publicidade e de relações públicas, através das quais grandes empresas capitalistas passam a “trabalhar a opinião pública” e têm como tarefa central à construção do consenso e de uma opinião pública encenada. Mas consenso fabricado não é opinião pública. A crítica cede lugar ao conformismo e o consenso passa a ser uma boa vontade conquistada com a publicidade. A esfera pública burguesa assumiu a característica feudal de ser um espaço de representação diante do público. Publicidade era desmistificação da dominação política e agora é um instrumento de dominação. Era transparência, agora é mecanismo de guardar segredos. É a refeudalização da esfera pública. As grandes instituições jornalísticas vão criar “um aparelho que certamente representa um máximo de público e um mínimo de opinião” (HABERMAS, 1984, p.229).

Esta questão da opinião pública e a massificação das sociedades. pode ser compreendida com base nos seguintes pressupostos: na medida em que a massa se forma por indexação de indivíduos anônimos e isolados – não fisicamente, mas espiritualmente, abandonado pelo próprio eu, cuja característica primordial é a ausência de um espaço público de comunicação alargada, possibilitador do entendimento – não há lugar para qualquer tipo de afirmação subjetiva. O que percebemos nas esferas públicas é justamente o contrário: formas de sociabilidade, ou seja, de agregação dos indivíduos intersubjetivos, que ofereciam aos caracteres individuais mais marcantes as melhores possibilidades de se imporem, bem como as maiores facilidades para se difundirem as opiniões individuais originais.

Percebemos que se não há verdadeiramente sujeitos – o eu individual – na massa, então não há também lugar para falarmos em direitos, em obrigações ou em responsabilidades. Tudo o que conferiria uma espessura ético-moral à Opinião Pública se desvanece na massa, surgindo, em seu lugar, um território politicamente assombroso, mas muito propício para a manobra de certos (e poderosos) interesses particulares organizados.

Podemos traçar nítidas distinções entre as formas de comunicação das esferas públicas e da “massa”: o público é o espaço de comunicação, com a sua performatividade própria ao nível da ação, onde predominam a discussão e argumentação coletivas, sem linhas demarcadoras definidas entre os que exprimem opiniões e os que as recebem, em que as possibilidades de resposta são efetivas e mais ou menos imediatas; a “massa”, pelo contrário, constitui-se como uma pseudo-comunicação, condicionada por uma lógica sistêmica e por processos formais rígidos que transformam cada indivíduo (membro da massa) num mero recurso de mercado – mais um ingrediente da massa – onde o número dos que emitem opiniões se restringe drasticamente. Nessa perspectiva, somente tem direito a emitir opinião um grupo restrito de pessoas detentoras do poder, na proporção inversa àqueles que a partir de agora se posicionam como meros receptores.

Percebemos a necessidade do cuidado constante com os riscos que a formação da “sociedade de massa” generalizada representa, pois, o ambiente propício para a consecução desse tipo de sociedade se faz fecundo em nosso horizonte de possibilidades, através da existência do “homem de massa” atomizado, que se evidencia no perfil do homem contemporâneo. A destruição dos espaços públicos – que levam a Formação da Vontade e da Opinião Política – está cada vez mais se consolidando em nosso Mundo da Vida., abrindo a lacuna possibilitadora para a aniquilação dessas esferas de comunicação, em prol de uma sociedade massificada, na qual os espaços públicos se constituem em uma fachada para determinação de acordos previamente elaborados, não havendo a possibilidade de correção do discurso proferido.

2. Processo de formação política da vontade

Neste passo de nossa pesquisa, procuraremos esclarecer os elementos das teorias normativas da democracia, que constituem o processo de Formação Política da Vontade, em suas nuanças liberais, republicanas e deliberativas, com suas respectivas características, comparando suas imagens de Estado e sociedade. Assim, os elementos das duas grandes teorias normativas, a saber, o liberalismo e o republicanismo, são reinterpretados por Habermas, como procuraremos demonstrar nos movimentos que se seguem de nossas reflexões.

No liberalismo, o indivíduo possui os direitos subjetivos – inaliáveis e absolutos – antes da relação com a sociedade, demonstrando a prerrogativa da existência de direitos negativos em relação ao Estado e outros cidadãos. Nesse contexto, os indivíduos gozam de proteção do governo, no sentido em que buscam realizar seus interesses privados que devem se circunscrever aos limites traçados pelos estatutos legais, o que inclui a proteção contra intervenções governamentais.

Eles dão aos cidadãos a oportunidade para afirmar seus interesses privados de tal maneira que, por meio de eleições, da composição de corpos parlamentares e da formação de um governo, esses interesses são finalmente agregados numa vontade política que provoca impacto sobre a administração (HABERMAS, 1995, p.109).

Ainda, para Habermas, “Na visão liberal, o processo político de formação da vontade e da opinião na esfera pública e no parlamento é determinado pela competição entre as coletividades, que agem estrategicamente tentando manter ou adquirir posições de poder” (HABERMAS, 1995, p. 110).

No que tange ao republicanismo, percebemos que nele o indivíduo sente-se como membro de uma comunidade (res pública). Seus direitos não são subjetivos, mas ao contrário, direitos objetivos – comunitários –, pois há uma participação e comunicação na “coisa pública”.

Nas análises acima realizadas acerca dos dois direitos opostos – subjetivos e objetivos –, percebemos que ambos não atingem os direitos intersubjetivos, no qual há reciprocidade de direitos e deveres. O que há nessas perspectivas é a relação de “sujeito-objeto”, ao contrário da “ideal”, que se constitui como a relação “sujeito-sujeito”. “Para os republicanos os direitos não são, afinal, senão determinações da vontade política dominante, enquanto para os liberais alguns direitos estão sempre fundados numa ‘lei mais alta’ [...] de razão” (HABERMAS, 1995, p. 110).

Em relação à questão do Estado, esse, sob a ótica liberal, é compreendido como o assegurador dos direitos dos “indivíduos”. Já na concepção republicana, o Estado é quem garante os direitos da “comunidade”. Nesta via de análise, a cidadania liberal seria aquela em que os direitos subjetivos são delimitados: os indivíduos gozariam da proteção do Estado e de sua coação, isto é, os direitos negativos que fazem valer os direitos privados, como vimos acima. A cidadania republicana seria aquela na qual há a garantia de participação em uma práxis comum. A autoridade democrática é fomentada pela institucionalização dos direitos elaborados pela vontade e opinião dos cidadãos organizados em um espaço público. Segundo esta visão:

A formação política da opinião e da vontade que ocorre na esfera pública e no parlamento não obedece às estruturas dos processos de mercado, mas às persistentes estruturas de uma comunicação pública orientada para um entendimento mútuo. Para a política, no sentido de uma práxis de autolegislação cívica, o paradigma não é o mercado, mas o diálogo (HABERMAS, 1995. p.111).

Outra questão importante é aquela que enfoca o poder sobre a luz destes dois modelos normativos de democracia, que é entendido da seguinte forma: no liberalismo o poder é administrativo – concentrado no aparelho do Estado; no republicanismo o poder é comunicativo – comunidade – explicitando uma razão comunicativa. Neste sentido, para o liberalismo a política é essencialmente uma luta pelo poder, ou seja, a livre concorrência dos atores políticos que agem estrategicamente, orientados pelo êxito. Ao contrário, no republicanismo, as estruturas de comunicação pública estão orientadas pelo entendimento, havendo o diálogo como mediação e não o “mercado”, como acontece no modelo liberal..

A partir desse momento, analisaremos o terceiro modelo normativo de democracia: o deliberativo, o qual foi elaborado por Habermas. Para podermos compreender esse modelo normativo, é necessário entendermos que, para Habermas, o modelo republicano preserva o sentido democrático dos cidadãos, unidos comunicativamente. Mas há em seu cerne uma desvantagem, a saber, o fato de que ele é idealista, no sentido em que todos estão orientados pelo “bem comum”. O erro está no estreitamento das éticas dos discursos, pois sempre haverá interesses particulares.

Diferentemente, uma interpretação teorético-discursiva insiste no fato de que a formação democrática da vontade não retira sua força legitimadora de uma convergência prévia de convicções éticas consolidadas, mas dos pressupostos comunicativos que permitem aos melhores argumentos entrarem em ação em várias formas de deliberação, bem como dos procedimentos que asseguram processos justos de negociação. A teoria do discurso rompe com uma concepção puramente ética de autonomia cívica (HABERMAS, 1995, p. 112).

O conceito de política deliberativa tem que levar em conta a pluralidade de formas de comunicação, nas quais se forma uma vontade comum. Neste diapasão, deve-se institucionalizar as formas de comunicação (congresso, senado, partidos políticos) para que haja as condições e procedimentos da comunicação que garantem o Estado de direito.

Diante do exposto, podemos asseverar que na política deliberativa incorpora ambos os elementos do liberalismo e do republicanismo de uma maneira reinterpretativa, ou seja, no centro não está o Estado, mas o processo de Formação Política da Vontade, além da institucionalização dos procedimentos correspondentes – ao contrário do que ocorre no liberalismo e no republicanismo – para que haja a consecução do poder comunicativo.

Podemos compreender de maneira mais aclarada esta concepção do modelo deliberativo, atendo-nos às palavras de Habermas, para o qual:

[...] esse poder comunicativo deriva das interações entre a formação da vontade institucionalizada juridicamente e os públicos mobilizados culturalmente. Estes últimos, por seu turno, encontram fundamento nas associações de uma sociedade civil completamente distinta tanto do Estado quando do poder econômico (HABERMAS, 1995, p.113).

2.1 Três aspectos da Formação da Vontade e da Opinião Política

Para compreendermos a questão do entrelaçamento entre o discurso – que fomenta o lugar no qual se pode Formar uma Vontade Política Racional –, os valores e normas de uma sociedade para a Formação Racional da Opinião e da Vontade, é necessário salientar que esta se constitui ao se levantar pretensões de validade na vida cotidiana. Neste sentido, Habermas distingue o uso da razão prática, tendo como fio condutor as colocações de problemas pragmáticos, éticos e morais.

Neste contexto modificado, o próprio conceito tradicional de razão prática adquire um novo valor heurístico. Não funciona mais como orientação direta para uma teoria normativa do direito e da moral. Mesmo assim, ele se transforma num fio condutor para a reconstrução do emaranhado de discursos formadores de opinião e preparadores da decisão, na qual está embutido o poder democrático exercido conforme o direito (HABERMAS, 1997, p.21).

Surgem, assim, os três aspectos: do que é adequado ao fim; do que é bom e do que é justo. Os participantes fazem, a cada vez, um uso diferente da razão prática. A cada um deles corresponde um tipo diferente de discurso, os quais explicitaremos a partir deste momento.

As questões pragmáticas, isto é, da vida cotidiana, se colocam na perspectiva de um agente que procura, através de metas e preferências já dadas, os meios para consecução de seus fins. Os fins determinam os meios adequados na obtenção dos mesmos. Também os fins podem tornar-se problemáticos. Então não se trata apenas da escolha racional dos meios para alcançar os fins, mas, à luz dos valores, o indivíduo escolhe um fim adequado. Neste sentido, a vontade do ator é determinada fundamentalmente pelos interesses ou orientações de valores. Porém, a vontade está aberta a posteriores determinações.

A escolha embasada na técnica e estratégia de ação se realiza por comparações e ponderações que o ator, baseado em observações e prognósticos, pode fazer sobre o ponto de vista da eficiência para a consecução de suas metas. A ponderação de fins orientados por valores e a ponderação dos meios segundo os fins, visam recomendações hipotéticas que são colocadas em relação às causas e efeitos, de acordo com a preferência dos valores e os fins estabelecidos. Estas instruções têm a significação de imperativos condicionados, ou seja, os do tipo hipotéticos, os quais enunciam um mandamento subordinado a determinadas condições, pois a sua validade repousa no saber empírico que elas assumem. Nesta perspectiva, se evidencia que eles são fundamentados em discursos pragmáticos. Nesses discursos, os fatores preponderantes de decisão são os argumentos que se referem ao saber empírico – a preferências dadas – a fim de estabelecer e julgar as consequências das decisões alternativas. “Buscamos, então, fundamentos para uma decisão racional entre diferentes possibilidades de ação frente a uma tarefa que ‘temos de’ (müssen) solucionar, se quisermosalcançar uma meta determinada” (HABERMAS, 1986, p.05).

Diante do quadro argumentativo que estamos construindo, é necessário nos detemos nas análises acerca das questões éticas, isto é, aquelas que dizem respeito aos problemas que são colocados no interior de uma comunidade: o que é bom para nós. Estas questões surgem a partir do momento em que a pergunta “o que devemos fazer?” aponta para além do horizonte da racionalidade teleológica, ou seja, voltada para um fim. Isto acontece quando os próprios valores orientadores se tornam problemáticos. Neste sentido, preferências antagônicas exprimem oposição de interesses que não podem ser superadas no plano dos discursos. Contudo, interesses duvidosos e orientações de valores estão de tal forma entrelaçados com a forma de vida compartilhada intersubjetivamente pelos membros de uma comunidade específica, que decisões de fortes valores afetam uma autocompreensão coletiva não esclarecida.

Questões éticas e políticas colocam-se na perspectiva dos membros que, em questões importantes da vida, querem obter clareza sobre que forma de vida eles compartilham, que ideias deveriam projetar suas vidas em comum. As questões ético-existenciais, colocadas no singular: “quem sou eu?”, “que modo de vida é bom para mim?”, “quem desejo ser?” repetem-se no plural, modificando, consequentemente, seu sentido. A identidade de um grupo refere-se às situações nas quais os membros podem dizer enfaticamente “nós”. O modo de nos apropriarmos das tradições e das formas de vida nas quais nós nascemos decide sobre “de que maneira queremos nos reconhecer” nas tradições culturais e, desta forma, decide o modo que nós somos e desejamos ser como cidadãos.

Já as questões éticas são respondidas como conselhos clínicos,. que se baseiam sobre uma reconstrução da forma de vida tornada consciente e, ao mesmo tempo, apropriada criticamente. Tais conselhos clínicos ligam o comportamento descritivo das tradições que marcam a identidade com o componente normativo do projeto de um modo de vida exemplar, que se justifica a partir das tomadas de decisões com respeito a esse princípio. O sentido imperativo desses conselhos pode ser compreendido como um dever que não depende dos fins e das preferências subjetivas das questões anteriores, mas que diz que modos de ação são bons para nós em longo prazo. Tais conselhos são embasados em discursos éticos. Os tipos de argumentos que são válidos nesse aspecto são aqueles que se apóiam em uma explicação da autocompreensão de nossa foram de vida transmitida historicamente e, nesse contexto, regulam as decisões sobre valores, pelo fim absoluto para nós, de uma conduta autêntica de vida. Podemos dizer que

Questões éticas são, em geral, respondidas em imperativos incondicionados do seguinte tipo: “Tens de seguir uma profissão que te dê a sensação de ajudar outras pessoas”. O sentido imperativo de proposições como esta pode ser entendido como um “dever” (Sollen) que não depende de fins e preferências subjetivas e, no entanto, não é absoluto (HABERMAS, 1986, p.08).

As nossas análises consideraram dois aspectos da Formação da Vontade e da Opinião Política. Em primeiro lugar, as deliberações servem para estabelecer e ponderar metas coletivas, bem como para elaborar e escolher estratégias de ação apropriadas para obtenção dessas metas. Em segundo lugar, o horizonte das formações de valor, onde se colocam essas tarefas de estabelecer e valorizar os fins pode ser introduzido no processo de Formação Racional da Vontade pelo caminho de um auto-entendimento que se apropria da tradição.

Como consequencia do que foi exposto, podemos dizer que nos discursos pragmáticos, sabemos o que queremos – o fim. Já nos discursos éticos-políticos nos certificamos de uma configuração de valores sobre o pressuposto de que nós ainda não sabemos o que realmente queremos. Mas, nesses discursos, podemos fundamentar programas, na medida em que eles são adequados para um fim. Neste sentido, eles são vistos no seu conjunto como “bons para nós”. O homem, enquanto um indivíduo inserido em determinada sociedade, é mais do que um ser de necessidades, ele é também um cidadão e, mais do que isso, é um ser humano, ou seja, um ser moral, situado em um horizonte mais amplo. É neste contexto que se analisam as questões morais a partir das quais surge um ponto de vista normativo, e se percebe a existência de reguladores de nossa vida em comum, no interesse e na reciprocidade de todos.

Nessa franja argumentativa, uma norma é justa só quando todos podem querer que ela seja seguida por qualquer um. No que tange aos mandamentos morais, esses têm o significado de imperativos categóricos, ou incondicionados, ou seja, são aqueles inteiramente desvinculados de qualquer condição. O sentido imperativo desses mandamentos pode ser entendido como um dever, que não depende de fins ou preferências subjetivos, nem da meta absoluta para nós, de um modo de bem viver. O que se deve fazer tem o sentido de que a práxis correspondente é justa. Tais deveres são fundamentados em discursos morais, os quais defendem os interesses incorporados nas normas que são capazes de universalização.

Nos discursos morais, a perspectiva etnocêntrica de uma determinada comunidade se alarga na perspectiva abrangente de uma comunidade ilimitada de comunicação, cujos membros se colocam todos na situação e na compreensão do mundo e de si, praticando a assunção – assumir o papel do outro generalizado – ideal de papéis. Este é o ponto de vista universalizado. Neste sentido, o princípio da universalização obriga os participantes a examinarem normas controversas, no sentido de ver se elas poderiam encontrar o assentimento refletido por todos. Regras morais só superam este teste numa versão universal, completamente descontextualizada.

Pomos dizer, de forma concludente acerca desta tópica analisada por nós, que as justificações das indicações técnicas e estratégias de ação dos conselhos clínicos e dos imperativos categóricos são feitos, respectivamente, nos discursos pragmáticos, ético e morais. “A unidade da razão prática pode fazer-se valer, de maneira inequívoca, apenas no contexto interno daquelas formas comunicativas, nas quais as condições de formação racional da vontade coletiva tomam figura objetiva” (HABERMAS, 1986, p.19).

2.2 A relação entre razão e vontade nos aspectos pragmáticos, éticos, morais e de negociação

Nossa análise da relação entre razão e vontade nos aspectos pragmáticos, éticos e morais centra-se na seguinte questão: de que maneira o deslocamento do sentido ilocucionário do dever, isto é, do hipotético condicionado e do categórico, modifica também o conceito de vontade, a qual esses imperativos se dirigem?

Os deveres das recomendações pragmáticas relativos aos fins e aos valores dados dirigem-se ao arbítrio dos atores que tomam decisões prudentes com base nos interesses e orientações de valores pressupostos hipoteticamente. Percebemos que esta situação é extrínseca ao discurso, pois esses deveres permanecem externos aos discursos pragmáticos nos quais se fundamenta a escolha racional entre possíveis alternativas de ação. Não há, pois, nenhuma relação interna no discurso entre razão e vontade, ou entre a reflexão prática e a aceitação dos resultados.

O dever dos conselhos clínicos, relativizados ao telos do nosso bem viver, dirigi-se à força-de-decisão de uma coletividade que quer se certificar de um modo autêntico de vida. Em tais processos de auto-atendimento cruzam-se os papéis de participantes no discurso e de membros de uma comunidade histórica. Aqui, não é mais possível separar gênese e validade das razões próprias no discurso, como acontecia nas estratégias da ação projetadas para um fim. Os participantes da argumentação não podem desligar-se da forma de vida em que se encontram de fato. A entrada nos discursos morais exige a retirada de todos os contextos normativos existentes de modo contingente. Eles estão sobre os pressupostos da comunicação, que exige a ruptura com as evidências do Mundo da Vida, em especial uma atitude hipotética em face das normas de ação e de suas pretensões de validade.

No que tange ao dever categórico, percebemos que os mandamentos morais dirige-se à vontade livre, ou simplesmente, à liberdade em sentido pleno das pessoas e dos atores que agem segundo leis que eles próprios se dão. Somente essa vontade é autônoma – do grego autos “próprio” + nomos “lei” = lei própria – no sentido em que ela se faz determinar completamente pela intelecção moral, ou seja, pela intelecção daquilo que todos poderiam racionalmente querer. Esta vontade é libertada dos traços heterônomos – do grego héteros, “outro” + nomos, “lei” = lei estabelecida ou imposta por outrem – dos interesses e orientações de valor contingentes, em especial das formas de vida culturais e das tradições que marcam a identidade. Neste sentido, segundo o uso linguístico kantiano, a vontade é livre ou autônoma quando é completamente penetrada pela razão prática ao se identificarem, sem deixar de ser vontade e razão. Unicamente a vontade dirigida pela intelecção moral e, como tal, completamente racional, pode denominar-se autônoma.

A vontade absolutamente boa, cujo princípio tem que ser um imperativo categórico, ficará, pois, indeterminada em relação a todos os objetos e conterá só a forma do querer em geral, como autonomia; tal é a atitude da máxima de toda boa vontade para fazer de si mesma lei universal, digamos, é a única lei que impõe a si mesma a vontade de todo ser racional, sem que intervenha como fundamento nenhum impulso e interesse. (KANT, 1980, p.147 e 148).

A vontade autônoma é completamente interiorizada na razão. Neste sentido, a vontade autônoma, com sua racionalidade, paga o preço porque ela unicamente pode impor-se no mundo social com a força fraca dos motivos racionais, pelos quais ela se faz determinar. Todavia, nas sociedades modernas e complexas, as regulamentações propostas, necessárias para a convivência comum ou para uma determinada matéria, atingem de modo muito diferente interesses múltiplos, sem que seja possível fundamentar um interesse universal – questão moral – ou a primazia evidente de um determinado valor. Nestes casos, resta a alternativa de negociação que, contudo, exige a disposição cooperativa das partes que agem orientados para o êxito. Também deve haver uma relação simétrica nas negociações – uma liberdade de participação nas negociações. Mas como se efetivaria essas negociações?

Processos de negociação são apropriados para situações nas quais as relações sociais de poder não podem ser neutralizadas, como é pressuposto nos discursos racionais. Mas, também, as negociações terão que ser reguladas por procedimentos que garantem a equidade.

O que constitui a política deliberativa é o conjunto das quatro relações entre razão e vontade. Estas diferentes relações serão decisivas para a Formação da Vontade e da Opinião Política. Estas relações podem ser melhor vislumbrada através de “Um modelo do processo da formação política racional da vontade.”

Discursos pragmáticos

Negociações reguladas Discursos éticos-políticos

através de processos

Discursos morais

Discursos jurídicos

A formação política da vontade culmina em decisões sobre política e leis, que precisam ser formuladas na linguagem do direito. Isso implica, no final das contas, um controle das normas, quando se examina a possibilidade de os novos programas se encaixarem no sistema jurídico vigente (HABERMAS, 1997, p.48).

Para podermos melhor compreender o que até agora foi dito sobre a relação entre razão e vontade nos aspectos pragmáticos, éticos e morais na Formação da Vontade e da Opinião Política, e de que maneira estes aspectos estão interligados na dimensão da validade do direito, utilizaremos as palavras de Habermas, as quais dizem que:

O paradoxo das regras de ação, que exigem apenas um comportamento objetivamente conforme a normas, sem levar em conta a possibilidade de seu reconhecimento moral, se resolve com o auxílio do conceito kantiano da legalidade: normas do direito são, ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e leis da liberdade (HABERMAS, 1997, p.49).

3. O princípio do discurso e seus desdobramentos

Neste passos de nossa pesquisa, como uma consequência inevitável do que acima expusemos a partir da filosofia de Habermas, iremos analisar o princípio do discurso e seus desdobramentos.

Se as questões práticas em geral podem ser decididas racionalmente e julgadas imparcialmente, então podemos fundamentar normas de ação em geral, sob o ponto de vista da imparcialidade, ou seja, do interesse simétrico de todos. É exatamente esse o princípio do discurso. Neste sentido, o princípio do discurso pode ser assim resumido, com relação à versão abstrata: “Válidas são exatamente aquelas normas de ação as quais todos os possivelmente afetados poderiam assentir como participantes em discursos racionais” (HABERMAS, 1997, p.141). E ainda,

Entram nesta formulação conceitos carentes de uma explicação. O predicado “válidas” refere-se a normas de ação e a proposições normativas gerais correspondentes; ele expressa um sentido não-específico de validade normativa, ainda indiferente em relação à distinção entre moralidade e legitimidade. Eu entendo por “normas de ação” expectativas de comportamento generalizadas temporal, social e objetivamente. Para mim, “atingido” é todo aquele cujos interesses serão afetados pelas prováveis consequências provocadas pela regulamentação de uma prática geral através de normas. E “discurso racional” é toda a tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições da comunicação que permitem o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias. Indiretamente a expressão refere-se também a negociações, na medida em que estas são reguladas através de procedimentos fundamentados discursivamente (HABERMAS, 1997, p. 142).

Já o princípio moral se refere às normas de ação sobre o ponto de vista da consideração simétrica do direito. O discurso, neste sentido, recebe a determinação universal de razões universalizáveis. A formulação do princípio moral é este: “Válida será uma norma quando todos puderem aceitar, sem coação, as consequências e efeitos colaterais, que previsivelmente se produzirão de seu cumprimento universal para a satisfação dos interesses de cada um” (HABERMAS, 1997, p.116).

Com relação ao princípio da democracia, este resulta de uma especificação correspondente para tais normas de ação que surgem na forma do direito e que podem ser justificadas por ajuda de argumentos pragmáticos, ético-políticos e morais. Este princípio pode ser assim descrito: “Só podem pretender validade legítima as leis jurídicas que possam encontrar o assentimento de todos os membros de direito, num processo discursivo de instauração de direito, concebido por sua vez juridicamente” (HABERMAS, 1997, p.149).

Nas questões ético-políticas a forma de vida de nossa comunidade política constitui o sistema de referência, de fundamentação e regulamentação, que valem como expressão de uma autocompreensão coletiva consciente.

Antagonismos de interesses precisam de um ajuste racional entre interesses e valores concorrentes, ou seja, necessitam que sejam fomentados compromissos. Estes compromissos, na medida em que acontecem sob condições de negociação equitativas, têm em princípio que ser aceitos por todos os participantes, mesmos que por razões diferentes. O princípio da democracia deve fixar um procedimento de instauração legítima do direito.

Partindo do pressuposto de que uma formação política racional da opinião e da vontade é possível, o princípio da democracia simplesmente afirma como esta pode ser institucionalizada – através de um sistema de direitos que garante a cada um igual participação num processo de normatização jurídica, já garantido em seus pressupostos comunicativos. Enquanto o princípio moral opera no nível da constituição interna de um determinado jogo de argumentação, o princípio da democracia refere-se ao nível da instituição externa e eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo direito (HABERMAS, 1997, p.146).

Há também uma diferença entre essas normas, a saber: enquanto o princípio moral só pode ser justificado por razões morais, o princípio da democracia é modelado por normas jurídicas. Essas normas têm um caráter artificial, isto é, elas formam um conjunto de normas produzidas intencionalmente e reflexivas – aplicáveis a si mesmas. Por isso, o princípio da democracia tem não só que fixar um procedimento de instauração legítima do direito, mas também dirigir a produção do próprio medium do direito.

A partir do princípio do discurso é preciso fundamentar as condições que têm que satisfazer os direitos em geral, para que eles possam servir para a constituição de uma comunidade de direito e como medium da auto-organização dessa comunidade. A única maneira de legitimar o direito é pala democracia, ou seja, pelo princípio do discurso.

A esses dois aspectos que se diferenciam – o princípio moral e o princípio da democracia –, correspondem às duas tarefas que o procurado sistema de direitos deve resolver: ele deve não só institucionalizar uma Formação Racional da Vontade e da Opinião, mas também garantir o próprio medium no qual esta pode encontrar expressão como a vontade comum dos membros de direito, livremente associados. A distinção visa uma fundamentação do direito a partir da teoria do princípio do discurso: fundamentação jurídica e não moral do direito.

O ponto central da preparação da fundamentação gira em torno da produção do próprio medium do direito. Para isso, Habermas se serve de um artifício de apresentar cidadãos “que queiram regulamentar legitimamente sua vida em comum com os meios do direito” (HABERMAS, 1997, p. 147). Para poder regular sua vida em comum, os cidadãos já devem dispor do medium do direito e para constituir o medium do direito, tem que estar definido o estatuto das pessoas de direito, que como tal vão regular sua vida comum, o qual pressupõe a ideia de autonomia dos cidadãos, que justamente se realiza nesse meio. Portanto, a constituição do medium do direito pressupõe que haja pessoas portadoras de direitos em geral.

A ideia de autonomia jurídica – autolegislação dos cidadãos – exige que aqueles que estão submetidos ao direito como destinatários possam se compreender, ao mesmo tempo, como autores.. Esta é a razão central pela qual Habermas não admite uma fundamentação moral do direito. Estaríamos contradizendo essa ideia de autonomia jurídica, se o legislador da constituição democrática encontrasse os direitos humanos como fatos morais – como uma espécie de ideia metafísica – que unicamente precisasse de uma positivação. Mas isto significa também que os cidadãos, no seu papel de legisladores, não têm mais a liberdade para escolher o medium do direito, porque é unicamente nele que eles podem realizar a sua autonomia. Eles são participantes na legislação como sujeitos de direito. A ideia democrática de autolegislação tem que se fazer valer no próprio medium do direito.

3.1 Questões relacionadas na produção do medium do direito

A fundamentação jurídica do direito supõe dois passos: o esclarecimento do paradoxo da legitimidade a partir da legalidade; uma releitura do conceito de autonomia a partir da teoria do discurso, que permita conhecer a conexão entre direitos humanos e soberania popular, que são as ideias básicas sobre as quais pode ser justificado o direito moderno e o estabelecimento da forma do direito pelas quais as suas normas se distinguem das normas morais.

A partir das considerações acima levantadas, constatamos dois aspectos: de um lado temos a fundamentação moral dos direitos positivos, que reivindicam legitimidade maior em face ao processo político de jurisdição. Essa interpretação dos direitos subjetivos recebe uma autoridade moral independente da instauração democrática do direito e, portanto, não pode ser fundamentada na teoria do direito. Por outro lado, surge um desenvolvimento de subordinação abstrata do direito subjetivo ao direito objetivo, do domínio político, entendido segundo a positividade da lei.

Para Habermas, essa oposição, que acima mencionamos, oculta o verdadeiro problema que está ligado com a posição central dos direitos subjetivos: não se consegue explicar de onde o direito positivo recebe sua legitimação. Isto porque, se de um lado a fonte de toda legitimidade está no processo democrático de instauração do direito, e este processo implica o princípio de soberania popular, por outro lado, o positivismo da lei introduz esse princípio com a perda do conteúdo moral dos direitos subjetivos.

Neste parâmetro, o problema que permanece oculto é que em ambos os casos se perde de vista o sentido intersubjetivo das liberdades subjetivas de ação, concebidas juridicamente. Além disso, perde-se também a relação da autonomia privada e a autonomia do cidadão. Para Habermas:

Certamente a fonte de toda legitimidade está no processo democrático da legiferação; e esta apela, por seu turno, para o princípio da soberania do povo. Todavia, o modo como o positivismo jurídico introduz esse princípio não preserva o conteúdo moral independente dos direitos subjetivos – a proteção da liberdade individual, sublinhada por Coing. Nenhum dos dois modos atinge o sentido intersubjetivo de liberdades de ação subjetivas estruturadas juridicamente, no qual ambos os momentos aparecem por inteiro, e nem a relação entre a autonomia privada e a do cidadão (HABERMAS, 1997, p.122).

É no sentido intersubjetivo dessas liberdades que se deve pensar esses dois momentos: da autonomia privada e da autonomia pública.

É importante notar que essa mesma oposição é encontrada no liberalismo e no republicanismo, como já vimos em outro momento deste artigo. Podemos dizer que no republicanismo, os direitos humanos devem atribuir sua legitimidade ao resultado do autoentendimento ético e autodeterminação soberana da comunidade política. Já no liberalismo, os direitos humanos devem estabelecer, por natureza, limites legítimos que proíbam a vontade soberana do povo o abuso das esferas intocáveis das liberdades subjetivas.

Tanto Rousseau quanto Kant tentaram pensar no conceito de autonomia da pessoa jurídica, unidas de tal modo que a soberania do povo e os direitos humanos se interpenetram reciprocamente, mas nenhum dos dois conseguiu fazer justiça à igual originalidade de ambas as ideias. Isto se evidencia porque, enquanto Rousseau sugere uma leitura republicana, Kant sugere uma leitura liberal, mas os dois malogram sobre a intuição que pretendiam conceitualizar – a ideia de direitos humanos que se expressa no direito de iguais liberdades subjetivas de ação não pode ser imposta ao legislador soberano, como limite externo, nem ser instrumentalizada como requisito básico-funcional para seus fins.

Para compreendermos o segundo passo a que nos propomos neste item de nossa pesquisa, podemos dizer que Habermas mantém a ideia de que toda a fonte de legitimidade está no processo democrático de instauração do direito, pois nas condições atuais das sociedades modernas pluralistas pós-metafísicas, só um processo democrático pode autorgar legitimação ao processo de instauração do direito. Mas ele interpreta esse processo democrático a partir da teoria do discurso. Isto é, a legitimação do direito, de modo geral, poderia ser escrita da seguinte maneira: só podem reivindicar legitimidade aquelas regulamentações as quais todos os possíveis afetados poderiam assentir como participantes em discursos racionais.

Se os discursos formam o lugar no qual pode se Formar uma Vontade Política Racional, então a suposição de racionalidade, que deve fundamentar o processo democrático, tem que se apoiar em um dispositivo comunicativo artificial. Trata-se das condições sobre as quais podem ser institucionalizadas juridicamente as formas de comunicação necessárias para uma instauração legítima do direito.

A partir dessas análises, podemos estabelecer a conexão interna necessária entre soberania popular e direitos humanos. Esta se faz da seguinte forma: a exigência da institucionalização jurídica de uma práxis cidadã do uso público das liberdades comunicativas é satisfeita pelos mesmos direitos humanos. Ou seja, a conexão está em que os mesmos direitos humanos possibilitam o exercício da soberania popular. Neste sentido, os direitos humanos não podem ser impostos de fora, como limitação a essa práxis.

É importante salientar que essa formulação ainda não é satisfatória, pois esta conexão parece clara quando se tem em vista o direito de comunicação e participação, direitos esses que são justamente os que asseguram a autonomia pública.

Mas resta saber como ficam os direitos humanos clássicos, que são os que asseguram a autonomia privada. Esses direitos – que devem garantir a cada um propor-se e perseguir, com iguais chances, metas privadas em sua vida – tem um valor intrínseco para além dos direitos políticos. Dessa forma, os direitos humanos possibilitam a práxis de autodeterminação dos cidadãos, de forma que apareça a igual originalidade dos direitos clássicos e dos direitos políticos. É neste ponto que surge a releitura do conceito de autonomia a partir da teoria do discurso de Jürgen Habermas, segundo a qual a autonomia privada e a autonomia pública se pressupõe reciprocamente.

Neste contexto de análise, podemos dizer que para o medium do direito atuar tem que haver o status de pessoas de direito – pessoas que, na qualidade de portadoras de direito subjetivos, fazem parte de uma associação de parceiros jurídicos efetivos. Não existe, desta feita, direito positivo em geral sem a garantia da autonomia privada das pessoas de direito. E sem os direitos clássicos da liberdade, que garantam a autonomia privada das pessoas de direito, não pode haver o medium para a institucionalização jurídica das condições que permitem aos indivíduos fazerem uso de sua autonomia de cidadãos. Tudo depende do estabelecimento dos direitos humanos. Os direitos humanos possibilitam a práxis de autodeterminação dos cidadãos.

A co-originalidade da autonomia privada e pública somente se mostra, quando conseguimos decifrar o modelo da autolegislação através da teoria do discurso, que ensina serem os destinatários simultaneamente os autores de seus direitos. A substância dos direitos humanos insere-se, então, nas condições formais para a institucionalização jurídica desse tipo de formação discursiva da opinião e da vontade, na qual a soberania do povo assume figura jurídica (HABERMAS, 1997, p.139).

Nessa franja argumentativa, se faz necessário analisar a compreensão da relação entre os direitos humanos e os direitos políticos.

Para Habermas, uma ordem só pode ser legitima se não está em contradição com os princípios morais. Por isso, o direito positivo continua tendo uma relação com a moral, através do componente da legitimidade da validade do direito. Mas essa relação com a moral não pode levar-nos a subordinar o direito à moral. Por isso, a moral e o direito estão entre si numa relação de complementariedade. Na sustentação de tal assertiva, Jürgen Habermas parte do seguinte fato sociológico: no nível da fundamentação pós-metafísica, tanto as regras como as normas morais se diferenciam da eticidade tradicional e surgem paralelamente como dois tipos complementares de normas de ação. Em consequência, o conceito de autonomia tem que ser concebido em uma tal abstração, que ele pode assumir uma figura especifica em cada norma de ação, a saber: de um lado, como um princípio moral, por outro lado, como princípio da democracia.

Com esta posição, Habermas evita o conceito de autonomia estrito, e pode também realizar uma interpretação dos direitos humanos reinscrito na práxis de autodeterminação dos sujeitos com direitos jurídicos, não obstante seu conceito moral. Temos, assim, o conceito de autonomia concebido de maneira abstrata, no princípio do discurso. Seu desdobramento em uma autonomia moral expressa-se no princípio da moral e da autonomia jurídica. Nesse sentido, o princípio jurídico desdobra-se em autonomia privada e autonomia pública.

4. O surgimento das novas esferas públicas: formação racional da opinião e da vontade

Nas reflexões filosóficas de Jürgen Habermas, percebemos que seu ponto nevrálgico se constituiu como uma crítica radical da sociedade, a qual fundamenta o arcabouço teórico de sua Teoria Crítica. Nesta perspectiva é que compreendemos a busca deste filósofo por uma esfera pública. autêntica. Trata-se, então, de construir um novo “poder”: “Eis o que quero dizer: o poder de integração social da solidariedade deveria ser capaz de resistir às ‘forças’ dos outros dois recursos, dinheiro e poder administrativo” (HABERMAS, 1987b, p.112). O caminho é a constituição de “esferas públicas autônomas”, que não lutariam “diretamente por dinheiro ou poder, mas por definições”. Como exemplo, Habermas apresenta os movimentos regionais, feministas e ecologistas. Estas “esferas públicas autônomas” também “[...] se põem em comunicação umas com as outras tão logo o potencial é aproveitado para a auto-organização e para o emprego auto-organizado dos meios de comunicação” (HABERMAS, 1987a, p.113).

Para haver a construção deste novo paradigma de poder, se faz necessário um “poder” organizacional, que garanta o direito de iguais liberdades subjetivas de ação concretizadas nos direitos fundamentais de participação que fundamentam pretensões, no preenchimento de pressupostos sociais. Neste sentido, “enquanto direitos positivos, revestem-se de sanções, podendo ser usadas contra interesses opostos ou transgressões de normas” (HABERMAS, 1997, p.169). Em síntese:

O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm que ser implantados, porque a comunidade de direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser implementados (HABERMAS, 1997, p. 171).

Habermas, neste âmbito, irá dizer que não é a forma do direito enquanto tal que fomenta a legitimação do exercício do poder político, mas sim a ligação com o direito legitimamente estatuído. Isto traz como consequência inevitável a ideia de incorporação do exercício da autonomia política dos cidadãos no Estado. Essa situação se concretiza com a passagem da socialização horizontal dos civis – que atribuem reciprocamente direitos – para formas verticais de organização socializadora, na qual temos a prática da autonomia dos civis institucionalizada – com a participação política no âmago dos partidos políticos, bem como na participação em votações em geral.

Uma soberania popular interligada internamente com as liberdades subjetivas, entrelaça-se, por seu turno, com o poder politicamente organizado, de modo a que o princípio “todo o poder político parte do povo” vai ser concretizado através dos procedimentos e pressupostos comunicativos de uma formação institucionalmente diferenciada da opinião e da vontade (HABERMAS, 1997, p. 173).

É necessário salientar que dentro da esfera de Formação Racional da Opinião e da Vontade, há entrelaçado com as pretensões de validade – de entendimento, inscritas no “Agir Comunicativo” – o “agir estratégico”. Por esta feita,

[...] a prática de entendimento distingue-se da prática de negociação através de sua finalidade: num caso, a união é entendida como consenso, no outro como pacto. No primeiro, se apela para a consideração de normas e valores; no segundo, para a avaliação de situações de interesse (HABERMAS, 1997, p. 178).

4.1 A relação entre o direito positivo e o poder político

Por intermédio do sistema dos direitos, procuraremos analisar os pressupostos nos quais os membros de uma dada comunidade jurídica moderna se apóiam quando procedem legitimamente, sem contudo apelar para motivos de cunho religioso ou metafísico.

Na concepção da função estabilizadora de expectativas, o direito se mostra como um sistema. Neste sentido, os direitos subjetivos só podem ser estatuídos e impostos por intermédio de organismos que tomam decisões que se constituem como obrigatórias para a coletividade, da mesma forma que tais decisões devem sua obrigatoriedade coletiva à forma jurídica. Esta relação é o que Habermas chama de “nexo interno do direito com o poder político” (HABERMAS, 1997, p.173).

O direito resguarda as liberdades subjetivas de ação, as quais, enquanto direitos positivos, revestem-se de ameaças e sanções, podendo, neste parâmetro, ser usados contra interesses opostos ou transgressões de normas, necessitando de uma organização a qual dispõe de meios para o emprego legítimo de tais correções, com o propósito de impor o respeito às normas jurídicas. A fim de constituir-se como comunidade de direito, a coletividade precisa dispor de uma instância autorizada legitimamente a agir em nome do todo.

É nesta feita que o direito à positivação política autônoma concretiza-se em direitos fundamentais que criam iguais condições à participação dos indivíduos, em processos de legislação democrática. “Além disso, a formação da vontade política, organizada na forma do legislativo, depende de um poder executivo em condições de realizar e implementar os programas acordados” (HABERMAS, 1997, p.169). Podemos dizer que não é a forma do direito que legitima a prática do poder político, mas sim, a ligação que este possui com o direito legitimamente estatuído.

Para realizar uma análise da questão da relação do direito e do poder, Jürgen Habermas reconstrói conceitualmente uma gênese do direito e da política, na forma de um modelo abstrato. Primeiramente, este filósofo constrói dois tipos de paradigmas: a arbitragem de litígios e a formação coletiva da vontade. Habermas parte da ideia de que interações sociais interligadas no espaço e no tempo determinado, encontram-se sob a ótica de uma dupla contingência: os atores esperam, de forma recíproca, que eles decidam as questões desta ou daquela maneira. A ordem social que se encontra dotada de padrões de comportamento precisa apoiar-se em mecanismos de coordenação da ação – sobre o entendimento ou sobre a influência. Surgem, nesta ótica, duas possibilidades: problemas de conflito provocados por orientações individuais inconciliáveis ou escolhas cooperativas de fins. Por isso: “A arbitragem do litígio refere-se à estabilização de expectativas de comportamento, no caso de conflito, ao passo que a formação coletiva da vontade refere-se à escolha e realização efetiva de fins capazes de consenso” (HABERMAS, 1997, p.178).

Podemos dizer que a prática de entendimento se distingue da prática de negociação: no primeiro caso, a união é realizada como consenso, no outro, como pacto. Respectivamente, se apela para a consideração de normas e valores ou para a avaliação de situações de interesses.

“Consenso” e “arbitragem” são os motes para dois tipos de arbitragem de conflito. Sob condições de um agir orientado por normas, existe a possibilidade de os partidos apaziguarem um conflito tomando consciência, na base de um consenso sobre valores, daquilo que deve ser feito no caso desse conflito. [...] Sob condições de um agir orientado por interesses, existe ainda uma outra possibilidade de solucionar um conflito: os partidos, apoiados em suas posições de poder e em seus correspondentes potenciais de ameaça, chegam a uma compensão de interesses, normalmente na forma de indenizações por desvantagens surgidas (HABERMAS, 1997, p. 178).

Outra questão da relação do direito e do poder realizada por Jürgen Habermas é a de um chefe que dispõe de reputação e poder social reconhecido, que nesse sentido pode atrair a si as funções de arbitragem de litígios, na medida em que ele assume a administração dos bens salvíficos e, desta maneira, se transforma em intérprete exclusivo das normas da sociedade. Isto é possível, uma vez que o direito sagrado representa uma fonte da justiça capaz de legitimar o poder: o “rei-juiz” adquire, por esta razão, o status de autoridade normativa. Neste sentido, “o poder sócia natural do rei-juiz era sustentado por uma fonte de poder, da qual a jurisdição pode extrair ameaças de sanção: o poder pré-estatal afirma o direito tradicional, que vive sancionado pelo governante e, destarte, obrigatório” (HABERMAS, 1997, p. 180).

Podemos dizer que somente na modernidade o poder político pode desenvolver-se como poder legal, ou seja, em formas do direito positivo.

Somente na modernidade o poder político pode desenvolver-se como poder legal, em formas do direito positivo. A contribuição do poder político para a função própria do direito, que é a de estabilizar expectativas de comportamento, passa a consistir, a partir deste momento, no desenvolvimento de uma segurança jurídica que permite aos destinatários do direito calcular as consequências do comportamento próprio e alheio (HABERMAS, 1997, p.183).

Habermas diz que o direito não serve exclusivamente para orientar normas de comportamento, ele serve também para a organização e a orientação do poder do Estado. Ele funciona como regra constitutiva, não garantindo apenas a autonomia pública e privada dos cidadãos, mas também produz instituições políticas, procedimentos e competências.

É neste âmbito de raciocínio que Habermas faz sua reinterpretação. do conceito de poder, um dos fios condutores do pensamento político de Hannah Arendt. Sobre isso, diz Arendt: “o poder nasce da capacidade humana de agir ou de fazer algo, de se associar com outros e de agir em afinação com eles” (ARENDT apud HABERMAS, 1997, p. 187). Neste sentido, o poder serve para a institucionalização política do direito. Para melhor compreendermos esta questão, se faz necessário analisarmos “o nexo funcional entre código do direito e código de poder” (HABERMAS, 1997, p.171), como forma de reinterpretação de Habermas sobre a concepção de poder:

Este poder comunicativo pode vir a brotar das esferas públicas, a partir da estrutura fundamental de intersubjetividade inerente a ela, desde que não haja uma formação deformada da comunicação. O poder origina-se em um local próprio, ou seja, onde há uma Formação da Opinião e da Vontade, juntamente com as liberdades comunicativas que permitem a cada cidadão “fazer uso público de sua razão em todos os sentidos”, bem como fazer valer a produtividade de um “modo de pensar mais amplo”. Neste sentido, é necessário “que cada um atém o seu juízo de outros possíveis, e se coloca no lugar de cada um dos outros” (HABERMAS, 1997, p.184).

O direito se liga naturalmente a um poder comunicativo capaz de produzir direito legitimo. A partir daí, não há mais lugar para a tarefa clássica de encontrar um substituto para a justiça do direito natural que se legitima a si mesmo – um substituto do qual o poder meramente fático poderia extrair a autoridade de um poder dominante, revestido de força legítima. H. Arendt é obrigada a esclarecer, ao invés disso, como os cidadãos associados estatuem direito legítimo ao formar um poder comunicativo e como eles asseguram juridicamente tal prática, a saber, o exercício de sua autonomia política (HABERMAS, 1997, p. 188).

Para esclarecer esta questão colocada por Habermas é necessário nos atermos à ideia de que o conceito do poder comunicativo possibilita que se alcance apenas o surgimento do poder político, não a sua utilização administrativa já constituída. Nesta perspectiva, Arendt diz que “tanto a utilização do poder, como a sua aquisição e posterior manutenção, dependem da formação e da renovação comunicativa desse poder” (ARENDT apud HABERMAS, 1997, p.189).

Percebemos, ao longo das reflexões filosóficas-políticas, que o poder produzido comunicativamente se constitui como um bem frágil e escasso, disputado pelos detentores de poder que não tem os subsídios capazes de os fazer produzir este tipo de poder por si próprios.

O que primeiro solapa e depois destrói as comunidades políticas é a perda do poder e a impotência final: e o poder não pode ser armazenado e mantido em reserva para casos de emergência, como os instrumentos da violência: só existe em sua efetivação. Se não é efetivado, perde-se; e a história está cheia de exemplos de que nem a maior das riquezas materiais pode sanar essa perda. O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades (ARENDT, 2010, p.249).

Portanto, compreendemos, pelas análises acima realizadas, que procuraram iluminar brevemente o diálogo de aproximação e distanciamento entre Habermas e Arendt no que tange à noção do poder, que o exercício da autonomia política significa, consequentemente, a Formação Discursiva da Vontade e da Opinião. No entanto, não exclui ainda a implementação das leis que resultam desta vontade. É neste sentido que Habermas sugere que se deve considerar o direito como mediumatravés do qual o poder comunicativo, que se origina através dos espaços públicos, se constituirá em poder administrativo. Pois o poder administrativo não deve produzir-se a si mesmo, mas regenerar-se a partir do poder comunicativo de transformação.

Os direitos de participação política remetem, inevitavelmente, à institucionalização jurídica de uma Formação da Opinião e da Vontade, a qual desemboca em resoluções sobre leis e políticas. Neste sentido, “o direito não regula contextos internacionais em geral, como é o caso da moral; mas serve como mediumpara a auto-organização de comunidades jurídicas que se afirmam, num ambiente social, sob determinadas condições históricas” (HABERMAS, 1997, p. 191).

Considerações Finais

Percebemos, ao longo das reflexões deste artigo, que a fundamentação de Jürgen Habermas sobre o Direito e o Estado Democrático gira em torno do conceito de Formação Racional da Opinião e da Vontade. Esse conceito está implicado na Ação Comunicativa, uma vez que todo processo de comunicação é intersubjetivo e o mecanismo do Entendimento – como coordenador das interações sociais – supõem que as Pretensões de Validade sejam resolvidas por argumentação, isto é, por razões válidas intersubjetivamente. Isso significa que todo o processo de Pretensões de Validade implica na Formação Racional da Opinião e da Vontade comum, de uma comunidade de indivíduos legisladores10.

Em nossas análises sobre o conceito Formação Racional da Opinião e da Vontade presente na filosofia de Habermas, compreendemos que o problema da legitimação do direito está diretamente implicado na relação da autonomia privada e pública e o problema entre soberania popular e direitos humanos. E todos esses problemas iluminados por Habermas através da descoberta de um conteúdo normativo do exercício da autonomia, que é assegurada pela forma de comunicação da Formação Racional da Opinião e da Vontade.

Pelo que acima foi exposto, se evidencia a importância da discussão que Habermas trava com Kant e com Rousseau, porque a partir do paradigma da linguagem pode se mostrar que os dois filósofos falharam ao tentar realizar a união entre vontade e razão na autonomia moral e na soberania popular. É somente no processo de Formação Racional da Opinião e da Vontade que as forças ilocucionárias de ligação do uso da linguagem orientados ao entendimento são utilizados para unir vontade e razão e para se alcançar convicções nas quais todos os indivíduos possam concordar sem coação.

O lugar onde se pode formar uma vontade racional é no discurso. Os discursos reais, neste sentido, tornam possível a Formação Racional da Opinião e da Vontade – conceito essencial para a sociedade. Isto se evidencia porque na sociedade se inclui a ideia de aprendizado – aprende-se errando – e, consequentemente, possibilita sua permanente melhoria.

A Formação Racional da Opinião e da Vontade também se constitui como conceito sine qua non para a democracia, pois é somente errando e aprendendo com os erros que podemos avançar na formação e legitimação de um Estado de direito. Esta compreensão também é de extrema importância para a ética, porque é nos discursos reais que aprendemos a adotar o ponto de vista dos outros – saído do estado de egoísmo para o estado oposto, ou seja, o de alteridade – e, concomitantemente, alcançaremos o ponto de vista moral, enxergando o outro de maneira generalizada, universal, na medida em que considero não somente o que é bom para mim, mas o que é bom para todos.

Nos discursos reais a ideia do acordo de sujeitos originalmente isolados, sem uma relação socialmente compartilhada intersubjetivamente, cede lugar à ideia da Formação Racional da Opinião e da Vontade socializadas no marco fundamental do Mundo da Vida. É por esses aspectos que podemos compreender a Formação Discursiva da Vontade, ou seja, a razão da concessão interna dos dois aspectos implicados nos discursos reais, ou seja, da autonomia dos sujeitos insubstituíveis e da incorporação originária deles, na forma de vida intersubjetivamente compartilhada.

A partir das leituras dos textos fundamentais de Jürgen Habermas sobre o tema da Formação Racional da Opinião e da Vontade, podemos chegar às seguintes assertivas: os discursos promovem, simultaneamente, a justiça e a responsabilidade solidária. Com efeito, a justiça se refere à igualdade das liberdades dos direitos individuais da participação do discurso, em um Espaço Público, como bem salienta as filosofias de Habermas e Hannah Arendt. A responsabilidade solidária se refere ao bem dos grupos ou a solidariedade no Mundo da Vida, porque na medida em que os sujeitos estão incorporados em uma forma de vida, eles estão envolvidos com os problemas de seu respectivo Mundo da Vida. É nos discursos que eles poderão comprometer-se e responsabilizar-se pelas soluções dos problemas de uma comunidade.

Sem participação nas discussões dos problemas e nas soluções adotadas, não haverá solidariedade nas dificuldades dos outros. Esta questão, que poderia se constituir em um entrave para a Formação Racional da Opinião e da Vontade está, aos poucos, sendo superada pelas iniciativas de indivíduos que não aceitam abdicar de seu direito e dever na elaboração de uma sociedade mais justa e solidária, como se evidencia nos grupos que visam solucionar problemas em comum, tais como Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, Coletivos Feministas... Mas o que une justiça e solidariedade é a Formação Racional da Opinião e da Vontade. Os discursos reais, realizados com maior justiça e com maior solidariedade, poderão, cada vez mais, se abrir à discussão acerca dos problemas e conflitos de uma dada sociedade.

Material suplementar
Referências
ALMEIDA, Jorge. Mídia, Opinião Pública ativa e Esfera Pública democrática. http://sites.0uol.com.br/jorgealm.
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Autor(a) para correspondência: Fabio Abreu dos Passos. Universidade Federal do Piauí, Bairro Ininga, 64049-550, Teresina – PI, Brasil. fabiopassos@ufpi.edu.br
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