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Educação à distância: ampliando o alcance da crítica social

Distance education: extending the reach of social criticism

Vicente Eduardo Ribeiro Marçal
Universidade Federal de Rondônia, Brasil

Educação à distância: ampliando o alcance da crítica social

Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 1, pp. 82-92, 2020

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 04 Julho 2019

Aprovação: 29 Setembro 2019

Resumo: A partir de análise da argumentação habermasiana realizada em sua obra “Conhecimento e Interesse” original de 1968, a qual trabalhamos a partir da tradução de 1987; e ancorados nos trabalhos dos filósofos brasileiros Durão, publicado em seu livro “A crítica de Habermas à dedução transcendental de Kant” de 1996 e Hansen, em seu artigo publicado na Revista Crítica, intitulado “Os riscos da crítica da sociedade” de 1998, refletimos, nesse artigo, sobre como Habermas resgata a Teoria do Conhecimento da maneira desvirtuada que a legou o positivismo comteano, perpassando por Freud e Marx para recuperá-la como uma Teoria Crítica da Sociedade. E, apresentamos o advento da Era da Informação e as facilidades de comunicação que a acompanham, para apresentar o modelo da Educação à Distância como uma forma eficaz de ampliar o alcance da Crítica Social como autorreflexão que torna o conhecimento um instrumento crítico não só do indivíduo, mas também da sociedade.

Palavras-chave: Teoria do Conhecimento, Teoria Crítica, Ensino à Distância, Habermas.

Abstract: From an analysis of the Habermasian argumentation carried out in his work “Knowledge and Interest” of 1968, which we worked on from the 1987 translation; and anchored in the works of the Brazilian philosophers Durão, published in his book “A crítica de Habermas à dedução transcendental de Kant” of 1996 and Hansen, in his article published in Revista Crítica, entitled “Os riscos da crítica da sociedade” of 1998, we reflect, in this article, about how Habermas rescues the Theory of Knowledge from the distorted way behaved by Comtean positivism, passing through Freud and Marx to recover it as a Critical Theory of Society. We present the advent of the Information Age and the accompanying communication facilities to present the model of Distance Education as an effective way of extending the reach of Social Criticism as a self-reflection that makes the knowledge as a critical instrument not only for the individual but also of society.

Keywords: Theory of Knowlege, Critical Theory, Distance Education, Habermas.

Introdução

Nossa intenção é reconstruir a argumentação habermasiana apresentada em Conhecimento e Interesse (1987) na qual se têm uma recuperação da Teoria do Conhecimento desvirtuada pelo positivismo e apresentá-la como possibilidade de crítica à sociedade. Aliado a esta crítica, propomos a Educação à Distância como um método que amplia as possibilidades de alcance ao permitir o envolvimento de um número cada vez maior de pessoas no processo auto-reflexivo e crítico proposto por Habermas.

Ao deparar-se com a redução da Teoria do Conhecimento em uma Teoria da Ciência realizada pelo positivismo, Habermas se vê desafiado a argumentar buscando um reposicionamento coerente para a Teoria do Conhecimento e esta como uma Teoria Crítica da Sociedade.

A reconstrução dessa argumentação nos levará a compreender que o conceito de Interesse da Razão é o fundamento para a construção da Teoria Crítica da sociedade, principalmente no que diz respeito à conexão entre conhecimento e interesse, como descoberta metodológica que o preserve de interpretações equivocadas.

Essa reconstrução somente não será suficiente para compreendermos a Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade, mas, será necessário construir sobre esse fundamento os pilares de uma autorreflexão com bases na psicanálise, pois busca extrair do próprio positivismo uma reflexão de orientação terapêutica.

É percorrendo esse caminho argumentativo que pretendemos chegar à Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade proposta por Habermas e apresentar a Educação à Distância como método que permite ampliar o alcance dessa crítica à sociedade contemporânea.

O Interesse da Razão: Fundamento da Teoria Crítica

Habermas inicia sua argumentação sobre o conceito de Interesse da Razão demonstrando que Pierce e Dilthey, com sua lógica da ciência, recuperam a teoria do conhecimento abandonada pelo positivismo. Entretanto, por se preocuparem diretamente com as regras metodológicas e a organização dos processos de pesquisa e não com a lógica transcendental nem com a organização da razão transcendental, levam-na a uma compreensão que a reduz ao pisicologismo ou naturalismo o conceito de Interesse da Razão. Como nos afirma Durão (1996, p. 142)

[…] Pierce e Dilthey estiveram em condições de detectá-lo [conceito de Interesse da Razão] na metodologia reflexiva da ciência que empreenderam, mas como não conseguiram superar o meio positivista dominante, acabaram permitindo que o interesse técnico das ciências da natureza e o interesse prático das ciências do espírito fossem mal entendidos como reduções psicológicas que contaminavam a metodologia.

Durão (1996, p. 142) prossegue afirmando que Habermas compreende que o conceito de Interesse da Razão tem papel fundamental, justamente para evitar esse reducionismo psicologista ou naturalista do conhecimento, ou seja, reduzir o conhecimento ao seu aspecto instrumental. Como, também, nos afirma Hansen (1998, p. 361), Habermas

[…] move-se primeiramente no sentido de criticar a pretensão da ciência moderna de construir um discurso exato, isento de referências subjetivas, tecnicamente neutro. Isso porque no bojo de tal pretensão está implícita uma depreciação dos interesses no que tange à construção do conhecimento, mediante a submissão destes a um caráter secundário, notadamente instrumental da ação.

Para Habermas (1987, p. 217), interesses da razão são “[…] orientações básicas que aderem a certas condições fundamentais da reprodução e da autoconstituição da espécie humana: trabalho e interação […]”, isso implica dizer que tais orientações não possuem o objetivo de uma satisfação de necessidades empíricas imediatas, ao contrário, buscam solucionar problemas sistêmicos. Habermas demonstra que os interesses da razão, orientadores do conhecimento, estão relacionados aos problemas de conservação da vida e formação da espécie, pois trabalho e interação “[…] englobam ipso facto processos de aprendizagem e de compreensão recíproca; e tais processos necessitam estar assegurados na forma de uma investigação metódica, caso o processo formativo da espécie não deva correr o risco de estagnação […]” (HABERMAS, 1987, p. 218), isso distingue, nitidamente, que os interesses do conhecimento, aqui comprometidos com a conservação da espécie, devem ser concebidos como categorias antropológicas por estarem intrinsecamente ligados à cultura e à reprodução da vida social. Assim, afirma

[…] É por isso que o “interesse do conhecimento” perfaz uma categoria sui generis, a qual tampouco se sujeita à distinção entre determinações empíricas e transcendentais ou fáticas e simbólicas como àquela entre determinações inerentes à motivação e ao conhecimento. Pois, conhecimento não é nem mero instrumento de adaptação de um organismo a um circum-ambiente em alteração, nem ato momentâneo de um puro ser racional e, como contemplação, subtraído às conexões da vida enquanto tal. (HABERMAS, 1987, p. 218)

Habermas continua sua argumentação afirmando que essa ideia de processo de formação do sujeito da espécie humana, enquanto ator de sua auto-constituição, já havia sido elaborada por Hegel sendo posteriormente retomada por Marx, numa interpretação materialista. Entretanto, afirma que sob o positivismo tal ideia seria um retorno à Metafísica. Tal caminho de retorno é percorrido por Pierce e Dilthey enquanto “[…] refletem sobre a gênese das ciências a partir de um complexo vital objetivo e praticam, assim, a metodologia na perspectiva da teoria do conhecimento. […]” (HABERMAS, 1987, p. 219).

Habermas assegura que tal caminho percorrido por Pierce e Dilthey não é percebido por esses, pois ignoram a experiência de reflexão desenvolvida por Hegel na Fenomenologia, enfatizando a força emancipatória da reflexão. Aqui, concordamos com a afirmação de Hansen (1998, p. 362), ao dizer que “[…] a partir do resgate do conceito de interesse da razão, Habermas se defrontou com a necessidade de explicar outro conceito importante, qual seja, o conceito de reflexão”.

Assim, ao compreender que o conceito de Interesse da Razão se dá no momento em que a Razão Pura se torna prática, pois esta “[…] não se contenta em julgar os dados empíricos, mas ela tem uma propulsão para si própria. A razão tem um interesse em si mesma que a leva a tentar realizar a razão […]” (DURÃO, 1996, p. 144) sendo esse realizar-se da Razão que nos remete ao conceito de reflexão. Como afirma Habermas (1987, p. 219)

[…] Na auto-refelxão um conhecimento entendido com o fim em si mesmo chega a coincidir, por força do próprio conhecimento, com o interesse emacipatório; pois, o ato-de-executar da reflexão sabe-se, simultaneamente, como movimento da emancipação. Razão encontra- se, ao mesmo tempo, submetida ao interesse por ela mesma. Podemos dizer que ele persegue um interesse emancipatório do conhecimento e que este tem por objetivo a realização da reflexão.

E justamente pelo fato de Pierce e Dilthey não compreenderem sua lógica da ciência como autorreflexão é que eles não atingem a intersecção entre conhecimento e interesse.

O conceito de Interesse da Razão aliado ao conceito de Reflexão, retomados por Habermas, possuem uma aproximação muito grande com a prerrogativa socrática do “Conhece-te a ti mesmo”, como nos afirma Durão (1996, p. 146), Sócrates intui “[…] pela primeira vez, essa idéia de que desejamos o auto-conhecimento e com ele nos tornamos livres da prisão da ignorância, ao mesmo tempo, podemos conhecer porque desejamos o auto- conhecimento”.

Contudo, é diante de um conceito insuficiente de reflexão posto pelo Idealismo Alemão que fará com que Habermas faça uma crítica a tal conceito, buscando expandi-lo de forma a “[…] abarcar também a estrutura interna sobre a qual se assentam os auto-enganos da pessoa e da espécie humana, Habermas voltará sua investigação para a concepção de reflexão em Freud.” (HANSEN, 1998, p. 363), ou seja, Habermas procurará na psicanálise subsídios para ampliar a capacidade do conceito de reflexão, para que este possa sustentar a Teoria Crítica da Sociedade. Nossa próxima seção tem por objetivo reconstruir tal argumentação habermasiana.

Freud e a Psicanálise: Pilares de Sustentação da Teoria Crítica da Sociedade

Habermas tem a compreensão de que a relevância da psicanálise consiste no fato dessa reivindicar, de forma metódica, a autorreflexão, apesar de tal reivindicação não se concretizar devido ao auto equívoco cientificista da psicanálise, fato ocorrido já em seu nascedouro devido à combinação entre “[…] hermenêutica com realizações que, a rigor, estavam reservadas ao domínio das ciências da natureza” (HABERMAS, 1987, p. 234).

Muito importante aqui é a compreensão da hermenêutica psicanalítica, que Habermas denominará de Hermenêutica das Profundezas (ver HABERMAS, 1987, p. 236). A psicanálise compreende que o material que lhe é apresentado para interpretação está corrompido, como nos diz Habermas (1987, p. 236)

[…] As omissões e as alterações que ela suprime possuem um peso valorativo, pois os conjuntos simbólicos que a psicanálise procura compreender estão adulterados por influências internas. As mutilações possuem, como tais, um sentido. Um texto adulterado dessa espécie só poderá ser satisfatoriamente apreendido em seu sentido depois que for possível esclarecer o sentido da corrupção enquanto tal: é isto que caracteriza a tarefa particular de uma hermenêutica que não se pode limitar aos modos de proceder da filologia, mas unifica a análise da linguagem com a pesquisa psicológica de complexos causais […]

Tais adulterações pertencem a um campo da biografia do indivíduo que o mesmo já não tem mais acesso, de forma consciente. Hansen (1998, p. 364) afirma que tais adulterações são “[…] complexos simbólicos, ‘carentes de linguagem’ por terem sido subtraídos à comunicação pública […] [estes] vêm à tona através dos atos falhos e principalmente através dos sonhos […]”.

Os atos falhos, entre outras situações apontadas por Habermas (1987, p. 238), indicam as adulterações e defeitos no texto apresentado pelo indivíduo que simultaneamente escondem e revelam suas auto ilusões. Desse modo, essas adulterações podem manifestar-se de forma patológica, gerando sintomas que podem ser observados em três dimensões: nas expressões verbais, nas ações e nas expressões vivenciais corpóreas, sendo denominado pela psicanálise de neurose.

Os sonhos apresentam o modelo não patológico do texto adulterado, pois as causas da corrupção do texto buscam manifestar-se no indivíduo pela linguagem onírica. Isso ocorre porque o indivíduo é o produtor do texto onírico, contudo ao despertar não o compreende mais, mesmo se identificando como seu autor. Nesse caso, o intérprete tem como tarefa não apenas compreender um texto deformado que lhe é apresentado, mas vai além, deve buscar o próprio sentido da deformação textual.

Assim, Habermas compreende que a função do intérprete está muito além de intermediar a conversação entre dois indivíduos de línguas e culturas distintas. O intérprete, identificado na pessoa do analista, tem a função de auxiliar o indivíduo neurótico a compreender-se a si mesmo, ou seja, a compreender o texto adulterado e corrompido por ele mesmo, levando o indivíduo a traduzir este texto de uma linguagem particular para o discurso da comunicação pública, “[…] nesse sentido a hermenêutica psicanalítica não objetiva, como a hermenêutica das ciências do espírito, a compreensão de complexos simbólicos enquanto tais; o ato do compreender, ao qual ela conduz, é auto-reflexão” (HABERMAS, 1987, p. 246, grifo nosso).

O analista trabalha na reconstrução dos primórdios históricos do paciente, contudo deve ter plena consciência de seu papel coadjuvante nessa reconstrução histórica. O analista não pode interferir no processo, pois o mesmo é de autorreflexão. Mas, claro, não devemos desconsiderar a transferência que há na relação analista-paciente. Essa relação é salutar, contudo o analista deve se preocupar com

[…] respostas precipitadas, projeção de seus próprios motivos inconscientes ou pressa na obtenção de resultados, soluções paliativas e superficiais para seu paciente, de sorte que o mesmo alivie parcialmente sua dor e, com esse alívio momentâneo, abandone a terapia (HANSEN, 1998, p. 365).

Nesse sentido, é primordial que o analista esteja ele próprio em psicanálise. A fim de compreender-se, também, num processo de autorreflexão para poder auxiliar àqueles que lhe procuram. Compreendendo sua atuação no jogo de transferência realizado durante a psicanálise de seu paciente.

Desse modo, Freud vê no processo psicanalítico “[…] o esforço emancipatório característico da crítica, o qual transforma o estado patológico da compulsão e da auto-ilusão em um estado no qual o conflito está supresso e a linguagem excomungada reconciliada [...]” (HABERMAS, 1987, p. 262). Habermas compreende a existência de uma correlação muito clara entre a societarização com o processo de socialização do indivíduo, esta correlação pode ser demonstrada ao compreender-se que

As mesmas constelações, as quais levam o indivíduo à neurose, motivam a sociedade a erigir suas instituições. Aquilo que caracteriza as instituições constitui, ao mesmo tempo, sua similaridade com formas patológicas (HABERMAS, 1987, p. 290).

Sendo assim, o que impediu que Freud chegasse a uma compreensão de sua teoria psicanalítica como uma teoria da sociedade? Hansen (1998, p. 366) aponta que, no entendimento de Habermas dois pontos são fundamentais para isto:

i. Freud está convicto de ter fundado uma ciência da natureza e não uma ciência do homem, chegando a afirmar que sua técnica psicanalítica poderia ser, gradativamente, substituída pela psicofarmacologia;

ii. A não compreensão por parte de Freud de que “[…] a metapsicologia como aquilo que ela tão-somente no sistema referencial de auto-reflexão pode ser: como uma interpretação genérico-universal de processos que afetam a formação da espécie” (HABERMAS, 1987, p. 269).

Contudo, mesmo não tendo chegado à compreensão de uma teoria da sociedade, Freud oferece elementos suficientes para tal empreendimento e Habermas utiliza-se desses elementos para a construção de uma Teoria Crítica da Sociedade contrastando Freud a Marx, pois vê pontos convergentes em ambos.

A reconstrução dessa argumentação, apresentando a teoria crítica da sociedade de Habermas será a tarefa de nossa próxima seção.

A Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade

Habermas (HABERMAS, 1987, p. 288) vê em Freud uma compreensão da sociologia como uma psicologia aplicada e afirma

Ao conceber determinados distúrbios da comunicação, do comportamento e dos órgãos como sintomas, o analista recorre a um conceito preliminar de normalidade e desvio. Mas este pré-conceito está, possivelmente, determinado em termos culturais, e não pode ser definido pela mera referência a um estado-de-coisas já fixado (conceitualmente).

A formação cultural da espécie determina os conceitos de normalidade e anormalidade que estabelecerão os critérios de avaliação diagnóstica do indivíduo quanto a mutilação de seu texto, levando-o à necessidade de terapia. Mediante o conflito entre a auto conservação, “[…] que, sob os imperativos da natureza exterior, precisa ser garantida através do esforço coletivo de indivíduos socializados […]” (HABERMAS, 1987, p. 289) e a natureza interior com seu potencial exuberante de necessidades libidinosas e agressivas

Sendo assim, não há porque não comparar o processo historico-universal da societarização com o processo de socialização do indivíduo. Enquanto a coação da realidade é toda-poderosa e a organização do Eu frágil, de modo que a renúncia pulsional não pode ser imposta senão através de forças efetivas de repressão, a espécie encontra, para o problema da defesa, soluções coletivas que se assemelham às soluções neuróticas em nível individual (HABERMAS, 1987, p. 289).

Assim, temos nas instituições sociais as forças necessárias para coibir, de forma coletiva, as pulsões dos indivíduos. Bem como, no patrimônio cultural da tradição a sedimentação dos conteúdos da projeção das fantasias de desejo, as quais exprimem intenções reprimidas.

Temos, aqui, a compreensão de uma teoria da sociedade em Freud, que possui pontos de convergências, e divergências inovadoras, com a teoria marxista da história da espécie.

O primeiro ponto de convergência é a semelhança dos conceitos de cultura em Freud com o de sociedade em Marx, “[…] os quais se caracterizam, por um lado, como o elemento pelo qual a espécie humana se diferencia do animal; por outro lado, como instância de autoconservação que permite a afirmação do homem contra a natureza e a organização das relações dos homens entre si […]” (HANSEN, 1998, p. 367). Ou seja, tanto para Marx como para Freud, apesar de darem nomes distintos — sociedade e cultura — a organização humana tem duas finalidades: auto conservação diante de uma natureza totalmente inóspita e a intermediação das relações intersubjetivas necessárias à boa convivência em sociedade.

O segundo ponto de convergência se encontra no fato de ambos distinguirem entre forças produtivas e relações de produção. As forças produtivas determinam a capacidade técnica de domínio da natureza e extração das riquezas necessárias para a satisfação de suas necessidades. Já as relações de produção são as institucionalizações necessárias para mediar as relações humanas e a distribuição das riquezas produzidas.

Um último aspecto convergente entre Freud e Marx é a aceitação do caráter utópico em suas formulações. Tanto para Freud quanto para Marx, existe um conflito entre o indivíduo e a cultura/sociedade. Em Freud tal conflito se postula na regulamentação da coerção ao trabalho social, enquanto para Marx tal conflito está presente no próprio trabalho social.

Essa regulamentação da coerção das pulsões, convergindo-as ao trabalho social pode ser mensurável

[…] pelo alcance variável do domínio técnico que uma sociedade determinada dispõe sobre os processos da natureza. Assim, o quadro institucional que regula a distribuição de encargos e compensações, estabilizando uma ordem social assentada sobre a dominação e a renúncia imposta pela civilização, pode, à medida que o progresso técnico avança, distender-se, transformando em realidade porções sempre maiores de tradição cultural, antes de tudo essas que possuem um conteúdo-de-projeção, isto é, traduzindo satisfações virtuais em satisfações sancionadas pelas instituições (HABERMAS, 1987, p. 293).

Freud, portanto, vê na ilusão o caráter utópico da psicanálise. Entendendo ilusão não como delírios e nem falsidades, mas como o patrimônio psíquico da civilização, em outras palavras como o mundo da formação-em-projeção. Para Habermas (1987, p. 294)

Desde que o progresso técnico abra a possibilidade objetiva de reduzir as repressões inevitáveis a um nível inferior àquele postulado pelas instituições, o conteúdo utópico pode ser liberado de sua junção com os elementos alucinatórios, ideológicos, próprios à legitimação do poder, e passar à crítica dos complexos de dominação historicamente obsoletos.

Entretanto, Habermas vai apontar a maior divergência entre esses dois pensadores: o fundamento da hominização.

Em Marx tal fundamento está na capacidade da espécie humana em produzir, ou seja, em transformar a natureza em produtos que lhe satisfaçam as necessidades, como nos diz Hansen (1998, p. 367)

Marx veicula tal fundamento ao trabalho social, caracterizando o homem como um animal que fabrica instrumentos; mantém-se, portanto, na esfera do agir instrumental. Isso conduz Marx a uma crítica da sociedade como crítica revolucionária de ideologias em conflito, numa luta de classes que perpassa a história humana e que está vinculada ao avanço das forças produtivas de domínio dos meios de produção. Por isso é que Marx, conforme Habermas, não se deu conta de que dominação e ideologia são conteúdos de uma comunicação sistematicamente distorcida e que devem ser eliminados.

Em Freud tal fundamento está na capacidade da espécie humana em se organizar e criar instituições que possam viabilizar sua vida em sociedade, reduzindo os conflitos, assim Hansen (1998, p. 367) nos diz que “[…] é pela criação de instituições no intuito de resolver o conflito entre o excedente pulsional e a coerção da realidade que o homem se diferenciou dos animais; prioriza, desta maneira, a esfera da interação […]”. Freud valoriza a produção pelo trabalho, contudo, sua expectativa se firma no fato da espécie humana se emancipar mediante a institucionalização, mesmo que o trabalho social possa atenuar a violência do quadro institucional abrindo, com isso, espaço para a substituição de uma base efetiva por uma base racional do processo civilizatório.

Contudo, o ápice da divergência em ralação ao fundamento da hominização consiste em que Freud ao compreender “[…] as instituições como um poder que substitui uma aguda violência exterior pela constante compulsão interna de uma comunicação deformada e autolimitadora. […]” (HABERMAS, 1987, p. 295) e a cultura como um inconsciente coletivo aponta para estas forças como possibilitadoras da libertação de uma consciência cativa de ideologias. Enquanto que Marx “[…] não pode flagrar dominação e ideologia como uma comunicação distorcida porque pressupôs que os homens se distinguiram dos animais no dia em que começaram a produzir seus meios de subsistência.” (HABERMAS, 1987, p. 295).

Desse modo, Marx fica atrelado a uma compreensão da auto constituição da espécie humana mediante o mecanismo do trabalho social, não dissociando a dinâmica do desenvolvimento histórico da atividade da espécie, enquanto um sujeito, e a conceber assim tal auto constituição nas categorias da revolução natural. Enquanto Freud percebe

[…] o processo cultural da espécie como uma realidade presa à dinâmica das pulsões: as forças libidinais e agressivas, potestades pré-históricas da evolução, perpassam por assim dizer o sujeito da espécie e determinam sua história (HABERMAS, 1987, p. 298).

Após essas considerações comparativas sobre as teorias societárias de Freud e Marx, demonstrando uma predileção pela teoria psicanalítica, Habermas critica ambos os autores por recaírem “[…] numa postura reducionista ao vincular o sentido da espécie humana à auto conservação biológica” (HANSEN, 1998, p. 368). Sua intenção com tal crítica é fundamentar o interesse pela auto conservação em bases racionais, subordinando tal interesse ao interesse emancipatório da razão.

Habermas compreende que no ato de autorreflexão do indivíduo o conhecimento de uma objetivação coincide direta e imediatamente com o interesse pelo conhecimento, ou seja, com o interesse que o indivíduo manifesta em libertar-se da coerção, manifestando que há uma unidade entre a razão e o uso interesseiro dessa. Entretanto, a autorreflexão não é mais um ato isolado do indivíduo, mas manifesta-se na relação intersubjetiva do indivíduo e seu analista. Assim, sob os pressupostos materialistas, o interesse da razão não pode mais, por conseguinte, ser concebido como uma auto explicação autárquica da razão, mas ambos, interesse e razão, estão em uma relação de inerência mutua. Desse modo, Habermas compreende que a psicanálise se utiliza de uma maiêutica coerciva, ou seja, o processo de autorreflexão é forçado pelo interesse do indivíduo em curar-se de sua dor.

As ponderações sobre a relatividade histórica dos critérios, que prescrevem o que é ou não patológico levaram Freud a trilhar o caminho que vai da compulsão doentia na esfera individual até a patologia da sociedade em seu conjunto (HABERMAS, 1987, p. 301).

Essas ponderações se dão pelo fato de Freud compreender que as instituições e culturas são medidas paliativas ao conflito entre os potenciais dos impulsos pulsionais excedentes e as condições indispensáveis da auto conservação coletiva. O que demonstra que a compreensão freudiana relaciona a situação clínica individual com a sociedade, implicando que na sociedade a coerção patológica e o interesse por sua remoção são, também, inseparáveis.

A patologia institucional, a exemplo da individual, encontra-se tanto na linguagem distorcida e adulterada como na atividade comunicativa, assumindo assim a forma de uma deformação estrutural do entendimento entre os homens, o interesse resultante da compreensão dolorida é, direta e imediatamente, no sistema social, também um interesse pela clarificação dessa situação.

Habermas continua sua argumentação identificando que o interesse da razão é seguido de perto pelo interesse da auto conservação. Esse, não possui fundamento na história natural, ou seja, não é uma necessidade empírica e independe das tradições culturais. Com isso o interesse de auto conservação não tem por objeto a reprodução da vida da espécie, mas o que merece ser vivido.

Esse é um equívoco que perpassa o interesse da auto conservação que precisa ser dirimido. Habermas compreende que somente quando a unidade entre conhecimento e interesse for percebida em sua pertença recíproca e que estes levam a cabo uma autorreflexão emancipatória, a reprodução da vida social fica vinculada às condições culturais do trabalho e da interação que permitem que tanto indivíduo como sociedade progridam rumo ao bem-estar comum, mediante um processo de autorreflexão crítica.

Considerações Finais – A Educação à Distância como Método Facilitador do Processo Emancipatório

Diante dos fundamentos lançados por Habermas para a construção de uma Teoria do Conhecimento como Teoria Crítica da Sociedade, em termos de uma autorreflexão que se dá tanto em termos do indivíduo como em termos do coletivo, poder-se-ia questionar: como levar a todos, sem distinção, essa possibilidade de que Conhecimento e Sociedade sejam uma alternativa crítica?

Sem falsas ilusões, pode-se compreender que o advento da informática trouxe uma facilidade muito maior do que tínhamos outrora no que diz respeito à comunicação. Salientamos aqui que compreendemos todo o processo de exclusão que também a acompanha. Mas, longe de ideologismos extremados e cegos, temos que aproveitar todas as facilitações que os novos tempos da informação nos oferecem.

Como vimos a Razão tem seus interesses, e esses nortearão o processo de Conhecimento de cada indivíduo. Esse conhecimento pode ser facilitado de diversas formas: desde as mais simples, nem por isso menos criativas, em que não se tem recurso algum que facilite o trabalho de ensino- aprendizagem até aos mais complexos sistemas computacionais que facilitam a comunicação, mesmo a longas distâncias, entre os sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Salientamos que os sistemas informacionais facilitam a comunicação e não, necessariamente, o processo de ensino- aprendizagem, pois este depende diretamente da relação que será estabelecida entre os sujeitos que o compõem, como vimos na seção 2, numa perspectiva psicanalítica, como na relação entre paciente e analista. Assim é que se dá a relação entre todos os membros do processo emancipatório de construção do conhecimento. Todos se comportam tanto como pacientes quanto como analistas, pois é um processo de emancipação tanto do indivíduo quanto do coletivo. De modo que, o conhecimento é construído por todos e deve ser crítico para ser auto reflexivo.

Vemos a EaD (Educação à Distância) como um método que pode muito facilitar justamente esse processo. Ao entendermos, como argumentamos nas seções anteriores, que este é um processo de autorreflexão toda e qualquer metodologia não deixa de ser mero instrumento que possibilita a troca necessária para a construção do conhecimento.

É uma questão de se adaptar às novas formas de troca intersubjetivas, que não se darão de forma presencial, mas não deixa de ter seu caráter intersubjetivo, pois serão indivíduos interagindo por meio dos processos e métodos próprios da EaD. Além de ter um caráter um pouco mais abrangente, permitindo que pessoas de diversas localidades possam de maneira rápida, segura e eficiente trocar informações, críticas, dúvidas, enfim, todo tipo de troca interpessoal necessária para a construção de um conhecimento que se torna até mais coletivo por exigir uma troca mais acentuada que nos métodos convencionais.

Tendo condições de consultar em tempo real a todos os envolvidos. Propiciando uma participação ativa numa ação comunicativa mais fecunda, a EaD torna-se um instrumento facilitador do desenvolvimento de uma ética do discurso, tão sonhada por Habermas, tornando o conhecimento um instrumento crítico não só do indivíduo, mas também da sociedade.

Referências

DURÃO, A. B. A crítica de Habermas à dedução transcendental de Kant. Londrina/Passo Fundo: Eduel/Ediupf, 1996.

HABERMAS, J. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.

HANSEN, G. L. Os riscos da crítica da sociedade. Crítica. v. 3, n. 12, p. 353–371, 1998.

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Autor(a) para correspondência: Vicente Eduardo Ribeiro Marçal, Av. Rio Madeira, 5064 Bloco 15 Apto. 401 – Nova Esperança, 76821-510, Porto Velho – RO, Brasil. vicente.marcal@unir.br

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