Resumo: A transição do trabalhador (europeu) da Idade Média para a Moderna forçou os meios de produção burgueses a criarem modos de positivar a cultura do trabalho. Para além das ideologias e da própria miséria como impulsionadores da cultura do trabalho, o que pretendemos neste artigo é jogar luz sobre o papel das previdências como instrumentos de subjetivação e normalização, originalmente disciplinares; utilizando então uma leitura foucaultiana do tema. Partiremos do como as técnicas disciplinares ajustaram os corpos trabalhadores para o trabalho e fixaram-nos com o auxílio das caixas previdenciárias, até chegarmos à compreensão atual das reformas e contrarreformas previdenciárias como resultados disto que tem sido reconhecido hoje como uma necropolítica. A atualidade, não mais apenas dos trabalhadores europeus (mas globais), vista então como algo que em nome de uma biopolítica se converteu nesta ultradefesa da vida. Uma defesa que, no seu limite, justificaria até mesmo a morte de larga parcela da população. Temos então a passagem da biopolítica para a necropolítica. E na mesma ordem, temos a passagem de um sistema previdenciário que não é mais feito para o auxílio ou a fixação do trabalhador, mas para a gestão do uso e do descarte (propriamente a morte) deste mesmo sujeito frente ao mercado de trabalho.
Palavras-chave:TrabalhoTrabalho,DisciplinaDisciplina,BiopoderBiopoder,NecropolíticaNecropolítica,SeguridadeSeguridade.
Abstract:
: The transition of the worker (European) from the Middle Ages to the Modern forced the bourgeois means of production to create ways of positivizing the culture of labour. Beyond the ideologies and misery, themselves, as promoters of the work culture, what we intend in this article is to highlight the role of social security as instruments of subjectivation and normalization, originally disciplinary; using a Foucauldian reading of the theme. We will start from how disciplinary techniques have adjusted workers' bodies to work and have fixed them with the help of pension funds, until we come to the current understanding of social security reforms and counter-reforms as a result of what has today been recognized as a necropolitics. Currently, no longer only of European workers (but global), seen as something that in the name of a biopolitics has become this ultra-defence of life. A defence that, on the edge, would justify even the death of a large part of the population. Therefore, we have the passage from biopolitics to necropolitics. And in the same order, we have the passage of a social security system which is no longer made for the aid or the fixation of the worker, but for the management of the use and disposal (death itself) of this same subject in the labour market.
Keywords: Work, Discipline, Biopower, Necropolitics, Security.
Artigos
Da disciplina à necropolítica, o papel do trabalho e da seguridade em Foucault e na atualidade
From discipline to necropolitics, the role of work and security in Foucault and nowadays
Recepção: 12 Julho 2019
Aprovação: 03 Outubro 2019
Se Foucault não é objetivamente uma referência intelectual acerca do conceito de “trabalho” (tal qual Marx ou Hannah Arendt), no entanto, é de bom tom recordar que a sua obra dos anos [19]70 e [19]80, sobretudo os cursos no Collège de France, nos informa que tal tema não passou desapercebido por ele. Mas, para compreender o conceito de trabalho em Foucault é fundamental entender a figura do sujeito frente ao trabalho. Se na antiguidade e na Idade Média, para Foucault, o trabalhador é muito mais parte de um oikos do que propriamente de uma política econômica., já a partir da Idade Moderna o trabalho, e consecutivamente o trabalhador, se tornam centrais no debate dos assujeitamentos (disciplinares e governamentais).
A leitura de Foucault nos empurra para além dos riscos da alienação e das ideologias, para além dos acirramentos de classes e da miséria; efeitos bem conhecidos pela literatura política dos séculos XIX e XX a respeito da organização burguesa do trabalho. O que Foucault nos mostra em sua visada é como esta organização laboral burguesa buscou normatizar cada átimo de nossas vidas em torno do trabalho. E não apenas para bem realizá-lo, mas sobretudo para que sua realização tivesse uma série de significados: morais, higiênicos, familiares, religiosos, sexuais, políticos, etc. A partir da modernidade, sobretudo das revoluções industriais, as instituições de trabalho deveriam se reorganizar de modo a dialogar com as outras instituições contemporâneas a elas. Fábrica, convento, caserna, prisão – entre outros – são lugares que confundem seus participantes (seja o aluno, seja o trabalhador, seja o paciente, etc.) pela disciplina, mais ou menos militar, comum a todas. Esta é a forma do discurso normalizante de demonstrar que todas as instituições se sustentam porque, ao mesmo tempo, elas lembram umas às outras (em suas semelhanças), mas também reforça o fato de uma não ser a outra (dados seus diferentes fins). Isto é, as instituições jogam com este duplo discurso, um que diz “vocês me aceitam porque eu sou isso que vocês fazem, seja nas escolas, na prisão, na fábrica, etc. – e outro discurso que dirá ainda – mas também, me aceitam porque eu sou a forma que diz que estando numa fábrica, vocês não estão numa prisão, ou numa escola” (FOUCAULT, 2003, p.123). A modernidade manteve o mesmo discurso para todas instituições, demonstrando que cada uma delas serve para um fim específico. Por isto, aceitamos que exista, no interior da sociedade, um lugar no qual colocamos as crianças para que sejam positivamente vigiadas, admoestadas e punidas (se necessário) e, ao mesmo tempo, aceitamos um lugar no qual colocamos as pessoas mais perigosas, mais letais, mais indesejadas para que sejam negativamente vigiadas, admoestadas e punidas – esta semelhança se dá (é aceita e até é mesmo desejada) porque supomos que: estando em uma instituição automaticamente não estamos na outra, ou que: estando em uma podemos evitar ir à outra. A escola, a fábrica, o hospital, etc. devem ser então pequenas amostras da prisão, uma prisão homeopática. Em contrapartida, a prisão serve para dizer que escolas, hospitais, exército e fábricas, não são iguais entre si, nem são propriamente a cadeia. Divergência nos objetivos, convergência nos discursos.
Assim, dialogando e se espelhando em outras instituições, não daria para reduzir a função das instituições laborais apenas ao seu enfoque econômico. Na flor da modernidade a fábrica, a usina ou a oficina eram dotadas disto que Foucault chamou de “um poder polimorfo, polivalente” (FOUCAULT, 2003, p.120). Polimorfo pois se desdobrava entre o poder econômico, regulando a vida e o tempo de seus funcionários através do salário; mas sendo também um poder político, que lhes impunha uma série de regras as quais deveriam seguir para se manterem empregados. E por fim, um poder judiciário, cuja compreensão podemos sintetizar na fala: “nestas instituições não apenas se dão ordens, se tomam decisões [...] mas também se tem o direito de punir e de recompensar, se tem o poder de fazer comparecer diante de instâncias de julgamento” (FOUCAULT, 2003, p.120).
Mais do que permitir uma análise pura sobre as relações de produção, o conceito de trabalho informa também sobre as relações de poder. Compreendendo toda importância que essa expressão – relações de poder – tem na obra do pensador francês. O trabalho, embora tenha por função principal gerar bens e serviços e com isto converter-se em renda, lucro e todos os demais fins econômicos, ele também não pôde escapar de servir para uma certa ortopedia social e individual. Sobre o espectro do trabalho recairiam então poderes normativos, de ressocialização, de reabilitação e até de cura. O trabalho seria percebido como “solução geral, panaceia infalível, remédio para todas as formas da miséria [...] nem tanto pelo seu poder produtor quanto de uma certa força de encantamento moral” (FOUCAULT, 2002, p.71).
Tomemos a loucura como um exemplo. Por que há loucura na modernidade? Em suma deve-se responder que: um ser-normal participa de vários “jogos normais do viver” e dentre eles, um dos mais fundamentais, está o “trabalhar para viver”. Deste modo, se há loucura, é preciso curá-la fazendo seu portador agir normalmente, isto é, fazê-lo trabalhar para viver. Neste cenário, entre técnicas psiquiátricas, medicinais e religiosas, encontramos o trabalho como uma espécie medicamento empírico para a loucura, para o ócio, para a perversão, entre outros males; remédio que disputaria seu lugar com a medicina alopática pelo papel da cura. “Com efeito, a relação entre a prática do internamento e as exigências do trabalho não é definida inteiramente – longe disso – pelas condições da economia. Sustenta-a e anima-a uma percepção moral” (FOUCAULT, 2002, pp.73-74). E o que vale para a medicina também vale para a reabilitação do crime. Fazer o criminoso trabalhar, como forma de pena, é reinseri-lo à força num jogo que ele originalmente optou por burlar. Afinal, pensavam os modernos: por que alguém rouba? Ora, para ser rico sem os custos de dispender tempo e esforço. Assim, é preciso fazer o criminoso reencontra-se no padrão que liga o trabalho ao ganho. Porém, mais uma vez, não se trata de fazer do preso um trabalhador no sentido econômico do termo, mas sim, de reingressá-lo num comportamento moralmente normal e desejável.
No fim das contas, se o trabalho da prisão tem um efeito econômico é produzindo indivíduos mecanizados segundo as normas gerais de uma sociedade industrial [...] O trabalho pelo qual o condenado subsiste às suas próprias necessidades requalifica o ladrão em operário dócil [...] A utilidade do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema de submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção (FOUCAULT, 2005, p.204)
Nesta mirada o trabalho encontra seu protagonismo pelas relações de poder antes de definir-se pelas relações de produção. Talvez isso explique por que Foucault tentou se colocar, ainda que de modo pouco elaborado, num lugar distinto ao de Marx em relação ao trabalho. Numa entrevista de 1978 Foucault pontuava que se para Marx o trabalho é condição de existência do homem., já para ele o trabalho não pode assumir tamanho papel ontológico, pois, “se o homem trabalha, se o corpo humano é uma força produtiva, é porque o homem é obrigado a trabalhar. E ele é obrigado porque é investido por forças políticas, porque ele é posto em mecanismos de poder” (FOUCAULT, 2001, p.470). O trabalho ultrapassaria assim a necessidade de produzir, mas também não se pode associá-lo a algo como uma natureza humana, ele [o trabalho] seria aqui a fonte e o fim para o modo como os sujeitos se constroem e se governam. O longo debate em torno de qual seria o melhor sistema (econômico, político, de governo ou de Estado) que atravessou os séculos XIX e XX demostra que não é apenas da fabricação das coisas que o trabalho trata. Assim sendo, se o trabalho visa ao assujeitamento, então por quais caminhos e com quais instrumentos ele operou (e ainda opera) a produção das subjetividades? Aqui poderíamos discorrer em torno de vários pontos, desde a educação para o trabalho até as ideologias em torno da sua aceitação, mas nosso recorte focará nas caixas previdenciárias e em suas operações morais e políticas, para além das econômicas.
Comecemos pelo básico, o conceito de disciplina. A disciplina é provavelmente um dos conceitos mais conhecidos e analisados do pensamento de Foucault, de tal modo, deve-se evitar alongar-se neste lugar comum. Sobre a disciplina o próprio autor francês nos informou que: ela “caracteriza-se por uma anátomo-política dos corpos humanos” [...] “ela não se trata de um poder espetacular e triunfante, mas de um poder modesto, desconfiado, que funciona sobre o modo de uma economia calculada, mas permanente” [...] “a disciplina trabalha num espaço vazio, artificial, sobre o qual vai se construir inteiramente” [...] ela “não é simplesmente uma arte de repartir os corpos, de extrair e de acumular o tempo, mas de compor forças para obter um aparelho eficaz”.. Em resumo, tudo isto funciona de modo a constituir uma ortopedia social (FOUCAULT, 2003, p.86).
O trabalhador não seria algo de menor importância neste cenário. Advindo de um passado feudal, no qual ele era relativamente desregrado e pouco instruído, o trabalhador [europeu] moderno precisou sofrer intensamente, no corpo e na consciência, uma modelação de seus comportamentos e objetivos pessoais. Para realizar essa operação de otimização mecânica e moral do trabalhador, dois conceitos se fizeram fundamentais: escassez e eficiência. Parece contraditório colocá-los lado a lado operando conjuntamente. Tendo em vista que um é resultado de uma falta, de uma má administração e o outro é o resultado da qualidade de bem administrar; então, como poderíamos compreender que os dois se completam aos olhos da tecnologia disciplinar? A resposta está no título deste capítulo: é preciso trabalhar para viver! A escassez geraria a urgência pelo trabalho e a eficiência é a resposta para o como saná-la.
A “escassez” entrou em cena na modernidade – graças à economia política – na forma de uma certa consciência, uma espécie de espírito do tempo. A consciência de que não haveria recursos básicos para todas as pessoas, que tais recursos se esgotariam e naturalmente isto levaria à eliminação compulsória de determinadas populações (temos uma visão bem superficial de algo que aparece em Ricardo, mas principalmente em Malthus). Em outras palavras: escassez de recursos gerando escassez humana. Ora, como a mesma economia política buscou solucionar tal desequilíbrio? Através do trabalho, um trabalho eficiente. Isto é, cada vez mais especializado, mais bem dividido (para lembrarmos de Adam Smith) e, ao mesmo tempo, continuamente preocupado com a remuneração justa do mesmo. O que compreender por “remuneração justa” no vocabulário burguês? Para os liberais seria aquela que manteria o valor do trabalho estável no mercado, para Marx seria aquela que o capitalista encontraria, no piso da subsistência, o mínimo possível para a existência produtiva do trabalhador. No caso deste presente artigo, o conceito de “remuneração justa” (na modernidade) é compreendido como aquela que manteria o trabalhador momentaneamente longe da escassez, mas que o forçasse a manter-se em um ritmo extenuante de produção eficaz. Em outras palavras, liberais e Marx estariam simultaneamente certos. Ou nas palavras de Foucault:
Corpos submissos e exercitados, corpos 'dóceis'. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma 'aptidão', uma 'capacidade' que ela procura aumentar; e inverte, por outro lado, a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita (FOUCAULT, 2005, p.162)
O trabalho (pelo menos para aqueles que não teorizam sua condição ontológica) seria um fim em si, fazendo com que fosse simplesmente necessário “trabalhar para viver”. E o que este trabalhador bem o sabe é que há um modo correto de trabalhar, logo, ele assim deve fazê-lo, e este modo é a eficiência. Seu corpo forte e instruído para o trabalho é igualmente inapto e docilizado para contestar sua condição de escassez (seja ela natural ou artificialmente promovida).
Este cálculo sobre o trabalho reconheceu precocemente o risco que corria, de ter sua lógica inviabilizada e contestada quando o trabalhador se encontrasse fora do trabalho. De modo que estar fora do trabalho não deveria ser, no mundo disciplinar, nada diferente do que estar dentro do trabalho. A fábrica e a família, a igreja e a caserna, a prisão e a escola técnica- como já dissemos – todas as instituições deveriam estar devidamente alinhadas em seus discursos. Por isso, notamos que há no testemunho de Thomas Malthus algo que escapa à erudição sofisticada (que até então vinha sendo usada no célebre Ensaio sobre a População) e torna-o quase um alcoviteiro, ao dizer que:
O trabalhador pobre, para usar uma expressão vulgar, vive ao deus-dará. Suas necessidades do momento ocupam toda sua atenção e eles raramente pensam no futuro. Mesmo quando têm uma oportunidade de poupança, raramente a fazem, mas tudo o que está além das suas necessidades de momento, genericamente falando, vai para a cervejaria (MALTHUS, 1986, p.300).
Este Malthus, que mais parece com senhor rabugento incomodado com os maus hábitos dos vizinhos barulhentos, na verdade, bem traduz toda uma preocupação moral e econômica de sua época. É preciso disciplinar o trabalhador de modo que ele seja um bom trabalhador mesmo fora do trabalho. Isto que Foucault observou na quinta palestra que compõe A verdade e as formas jurídicas:
No decorrer do século XIX, uma série de medidas será adotada visando suprimir as festas e diminuir o tempo de descanso; uma técnica muito sutil se elabora ao longo do século para controlar a economia dos operários [...] É preciso que eles não utilizem suas economias antes do momento em que estivessem desempregados. Eles não devem utilizar suas economias no momento em que desejarem, para fazer greve ou para festejar. (FOUAULT, 2003, pp.117-118).
Disciplinar o comportamento pelo trabalho e para o trabalho, mas também fora do trabalho. Assim surgem as primeiras experiências institucionais de previdências sociais públicas e privadas. Segue Foucault nesta mesma palestra: “daí a criação, na década de 1820 [...] de caixas econômicas, de caixas de assistências, etc. que permitem drenar as economias dos operários e controlar a maneira como são utilizadas” (FOUAULT, 2003, p.118)..
Com essa nova instituição disciplinar seria possível medir o tempo do trabalho, não apenas pelo tempo que os sujeitos passam objetivamente trabalhando durante o dia, mas pelo tempo de vida que ele é capaz de trabalhar. “O tempo do operário, não apenas o tempo do seu dia de trabalho, mas o de sua vida inteira, poderá efetivamente ser utilizado da melhor forma pelo aparelho de produção” (FOUAULT, 2003, p.118). Esse novo elemento, “a vida”, vai se tornando a métrica mais fundamental em todos os cálculos institucionais. Preservar a vida, prolongar a vida, cuidar da vida, etc. se tornarão as bandeiras pelas quais todos supostamente deverão se submeter e defender. Pais devem defender a vida de seus filhos, chefes de nação de seus compatriotas e patrões devem cuidar da vida de seus funcionários. Sob essa espécie de moral bem-intencionada as caixas de seguridade surgem como algo positivo para os mais pobres. “Instituições aparentemente de proteção e segurança [nas quais] se estabelece um mecanismo pelo qual o tempo inteiro da existência humana é posto à disposição de um mercado de trabalho” (FOUAULT, 2003, p.118). Em nome da vida, de sua defesa e de seu cuidado foi dito ao trabalhador que ele deveria estar assegurado para o futuro, contra as adversidades, contra o aleatório, contra acidentes, contra a velhice. Contudo, essa segurança previdenciária não lhe seria um “direito” (statusesse que a propriedade já havia alcançado um século antes). Para acessá-la o trabalhador deveria aceitar participar de um regime estrito de proibições, bons comportamentos e, fundamentalmente, de produtividade. Em poucas palavras, ele deveria assumir para si a função de propagar, encenar e reproduzir todo o discurso e as práticas disciplinares. A previdência nasce como uma chantagem sobre o trabalhador, como se ela fosse capaz de suprir uma falsa escassez futura em troca do bom comportamento presente.
Quando a crítica econômica (contra às disciplinas) tocar os corpos dos sujeitos, ela será muito cautelosa para não desfazer todo o trabalho realizado ao longo de quase dois séculos pela disciplina nos corpos do proletariado. Porém, o conceito de vida ultrapassará as razões pelas quais foi criado e inaugurará assim a época do biopoder ou da biopolítica. A vida na disciplina era uma espécie de metrónomo que permitia medir o ritmo da produção em relação ao tempo da existência biológica. A previdência servia para dizer aos trabalhadores que tendo eles seguido corretamente às normas, poderiam enfim reaver em forma de dinheiro (ou outros benefícios materiais) aquilo que lhes foi sequestrado ao longo da vida. A aposentadoria disciplinar é o tempo feito de refém para que todos colaborem com a produção.
Conforme a vida foi ganhando mais importância na sociedade ocidental e mais cuidados lhe foram imputados (para além daqueles do mundo do trabalho), ela deixaria de ser apenas uma medida e se converteria em uma meta. A vida não mais como instrumento da razão, mas como uma razão em si. O que gira completamente a chave de compreensão dos fenômenos sociais, políticos e econômicos atuais. A vida que antes se enquadrava no jogo da produção, do consumo, da geração e da realização, será ela agora o próprio produto desta nova organização. É essencial, neste ponto, concordar com a professora Susel: “administrar tornou-se a metáfora de nossos tempos” (ROSA, 2009, p.337). A vida deve então ser administrada.
Na tecnologia disciplinar era preciso participar de instituições e práticas disciplinares delimitadas, com início e fim: começar e terminar a escola, ir e sair do hospital, participar e retornar da guerra (no serviço militar), etc.; isso não será mais claro e delimitado em nossos dias de biopolítica. A disciplina promove a participação, a biopolítica incita a administração. Uma administração de tudo, de todos e por todos. Lembra-nos Deleuze: "nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada [...] a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame" (DELEUZE, 1995, p.221).. Os sujeitos são enfim “libertos” desses ciclos disciplinares. Libertos sem libertarem-se, livres para não terminar jamais de serem investidos por forças que os fazem viver, mas ao mesmo tempo, são demandados que administrem essas próprias forças vitais. Quer dizer, ao invés dos sujeitos serem investidos de algo como uma educação formal, uma escola ou uma universidade (que começa e termina), o sujeito na biopolítica é ele próprio quem deve investir na sua educação, ele deve ser responsável por isso, deve passar pela educação formal (a escola e a universidade), mas deve também “investir em educação”, fazer cursos, ler os clássicos, acompanhar as notícias, etc., infinitamente manter-se educado, informado, nutrir-se de saber com a mesma cotidianidade que se nutre de alimentos. O mesmo valeria, por exemplo, para os valores médicos – “é preciso investir na saúde!” – eis o imperativo que se desdobra e recobre os sujeitos. Investir em saúde, na disciplina, era basicamente buscar um médico quando estivesse doente, começar e terminar o tratamento. Ora, na biopolítica “investir em saúde” é um ciclo infinito, tudo passa a fazer parte deste investimento neurótico; o que come, a necessidade de fazer exercícios, a regularidade com que vai ao banheiro, estar em dia com a academia, etc.
Deste modo, a vida deixa peremptoriamente de ser uma medida e se converte no objetivo. O corpo do bom trabalhador deve dar tanto lucro ao realizar o trabalho como ao viver. Ele deve produzir bens, mas ele deve ser um bem em si. Não mais apenas o confeccionador de capital, “mas um capital humano”. Aqui temos todo o peso da leitura do que é o trabalhador no neoliberalismo feita por Foucault na aula de 14 de março, no Nascimento da Biopolítica. Por que se trabalha? – questiona Foucault e o próprio responde, traduzindo o pensamento neoliberal – trabalha-se para conseguir o salário; então o salário nada mais é do que uma renda. E se “renda é simplesmente o produto ou o rendimento de um capital” (FOUCAULT, 2004b, p.230), segue-se a lógica neoliberal, então “o trabalho comporta um capital, quer dizer, uma aptidão, uma competência” (FOUCAULT, 2004b, p.230). O trabalho se converte aos olhos do biopoder neoliberal numa capacidade de gerar capital, e pela mesma lógica, quem gera capital não é o trabalhador, mas a empresa. Restando assim uma conclusão lógica e desumanizante, que é a seguinte: conceitualmente o trabalhador não é um ser humano com suas necessidades, desejos, medos, paixões, etc., ele é uma espécie de sujeito-empresa.
“O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo [...]a aposta de todas as análises que fazem os neoliberais, é de substituir a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele mesmo seu próprio capital, sendo para si mesmo seu próprio produtor, sendo para si mesmo sua fonte de renda” (FOUCAULT, 2004b, p.232).
Resultando com que hoje forcemo-nos a aceitar, mesmo que desumanamente, que vivemos num mundo no qual não se educa mais, mas investe-se na educação, não se alimenta, mas investe-se na saúde, acaba que tudo é recompensa por se estar investindo corretamente a renda, tudo é trabalho. Trabalho sobre si. Trabalho e investimento em todas as camadas humanas: “o simples tempo de afeição consagrado pelos pais a seus filhos, deve poder ser analisado como investimento suscetível de constituir um capital humano” (FOUCAULT, 2004b, pp.235-236). Não fazendo mais tanto sentido dizer que as pessoas devem ontologicamente “trabalhar para viver” (embora se diga isso na superfície das relações e no senso comum). Viver é o próprio trabalho, cada um é um mercado e uma empresa em si, cada gesto é um serviço prestado, cada gosto é um estudo de consumo. Viver na biopolítica é perpetuar um trabalho de si mesmo, viver é trabalhar. Não mais “trabalhar para viver”, antes sim, viver para trabalhar. Querendo ou não, não há lugar de fora, não há “sociedade alternativa”, não existem os excluídos. Pois aquele que está vivo automaticamente já pertence ao “mundo do trabalho”. Até o preso na pior das situações está trabalhando para que sua vida gere produtos midiáticos, Estatais, aparatos de segurança, gastos, etc.; seja como trabalhador na prisão, seja como elemento simbólico do crime (em jornais sensacionalistas), até ele está “pagando sua pena” (FOUCAULT, 2005, p.269).
Neste cenário a previdência também precisa mudar. Uma previdência nos moldes disciplinares é improdutiva e demasiadamente custosa. Dizer ao trabalhador que ele enfim pode aposentar, ou que ao sofrer um acidente ou engravidar ele deve se colocar [mesmo que temporariamente] fora do mundo do trabalho é um erro enorme aos olhos biopolíticos. Se não há mais vida voltada para o trabalho, pois viver é o trabalho em si, então não se pode pedir aos que trabalham para que eles deixem de ser capital humano enquanto estão grávidos, doentes ou velhos. Aposentar não pode mais ser considerado uma bonificação por bom comportamento laboral; ao contrário, aposentar passa a representar um erro, uma falha, a confissão de uma incapacidade, uma desvalorização no próprio capital humano. Uma grávida ou um acidentado devem ser capazes de serem realocados, eles não podem ser taxados de “inúteis” ou punidos com o desemprego. Embora, na prática, o sejam; afinal, é o mesmo sistema que os qualifica como “aptos a trabalhar” que lhes manterá desempregados, pois eles representarão um “capital humano desvalorizado”.
A previdência disciplinar recebeu seus primeiros ataques econômico-políticos, sobretudo de caráter neoliberal, ao apontar que no confisco da renda há um duplo vício de um pensamento antigo. Diz a crítica neoliberal: por um lado, há o vício sobre os sujeitos que se colocam fora do “mundo do trabalho”, pois estes optam por desvalorizar o próprio capital humano. E, por outro lado, há o vício sobre o confisco propriamente, isto que é tirado do trabalhador para criar a previdência, isto será considerado como um desfalque tanto do capital humano como do capital financeiro. E aqui chegamos às reformas biopolíticas das previdências no século XXI. Por um lado, a velhice ou a invalidez não deverão mais ser compreendidas como acontecimentos dignos de afastamento do trabalho e, por outro lado, a “contribuição previdenciária” será associada ao furto da renda. Com esses dois dados, seria então de se esperar que o conceito de previdência ruísse por si só. Porém, não é este o efeito que percebemos no século XXI. As críticas seguem por outro caminho que não o fim da estrutura previdenciária, mas o fim da sua lógica disciplinar. Os Estados contemporâneos compreenderam que manter este confisco salarial dos trabalhadores em torno de uma ideia que ainda soe como positiva para os mesmos é demasiadamente útil para ser abandonado. Na biopolítica o desafio é o de manter o confisco previdenciário, mas sem ligá-lo a uma ideia de afastamento do trabalho. E assim, o conceito disciplinar de “eficiência” se atualiza no conceito de “mérito” na biopolítica.
Para melhor contextualizar, lembremos do curso A sociedade punitiva, especificamente na aula de 7 de março de 1973. Nesta aula Foucault mostra como os primeiros sistemas penais modernos, a respeito do roubo, focavam mais sobre os trabalhadores que sobre os marginais propriamente (FOUCAULT, 2013, p.177). Não apenas pelo risco do trabalhador assaltar da fábrica na qual ele trabalha, mas por que, sobre a ótica do patrão, trata-se de roubo quando o “trabalhador não trabalha com vontade, é preguiçoso, se embriaga [...] Ele rouba isto que deve ao patrão, isto que poderia ganhar para sua família” (idem, pp.177-178). Quando o trabalhador não é eficiente é como se ele roubasse do que lhe emprega e de si mesmo, mas quando ele é, é graças a algo como um mérito. Esta visão de mundo serviu, durante a época disciplinar, para propor medidas morais para o corpo-trabalhador. Porém, no século XXI notaremos que os vícios não serão mais inimigos da produtividade por si só, mas sim ferramentas de controle da vida dos trabalhadores. Não mais apenas um labor lucrativo, mas uma vida lucrativa. Não mais uma aposentadoria que significa o sucesso de uma vida útil, mas agora, aposentar é sinônimo de impotência e de incompetência. A utilidade estará na capacidade de alongar ao máximo a “idade produtiva”, a valorização estendida deste capital humano. Aposentar tornou-se a atualização da regra que antes dizia: o empregado bêbado rouba o tempo de produção e o salário investidos pelo patrão. Agora: o aposentado é um capital humano que não soube se gerir decentemente e agora rouba daqueles que investiram em si durante a juventude.
O biopoder se vê frente ao seguinte dilema: ora, o que fazer para evitar seja o mau comportamento (como a embriaguez) seja o cansaço da velhice? A resposta passa primeiramente por um elogio do esforço. O esforço – assim como seu correlato neoliberal: o mérito – é até mais importante que o trabalho em si. Afinal, o que o mercado diz ao idoso ou ao acidentado do século XXI? Diz que ele não é um incapaz, mas alguém que pode realocar e reacomodar o resto de suas forças, de seu conhecimento, enfim, de suas competências (acumuladas) em outro serviço. Como exemplifica a proposta de contrarreforma previdenciária apresentada pelo Governo Federal Brasileiro no início do ano de 2019, ao se referir aos servidores públicos:
§ 13. O servidor público titular de cargo efetivo poderá ser readaptado para exercício de cargo cujas atribuições e responsabilidades sejam compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental, confirmada por meio de perícia em saúde, enquanto permanecer nesta condição, desde que possua a habilitação e o nível de escolaridade exigidos para o cargo de destino, mantida a remuneração do cargo de origem..
Outra conclusão lógica desta visão de mundo, na qual o capital humano deve evitar continuamente a desvalorização, trata de que mesmo aposentando ou tornado pensionista, os sujeitos não se vejam e não se sintam “fora do mercado”. E, como alguém que ainda é participante do mercado, faz-se coerente que mesmo o aposentado continue contribuindo para a previdência. Fazer o beneficiário da previdência ser igualmente um contribuinte dela é parte do jogo dialético que mantém o trabalhador preso ao mundo do trabalho, mas sendo cobrado como ser-capital e não como ser-trabalhador. Esse é o ponto comum que todas as contrarreformas previdenciárias apresentaram desde a crise econômica de 2008, seja na Grécia, na Argentina ou no Brasil. Essa amálgama faz dos sujeitos uma espécie de: trabalhador-capital-empresa tudo ao mesmo tempo. Ela coloca os sujeitos num complexo jogo que, para além da alienação do [fruto do] trabalho, cada um se torna alienado da própria condição como trabalhador e mesmo como ser humano. Vida e capital se confundem nesse reforço pelo meio e o discurso previdenciário aparece para enfim confirmar que: você que teve essa parte de renda retida ao longo de toda sua vida, você receberá não uma aposentadoria ou um auxílio para poder parar de trabalhar, mas sim, uma renda extra, uma espécie de complemento de renda ou de capital para sanar essa desvalorização do seu capital humano envelhecido ou acidentado.
Parar de trabalhar passa a ser totalmente desestimulado na época do biopoder. Enquanto houver vida, haverá trabalho. O esforço que se diz voltado para proteger e prolongar a vida deve ser simetricamente compreendido como o esforço para proteger e prolongar a produtividade e a rentabilidade dos sujeitos. Assim, aposentar não deve significar o fim do labor, mas apenas seu remanejo, sua reorganização por outros meios e em outras funções. Esta é a visão e o planejamento para a constituição das subjetividades desejadas e estimuladas no biopoder. Em contrapartida, há uma lição foucaultiana que jamais podemos esquecer, que é: “onde há poder, há resistência” (FOUCAULT, 1999, pp.125-126; 2001, p.267 & p.1559). Diz Foucault:
Pois sendo verdade que, no coração das relações de poder e como condição permanente de sua existência, há uma 'insubmissão' e liberdades essencialmente retidas, não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem retorno eventual; toda relação de poder implica assim, ao menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto elas venham a se superpor, a perder sua especificidade e finalmente se confundir. Elas constituem, uma para outra, uma espécie de limite permanente, de ponto de reversão possível (FOUCAULT, 2001, p.1061).
Assim sendo, se há uma pressão estabelecida para que os sujeitos participem cada vez mais deste jogo do capital humano, se as caixas previdenciárias servem cada vez mais para manter o trabalho atrelado ao tempo da vida (e não ao tempo do próprio trabalho), é inevitável que também existam resistências a tais pressões. A própria biopolítica, expressa na razão neoliberal, venderá o conceito de uma “previdência privada” como resistência ao trabalho infinito (ou até que a morte lhe dê fim) imposto pelas lógicas das previdências coletivas públicas. Como se de algum modo o indivíduo fosse adversário da população que lhe é semelhante, precisando proteger-se dela e do furto que ela promove em torno da sua contribuição pessoal – eis o discurso promovido pelo próprio biopoder. Na lógica do senso comum neoliberal, contribuir para um fundo público é assimilado como roubo, enquanto contribuir para um fundo privado é exaltado como seguridade, planejamento e resistência. De modo que, aquele que pretende proteger a vida, sobretudo a própria, deve estar ciente dos riscos que corre quando os outros, vistos agora como concorrentes, também pretendem fazer o mesmo. Tornando forçosa a compreensão que no biopoder, em último caso, a proteção da vida levada ao extremo é a justificativa da morte. Há um paradoxo intrínseco na lógica do biopoder: matar para proteger a vida. Paradoxo, cuja chave de compreensão Foucault reconhecerá no racismo (FOUCAULT, 1997, p.226).
Essa visada já se encontrava desde a época soberana, com o direito de matar do soberano. Porém, Foucault compreende que da passagem da Idade Média para a modernidade há uma inversão nesse poder de matar soberano. Algo bem conhecido entre os leitores e pesquisadores de Foucault, é que no poder soberano a ordem seria a de “deixar viver, fazer morrer”, já na modernidade o que temos é uma razão de Estado que nos informa que é preciso “fazer viver, deixar morrer”.. O que leituras posteriores a de Foucault apontam, e cada vez mais, é que na biopolítica esta regra teria sofrido mais uma alteração, ou pelo menos um recrudescimento de sua lógica interna.
Na disciplina a morte precoce era o reflexo de uma incapacidade de seguir as normas. Consequentemente, a previdência era um curioso prêmio para os que não morreram ao longo da jornada laboral de uma vida. Já no biopoder a morte é um instrumento de gestão das populações, pode-se “deixar morrer” a qualquer momento. Morrem o que consomem mal, os que produzem mal, os que administram mal suas vidas, gestos, seus próprios investimentos; em uma palavra, morrer é um risco que o capital humano corre e deve correr para pleitear um suposto êxito. E dado o racismo, na compreensão foucaultiana, alguns estariam mais propensos à morte que outros. Tendo em vista uma leitura atual da biopolítica, podemos entender que há um lado oculto nesta defesa da vida, que é a gestão das mortes. Uma verdadeira necropolítica. Gestão das mortes que podem ser espetaculares, midiáticas, exemplares, mas também daquelas silenciosas, ocultas, restritas às mazelas ancestrais como a fome ou em miasmas modernos como o consumo de drogas sintéticas de baixíssimo custo. Nos dizeres de Mbembe: “às execuções a céu aberto somam-se matanças invisíveis” (MBEMBE, 2018, p.49); e de Clara Valverde: “a violência mais útil para a necropolítica é a que está disfarçada, aquela que a população não pode identificar facilmente como violência” (VALVERDE, 2015, p.39).
Na biopolítica a previdência precisa passar então por [contra]reformas, essas mesmas que se apresentam desde 2008 nas nações ocidentais. Reforça-se com tais reformas todo um ecossistema que facilita o acesso à morte, voluntário ou involuntário. Não apenas mais um fazer morrer soberano, nem tampouco um simples deixar morrer disciplinar ou biopolítico, mas um verdadeiro “facilitar morrer”, que é necropolítico. A questão previdenciária passa a ser uma facilitação da morte, um mover-se para a morte, de modo que o Estado possa estar presente através de um ambiente voltado para a morte, mas ausente, de modo que não é mais o Estado quem mata (não se trata mais aqui de guilhotinas, cadeiras elétricas, câmaras de gás, fuzilamentos ou injeções letais). É um mundo em que a morte aparece como algo aceitável, desde que nunca seja compreendida nem como morte, nem como algo aceitável. É o adoecer até o limite, cansar-se até o limite, desanimar-se até o limite. Morrer de velhice, não por causas naturais, mas porque é infame ser velho. Morrer de doença porque não se pode parar de trabalhar para se cuidar. É o aposentar e continuar trabalhando. São as estradas que matam por sua má gestão de trânsito; são os lares quem matam pela facilidade de acessar uma arma de fogo; são os remédios cujos efeitos-colaterais podem ser mais fatais que a própria doença; são os alimentos ultra-processados de péssima qualidade ou os agrotóxicos insolúveis que permeiam a alimentação que um dia se pretendeu saudável.
As [contra]reformas previdenciárias compreendem que se os idosos estão vivendo mais, então, é necessário tornar a morte mais acessível a esta parcela de idosos. É preciso fazer com que eles, que insistem em viver mais, tenham menos recursos para viver; a aposentadoria deve ser um facilitador do acesso à morte. Não apenas um deixar que morram, mas sim, uma verdadeira administração da acessibilidade pública à morte. Trata-se do acesso à morte em massa de toda uma população que foi ensinada a viver; sobre a qual se pregou a importância de se cuidar, sobre a qual se estimulou todo um cuidado para que se mantivessem por toda vida como capitais úteis, mas que agora na velhice ou na invalidez devem ser descartados. Esta necropolítica se volta para aqueles que “não servem nem para ser escravos” (VALVERDE, 2015, p.16).
Porém, há um desafio sistêmico aqui, a saber: tornar esses sujeitos descartáveis, mas sem que isto rompa com a narrativa social do “cuidado da vida” para aqueles que ainda são úteis. Neste malthusianismo regenerado e subterrâneo a estratégia da necropolítica não é realizar um massacre a olhos nus, nem tampouco o de insuflar discursos beligerantes. É fazer da morte um acontecimento invisível e sobre a qual se possa mesmo negar a existência. É importante fazer crer que ninguém mais precisa morrer ou mesmo que vá morrer (como se o avanço da medicina garantisse isso), para que a morte seja cada vez mais presente. É, na prática, fazer valer a regra heideggeriana de que a morte é um evento que ocorre ao outro e não ao dasein propriamente.
Neste sentido vemos o conceito de resistência recriar forçar e tornar-se inspirador:
Eu gostaria de sugerir aqui uma outra maneira de avançar sobre uma nova economia das relações de poder [...] esse novo modo de investigação consiste em compreender as formas de resistências nos diferentes tipos de poder como ponto de partida. Ou, para utilizar uma outra metáfora, consiste em utilizar esta resistência como um catalisador químico que permita pôr em evidência as relações de poder, de ver onde elas se inscrevem, descobrir seus pontos de aplicação e os métodos que elas utilizam. (FOUCAULT, 2001, p. 1044)
Para resistir à necropolítica é fundamental sermos donos de nossa própria morte. Realizar a plenitude da morte através do domínio da própria vida. Isto que Heidegger já proferia – de um modo que apenas o próprio Heidegger tinha autoridade para fazê-lo: “O antecipar da possibilidade irremissível [da morte] obriga o ente que assim antecipa a possibilidade de assumir seu próprio ser a partir de si mesmo e para si mesmo” (HEIDEGGER, 2009, p.341); e que Mbembe reforçou – com uma didática que Mbembe tem toda a autoridade de usufruir: “se é livre para viver a própria vida somente quando se é livre para morrer a própria morte” (MBEMBE, 2018, p.49).
Mas como isso? Como ser senhor de sua própria morte? No campo das ilegalidades temos todo um arsenal de subversão da vida e da morte, desde o suicídio, o atentado político suicida (kamikaze, homem-bomba, etc.) até a falsificação da própria morte. Sobre este último ponto é válido mencionar que existem incontáveis histórias, reais e fantasiosas, a respeito de fingir-se de morto para a sociedade, em troca de vantagens financeiras, amorosas, espetaculares etc. Isto que ficou consagrado pelo conceito inglês de staged death (“encenar a própria morte”) e que merecia todo um estudo antropológico mais aprofundado. A staged death tem tantas causas quanto efeitos, seja para aplicar um golpe no seguro de vida, seja para escapar de dívida, seja para fugir de uma sentença da lei e manter os frutos do crime, seja para fugir de uma obrigação ou simplesmente recomeçar a vida sem os incômodos de já ser alguém conhecido.
Resistir à morte, ser dono da própria morte, realizar uma ontologia necromante de si mesmo, enfim, não precisa objetivamente fazer de nós um Alexei Kirilov dostoievskiano, nem que adulteramos o próprio óbito. Essas são estratégias extremas de resistência. O catalizador de uma resistência à necropolítica parece-nos ser mais facilmente encontrado nas seguintes palavras do próprio Foucault quando este propõe uma espécie de filtro. Não um filtro à necropolítica exatamente, mas contra àquilo que o mesmo identificou outrora como “uma vida fascista”, um filtro que nos parece plenamente aplicável para nossas necessidades. A saber: “a liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida da liberdade” (FOUCAULT, 2001, p.1531). Somente uma liberdade que é ciente de si e dos outros poderia servir para barrar a cultura do necropoder que hoje parece ser a anima de nossa vida, trabalho, relações sociais, escolhas políticas e futuro.