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Sobre a amplitude do cuidado como virtude moral
On the extension of care as moral virtue
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 1, pp. 93-105, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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Recepção: 06 Setembro 2019

Aprovação: 25 Novembro 2019

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i1.1367

Resumo: O presente texto discute a ética do cuidado sob a ótica da amplitude prática de seu escopo. Carol Gilligan e, principalmente, Nel Noddings, são apresentadas como defensoras da tese segundo a qual o cuidado exige uma espécie de conexão ou encontro pessoal entre as partes envolvidas, sendo, desse modo, inerentemente “pessoal” e “parcial”. A posição de Cláudia Card é apresentada como crítica dessas teses, especialmente pela lacuna de tal modelo quanto às pessoas que jamais estarão diretamente ligadas a nós, mas que nem por isso deixam de demandar nosso engajamento moral – exigem, portanto, da ética, um espaço destacado para a justiça e para os princípios impessoais. Algumas ideias de Abraham Maslow e Betty Friedan são apresentadas como meios de se avançar nesse impasse, em especial a partir da concepção das chamadas “metamotivações” ou “metanecessidades”, caracterizadas como a abertura da possibilidade, na personalidade da pessoa moral, de se sentir “conectada” (num sentido semelhante ao demandado por Noddings) com certos bens “abstratos” e distantes de si, como os englobados pelas éticas de princípios (nos termos demarcados por Card).

Palavras-chave: Cuidado, Virtude, Justiça, Imparcialidade, Metamotivação.

Abstract: This paper discusses care ethics from the perspective of the practical extent of its scope. Carol Gilligan and especially Nel Noddings are presented as proponents of the thesis that care requires a kind of personal connection or encounter between the persons involved, thus being inherently "personal" and "partial". Claudia Card's position is presented as a critique of these theses, especially for the gap of such a model in relation to the people who will never be directly linked to us, but who nevertheless don’t cease to request our moral engagement - therefore, demanding from ethics a salient space for justice and impersonal principles. Some ideas from Abraham Maslow and Betty Friedan are presented as a means of reinterpret this problem, especially from the conception of the so-called “meta-motivations” or “metaneeds”, characterized as the opening of the possibility, in the moral personality, of feeling “connected” (in a similar sense to that demanded by Noddings) with certain “abstract” and distant goods, such as those encompassed by the ethics of principles (in the terms outlined by Card).

Keywords: Care, Virtue, Justice, Impartiality, Metamotivation.

Introdução

Um dos debates centrais em torno da ética do cuidado é o que diz respeito à sua extensão, enquanto base de orientação moral, no âmbito das possibilidades reais dos agentes (Cf. NODDINGS, 2003; CARD, 2010; HOAGLAND, 1991). A própria origem desse movimento teórico parece estar, como vemos nos trabalhos emblemáticos de Nel Noddings (2003) e de Carol Gilligan (1997), intimamente ligada ao que tradicionalmente chamamos de parcialidade ou relatividade ética, isto é, à aceitação aberta de que não podemos e não devemos pretender algo como um interesse universal para com todos os seres humanos, dado que a experiência ética exigiria um tipo de “conexão” concreta, com um componente afetivo que ultrapassa as possibilidades da razão abstrata. Como resume Card, a defesa dessas autoras parte do pressuposto de que a ética demanda “encontros reais com os indivíduos”, o que permite dizer que “o cuidado é pessoal e, nesse sentido, contrasta com a justiça, que é paradigmaticamente impessoal” (CARD, 2010, p. 76).

Isso, claro, levanta questionamentos e expõe tal modelo teórico a fortes críticas, como as apontadas por Cláudia Card (2010), segundo as quais essa visão acaba por não dar conta de lidar com questões fundamentais da ética prática, como as diversas formas de marginalização e violência social, problemas que, na visão desta autora, exigiriam uma aceitação mais aberta da ética da justiça e, mais amplamente, dos modelos pautados em princípios, cujos traços constitutivos são justamente os criticados pela ética do cuidado como excessivamente formalistas e abstratos.

Em jogo, nesse embate, está, centralmente, como ocorre em boa parte dos debates éticos, a questão de quanto de imparcialidade (e, portanto, de abstração racional) podemos e devemos exigir de nós mesmos enquanto pessoas morais, e qual o peso, ou o valor, dos aspectos afetivos (sensibilidade, intuição, motivação) da nossa personalidade nesse âmbito.

Tendo como ponto de partida essa discussão, o presente artigo procura, primeiramente, destacar os argumentos centrais das duas perspectivas acima mencionadas e, num segundo momento, enfatizando a esfera da compreensão da pessoa empírica como base das divergências, apresentar alguns ligeiros apontamentos pessoais sobre uma visão da pessoa moral, desenvolvida a partir de Abraham Maslow (1999) e explorada sob a ótica feminina por Betty Friedan (1971), que, conforme interpreto, tem algo a dizer sobre a questão, em especial para contribuir com um avanço conciliatório entre os dois pontos em disputa.

O cuidado como padrão de orientação moral

De acordo com Noddings (2013, pp. 1-2), nome destacado na argumentação favorável à ética do cuidado, este modelo teórico surge como contraponto aos modelos ditos excessivamente abstratos e racionalistas (o alvo central da crítica é o modelo kantiano e seus derivados, como o de John Rawls, pautados na ideia de justiça (ibid., p. 4). Esses modelos, segundo a autora, além de dar à ética uma aparência quase matemática, puseram-na muito além da experiência real e do sentimento que a permeia (ibid. p. 2). Conforme a leitura de Card, Noddings “inverte a posição kantiana, questionando se a justiça é uma virtude. Segundo ela, a justiça é um substituto pobre para o cuidado” (CARD, 2010, p. 77). A visão intelectualista e pautada em bens como a justiça seria “a linguagem do pai” (NODDINGS, 2013, p. 2). Trata-se, em outras palavras, de uma oposição direta àquilo que Margaret Little definiu como "modelos burocráticos”, e detalhou com uma instrutiva metáfora:

Nesse modelo, a agência moral envolve uma divisão clara do trabalho: a razão é responsável por estabelecer aos vereditos morais; posteriormente, a razão passa seu relatório para a vontade, motivação ou emoção, que então executam ou não uma resposta apropriada. O quanto uma pessoa é boa em dar veredictos morais precisos acaba sendo completamente independente de quão responsiva ela tende a ser em relação a esses veredictos. É possível, neste modelo familiar, que as pessoas combinem uma tremenda perspicácia moral com um afeto completamente atrofiado: os melhores especialistas em moral podem ser as pessoas menos morais. (LITTLE, 1995, p. 118)

A visão que Noddings pretende defender, em suas próprias palavras, é “feminina no profundo sentido clássico – enraizado na receptividade, relacionamento e responsividade” (NODDINGS, 2013, p. 2). A base do raciocínio de Noddings está no caráter ontologicamente primário do cuidado em nossas vidas (ibid., p. 4; 7). É um dado básico que todos nós dependemos dos outros e experimentamos relações de afeto, carinho e intimidade nos primeiros momentos de nosso desenvolvimento. Essa primazia, em concomitância com tudo aquilo que come ela vem junto (a atenção pelo outro, a doação em vista da satisfação das suas necessidades, etc), seria, segundo a autora, uma justificativa para conceber o modelo do cuidado como superior aos demais, em especial por sua concretude, isto é, por estar mais firmemente registrada em nossa personalidade e mais próximo das situações reais do que o raciocínio abstrato (ibid., pp.7-10).

Em referência ao mesmo problema, Carol Gilligan, outra destacada defensora do valor moral do cuidado, apresenta uma série de estudos empíricos sobre a personalidade moral feminina, cujos resultados evidenciam que nas mulheres observadas havia um predomínio de qualidades que, além de serem qualitativamente distintas das masculinas, teriam sido, graças ao predomínio histórico da figura masculina como modelo de excelência, excluídas do padrão normativo tradicional em vantagem do modelo focado no raciocínio lógico-abstrato (Cf. Gilligan, 1997). Os estudos de Gilligan são feitos, em grande medida, em contraposição aos de Kohlberg (com quem a autora estudou), que, em seu modelo de desenvolvimento moral, exemplificaria a tendência predominante de tomar já como ponto de partida que a abstração imparcial e a ênfase em bens como a da justiça são os ideais a serem perseguidos pela moralidade (Cf. Kohlberg, 2003). Sobre a distinção entre essa postura mais abstrata e a postura da ética do cuidado, a exposição de Card é bastante precisa:

Possuir a virtude da justiça é, naturalmente, cuidar (preocupar-se) com coisas como igualdade e justiça e, portanto, com as pessoas. O que, então, há de distintivo em relação ao cuidado como uma virtude? Na busca por uma resposta a essa pergunta, o trabalho de Nel Noddings é especialmente útil. Em sua análise, ativar a disposição para cuidar requer encontros reais com os indivíduos. O cuidado é pessoal e, nesse sentido, contrasta com a justiça, que é paradigmaticamente impessoal. (CARD, 2010, p. 76)

De acordo com Gilligan, as diferentes maneiras de conceber a natureza humana nos levam a diferentes formas de avaliar e valorar eticamente (Gilligan, 1997, p. 16), de modo que seria de fundamental relevância trabalhar em nome da “derrubada da neutralidade de gênero” (Ibid., p. 17). É especialmente em vista disso que a autora apresenta seu trabalho sob o título “uma voz diferente”. “Os teóricos da psicologia”, diz Gilligan, “inocentemente, aceitaram a vida masculina como norma e tentaram aplica-la às mulheres” (ibid.). A masculinidade, diz a autora, é marcantemente definida pelo apego a regras, a formas, à individualidade, à imparcialidade (o paradigma da justiça, em suma); enquanto a feminilidade seria marcada por traços como a intimidade, a relação, o afeto – o paradigma do cuidado, em suma. (ibid., pp. 19-22).

Citando estudos feitos com crianças, a autora defende que, por exemplo, em ambientes de jogos, frente a uma disputa, os meninos tendem a discutir até que seja possível retomar o jogo, enquanto as meninas tendem a abandonar o jogo diante da menor ameaça às relações (ibid., p. 22-4). Dado que a psicologia tende a conceituar positivamente a capacidade de separação e de individuação, é fácil perceber porque as mulheres acabam sendo descritas como menos “amadurecidas” do que os homens em relação aos padrões de desenvolvimento da personalidade. Mas os estudos tanto com crianças como com adultos evidenciam, conclui a autora, que o problema é simplesmente que não estamos enxergando o modo idiossincrático da mulher para lidar com o mundo; é um erro pretender que há apenas um modelo padrão de excelência moral, e a quebra dessa visão uniforme passaria necessariamente pela evidenciação de que “a voz” feminina não é mais ou menos desenvolvida, mas diferente.

De acordo com Little, no âmbito da ética do cuidado, a sensibilidade, as emoções, as motivações são defendidas não meramente como “acréscimos” ou “complementos”, mas como a própria base epistêmica para a apreensão e revelação de verdades morais inacessíveis à razão (LITTLE, 1995, p.118); são, portanto, traços fundamentais da nossa vida moral, que acabam marginalizados quando concebemos a ética a partir do viés cognitivo-racional. Também o proceder “intuitivo” e “espontâneo” (ibid.) é posto por este modelo como superior ao modelo pautado no mero raciocínio face a situações “novas e desconcertantes” (que seriam, conforme se vê ao longo da argumentação de Noddings, a maior parte das situações, já que há sempre algo de idiossincrático em cada novo momento) da nossa vida prática (NODDINGS, 2013, p. 3).

Essa proposta, defendida tanto por Noddings como por Gilligan como caracteristicamente feminina (e aqui Little não as acompanha, por considerar problemático alimentar tal tipo de distinção – Cf. 1995, p. 119), envolveria, desse modo, algo mais básico, anterior e mais fundamental do que a exaltação de princípios, demonstrações e argumentos; cuidar, na definição de ambas as autoras, significaria, dentre outras coisas, estabelecer uma espécie de vinculação afetiva (no sentido de ir além de uma ligação meramente formal) entre a parte que cuida e a parte que recebe o cuidado. Em vez de aplicar um princípio geral de ação válido para qualquer pessoa, essa atitude implicaria em buscar uma aproximação das partes envolvidas em cada caso concreto e um detalhamento das particularidades que o acompanham.

Eu retomo, com mais detalhes, os pontos principais dessa orientação teórica nas discussões dos próximos tópicos.

Limites de abrangência do cuidado

As dificuldades dessa proposta passam a surgir já a partir da definição do que é exatamente cuidar num sentido moral, já que, como assume a própria Noddings, nem todo cuidado deve ser exaltado moralmente. Em relação a isso, Sara Hoagland, por exemplo, criticou Noddings, sobretudo, por elevar o cuidado a uma espécie de doação incondicional (HOAGLAND, 1991, p. 257). – a ponto de avalizar, por exemplo, formas opressivas de relacionamento. Além disso, Noddings é criticada por Hoagland também por enfatizar excessivamente o caráter feminino do cuidado (Ibid, p. 254, p. ex.) – crítica que seria aplicável também, em certa medida, a Gilligan. Mas a crítica de Hoagland não é em relação à concepção do cuidado como base fundamental da ética, mas apenas quanto a esse retrato específico, e pouco criterioso, de cuidado elaborado por Noddings.

As críticas que vou analisar e endossar, por outro lado, dizem respeito à própria concepção do cuidado como base estruturante da moralidade. Tomo como modelo dessa postura alguns argumentos elaborados por Cláudia Card, autora que, apesar de não se opor ao valor do cuidado como qualidade moral parcial, ressalta, de todo modo, a impossibilidade de tomá-lo como guia geral unitário..

O cerne da argumentação de Card diz respeito àqueles aspectos da moralidade que exigem o desprendimento de motivações e considerações locais para vislumbrar problemas distantes e amplos, que exigiriam, em resumo, uma abordagem mais próxima da ética da justiça. Nas palavras da autora, o principal problema da ética do cuidado “é a sua incapacidade de lidar com males graves se ela não atribuir à justiça um lugar sério” (CARD, 2010, p. 72). O que Card quer nos mostrar é que o valor elevado dos vínculos relacionais-afetivos, que sustentam o cuidado, não dá conta de resolver uma parte fundamental dos problemas da ética, dentre os quais a autora destaca os problemas de desigualdade e injustiça sociais – o racismo e o machismo, e a xenofobia, por exemplo (CARD, 2010, pp 72-4), por estarem, dentre outros motivos, essas formas de injustiça “entranhadas” em nossas práticas do dia-a-dia de tal modo se tornam parte das nossas respostas afetivas ou intuitivas.

Além disso, uma vez que as autoras favoráveis ao cuidado defendem abertamente que estamos autorizados a sermos parciais em favor daqueles com quem temos proximidade, já que o cuidado pressupõe uma certa proximidade relacional de modo a que seja estabelecida uma “conexão” entre as partes envolvidas, abre-se espaço para os questionamentos: como introduzir, nessa postura, a abertura necessária para dar atenção genuína aos problemas que não fazem parte do nosso espaço vivencial? Se estamos inseridos numa cultura racista, machista e excludente em termos gerais, não parece óbvio que um olhar para além das nossas fronteiras é essencial?. No dizer de Card: como defender esse aspecto relacional como suficiente se, como sabemos, é um dado óbvio que “a maior parte das pessoas do mundo é e será para nós sempre desconhecida e distante?” (CARD, 2010, p. 73).

ser cuidadoso em relação ao bem-estar de outros, desconhecidos para nós, não é cuidar no sentido de encontro. Pode exigir algumas das mesmas capacidades, como nossa capacidade de entrar imaginativamente em perspectivas diferentes das nossas. Mas não requer a interação psicológica com outras pessoas específicas que Nel Noddings enfatiza como sendo o que ela quer dizer com "conexão". Aqui é um lugar em que a justiça é útil, pois nos orienta a dar atenção aos efeitos de nossas ações sobre todos de maneira imparcial, não apenas em relação com quem nos importamos. (CARD, 2010, p. 79)

Faz-se necessária, assim, a introdução de uma instância além do cuidado para dar conta desses aspectos cruciais. Isso não seria um problema tão sério se a defesa do cuidado não viesse, amiúde, acompanhada justamente de uma certa antipatia com relação aos enfoques abstrativos da moralidade, como vemos em incontáveis passagens da reflexão de Noddings. Ou seja, talvez a maior dificuldade da teoria de Noddings seja não a exaltação do cuidado, mas o seu ataque explícito à necessidade de se ter em conta também um modelo que encarne as virtudes próprias da ética da justiça.. Com essa postura, Noddings acaba por “reduzir a ética a um assunto inaceitavelmente paroquial” (CARD, 2010, p. 82).

Lidar com essas demandas exige, desse modo, a valorização de um grau satisfatório de abstração e de raciocínio em termos de princípios universais. Aqui temos um ponto central da argumentação da Card: as críticas em geral feitas às éticas pautadas em princípios muitas vezes erram o alvo, na medida em que dizem respeito não ao modelo pautado em princípios em si, enquanto forma de lidar com a moralidade, mas ao seu conteúdo, isto é, àquilo que se pretende sustentar em nome dos princípios (ibid, pp. 94-6). É o que ocorre com a questão da imparcialidade, criticada como um aspecto que serve ao esvaziamento da moral e tomada como exemplo de como estar pautados por princípios abstratos nos distancia da realidade concreta; entretanto, não há nada, na ideia de princípio, que impeça que tenhamos mais respeito e apreço por aqueles com quem convivemos; podemos formular princípios capazes de conciliar a preocupação especial com aqueles a quem apreciamos com a preocupação geral com os problemas humanos que transcendem nosso espaço local (Kant, provavelmente, não autorizaria tal conciliação; mas a moral de princípios não se reduz a Kant e a nenhum outro modelo específico).

A dicotomização excludente entre o racional e o afetivo, entre o abstrato e o relacional, e, neste caso (dada a associação que se faz entre postura geral e gênero), entre o masculino e o feminino, tende a empobrecer o debate e, se pensarmos bem, fazer prevalecer justamente o estereótipo masculino e racional – já que inegavelmente é da razão e do raciocínio que precisamos mesmo para defender e afirmar o cuidado como valioso e separar suas versões saudáveis das daninhas (e estabelecer limites e exceções, bem como evitar distorções a que os nossos afetos nos direcionam naturalmente, mesmo para as versões saudáveis).

Alguns aportes (pretensamente) conciliatórios

Há dois aspectos que quero destacar como mais salientes na discussão acima. O primeiro deles diz respeito à concepção da postura focada no cuidado como característica fundamentalmente feminina; o segundo, diz respeito ao cuidado como capaz de sustentar ou orientar as nossas práticas morais. Como vimos, ambos são defendidos por Noddings e Gilligan, e, por outro lado, criticados amplamente por Card e, parcialmente, por Hoagland. Neste tópico final, procuro, primeiramente, destacar alguns aportes capazes de colaborar com o esclarecimento da compreensão empírica que subjaz boa parte da teoria do cuidado, mostrando acima de tudo que os estudos de Gilligan, como boa parte dos estudos em psicologia, desconsideram a necessidade de qualificar as pessoas estudadas; além disso, procuro, finalmente, oferecer uma leitura capaz de conciliar o que há de essencial na tese de Noddings com o que há de essencial nas críticas de Card, a partir de uma concepção segundo a qual é possível estar “engajado”, no sentido de ter um interesse real (equivalente à ideia de “conexão” apontada por Noddings como base do engajamento moral) por bens abstratos e “impessoais” como a justiça. Defendo, com Maslow e Friedan, que a aparente contradição entre esses dois âmbitos resulta de uma visão dicotômica e limitada da personalidade humana, visão que não resiste à observação do esses autores concebem como pessoas plenamente “maduras” ou “autorrealizadas”: nessas pessoas, dito resumidamente, há um interesse concreto e superior pelos bens e pelas questões “distantes”, que transcendem a vida e o grupo particular do sujeito; trata-se das “metanecessidades” ou “metamotivações”(MASLOW, 1999, p. 370). A pessoa amadurecida, nas palavras de Maslow, se torna cada vez mais “membro da sua espécie e menos um membro do seu grupo local” (1968, p. 38).

Uma primeira discussão importante a ser estabelecida diz respeito, portanto, aos estudos empíricos elaborados por Gilligan, estudos a partir dos quais a autora formulou suas conclusões sobre a personalidade feminina e embasou sua proposta focada no cuidado. Uma leitura a partir de Maslow nos leva a perceber um problema metodológico fundamental nesses estudos, a saber, a escassa qualificação das entrevistadas (Gilligan nos informa, no início de seu livro, tão somente características como “estudantes universitárias”, “gestantes’, etc., características que nos dizem muito pouco sobre suas personalidades (Cf. Gilligan, pp. 11-2). É um tanto espinhoso adentrar neste terreno, mas, a partir da própria concepção, também enfatizada pelas éticas do cuidado, de que o sujeito não é neutro, devemos questionar não apenas o seu gênero, mas outros aspectos que direcionam ou mesmo distorcem as suas visões de mundo e modos de agir. O fato de alguém estar inserido e ter sido formado, por exemplo, numa realidade religiosa-conservadora faz com que, via de regra, aja de modos distintos de como agiria num ambiente fortemente liberal (em termos de costumes). Nesse sentido, Gilligan cairia no perigo de alimentar uma naturalização de aspectos que podem ser não mais do que fruto de limitações locais e culturais impostos às mulheres que tomou como objeto de suas entrevistas.

Em relação a esse aspecto metodológico, é importante destacar que Maslow realizou, ele próprio, estudos com estudantes universitárias ao final dos anos 30 do século passado, com o objetivo principal de compreender as relações entre autonomia, papéis sociais e comportamento sexual (Cf. MASLOW, 1939; HOFFMAN, 2009, cap. 5). Dentre outras coisas, identificou claramente modos de pensar e agir distintos por parte das mulheres entre si, diferenças atrelados especialmente ao grau de autonomia (medido pelo autor através de testes de segurança, coragem, independência, etc – conceitos que talvez hoje se enquadrariam no que muitas vezes é chamado de “empoderamento”). Para a questão aqui discutida, importa sobretudo a conclusão segundo a qual algumas das mulheres entrevistadas tinham a clara tendência a não se sujeitar a imposições locais e transcender e negar, assim, muitas aspirações, costumes e bens cultuados em seu meio (tinham, portanto, uma forte autonomia), ao passo que a maior parte delas era claramente alinhada a tais imposições culturais.. Não precisamos, seja como for, tomar essas conclusões como corretas para manter firme o questionamento sobre o método de Gilligan, dado que a autora não nos diz nada que possa excluir a possibilidade, verificada por Maslow, de que a maioria de suas entrevistadas era claramente destituída de autonomia..

Maslow associa o nível de amadurecimento psicológico (que é, em termos gerais, o equivalente à realização satisfatória das nossas capacidades) à capacidade que temos de estar engajados em problemas que transcendem a nossa individualidade e o nosso meio (MASLOW, 1968, pp. 37-9). Em graus mais baixos de maturidade, nossas preocupações seriam, de acordo com essa visão, via de regra, egoístas, assim como nosso modo de enxergar (ver, no sentido amplo dado ao termo por Little (1995) – que o toma de Murdoch (1956)) o mundo seria fortemente distorcido pelo modo como estamos sendo motivados pelas nossas necessidades pessoais..

Assim, antes de mais nada, haveria uma relação direta entre o grau de amadurecimento da nossa personalidade e o modo como nos “engajamos”, como vemos e nos importamos, com o mundo externo. Nenhuma conclusão empírica sobre “homens”, “mulheres” ou “pessoas” poderia fornecer informação refinada sem tal qualificação. Em graus baixos de maturidade, só nos preocuparíamos com problemas abstratos e “distantes” (do ponto de vista da nossa esfera individual) na medida em que tal preocupação estivesse atrelada a algum benefício pessoal (por exemplo, se, quando jovens, somos direcionados a essas discussões pelo grupo ao qual ansiamos pertencer ou se, quando adultos, ganhamos um salário e reconhecimento para trabalhar com tais temas). A preocupação genuína, no entanto, seria apenas aquela praticada desinteressadamente (o que é, em certo sentido, falso, já que nunca somos plenamente desinteressados; mas é verdadeiro no sentido de que, neste caso, se trata a um interesse pela questão em si – ou seja, quando tal preocupação não aparece apenas como meio de satisfazer outras necessidades como as já mencionadas). Só quando nos sentimos autônomos e livres de necessidades deficitárias é que seríamos capazes de enxergar além de nós mesmos e sentir interesse verdadeiro por assuntos abstratos como a justiça, a verdade e o bem.

É importante enfatizar que o que está por trás disso é também um aspecto cognitivo, cujo valor epistêmico é de central relevância, que, novamente, demandaria uma distinção entre a cognição ‘egoísta’ e a cognição em certo sentido “transcendente” (no sentido de estar além da própria individualidade), que seria, nas palavras do autor:

A cognição do objeto per se, em seu próprio ser, sem referência às suas qualidades de satisfação ou frustração de necessidades, isto é, sem referência primária ao seu valor para o observador ou aos seus efeitos sobre ele, pode ser chamada S-cognição (ou cognição objetiva, eu-transcendente, altruísta) (MASLOW, 1968, p. 238).

Betty Friedan, autora feminista, expõe o pensamento de Maslow em sua crítica à “mística feminina”, concluindo que as mulheres, via de regra, graças à ampla difusão dessa visão ‘mística’, acabavam por ter sua esfera de possibilidades de autorrealização tolhida e reduzida aos graus mais baixos de satisfação:

Só recentemente aceitamos a existência de uma escala evolucionária, ou hierarquia das necessidades humanas, que vai desde os instintos, assim chamados porque encontrados também nos animais, até os que surgem mais tarde na evolução humana. [...]

O progresso que leva ao mais alto nível humano pode ser facilmente bloqueado pela privação de um impulso inferior, como a necessidade de alimento ou de sexo; pode ser bloqueado ainda pela canalização de toda a existência para essas necessidades inferiores e pela recusa em reconhecer outras que mais altas existem. Em nossa cultura, a evolução da mulher foi bloqueada ao nível fisiológico, ignorando-se qualquer necessidade acima do amor e da satisfação sexual. (FRIEDAN, 1971, p. 271 – destaques meus)

É importante enfatizar que o que a autora entende por níveis “altos”, “tardios na evolução humana”, é justamente o mesmo que Maslow, e, igualmente, o mesmo que Card apresenta como lacuna grave deixada pelo modelo de Noddings (exclusivamente fundado no cuidado e no contato afetivo), a saber, a “capacidade de transcender o presente”, de “viver não à mercê do mundo, mas como alguém que planeja e constrói esse mundo”, capacidades que seriam dependentes do cultivo, segundo a autora, “do raciocínio abstrato” (FRIEDAN, 1971, p. 267-9).. Nas pessoas que se encontram em tais estágios, defende Maslow, o “eu” está de tal modo ampliado que torna possível incluir, no sentido de encarnar, de trazer para dentro de si, os valores em princípio externos ao sujeito (como a justiça), as preocupações que em princípio não são da sua conta (como o bem-estar das pessoas distantes); a pessoa se torna necessitada (“metanecessitada”, no dizer de Maslow (1999, p. 370)) desses bens. Pode-se dizer, nesse sentido, que a pessoa tem “fome e sede de valores” (MASLOW, 1999, p. 383).

Podríamos decir que su yo se ensancha. Si la justicia, la verdad o la legitimidad se han vuelto tan importantes para ella que se identifica con ellas, ¿entonces dónde están? ¿Están fuera o dentro de su piel? Esta distinción casi pierde su significado, puesto que su yo, en esta circunstancia, ya no tiene la piel como limite. (MASLOW, 1999, p. 370 – destaques meus)10

Esse linguajar, que fala em níveis de desenvolvimento e amadurecimento do caráter, tende muitas vezes a ser desacreditado em nosso contexto atual, especialmente porque nos remete, indiretamente, a certas formas opressivas de julgar e dividir grupos sociais.11 Vale aqui, assim como vale para a questão, discutida acima – da racionalidade e dos princípios –, a ressalva de que não devemos deixar que nossas críticas ao conteúdo relativo de algo afetem a sua forma.12 Afinal, a forma gradativa de julgar atitudes e pessoas faz parte da nossa vida: a própria ética se sustenta no pressuposto de que existem ações boas ou admiráveis e ações más ou condenáveis; por consequência lógica, temos pessoas que agem bem e pessoas que agem mal, o que não é diferente de dizer que o caráter de certas pessoas está, em termos gerais, mais próximo do que idealizamos moralmente do que o de outras. Nenhum de nós gostaria de viver em um mundo em que posturas e orientações de caráter doentias e degradantes fossem indistinguíveis das práticas e orientações saudáveis e enriquecedoras; toda a estruturação das nossas vidas, desde as mínimas decisões privadas até as concepções públicas de educação e de políticas sociais depende de sabermos que tipo de pessoas queremos ser e ver no mundo.

Considerações finais

Quanto à questão, propriamente dita, da amplitude que podemos dar à virtude do cuidado, Maslow, assim como Friedan, certamente definiria a atitude pautada no raciocínio abstrato e na consideração imparcial como mais elevada. Essas são, aliás, algumas das características que o autor concebe como pertencentes àqueles que atingem no mais alto grau o cultivo de suas capacidades morais (1968, p. 45), características que Friedan explora e defende em seu livro (cf. FRIEDAN, 1971, cap. XIII – “A Personalidade Desperdiçada”). Nas palavras de Maslow, vale enfatizar, o caminho em direção à autonomia e à maturidade nos direciona a sermos cada vez menos membros do nosso grupo local e cada vez mais “membros de toda a espécie” (ibid., p. 38).13 Por curioso que pareça, seria apenas ao atingir o estágio de transcendência de nós mesmos (genuinamente, o que demandaria todo um cultivo narrativo das nossas capacidades, e não apenas doses repetidas de exortações argumentativas) que teríamos contato concreto com a nossa humanidade compartilhada (que é um dos aspectos destacados por Card como necessários para que possamos pensar em termos de igualdade e justiça para com aqueles que jamais estarão diretamente ligados a nós).

Mas, ao mesmo tempo, Maslow discordaria de abordagens que menosprezam os aspectos afetivos da nossa personalidade. Afinal, é só a partir do cultivo e da afirmação (e não, como pretende boa parte das teorias intelectualistas, pelo silenciamento ou negação) das nossas necessidades básicas, que incluem toda sorte de desejos pessoais (e demandam o cuidado como valor social amplamente difundido), que podemos atingir a dita “completude” e a autonomia que nos permitiriam enxergar além do nosso próprio nariz. O autor tomou como dado básico, assim como Noddings, que só aquele que recebe cuidado, amor, afeto, estima é capaz de compreender e valorizar tais bens (e refletir e teorizar sobre eles de modo objetivo) e que, da mesma forma, só aquilo com que realmente estamos engajados, que realmente “faz parte de nós”, pode nos motivar genuinamente (Cf. MASLOW, 1999, pp. 370-2).

A grande questão, e nisso a visão de Maslow poderia ser interpretada como uma síntese entre os pontos que destaco aqui de Noddings e Card, é que a razão, isolada, é inerte – ela só se manifesta com verdadeiro desprendimento e autonomia quando satisfeitas as demais necessidades da pessoa, isto é, quando ele é de fato capaz de olhar para fora de si mesmo sem distorções de suas lacunas internas; mas o afeto, quando posto em oposição à razão, é igualmente problemático, pois carece de refinamento e de “orientação”. Um não existe sem o outro (e seria mesmo uma tragédia se de fato se opusessem como querem as teorias reducionistas), e não há problema real em pensá-los como interligados e interdependentes. A racionalidade abstrata só é problemática de fato quando voltada justamente a esse modo dicotômico e excludente de ver a realidade. Ela é perigosa, por exemplo, quando serve a modelos educativos que pretendem bloquear a manifestação emotiva e lúdica em vantagem de uma rigidez bruta. Mas de modo algum é problemática quando serve, como se vê em artistas, à disciplina e aos hábitos que levam ao crescimento justamente das habilidades espontâneas, não-racionais. O seguinte trecho resume a perspectiva ‘integradora’ do autor:

[...] é extremamente importante, mesmo decisivo, renunciar ao nosso hábito de 3.000 anos de dicotomizar, dividir e separar [...]. Por muito difícil que possa ser, devemos aprender a pensar holisticamente e não atomisticamente. Todos esses “opostos” estão, de fato, hierarquicamente integrados, especialmente nas pessoas mais sadias [...]. As nossas qualidades “divinas” assentam em nossas qualidades animais e precisam delas. A nossa fase adulta não deve ser apenas uma renúncia da infância, mas uma inclusão dos seus bons valores e uma construção erguida sobre os alicerces infantis. Os valores superiores estão hierarquicamente integrados com os valores inferiores. Em última análise, a dicotomização patologiza e a patologia dicotomiza. (MASLOW, 1968, p. 208).14

Poderíamos ainda dizer, para concluir este ponto, gerando sintonia entre Maslow e Noddings, que antes de sermos desejosos de coisas abstratas como imparcialidade e justiça universal, temos fome, desejo de segurança, de amor, pertencimento, acolhimento, sexo, estima, etc. Mas, sintonizando agora o autor com Card, diríamos que a própria realização dessas condições fundamentais depende de que vivamos num mundo minimamente igual e justo, cuja construção demanda refinadas e claras formas de enxergar, interpretar e questionar a realidade; e essas formas refinadas exigem que sejamos capazes de transcender racionalmente nossas instâncias ‘afetivas’ e as nossas relações paroquiais.

Nenhum de nós, em suma, se preocupa com o valor genuíno do amor e da amizade sem antes ter experimentado tais sentimentos de modo concreto e satisfatório. Por outro lado, nenhum de nós é capaz de cuidar e amar de modo saudável sem refinar tais afetos pelo cultivo da reflexão e da abstração impessoal. E essas capacidades, entendidas como potenciais a serem realizados em uma cultura justa e igualitária, como enfatiza Friedan, seguindo Maslow, não são femininas ou masculinas; são humanas (Cf. FRIEDAN, 1971, pp. 273-5). Se não as vemos como tal, talvez seja porque ainda não estamos por completo cônscios de como certas limitações culturais mutilam e bloqueiam as nossas qualidades potenciais.

Referências

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MASLOW, Abraham. Dominance, Personality, and Social Behavior in Women. The Journal of Social Psychology, 10:1, 3-39, 1939

MASLOW, Abraham. Introdução à Psicologia do Ser. Rio de Janeiro: Eldorado, 1968.

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MASLOW, Abraham. Motivacion y Personalidad. Madrid: Ediciones Diaz de Santos, 1991

MURDOCH, Iris. Vision and choice in morality. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplement 30: 32-58, 1956

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Autor(a) para correspondência: Jonas Muriel Backendorf, Universidade Federal de Santa Maria. Av. Roraima, 1615 - Camobi, 97105-340, Santa Maria – RS, Brasil. jonasb90@hotmail.com



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