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A liberdade como causalidade da razão pura: entre o formalismo da lei e a sua aplicação à natureza
Freedom as a causality of pure reason: between formalism of law and his application in nature
A liberdade como causalidade da razão pura: entre o formalismo da lei e a sua aplicação à natureza
Griot: Revista de Filosofia, vol. 20, núm. 1, pp. 118-130, 2020
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 14 Outubro 2019
Aprovação: 05 Janeiro 2020
Resumo: Seguiremos com a leitura da Crítica da razão prática (1788), de Immanuel Kant (1724-1804), buscando apoio em dois eixos centrais: a) a formulação do imperativo categórico; b) a doutrina do fato da razão. A escolha desse percurso sustenta a posição de que, não obstante as inúmeras formulações dadas ao imperativo da moralidade ao longo da Fundamentação, haveria, nos termos da segunda Crítica, uma formulação mais clara e precisa desse princípio. Em relação à doutrina do fato da razão, a mesma será tratada em dois sentidos: de um lado, a partir de uma tentativa de reconstrução das teses originais de Kant, com base no percurso textual do filósofo; de outro, mostrando em que medida essa doutrina representa uma mudança de posição em relação às impossibilidades encontradas na FMC. O objetivo, com efeito, será o de mostrar como Kant deixa de ocupar-se da tarefa de deduzir analiticamente o conceito de liberdade a partir do conceito de vontade, sendo, precisamente, o apelo ao fato da razão o traço distintivo dessa mudança. Disso se concluirá que não apenas a razão pura pode ser prática, mas que só ela, e não a razão restringida empiricamente, é incondicionalmente prática. De saída, falaremos da distinção entre vontade e arbítrio, ressaltando seu significado para a compreensão do conceito de autonomia face à antropologia e à natureza humana.
Palavras-chave: Liberdade, Causalidade, Razão, Vontade, Natureza.
Abstract: The present paper brings a reading of Immanuel Kant's Critique of Practical Reason (1788), seeking support on two central axes: a) the formulation of the categorical imperative; b) the doctrine of the fact of reason. The choice of this course supports the position that, despite the innumerable formulations given to the imperative of morality throughout the GMS, there would be, in the terms of the second Critique, a clearer and more precise formulation of this principle. Regarding the doctrine of the fact of reason, it will be treated in two ways: on the one hand, from an attempt to reconstruct Kant's original theses, based on the philosopher's textual course; on the other, showing to what extent this doctrine represents a change of position in relation to the impossibilities found in the GMS. The aim will be to show how Kant fails to engage in the task of analytically deducing the concept of freedom from the concept of will, and the appeal to the fact of reason is precisely the distinguishing feature of this change. From this, it will be concluded that not only pure reason can be practical, but only pure reason, not empirically constrained reason, is unconditionally practical. Finally, we will talk about the distinction between will and arbitrariness, emphasizing its meaning for the understanding the concept of autonomy and its relation to Kant's concept of anthropology and human nature.
Keywords: Freedom, Causality, Reason, Will, Nature.
Sobre os princípios práticos e o fato da razão
Consoante ao que já fora estabelecido na Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Kant retoma, na segunda Crítica, a noção de princípios práticos por ele apresentada. Segundo sua definição, “princípios práticos são proposições que contêm uma determinação geral da vontade”, sendo máximas (quando consideradas pelo sujeito “como válidas apenas para a sua vontade”) ou leis práticas (quando a proposição é “reconhecida como objetiva, isto é, como válida para a vontade de todo ser racional”) (KpV, AA 05: 19; 34).. Tais princípios são regras práticas da razão e servem tanto para prescrever a ação como meio em relação a um fim quanto para expressar a sua “necessitação objetiva” enquanto dever (KpV, AA 05: 20; 35). Os primeiros são chamados de “imperativos hipotéticos e conteriam meros preceitos da habilidade” e os segundos de “imperativos categóricos e só eles seriam leis práticas” (KpV, AA 05: 20; 35, grifos nossos). Assim, as máximas seriam certamente princípios, mas não imperativos, ao passo que os imperativos hipotéticos seriam certamente preceitos práticos, mas não leis, uma vez que são condicionados “em vista de um efeito desejado” (KpV, AA 05: 20; 35). Consequentemente, se o querer é “determinado completamente a priori por essa regra”, a mesma, então, é uma lei, “porque é um imperativo categórico”, pois refere-se “unicamente à vontade, sem considerar aquilo que será obtido pela sua causalidade” (KpV, AA 05: 21; 36).
Nesse sentido, os princípios práticos podem ser tanto materiais (quando “encontram-se sob o princípio geral do amor de si mesmo ou da própria felicidade”) (KpV, AA 05: 22; 37) quanto formais (quando referem-se unicamente à vontade, enquanto suficientemente determinada pela razão). A vontade, por sua vez, pode ser tanto uma faculdade de desejar inferior (quando afetada patologicamente por móbiles sensíveis, cujo fundamento são as regras práticas materiais) quanto uma faculdade de desejar superior (quando submetida a leis meramente formais, representadas segundo um imperativo categórico) (KpV, AA 05: 22; 38). Assim, enquanto o primeiro caso se daria por inclinação natural do sujeito, o segundo dar-se-ia segundo a “mera forma de uma legislação universal”, representada tão somente pela razão (KpV, AA 05: 27; 44). Tal lei “não é um objeto dos sentidos, nem tampouco pertence, por conseguinte, aos fenômenos” (KpV, AA 05: 28; 46), mas, pelo contrário, “tem de ser pensada como totalmente independente da lei natural dos fenômenos, a saber, da lei da causalidade em suas relações recíprocas” (KpV, AA 05: 29; 47). O sentido de reciprocidade, aí referido, difere do uso moral do termo (normalmente ligado aos deveres nossos para com outras pessoas), designando a relação de dependência mecânica entre fenômenos naturais e distinguindo-se daquela presente quando se trata do sujeito e da lei que rege sua vontade, a qual é livre para determinar-se, independentemente do mecanismo da natureza.
Contudo, ao contrário do que a Fundamentação sugere, não será a consciência da liberdade, enquanto deduzida analiticamente do conceito de vontade, a ratio cognoscendi do fato de que agimos livremente (isto é, de modo incondicionalmente prático), mas a própria lei moral, a qual se oferece primeiramente a nós, “como um fundamento de determinação que não deve ser superado por quaisquer condições sensíveis e que é portanto totalmente independente delas” (KpV, AA 05: 30; 48), conduzindo diretamente ao conceito de liberdade (ratio essendi daquela) (KpV, AA 05: 29; 48). Mas como isso é possível? Segundo Kant, “nós podemos nos tornar conscientes das leis práticas puras do mesmo modo que somos conscientes dos princípios teóricos puros” (KpV, AA 05: 30; 48), a saber, pela atividade da própria razão. A prova utilizada por Kant é simples: basta observarmos que, em muitos casos, a inclinação a um fim pode ser freada pelo próprio interesse do agente. Para tanto, basta que ele se julgue consciente do que deve fazer frente a uma situação determinada e, em seguida, que adira ou não à máxima de sua vontade. Isto porque, embora nem sempre aja moralmente, não é preciso muito para admitirmos que uma tal pessoa reconheceria facilmente em si o fato de que é livre para julgar qual princípio deve ou não conduzir sua ação.. Assim, embora a adoção de princípios práticos se dê apenas por meio da liberdade, tal liberdade só se torna conhecida a partir do fato de que essa mesma pessoa seja capaz de agir por princípios, os quais, ao referir-se unicamente à vontade, assumem a forma de uma lei fundamental da razão prática pura, “que nós denominamos lei moral” (KpV, AA 05: 31; 51).
Nesse sentido, a lei moral, ao ser “representada a priori como proposição categoricamente prática, pela qual a vontade é objetivamente determinada absoluta e imediatamente” (KpV, AA 05: 31; 50), assume a forma de um mandamento da razão pura (isto é, de um imperativo categórico), o qual diz: “aja de modo que a máxima de sua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KpV, AA 05: 30; 49). A legislação universal, à qual Kant se refere, não é mais do que a própria legislação da razão pura, “em si mesma prática”, a partir da qual “a vontade é pensada como independente de condições empíricas e, portanto, enquanto vontade pura, como determinada pela mera forma da lei [moral]” (KpV, AA 05: 31; 50). Com efeito, “não é um preceito segundo o qual deve acontecer uma ação, pela qual um efeito desejado é possível”, mas “consiste antes em uma regra que determina a priori a vontade apenas em vista da forma de suas máximas” (KpV, AA 05: 31; 50). A consciência dessa lei fundamental, por sua vez, é denominada um “fato da razão, porque não se pode inferi-la sutilmente a partir de dados precedentes da razão”, mas “porque ela se impõe a nós por si mesma como proposição sintética a priori que não está fundada em nenhuma intuição, nem pura, nem empírica” (KpV, AA 05: 31; 50-51, grifo nosso).
Logo, não seria a lei moral um fato empírico, “mas antes o único fato da razão pura” (KpV, AA 05: 31; 51), isto é, uma lei que já se encontraria dada pela razão prática pura, unicamente por si mesma. Isto porque, não sendo a consciência da liberdade algo previamente dado pela razão, mas conhecido a partir da consciência da lei, não restaria outra saída lógica senão admitir tal lei, erigida na forma de um princípio prático formal, enquanto um fato inegavelmente necessário. Do contrário, a tentativa de deduzir analiticamente a lei moral a partir do conceito de liberdade, posto como imediatamente dado, exigiria a presença de uma intuição intelectual, o que de modo algum seria permitido (KpV, AA 05: 31; 51), uma vez que apenas intuições sensíveis estariam ao alcance da nossa faculdade de conhecer (KrV, B 308). Assim, restaria à lei moral ser tomada como um fato originário de uma razão que, enquanto prática, é também legisladora e cuja legislação mostra-se amparada pela existência de um juízo sintético a priori, o qual não se funda sobre nenhuma intuição possível.
Portanto, “só podemos admitir a hipótese de que a razão pura pode determinar a vontade se admitirmos que existe ao menos um princípio prático que não é material”, isto é, formal, “que determine a vontade pela simples forma da regra” (NAHRA, 2008, p. 31). De outro modo, a representação de imperativos hipotéticos, como sendo as únicas regras que conduzem o agir, levaria à recusa de que a moralidade deveria basear-se numa legislação universal, amparada pelo fato da razão, haja vista que uma moral empírica seria contingente, precisamente “porque não teria a necessidade das leis, ou seja, a necessidade objetiva que provém de princípios a priori” (NAHRA, 2008, p. 29). Assim, a condição dessa legislação universal é representada pelo fato de que, enquanto seres racionais, somos todos capazes de erigir máximas e que tais máximas, à medida que levam em consideração a fórmula da lei moral, a qual é chamada de imperativo categórico, podem ser universalizadas e convertidas em deveres que valem para todos. Tendo isso em vista, dirá Kant que “a lei moral é, portanto, para os homens, um imperativo que comanda categoricamente”, exatamente porque o homem, enquanto ser racional, não é dotado de uma vontade santa, mas “afetado por carências e causas motrizes sensíveis”, de modo que uma ação moral, ao tomar somente a forma da lei como fundamento, abstraindo, por conseguinte, da sensibilidade, recebe o nome de obrigação (Nötigung) (KpV, AA 05: 32; 52).
A obrigação, por sua vez, tem como princípio de aplicação o conceito de autonomia, o qual resulta do conhecimento da liberdade da vontade a partir do fato da razão, sendo essa liberdade a capacidade que os sujeitos possuem de agir segundo máximas autoimpostas. Consoante a isso, tal liberdade se dá tanto em sentido negativo, enquanto independência do arbítrio frente às inclinações sensíveis, quanto em sentido positivo, enquanto “legislação própria da razão pura e, enquanto tal, prática” (KpV, AA 05: 33; 54). É, portanto, um atributo exclusivo dos seres dotados de razão e de vontade, unicamente sob o qual as máximas subjetivas “podem entrar em consonância com a lei prática suprema” (KpV, AA 05: 33; 54). O oposto disso resume-se em heteronomia e não institui nenhuma obrigação, uma vez que a intenção que origina a ação será sempre dependente da constituição particular de cada sujeito, afastando-se, assim, da pretensão de universalidade, típica da lei moral.
A seguir, falaremos como a consciência a priori da lei moral fundamental possibilita a dedução da liberdade como sendo uma causalidade da razão pura.
Deduzindo o conceito de liberdade
Conforme observado, a analítica da razão prática pura estrutura-se segundo algumas tarefas básicas, a saber: a) expor que a razão pura pode ser prática; b) que a razão pura se prova prática mediante um fato; c) que tal fato está inseparavelmente ligado à consciência da liberdade da vontade (KpV, AA 05: 42; 65). Resta saber, contudo, em que medida a consciência da liberdade encontra-se ligada a um domínio prático, regido segundo uma ordem inteligível das coisas e necessariamente distinto daquele pertencente ao mundo sensível, submetido às leis da causalidade natural, haja vista que, consoante ao que a analítica expôs, a determinação da vontade, enquanto um ato livre da razão, deve dar-se independentemente de tudo o que é empírico. A prova disso é suficientemente dada já na FMC, onde, ao atribuir a liberdade a todos os seres racionais em geral, conclui Kant que tal prerrogativa só seria possível em função de um ponto de vista suprassensível.
Isso representa uma notável diferença em relação à crítica empreendida na razão especulativa. Nesta, tanto os conceitos do entendimento possuíam significado apenas em função de intuições correspondentes quanto era a “intuição sensível pura (espaço e tempo) o primeiro dado que tornava possível o conhecimento a priori e, certamente, apenas para objetos dos sentidos”, sendo negado qualquer conhecimento positivo “para além dos objetos da experiência e, portanto, das coisas enquanto númenos” (KpV, AA 05: 42; 66). Tal crítica tanto “conseguiu colocar em segurança o conceito de númenos, isto é, a possibilidade e mesmo a necessidade de pensá-los”, quanto “ainda salvar de todas as objeções [...] a liberdade, considerada negativamente, admitindo-a como totalmente compatível com aqueles princípios e restrições da razão teórica pura” (KpV, AA 05: 42-43; 66). Apesar disso, a possibilidade de conhecer algo determinado sobre esses objetos foi inteiramente negada pelo idealismo transcendental, uma vez que os númenos não seriam objetos “dáveis”., segundo o domínio da experiência possível, mas situar-se-iam para além desta.
Na crítica da razão prática, porém, o conceito de liberdade deixa de ser problemático e torna-se positivo a partir de um fato, o qual, embora “absolutamente inexplicável a partir de todos os dados do mundo sensível e de toda extensão de nosso uso teórico da razão”, “permite conhecer algo dele, a saber, uma lei” (KpV, AA 05: 43; 66). A noção de lei permite que os seres racionais possam ser considerados sob uma dupla perspectiva. De um lado, enquanto natureza sensível, afetada por inclinações e dirigida segundo “leis empiricamente condicionadas”, sendo, portanto, “para a razão, heteronomia” (KpV, AA 05: 43; 67). De outro, enquanto natureza suprassensível, existindo “segundo leis independentes de toda condição empírica”, pertencentes, portanto, “à autonomia da razão pura” (KpV, AA 05: 43; 67). No primeiro caso, “os objetos têm de ser causas das representações que determinam a vontade” (KpV, AA 05: 44; 68). No segundo, “a vontade deve ser causa dos objetos, de modo que a causalidade destes encontre seu fundamento de determinação unicamente na faculdade pura da razão, a qual por isso pode também ser denominada uma razão prática pura” (KpV, AA 05: 44; 68).
Desse modo, a presente crítica não se preocupa em explicar como uma tal natureza suprassensível se origina, mas apenas a supõe enquanto “fundamento de determinação do querer nas máximas desse querer” (KpV, AA 05: 45; 69-70), a fim de saber “se e como a razão pura pode ser prática, isto é, imediatamente determinante para a vontade” (KpV, AA 05: 46; 70). Para que a razão pura possa provar-se prática, porém, faz-se necessário não apenas “começar pelas leis práticas puras e sua efetividade”, mas, também, tornar claro que tanto “essas leis só são possíveis com relação à liberdade da vontade” quanto que “a liberdade é necessária porque essas leis, enquanto postulados práticos, são necessárias” (KpV, AA 05: 46; 70). Assim, embora a realidade objetiva da lei moral não possa ser provada por nenhum empenho da razão teórica, posto que “ela não pode ser confirmada pela experiência”, tampouco conhecida segundo uma intuição intelectual, mas apenas tomada como um fato “apoditicamente certo”, ocorre que, pelo menos, mediante ela, a “faculdade da liberdade” encontra tanto a prova de sua possibilidade quanto a de sua “efetividade nos seres que reconhecem essa lei enquanto obrigante para eles” (KpV, AA 05: 47; 72).
A lei moral, nesse sentido, “é de fato uma lei da causalidade pela liberdade e, portanto, uma lei da possibilidade de uma natureza suprassensível”, a qual determina, com efeito, “aquilo que a filosofia especulativa tinha de deixar indeterminado, a saber, a lei para uma causalidade cujo conceito era [...] apenas negativo, e assim confere pela primeira vez realidade objetiva a esse conceito” (KpV, AA 05: 47; 72). Em outras palavras, o conceito negativo de liberdade, antes admitido como não-impensável pela crítica teórica, passa a ser deduzido a partir da lei moral “enquanto uma causalidade da razão pura” (KpV, AA 05: 48; 73), isto é, enquanto uma natureza suprassensível, cuja realidade é provada de maneira satisfatória por meio de uma determinação positiva (o fato da razão). Por consequência, o que antes era apenas admitido em pensamento (a ideia de uma causa agindo livremente) passa agora a ser aplicado a um ser no mundo sensível, “na medida em que esse ser é considerado por outro lado também como númeno” (KpV, AA 05: 48; 74), isto é, como ser pertencente a um mundo inteligível, cuja lei de causalidade é tão somente a lei moral.
Para Kant, isso se mostra à medida que consideramos todas as ações como “fisicamente condicionadas, na medida em que são fenômenos” e a sua causalidade “como fisicamente incondicionada”. Todas essas distinções já se encontram demarcadas na Crítica da razão pura e na Fundamentação da metafísica dos costumes, sendo aqui retomadas apenas no sentido de afirmar que, uma vez considerado o sujeito segundo o ponto de vista dual do idealismo transcendental (isto é, enquanto ser sensível condicionado e enquanto ser inteligível incondicionado), o conceito positivo de liberdade (enquanto causalidade) só poderia ser sustentado mediante uma lei que, não apenas determinasse imediatamente a vontade (de modo inteiramente a priori), mas que também fosse capaz de provar o caráter prático da razão pura, sem o qual tal lei seguiria infundada. Assim, à medida que a causalidade natural pensaria objetos a partir de intuições (reguladas segundo a lei de sucessão dos fenômenos), a causalidade da razão pura produziria seu objeto (isto é, a determinação do querer segundo princípios) fora do mundo sensível (ainda que, posteriormente, seu influxo sobre a vontade viesse a resultar num sentimento de respeito pela lei moral).
Se observarmos, pois, com atenção, veremos que a categoria da causalidade possui relação tanto com objetos dáveis (no conhecimento teórico) quanto com a faculdade de desejar (em sentido prático). Vale lembrar que, na Crítica da razão pura, os conceitos do entendimento são aplicados aos juízos por meio de princípios, os quais constituem-se em “regras para o uso objetivo” das categorias (KrV, B 161), também sendo chamados de leis. No que se refere ao conhecimento teórico, a causalidade seria aplicada por meio do “princípio da ligação de causa e efeito” (KrV, A 189), também chamado de lei da causalidade, responsável por tornar concebível a natureza sensível segundo sua sucessão no tempo. Todas as mudanças, com efeito, ocorreriam segundo esse princípio. Em relação ao segundo uso, a mesma categoria teria por princípio de aplicação a lei moral, a qual, enquanto lei da possibilidade de uma natureza suprassensível, provaria a efetividade da razão prática pura por meio de um fato. Nesse sentido, o conceito de causalidade, antes aplicado aos objetos em função do conhecimento teórico (por meio da lei da causalidade), passaria a ser utilizado a fim de provar (por meio da lei moral) como a razão pura poderia efetivamente produzir uma série causal, conceito esse que adquire feição positiva à medida que a lei prática mostra-se imediatamente dada, enquanto ratio cognoscendi da liberdade.
Portanto, o uso da categoria da causalidade, por meio da determinação imediata do querer pela lei moral, não amplia, de modo algum, o conhecimento teórico a respeito da natureza fenomênica, uma vez que este provém unicamente de intuições sensíveis, mas apenas supõe o fundamento do agir como estando fora da experiência. Tal uso não possui, pois, caráter transcendente, mas imanente, à medida que não permite o conhecimento determinado de objetos como coisas em si mesmas, mas tão somente prova em que medida a razão torna-se consciente, num sentido prático, da sua própria lei. Num sentido teórico, porém, permanece a liberdade um conceito vazio, pensado problematicamente segundo uma exigência da razão para dar conta da síntese completa dos fenômenos. Na visão de Lewis White Beck, essa distinção é assegurada graças a uma “two-world theory”, que sustenta a existência tanto de um mundo fenomenal, “no qual cada mudança é determinada por uma anterior no espaço e no tempo”, quanto de um mundo numênico, “que não é espacial e temporal” (BECK, 1987, p. 41). Assim, a causalidade livre pode ser pensada sem contradição exatamente por ser um predicado ontologicamente distinto da “causalidade temporal” (BECK, 1987, p. 41), de modo que não há conflito entre ambas.
Além disso, é importante notar que, apesar das diferenças, Kant chega mesmo a sustentar uma espécie de cooperação entre os domínios da natureza sensível (causalidade natural) e o da natureza suprassensível (causalidade por liberdade). Segundo Araújo (2016, p. 129), muito embora o entendimento corresponda à faculdade legisladora do conhecimento teórico, ele colabora, “por assim dizer, com a razão prática pura na medida em que ele fornece a ela um ‘modelo de lei’ para que o ser humano possa julgar se as suas máximas (particulares) são ou não compatíveis com a lei universal (da natureza)”. Nesse sentido, é “permitido usar a natureza do mundo sensível como tipo de uma natureza inteligível” (KpV, AA 05: 70; 99), exatamente pelo fato de ambas serem compreendidas mediante leis e por tais leis corresponderem a “princípios que são válidos a priori” (KrV, B 198). Com efeito, assim como a natureza sensível fora compreendida segundo a categoria da causalidade aplicada a intuições, seria a natureza suprassensível concebida em analogia com a primeira, porém reportando-se à própria vontade.
Por conseguinte, o uso da natureza sensível como tipo de uma natureza inteligível serviria, precisamente, para “mediar” a aplicação da lei moral (KpV, AA 05: 69; 98), de modo que, sempre que me fosse dado julgar uma máxima segundo princípios morais, poderia simplesmente perguntar se uma tal máxima da ação seria ainda possível por minha vontade, “caso ela devesse acontecer segundo uma lei da natureza”, da qual eu mesmo fosse parte (KpV, AA 05: 69; 98-99). Segundo Kant, “se a máxima da ação não é constituída de modo a resistir ao teste na forma de uma lei da natureza em geral, então ela é moralmente impossível” (KpV, AA 05: 69-70; 99). Isto porque, uma vez que o mecanismo da natureza sensível é regido por uma lei universal (a lei da causalidade), é considerada moralmente impossível toda e qualquer máxima que, em analogia com tal mecanismo, não possa, por si mesma, sustentar-se (destruindo-se, portanto, a si mesma)..
Assim, uma lei universal de prometer em falso (entendida como lei universal da natureza), por exemplo, não apenas tornaria impossível a máxima de uma promessa mentirosa (haja vista que a mentira seria já esperada por todos), mas mesmo o próprio ato de prometer, de modo que não restaria “nem mesmo a possibilidade de [se] firmar qualquer tipo de contrato fundado na promessa” (SOUZA, 2009, p. 63). Nesse sentido, tal máxima seria moralmente impossível, uma vez que destruir-se-ia a si mesma. O apelo de Kant a esse recurso justifica-se por um motivo simples: não havendo algo à mão “que poderia adotar como exemplo [...] da experiência” (KpV, AA 05: 70; 99), haja vista que o valor moral das ações não pode ser empiricamente deduzido, caberia à faculdade de julgar prática. relacionar analogamente as duas leis (lei da natureza . lei da liberdade) e, em seguida, exibir, simbolicamente., em que medida uma máxima poderia ser julgada moral e, portanto, adotável ou não.
Em outras palavras, “para aplicar a lei moral a um caso e decidir, assim, se uma ação é moralmente boa ou má, a faculdade de julgar ‘empresta’ do entendimento a universalidade da lei natural”, unicamente a fim de perguntar “se esse caráter universal [da lei natural] está presente na máxima com base na qual determino a vontade a agir” (HULSHOF, 2011, p. 174). Desse modo, o entendimento acaba por mostrar-se “capaz de fornecer um critério, o da ‘universalidade’, para a razão [prática pura], de modo a que ela possa ajuizar as máximas particulares sob a forma de uma lei universal” (ARAÚJO, 2016, p. 130). É digno de nota, portanto, que o uso da natureza sensível como tipo jamais transporta para a natureza inteligível “as intuições e aquilo que depende delas”, mas somente se refere à mera “forma da conformidade à lei em geral”, “pois as leis [da natureza e da liberdade] enquanto tais são nessa medida idênticas” (KpV, AA 05: 70; 99-100). Logo, tanto o domínio da natureza sensível quanto o da natureza suprassensível, embora respondendo a problemas distintos (um teórico e outro prático), seriam, em seu conjunto, modos de uma única categoria, a saber, a de causalidade, cuja aplicação encontra-se subordinada a leis que coincidem quanto à forma, porém diferem quanto àquilo sobre o qual legislam.
O objetivo dessa estratégia é duplo: a) proteger contra o “empirismo da razão prática”; b) proteger contra o “misticismo da razão prática” (KpV, AA 05: 70; 100). De um lado, tratar-se-ia da tentativa de atribuir o fundamento da moralidade ao empirismo, o qual “apodrece até a raiz a moralidade nas intenções [...] e introduz sub-repticiamente no lugar do dever algo totalmente outro, a saber, o interesse empírico, pelo qual as inclinações em geral entram em comércio entre si” (KpV, AA 05: 71; 101). De outro, Kant se refere ao uso dogmático dos conceitos morais (também chamado de “fanatismo”), o qual tende a divagar no transcendente e “estender sua imaginação até as intuições suprassensíveis”, por meio “de um invisível reino de Deus” (KpV, AA 05: 71; 100-101). Tanto um quanto outro, numa linguagem kantiana, representam formas de heteronomia e tendem a associar o princípio prático supremo a móbiles externos, com destaque especial ao empirismo, o qual não apenas ameaça a pureza e a sublimidade da lei moral, mas mostra-se, sobretudo, perigoso à medida que mistura-se com toda sorte de inclinações (“seja qual for o recorte que possam receber”) (KpV, AA 05: 71; 101). Nesse sentido, ao passo que o fanatismo conduziria ao dogmatismo (“o qual não retira da natureza sensível nada além do que a razão pura pode pensar por si mesma”, sendo, portanto, “ainda compatível” com a moralidade da lei [KpV, AA 05: 71; 100]), o empirismo conduziria ao ceticismo moral (cf. FERRAZ, 2012, p. 7) e à degradação da humanidade, constituindo-se, portanto, num estado muito mais duradouro e prejudicial do que o primeiro..
Assim, na tentativa de evitar tanto o fanatismo quanto o ceticismo moral, tomará Kant a liberdade, “cuja causalidade é determinável unicamente pela lei”, como uma faculdade que tem por tarefa “restringir todas as inclinações” (KpV, AA 05: 78; 109), haja vista que somente a partir da influência de uma razão prática pura (portanto, apenas por meio da liberdade) poderia a moralidade escapar dos efeitos nocivos da heteronomia. O efeito subjetivo dessa determinação é chamado de sentimento moral e consiste na ideia de que a representação da lei moral, enquanto fundamento imediato da vontade, exerce uma coerção inevitável sobre todas as inclinações, de modo a produzir um sentimento de respeito, o qual, por sua vez, nada mais é do que “a consciência de uma livre submissão da vontade à lei [moral]” (KpV, AA 05: 80; 111). Tal sentimento é conhecido a priori pelo sujeito e decorre do fato de que, uma vez enfraquecida “a influência impeditiva das inclinações” (KpV, AA 05: 79; 110), por meio da legislação da própria razão, pode a lei moral, enfim, tornar-se uma máxima aplicável à vontade.
Da distinção entre vontade e arbítrio
Conforme Nodari (2009, p. 290), para compreender o “significado genuíno de autonomia”, torna-se imprescindível a “distinção entre vontade . livre-arbítrio”. Embora o valor moral das ações tenha sido definido por Kant a partir da noção de dever, sendo essa a condição pela qual o conceito de liberdade torna-se positivo quanto ao uso, dúvidas permanecem em relação ao estatuto atribuído à vontade nesse processo, sobretudo se considerarmos uma célebre frase da Fundamentação, na qual é possível ler que “vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa” (GMS, AA 04: 447; A 149). A ideia de associar a liberdade da vontade ao fato de que tal vontade seria livre justamente por estar submetida a leis morais não apenas gera ambiguidades e contradições dentro do sistema da filosofia prática, mas, sobretudo, abre precedentes para uma questão fundamental: o estatuto da imputabilidade. Afinal, estando o conceito de liberdade subsumido aos casos onde somente a lei moral seria o princípio prático determinante, o que fazer quando a máxima do querer fosse considerada contrária à lei (portanto, desvinculada do aspecto da liberdade)? Por conseguinte, posto que uma máxima contrária à lei é tomada como não-livre, como poderíamos, então, imputá-la? Finalmente, se apenas a vontade autônoma seria considerada livre, não seria a vontade heterônoma uma mera necessidade natural (portanto, inimputável)?
Uma das possíveis respostas pode ser vista ainda na Crítica da razão prática, onde, ao afirmar que “a lei [moral] possui a forma de um imperativo” (KpV, AA 05: 32; 52), Kant extrai duas importantes hipóteses: a) a possibilidade de se pressupor “no homem, enquanto ser racional”, uma “vontade pura” (KpV, AA 05: 32; 52); b) a impossibilidade de se pressupor nesse mesmo homem, “enquanto ser afetado por carências e causas motrizes sensíveis”, uma “vontade santa, isto é, uma vontade tal que seria incapaz de máximas conflitantes com a lei moral” (KpV, AA 05: 32; 52). Dessas duas hipóteses, segue-se que: c) a lei moral é, para os homens, um “imperativo que comanda categoricamente porque a lei é incondicionada” (KpV, AA 05: 32; 52), isto é, comanda sem restrição; d) a relação da vontade com essa lei recebe o nome de “obrigação” (KpV, AA 05: 32; 52); e) a obrigação resulta do fato da vontade humana, enquanto “arbítrio afetado patologicamente”, trazer consigo “uma aspiração que se origina de causas subjetivas, podendo ser também frequentemente contrária ao puro fundamento objetivo de determinação e que, portanto, precisa de uma resistência da razão prática” (KpV, AA 05: 32; 52-53); f) tal resistência é, “enquanto necessitação moral”, uma “coerção interna” da razão (KpV, AA 05: 32; 53).
Nesse sentido, a lei moral teria, nos seres humanos em geral, a forma de um imperativo categórico exatamente pelo fato da vontade humana não ser inteiramente racional, mas duplamente constituída. De um lado, é chamada “vontade pura” a vontade do homem considerado enquanto ser racional, isto é, como alguém que, por meio da razão, é capaz de autocoagir-se livremente. De um outro lado, ao considerarmos o homem enquanto ser patologicamente afetado por causas subjetivas (inclinações), essa mesma vontade é chamada de “arbítrio”, isto é, uma faculdade que lida com máximas, “também sempre livre” (KpV, AA 05: 32; 52). Assim, ao passo que a vontade pura seria imediatamente determinada a priori pela lei moral, o arbítrio seria imediatamente afetado a posteriori por móbiles sensíveis. Portanto, se assim quisermos, poderíamos afirmar que a diferença fundamental entre um e outro dá-se em função do ponto de vista com o qual o ser humano é considerado. Logo, posto serem os homens dotados de duas naturezas distintas (uma inteligível e outra sensível), ocorre que, ao pensarmos sua “faculdade de volição”., teríamos tanto a ideia de uma vontade que se relaciona imediatamente com o princípio prático supremo (isto é, a lei moral, a qual ordena imediatamente na forma de um imperativo categórico) quanto de um arbítrio sujeito a influências da sensibilidade.
Não à toa, dirá Kant, num outro momento do texto, que o sentimento de prazer “funda-se na receptividade do sujeito”, isto é, na faculdade de desejar inferior, precisamente “porque ele depende da existência de um objeto” (KpV, AA 05: 22; 37). Logo, o fato de uma representação “ser um fundamento de determinação do arbítrio” dependeria totalmente da possibilidade do sentido interno “poder ser afetado de maneira agradável pela representação” (KpV, AA 05: 23; 38). Na Crítica da razão pura, o sentido interno apresenta-se como a condição que possibilita a “intuição de nós mesmos e do nosso estado interior” (KrV, A 33), sendo também chamado de “apercepção empírica”, isto é, um “Eu empírico” (ARAÚJO; LEITE, 2015, p. 150), por meio do qual seria possível perceber “o curso ininterrupto dos estados internos” e das “modificações subjetivas, sem que se pudesse aí encontrar algo que permaneça” (GOMES, 2005, p. 107). Assim, ao perceber um objeto espacial externo, por exemplo, haveria no sujeito empírico uma série de ocorrências temporais, vinculadas a sensações e estados de ordem interna. Com efeito, ao passo que a representação de uma maçã vermelha teria por referência um objeto exterior determinado, a sensação relacionada a esse objeto (tal como o gosto ou a lembrança suscitada pelo objeto maçã) seria interior e subjetiva10. Analogamente, a representação de uma máxima segundo o “agrado esperado de uma coisa qualquer”, possível ou real na experiência (imperativo hipotético) (KpV, AA 05: 23; 38)11, teria por condição o sentido interno (o Eu empírico) e a sua capacidade de poder ser afetado empiricamente por um tal objeto no tempo. Nesse sentido, a ação por mero interesse subjetivo (heteronomia) teria por fundamento o fato de que o arbítrio humano, enquanto faculdade de desejar inferior, constitui-se como imediatamente receptivo (isto é, suscetível à influência dos objetos dos sentidos), ainda que sua adesão às inclinações seja sempre voluntária (portanto, livre).
No caso da vontade pura, a determinação da máxima dar-se-ia por meio de “leis meramente formais” (KpV, AA 05: 22; 38), isto é, “sem a pressuposição de nenhum sentimento e, portanto, sem representações do agradável ou desagradável enquanto matéria da faculdade de desejar, matéria que é sempre uma condição empírica dos princípios” (KpV, AA 05: 24; 41). Assim sendo, somente na medida em que a razão determinasse a vontade “por si mesma (não a serviço das inclinações)”, é que poderíamos, então, falar de “uma verdadeira faculdade de desejar superior, à qual está subordinada a faculdade de desejar patologicamente determinável” (KpV, AA 05: 25; 41). Observemos que, ao considerar a faculdade de desejar inferior enquanto subordinada à superior, Kant parece sustentar a mesma distinção trazida na Fundamentação, na qual o conceito de liberdade prática é tomado tanto em sentido negativo quanto positivo.
Consequentemente, ao passo que o arbítrio provar-se-ia capaz de negar-se a executar os apelos da sensibilidade (isto é, enquanto liberdade prática negativa), a vontade pura não seria apenas capaz de determinar a adoção ou não de uma máxima, mas também de examiná-la, segundo um princípio prático instituído pela própria razão (isto é, a lei moral e seu mandamento) – o que, por sua vez, daria significado ao conceito de liberdade prática positiva. O conceito de Eu, nesse caso, seria “apenas lógico, a partir do qual nenhum outro conhecimento pode ser obtido, com exceção da afirmação de que ele é o fundamento e condição de possibilidade de toda representação e todo pensamento humano” (ARAÚJO; LEITE, 2015, p. 151). Portanto, tomado como condição necessária para se pensar o homem enquanto ser inteligível (isto é, enquanto membro de uma natureza suprassensível).
Nesses termos, pode-se concluir que tanto “vontade pura” quanto “arbítrio” constituem-se expressões que, apesar de suas especificidades dentro da estruturação da analítica da razão prática pura, fazem parte de uma mesma e única vontade livre, cuja concepção leva em conta tanto o aspecto racional do homem quanto sua natureza sensível. Não é por acaso que, ainda na Introdução, a vontade seja definida como “uma faculdade ou de produzir os objetos correspondentes às representações ou de determinar a si mesma, isto é, sua causalidade, para a efetivação desses objetos (seja a capacidade física suficiente ou não)” (KpV, AA 05: 15; 29). No primeiro caso, trata-se da produção de um objeto a partir de representações, isto é, da realização de uma ação segundo uma máxima ligada ao sentido interno. No segundo, trata-se da possibilidade de uma “autocoação”12 por meio da razão, isto é, da representação de um princípio formal enquanto fundamento suficiente do agir, independentemente do resultado da ação. Ambos, com efeito, formam o conceito geral de vontade e distinguem-se apenas quanto ao uso (a posteriori . a priori, respectivamente).
Nesse sentido, se levarmos novamente em conta a expressão vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa, e considerarmos que somente uma vontade autônoma (portanto, pura) pode submeter-se a leis independentes de toda condição empírica (portanto, morais), não demoraremos a perceber em relação a qual conceito de liberdade Kant estaria fazendo referência. Assim, se admitirmos que toda vontade submetida a leis morais é livre, porém nem toda vontade livre encontra-se submetida a leis morais (haja vista que nem sempre a vontade é autônoma), mas também a leis empiricamente condicionadas (heteronomia), não resta dúvidas de que a contradição, antes apontada, era apenas aparente. Com efeito, considerando que tanto autonomia quanto heteronomia resultam de uma mesma vontade livre, diferindo apenas segundo seu fundamento de determinação, o problema da imputabilidade das ações imorais também se resolve, posto que tais ações, ainda que sujeitando-se a uma condição empírica enquanto regra, são também praticadas em liberdade. Se assim não fosse, a ideia de obrigação perderia todo o significado e a lei moral tornar-se-ia obsoleta. Afinal, como censurar o que não pode ser praticado livremente, e com que necessidade pressupor uma lei para avaliar o que não pode ser medido em termos morais?
Assim, a concepção de um duplo aspecto da vontade (um puro e outro sensível) torna-se importante não apenas no sentido de justificar a relação entre lei moral e liberdade, por meio do conceito de dever (o qual nega às inclinações o pretenso direito de fundar ações morais, exigindo, assim, que uma ação tenha valor apenas em face do princípio formal que a determina), mas visa garantir, em grande medida, que a própria moralidade não se isole num mero formalismo vazio. Nesse ponto, vale destacar uma passagem do Prefácio à Fundamentação, onde a necessidade de uma aproximação às condições sensíveis mostra-se de suma importância. Diz Kant: “o homem, com efeito, afetado por tantas inclinações, é na verdade capaz de conceber a ideia de uma razão pura prática, mas não é tão facilmente dotado da força necessária para a tornar eficaz in concreto no seu comportamento” (GMS, AA 04: 389; B 16).
Na Crítica da razão pura, a expressão “in concreto” é usada para designar o uso de regras “sob as condições contingentes do sujeito, que podem impedir ou fomentar este uso e que são todas elas dadas só empiricamente” (KrV, A 54; B 79). Na Dialética Transcendental, o mesmo uso in concreto é tomado, a fim de designar a possibilidade de, por meio de uma “filosofia experimental”, “a moral também pode[r] apresentar, pelo menos em experiências possíveis, todos os seus princípios [...] juntamente com as suas consequências práticas, e assim evitar o mal-entendido da abstração” (KrV, A 425; B 453). O emprego da expressão filosofia experimental, aqui, parece antecipar o que, na Fundamentação, é chamado por Kant de “Antropologia”, cuja tarefa consiste na aplicação da moral aos homens (GMS, AA 04: 412; B 46). Nesse sentido, ao considerar que somente a concepção de uma razão prática pura não resultaria suficiente para que as leis morais a priori fossem, de fato, eficazes sobre o comportamento humano, Kant parece não só considerar a necessidade de se formular uma segunda parte da Ética, de caráter empírico, tal como anunciado ainda no Prefácio da FMC, mas também ressalta a importância de se observar as condições contingentes do sujeito na efetivação da moralidade.
A motivação disso parece óbvia: provar que, apesar de todos os mandamentos do dever que a razão lhe apresenta, “o homem sente em si mesmo um forte contrapeso”, que nada mais são do que “as suas necessidades e inclinações, cuja total satisfação ele resume sob o nome de felicidade” (GMS, AA 04: 405; B 37). Assim, seria o conhecimento do homem, em sua condição sensível, indispensável não apenas para que a crítica da razão pudesse operar sua transição do exame teórico ao exame prático, mas, sobremaneira, para distinguir os casos em que o princípio supremo da moralidade poderia encontrar lugar na vontade humana, bem como sua eficácia. Nesses termos, poder-se-ia distinguir, segundo Kant, tanto uma “pura filosofia dos costumes (Metafísica)” quanto uma “moral aplicada (à natureza humana)” (GMS, AA 04: 410; B 44). Conforme a isso, muito embora os princípios morais não tivessem por fundamento as “particularidades da natureza humana”, porquanto existiriam “por si mesmos a priori”, poder-se-ia derivar, destes, “regras práticas para a natureza humana como para qualquer natureza racional” (GMS, AA 04: 410; B 44). Com efeito, embora os princípios práticos residissem a priori na nossa razão, regras de aplicação poderiam ser extraídas para o uso externo da liberdade, aplicada a casos concretos da experiência, os quais compreenderiam não só a antropologia, mas também a pedagogia, a religião, a história, a política e o direito13.
Referências
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Autor(a) para correspondência: Felipe Rodrigues Simões. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Lagoa Nova, 59078-970, Natal – RN, Brasil. profo.felipe@gmail.com