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Recepção: 18 Julho 2019
Aprovação: 03 Outubro 2019
DOI: https://doi.org//10.31977/grirfi.v20i1.1324
Resumo: Apresentamos no presente texto o papel da tese da transparência do conteúdo nas concepções de sentido de Frege e Dummett, a fim de revelar as razões desses autores para aderir a tal tese. A primeira parte do texto é dedicada a Frege. Nessa parte mostra-se que a tese da transparência subjaz ao modo como Frege entendeu seus critérios para a igualdade de sentido, e que a transparência do sentido atua como premissa em um de seus argumentos em favor da introdução da noção de sentido. A segunda parte é dedicada a Dummett. De início, veremos como ele reconstruiu um argumento fregeano em favor da distinção entre sentido e referência. Nessa reconstrução a transparência do sentido é caracterizada por oposição à opacidade da referência. No último movimento do texto, descrevemos como, para Dummett, a tese da transparência deve ser entendida à luz da equivalência entre significado e conhecimento.
Palavras-chave: Frege, Dummett, A tese da transparência do sentido.
Abstract: We present in the present paper the role of the thesis of the transparency of content in Frege and Dummett's thought, in order to reveal the reasons of these authors to adhere to such thesis. The first part of the text is dedicated to Frege. In this part it is shown that the thesis of transparency underlies Frege's understanding of his criteria for equality of sense, and that the transparency of sense acts as a premise in one of his arguments in favor of the introduction of the notion of sense. The second part is dedicated to Dummett. At first, we shall see how he reconstructed a Fregean argument in favor of the distinction between sense and reference. In this reconstruction, the transparency of meaning is characterized by opposition to the opacity of reference. In the last movement of the text, we describe how, for Dummett, the thesis of transparency must be understood in the light of the equivalence between meaning and knowledge.
Keywords: Frege, Dummett, The thesis of transparency of sense.
A tese da transparência do sentido
Em The Transparency of Mental Content, Paul Boghossian afirma que Michael Dummett disse pouco sobre as raízes de sua convicção na tese transparência do sentido, e que seus escritos dão a impressão de que para ele a verdade dessa tese seria óbvia, prescindindo assim de justificação (BOGHOSSIAN, 1994, p. 33). Dummett herdou a tese de Frege, e a herdou de tal modo que uma explicação de como o cedente entendia a tese torna-se imprescindível. Diante disso, o objetivo deste texto é localizar o papel crucial da tese da transparência na obra de Dummett e Frege, a fim de revelar as razões pelas quais ambos a mantiveram.
Antes, porém, de adentrarmos em nossa discussão, vale dizer duas palavras sobre o que a expressão “tese da transparência do sentido” rotula neste texto. Dizer que o sentido de uma expressão é transparente é dizer que, se um sujeito compreende uma expressão, ele sabe o que ela significa. Essa ideia é geralmente iluminada por meio da relação de identidade entre sentido de expressões: dada duas expressões . e . com o mesmo sentido, se alguém que compreende . e ., então deve saber a priori que elas têm o mesmo sentido. A qualificação “a priori” é necessária, pois não raro pode ocorrer da identidade de sentido não ser imediatamente reconhecida. O que a transparência do sentido estabelece é que deve ser possível para alguém que compreende duas expressões com o mesmo sentido vir a saber que elas têm o mesmo sentido sem que para isso precise adquirir uma nova informação (DUMMETT, 1991, pp. 306-7). Voltaremos aos elementos mais delicados desse explicação do conteúdo da tese nas próximas seções.
Frege e os critérios para identidade de sentido
Duas expressões podem ter o mesmo sentido. Mas quando duas expressões têm ou não o mesmo sentido? Frege nos legou alguns critérios para a igualdade do sentido entre duas expressões. Em A Brief Survey of my Logical Doctrines, ele sustentou que duas frases, . e ., podem estar em uma relação tal que alguém que reconheça o conteúdo de . como verdadeiro, em razão disso, também considerará o conteúdo de . como verdadeiro, e vice-versa (FREGE, 1979, p. 197). Essa relação é, presumivelmente, a relação de igualdade de sentido. “Em Plateia os gregos derrotaram os persas” e “Em Plateia os persas foram derrotados pelos gregos” são frases distintas, mas quem quer que compreenda ambas, e reconheça uma delas como verdadeira, deverá também reconhecer a outra como verdadeira. Assim, pelo critério recém-mencionado, ambas as frases devem ter o mesmo sentido.
Depois de certas adaptações, também podemos incluir em uma lista de critérios fregeanos de identidade de sentido aquele que Evans denominou “critério intuitivo de diferença”, que enuncia, grosso modo, que o sentido associado a uma frase . deve ser diferente do sentido associado a uma frase . se é possível para alguém que compreenda . e ., de modo coerente, ter atitudes proposicionais diferentes, ao mesmo tempo, em relação a ambas (FREGE, 2002, pp. 92-3). A esse propósito, é útil lembrar, por exemplo, que Frege diz, em Sobre o sentido e a Referência, que o pensamento expresso por “A estrela vespertina é um corpo iluminado pelo Sol” é diferente do expresso por “A estrela matutina é um corpo iluminado pelo Sol” e logo em seguida comenta: “Alguém que não soubesse que a Estrela vespertina é a Estrela matutina poderia sustentar um pensamento como verdadeiro e o outro como falso” (FREGE, 2002, pp. 92-3). Frege está pressupondo aqui o critério intuitivo de diferença.
Na verdade, o critério intuitivo de diferença, como seu nome já nos antecipa, é um critério para a diferença, não para a igualdade de sentido. No entanto, parece ser possível transformá-lo em um critério para igualdade de sentidos: dada duas frase . e . dotadas de sentido, se é impossível, para qualquer sujeito que compreenda tanto . como ., que ele de modo coerente mantenha, ao mesmo tempo, atitudes proposicionais diferentes em relação a elas, então elas têm o mesmo sentido. O lado esquerdo e o direito da equação “x. – 4x = x(x – 4)”, Frege nos disse em Função e Conceito, exprimem o mesmo sentido, embora o exprimam de modos diferentes (FREGE, 2002, p. 90). Assim, se é impossível ter atitudes proposicionais diferentes em relação a, por exemplo, “x. – 4x = 0” e “0 = x(x – 4)”, ambas as frases – neste caso equações – têm o mesmo sentido.
Com base no que está escrito em §3 da Begriffsschrift, pode-se defender que Frege, ao menos nessa sua primeira fase, sustentou ainda outro critério para identidade de conteúdo conceitual, um critério que pode ser assim expresso: se todas as consequências deriváveis de ., quando . é associado a certos juízos, são deriváveis de ., quando . é associado aos mesmos juízos adicionais, então . e . têm o mesmo conteúdo. O contexto no qual tal critério é formulado nos autoriza a entender que o sentido de “consequências” é restrito ao de “consequências dedutivas” (FREGE, 1879, p. 15). Frege ilustra esse critério com as frases já mencionadas sobre as Guerras Médicas. Temos então que “Em Plateia os gregos derrotaram os persas” e “Em Plateia os persas foram derrotados pelos gregos” têm o mesmo sentido, dado que, com o auxílio das mesmas premissas, todas as consequências dedutivas da primeira são também consequências dedutivas da segunda.
A efetividade dos dois primeiros critérios e a inefetividade do terceiro critério
Se alguém se propuser a refletir sobre esses critérios, provavelmente notará mais afinidade entre os dois primeiros do que entre estes e o último. De saída, deve-se reconhecer que ninguém conhece todas as consequências dedutíveis de uma proposição e assim o terceiro critério não é um critério efetivo – um critério que possamos aplicar sempre, ou em boa parte dos casos, para decidir se duas frases têm o mesmo sentido. Além disso, esse critério não parece fornecer condições necessárias e suficientes para igualdade de sentido. É o que mostra o seguinte exemplo de matemática elementar: “5 + 7= 12”. Todas as consequências dedutivas que podem ser extraídas com o auxílio do lado esquerdo da equação também podem ser extraídas com o auxílio do lado direito. Ainda assim, mesmo dotadas de mesmo potencial dedutivo, “5 +7” tem um sentido diferente de “12”. .
Por outro lado, os dois primeiros critérios parecem ser efetivos. Sua efetividade é tão patente que é fácil incorrer no erro de considerá-los tão-somente como critérios por meio dos quais podemos descobrir se duas expressões têm o mesmo sentido, em oposição a critérios que podemos chamar de “constitutivos”, isto é, critérios que enunciam em qual condição duas expressões têm o mesmo sentido, muito embora nem sempre sejamos capazes de aplicá-lo. Os dois primeiros critérios para sinonímia perfeita entre dois sentidos incorporam o comportamento de um sujeito racional diante de duas expressões que ele compreende. Ou seja, segundo esses critérios, a igualdade de sentido de duas expressões é condicionada pelas atitudes proposicionais que um sujeito racional, de modo coerente, e que tenha apreendido ambos os sentidos, possa ter em relação a elas.
Para tornar vivo o contraste dos dois primeiros critérios com o terceiro – o critério enunciado na Begriffsschrift –, podemos dizer que, de acordo com este último, um poderoso computador poderia, depois de realizar um cálculo das consequências dedutivas de dois sentidos, revelar se ou não elas são equivalentes e, portanto, se ou não os sentidos em questão são idênticos. Via cálculos computacionais, saberíamos que duas expressões, . e ., têm o mesmo sentido, muito embora tivéssemos esse conhecimento sem ao menos refletir sobre se poderíamos reconhecer ao mesmo tempo uma como verdadeira e a outra como falsa, ou se seria coerente ter atitudes proposicionais diferentes em relação a ambas.
Uma pressuposição para a efetividade dos dois primeiros critérios: a transparência do sentido
Há uma pressuposição nos dois primeiros critérios, e é sobretudo ela que os torna efetivos. Tratemos, pois, de retirá-la de seu esconderijo. O primeiro critério parece ser apenas um caso do segundo: enquanto que qualquer atitude proposicional é relevante para o segundo critério (o critério inspirado no critério intuitivo de diferença de Evans), para o primeiro critério apenas a atitude de tomar por verdadeiro é decisiva. Com vistas a simplificar, vamos nos ater apenas ao primeiro critério, embora tudo que será dito a seguir se aplique a ambos. Seja um sujeito . e duas frases . e .:
Esse é um modo de apresentar uma aplicação do primeiro critério e também é um exemplo claro de non sequitur. Afinal, poderia ser o caso que ., ao saber que . é verdadeira, também soubesse que . é verdadeira por haver uma relação de implicação muito elementar entra elas, e não por eles terem o mesmo sentido. Por exemplo, (A), “ a direção da linha . é a mesma direção da linha b”, então, (B), “. é paralela à linha b”; ou (A) “A porta X é completamente vermelha”, portanto, (B) “A porta X não é verde”. Nesses exemplos, os pensamentos (os sentidos das frases) de . e .são distintos, dado que envolvem conceitos distintos; no primeiro caso, . veicula o conceito de direção que não está presente em .; no segundo, o pensamento associado à frase . é composto pelo conceito de vermelho, conceito que não ocorre no segundo pensamento, associado à frase B. Desse modo, é possível ver por meio desses exemplos é que há instâncias do esquema acima nos quais todas as premissas são verdadeiras e a conclusão é falsa, assim, ele não representa um argumento válido.
Que o leitor não estranhe o esquema de apresentação da aplicação do critério em forma de argumento, pois o problema permanece em outras formas de apresentação de aplicação do critério. Considere nossa formulação dos dois primeiros critérios, substitua . por “a direção da linha . é a mesma direção da linha b” e . por “. é paralela à linha b”. É possível ter atitudes proposicionais diferentes em relação a essas frases? Talvez sim. Mas de forma coerente? Parece que não. Desse modo, o resultado permanece inalterado: o critério não parece satisfatório, dado que suas aplicações conduzem a consequências indesejadas.
Nessa última roupagem, a aplicação irrestrita do critério não resulta em um argumento inválido, mas revela que o critério não fornece condições suficientes para a igualdade de sentido – e, diga-se, se não fornece condições suficientes, então também não pode ser um critério efetivo. Na verdade, a invalidez da forma de argumento do esquema acima corresponde fielmente ao fato que o critério não fornece condições suficientes para a igualdade de sentido.
Não se pode perder de vista que a noção de sentido, para Frege, é uma noção cognitiva. A motivação inicial para a introdução da noção de sentido foi explicar como enunciados de identidade não triviais (a=b) podem ser informativos – um enunciado é informativo quando, ao descobrir que ele é verdadeiro, podemos vir a adquirir uma nova informação. Consideremos, em linhas gerais, um dos argumentos fregeanos em favor da distinção entre sentido e referência. Se compreender um nome próprio (termo singular) fosse equivalente a conhecer sua referência, então quem quer que compreendesse um enunciado de identidade saberia o seu valor de verdade. A compreensão de um enunciado de identidade nem sempre envolve o conhecimento de seu valor de verdade. Então, por modus tollens, compreender um nome próprio (termo singular) não pode ser a mesma coisa que conhecer sua referência. . Com a finalidade de preencher a lacuna entre a informatividade dos enunciados não triviais de identidade e a caracterização do conhecimento que um falante tem de um termo como um conhecimento de sua referência, Frege introduz a noção de sentido, que será aquilo que determina a referência e parte daquilo que o sujeito compreende ao compreender uma expressão..
Nesse esboço de argumento fregeano em favor da introdução da noção de sentido, pode parecer que todos os elementos para a constatação de uma lacuna entre informatividade e referência estão presentes. Mas apenas parece. Frege não enuncia, mas ele está supondo que aquilo que o sujeito compreende ao entender uma expressão é transparente, isto é, que se alguém compreendeu duas expressões e elas têm o mesmo conteúdo, então este sujeito sabe que elas têm o mesmo conteúdo. Dado a transparência do conteúdo, se a compreensão consistisse no conhecimento da referência, alguém que compreendesse um enunciado de identidade deveria saber o seu valor de verdade. Caso a compreensão do conteúdo de duas expressões não estivesse submetida à exigência da transparência, mesmo que compreender uma expressão envolvesse conhecer sua referência, simplesmente não se seguiria que ao compreender as expressões de um enunciado de identidade deveríamos saber o seu valor de verdade.
A transparência da compreensão (do sentido) é também o fundamento da crença de Frege na efetividade dos dois primeiros critérios para a igualdade de sentido de duas expressões. Por ser o sentido transparente é que o sujeito que compreende . e ., e sabe que . é verdadeira, deve também reconhecer . como verdadeira (e vice-versa), no caso de . e . terem o mesmo sentido. Podemos agora reconstruir o esquema de argumento proposto acima:
Os contraexemplos supramencionados das cores, das direções e das linhas paralelas tornariam (4) falso, o que evita a acusação de invalidade que recaía sobre a primeira versão do argumento. Nessa última versão, o argumento é uma sofisticação do célebre “S sabe que A, então, A”.
Pode-se exigir que aceitemos (3) apenas com base em um argumento com a mesma forma. Essa exigência é um convite a um círculo vicioso. Porém, evita-se o círculo aceitando que o sentido é transparente, isto é, que instâncias de (3) são primitivas e não carecem de prova.
Dummett sobre a tese da transparência
A tese da transparência não é uma que Frege tenha enunciado, sua atribuição a ele é indireta, baseada no que ele escreveu sobre os critérios de sinonímia perfeita e em algumas de suas observações sobre a noção de sentido. Devemos a formulação dessa tese a Dummett. Nos seus textos, há duas versões da tese da transparência:
Versão não-relacional: Se um sujeito . conhece uma linguagem L, S deve saber se uma expressão de . tem sentido ou não. Essa versão se opõe a concepções de acordo com as quais se uma expressão tem sentido ou não depende da existência atual de um objeto (no caso, é claro, da expressão ser um termo singular), porque, nessas concepções, pode ocorrer que o objeto deixe de existir e o sujeito ignore o fato, caso no qual também não saberá se a expressão tem ou não sentido; ou melhor, ele julgará que ela tem sentido, embora ela já tenha deixado de ter. (DUMMETT, 1981, p. 134)
Versão relacional: Se duas expressões têm o mesmo sentido e um sujeito . compreende ambas, então . deve saber a priori se seus sentidos são o mesmo. Em outras palavras, deve ser possível saber se duas expressões têm o mesmo sentido sem ter de adquirir uma nova informação. (DUMMETT, 1996, p. 244)
Discutir a versão não-relacional nos levaria a sondar o fenômeno da ilusão de sentido, quando se julga que uma expressão tem sentido, quando na verdade ela é vazia de sentido. Neste texto, no entanto, vamos pressupor que o sentido seja transparente nessa acepção, a fim de podermos nos concentrar na tese da transparência em sua versão relacional.
Dummett ressaltou a importância de enunciar explicitamente a tese da transparência em sua versão relacional por considerá-la fundamental para uma compreensão do argumento de Frege, em Sobre o Sentido e a Referência, em favor da distinção entre sentido e referência. Segundo ele, não enunciar a tese da transparência seria contentar-se com uma formulação entimemática do argumento.
O argumento que Dummett tinha em mente ao discutir a tese da transparência é aquele já mencionado sobre o caráter informativo dos enunciados de identidade. Sua versão do argumento é, entretanto, sensivelmente diferente da versão de Frege, muito embora a diferença entre os argumentos não deva ser entendida como uma incompatibilidade. Vimos brevemente a versão de Frege (ao menos, um modo de entendê-lo), vejamos agora a versão de Dummett.
Informação é o que é adquirido por um sujeito quando ele aceita um enunciado como verdadeiro. Quase sempre compreender um enunciado não é equivalente a conhecer o seu valor de verdade, aliás, estamos todos familiarizados com esse fato e, além disso, estamos conscientes de que para investigar qual o valor de verdade de um enunciado o primeiro passo é compreendê-lo. Portanto, com a exceção dos casos nos quais a compreensão implica o conhecimento do valor de verdade do enunciado, a compreensão de um enunciado antecede e orienta o conhecimento de seu valor de verdade. Agora, dado que aquilo que se compreende é transparente, a referência de um termo não deve fazer parte daquilo que se compreende, de outro modo compreender um enunciado seria conhecer seu valor de verdade, o que acabamos de negar. (E até aqui não nos afastamos da versão do argumento que acima atribuímos a Frege.)
O argumento, então, depende que se aceite que ao conhecer a referência de dois termos, sabemos se elas são idênticas ou não. Por isso, a força desse argumento está sujeita ao modo como se interpreta uma instância da seguinte frase: (1) . “S conhece a referência de .”, em que S é um sujeito racional falante da linguagem à qual “t” pertence. Para tratar de como Dummett entende (1) é útil dispor do conhecimento de algumas relações. Dummett interpreta (1) como equivalente a (2) “S sabe ao que ‘t’ se refere”, e considera (2) um caso especial de (3) “S sabe o que é .”, onde “F” é uma expressão predicativa. Dummett nos dá como exemplo de (3) “A polícia sabe quem assassinou Bexley”, e pelo que nos diz poderíamos sugerir “Rafael sabe onde fica Porto Alegre”, “Rafael sabe que ‘Rafael’ refere-se a ele” e “Rafael sabe quando o verão chega a Porto Alegre” como instâncias de (3) (DUMMETT, 1996, p. 125). É plausível supor que (3) e suas instâncias são equivalentes a (4) “para algum u, S sabe, de ., que ele é .”. (4) é uma versão quantificada existencialmente de (5) “S sabe, de ., que ele é .”; assim, como nos adverte Dummett, uma instância de (4) será verdadeira apenas no caso de uma instância de (5) ser verdadeira. No exemplo de Dummett, a verdade de “A polícia sabe, de Redmayne, que ele assassinou Bexley” tornará uma instância de (4) verdadeira. (6) “S sabe, de ., que . refere a ele” é um caso especial de (5). Desse modo, de acordo com essa teia de relações lógicas, atribuir a alguém o conhecimento da referência de uma palavra é dizer que uma instância de (6) é verdadeira (DUMMETT, 1996, p. 124).
Deixe-nos supor agora que “c” e “d” são termos singulares com o mesmo referente. É possível para algum sujeito saber, de um objeto ., que “c” refere a ele e saber, desse mesmo objeto ., que “d” refere a ele e não saber que “c” e “d” têm o mesmo referente? Para responder a esta questão da perspectiva de Dummett é preciso introduzir mais alguns elementos.
De acordo com a sua terminologia, dizer que (6) é verdadeiro de um dado sujeito e acrescentar que esse é todo o conhecimento que ele tem em relação a t é dizer que o sujeito possui um mero (bare) conhecimento da referência de um termo. Pode ser que a verdade de uma instância de (5) decorra da verdade de uma instância de (7) “S sabe que . é F”. Por exemplo, a verdade de “A polícia sabe que Redmayne assassinou Bexley” pode fundamentar a verdade de “A polícia sabe, acerca de Redmayne, que ele assassinou Bexley”. Quando isto ocorre, Dummett diz que o conhecimento de (5) baseia-se em um conhecimento de (7), e isso significa, dentre outras coisas, que não é o caso de um mero conhecimento da referência.
Uma diferença entre (5) e (7) é que o primeiro atribui ao sujeito conhecimento predicativo (diz-se que um sujeito sabe, acerca de determinado objeto, que ele tem uma certa propriedade – um típico conhecimento de re), enquanto que (7) atribui ao sujeito conhecimento proposicional – o sujeito sabe que ., onde “P” é uma frase por meio da qual é possível exprimir determinada proposição. No entanto, a diferença mais saliente entre conhecimento predicativo (5) e proposicional (7) é que no primeiro, mas não no último, o termo singular ocorre em um contexto transparente; e isso quer dizer que de “a = b” e “S sabe, de ., que ele é F” segue-se que “S sabe, de ., que ele é F”, enquanto que de “. =b” e “S sabe que . é F” não se segue que “S sabe que . é F”.
Isso posto, podemos dizer que se alguém possui um mero conhecimento da referência de “c” e “d”, então é impossível que ele conheça a referência de “c” e “d” e não saiba que são a mesma. Por exemplo, S poderia saber, de ., que ele é F e poderia saber, de ., que ele é G. Ao substituirmos “F” por “ ‘a estrela vespertina’ refere-se a ele” e “G” por “ ‘a estrela matutina’ refere-se a ele”, teríamos que “S sabe, de ., que ‘a estrela vespertina’ e ‘a estrela matutina’ referem-se a ele”. Assim, se fosse possível um mero conhecimento da referência, o resultado seria que a referência seria transparente, isto é, quando um sujeito S conhecesse a referência de dois termos, então ele saberia se elas são idênticas ou não.
Entretanto, Dummett defendeu a impossibilidade de um mero conhecimento da referência. Sua posição pode ser resumida no lema: todo conhecimento teórico é conhecimento proposicional – para qualquer instância de (5) há pelo menos uma instância de (7) na qual sua verdade se baseia. Para Dummett, tudo aquilo que possa servir como fundamento para a atribuição de qualquer conhecimento ao falante (seja proposicional ou predicativo) servirá para a atribuição a tal sujeito do conhecimento de uma proposição. Isto é, não há nada que justifique atribuirmos a alguém apenas um conhecimento predicativo. Podemos ilustrar isso do seguinte modo. A polícia pode manifestar que sabe, acerca de Redmayne, que ele assassinou Bexley – uma instância de (5) – por prender alguém chamado “Redmayne” e apresentá-lo à justiça como o assassino de Bexley. Mas, supondo que a polícia não agiu de modo arbitrário, para prender alguém chamado “Redmayne” e apresentá-lo às autoridades, a polícia devia estar munida de algum modo de identificar Redmayne; assim sendo, o mesmo conjunto de ações da polícia também serve para que lhe atribuamos o conhecimento da proposição que um homem identificável assim e assado matou Bexley – uma instância de (7).
Qual a consequência que podemos extrair da impossibilidade de um mero conhecimento da referência? Que de um determinado objeto, deve-se sempre saber mais do que simplesmente que um determinado termo refere-se a ele. Além disso, se aceitamos que há sempre mais de uma instância de (7) cuja verdade implica a verdade de uma instância de (5), temos como consequência que é possível saber a referência de dois termos correferenciais e não saber que suas referências são idênticas. É possível saber que “a estrela vespertina aparece entre o ponto x e y no céu” e “a estrela matutina aparece entre os pontos y e z no céu” são frases verdadeiras por conhecer as referências dessas expressões e ainda assim não saber que “a estrela vespertina é a estrela matutina” é uma frase verdadeira. Outro exemplo é o seguinte. Se Pedro sabe, do objeto Rafael, que “Ruy Lopez” refere-se a Rafael, seu conhecimento pode ter por base a verdade da seguinte frase “Pedro sabe que “Ruy Lopez” refere-se a Rafael”, em que “Rafael” é um termo singular dotado de sentido. Se, além disso, Pedro sabe, do objeto Rafael, que “Terceiro” refere-se a ele, e esse seu conhecimento predicativo tem por base a verdade de “Pedro sabe que “Terceiro” refere-se a .”, em que “b” é um termo singular com um sentido diferente de “Ruy Lopez”, então Pedro pode não saber que “Ruy Lopez” e “Terceiro” têm o mesmo referente. Em uma palavra, se todo conhecimento é conhecimento proposicional, então a referência é opaca (DUMMETT, 1981, p. 325).
Recapitulando, há dois modos de entender (1) “S conhece a referência de .”. Em um deles, o mero conhecimento da referência é possível e então a noção de referência é transparente, isto é, o conhecimento da referência de dois termos implica conhecimento de sua identidade ou diferença. No outro modo, aquele que Dummett julga ser o correto, o conhecimento da referência de termos correferenciais não implica o conheciemento de sua correferencialidade, visto que o conhecimento da referência desses termos pode ter por base fundamentos proposicionais distintos. Na primeira interpretação de (1), a referência é transparente e isso torna nebuloso entender como um enunciado pode ser informativo. Na segunda interpretação, a informatividade dos enunciados explica-se pela variedade de fundamentos proposicionais para a verdade de uma instância de (5), e o preço a ser pago é ter de atribuir opacidade à referência.
Dummett sobre significado e conhecimento: Compreender A é saber o que A significa
Uma vez que para Dummett o significado é transparente, ele rejeita uma noção de significado que envolve a referência de uma expressão como um dos elementos de seu significado. . Ora, por que Dummett sustentou a tese da transparência do significado? A noção de significado é uma noção complexa, ela envolve outras noções como suas componentes. As noções de sentido, colorido e força compõe a noção de significado. Grosso modo, o sentido é aquilo que, dado como o mundo é, determina a referência, o colorido é a aura poética de uma expressão e a força é aquele elemento indicador, no significado de uma expressão, de qual ato linguístico está sendo realizado: uma asserção, uma pergunta, uma ordem, etc. – aliás, a força é a única característica do significado que é exclusiva de frases.
Assim, quando Dummett observa que é uma inegável característica da noção de significado que o significado é transparente, ele está afirmando que o sentido, o colorido e a força são transparentes, na versão relacional da tese da transparência (DUMMETT, 1996, p. 131). Por essa ou por aquela razão, os filósofos, de um modo geral, tendem a concentrar seus esforços sobre a noção de sentido, em detrimento das noções de força e colorido. É por isso que temos discutido a transparência apenas em relação à noção de sentido, e é por isso que continuaremos a proceder assim.
Por que Dummett manteve a tese da transparência para a noção de sentido? Uma resposta preliminar é: porque compreender uma expressão, apreender o seu sentido, é uma habilidade prática, a habilidade de usar corretamente uma expressão. Uma resposta mais robusta seria a seguinte. Para Dummett, precisamos da noção de sentido principalmente para explicarmos o que é compreender uma linguagem, para explicarmos em que consiste o conhecimento de alguém que aprendeu uma linguagem ou um fragmento dela. A conexão entre conhecimento e significado, escreveu Dummett em certa ocasião, pode ser expressa por dizermos que “o significado de uma expressão é o conteúdo daquele conhecimento possuído pelos falantes que constitui sua compreensão da [expressão]” (DUMMETT, 1991, p. 83). Por exemplo, faz parte da palavra “válido”, no seu uso mais comum nos livros de lógica, que um argumento que possa ser chamado legitimamente de “válido”, e que tiver premissas verdadeiras, deve ter uma conclusão verdadeira. Agora, se alguém chama um argumento de “válido” e admite que suas premissas são verdadeiras, mas ao mesmo tempo sustenta que sua conclusão não é verdadeira, diremos que ele não sabe o que a palavra “válido” significa. De modo semelhante, quando alguém pergunta se faz parte do significado da palavra “tia” que tia é a irmã de um dos pais, a pergunta pode ser entendida como uma sobre se é necessário conhecer a conexão entre “tia” e “é a irmã de um dos pais” para que se saiba o que “tia” significa.
Para elucidar a relação asserida por Dummett entre significado e conhecimento, talvez seja útil tratar de um exemplo no qual as coisas se passam de modo diferente. De acordo com o Tractatus, duas frases que repartem o espaço lógico do mesmo modo têm o mesmo sentido. Assim, para reciclarmos um exemplo já dado, embora ele não se adeque bem ao que Wittgenstein disse sobre aritmética no Tractatus, “5 + 7 = 12” e “2² + 2³ = 12” teriam o mesmo sentido. E o mesmo poderia ser dito de qualquer equivalência analítica, duas frases sendo analiticamente equivalentes no caso de serem verdadeiras nos mesmos estados de coisas. De acordo com o Tractatus, dado que o sentido de uma frase é determinado pelas combinações de estados de coisas que podem torná-la verdadeira, o conhecimento que o falante teria do sentido de duas frases com o mesmo sentido não precisaria ser efetivo, no sentido de “efetivo” explicado acima. A bem dizer, a concepção de sentido entendida ao modo do Tractatus se ajusta bem à concepção de identidade de conteúdo conceitual que apresentamos acima, aquela extraída de §3 da Begriffsschrift.
Como salientamos, segundo Dummett a situação é sensivelmente diferente, e devemos conceber o sentido de uma expressão como uma representação fiel daquilo que um falante sabe sobre o sentido da expressão. Desse modo, um sentido que não pudesse ser apreendido por um falante competente de uma linguagem, ou um sentido que não fosse útil para explicar o domínio que um sujeito tem um de uma expressão seria uma quimera, uma anomalia filosófica. Foi sobretudo sua concepção da noção de significado como aquilo que o sujeito sabe acerca de uma expressão quando a compreende que o levou a sustentar a transparência do sentido. Dummett é literal sobre isso: “a demanda que significado seja correlativo ao conhecimento dos falantes exige [...] que se duas expressões têm o mesmo sentido, então alguém que as compreende deve saber que elas são equivalentes” (DUMMETT, 1991, p. 306).
Considerações finais
A tese da transparência tem um papel central em uma compreensão dos critérios fregeanos para sinonímia perfeita e, além disso, essa tese lança luz sobre como Frege concebeu sua noção de sentido. Uma recusa da tese da transparência obrigatoriamente levaria a uma profunda revisão de muitas das doutrinas fregeanas. Um de seus argumentos em favor da introdução da noção de sentido, o argumento que gira em torno do caráter informativo dos enunciados de identidade, deveria sofrer profundas alterações para continuar sendo cogente caso a tese da transparência se revelasse falsa. Mais do que isso, tudo leva a crer que seus critérios efetivos para identidade de sentido não podem ser mantidos a menos que se aceite que o sentido é transparente. Infelizmente, por não a ter destacado como uma tese essencial de seu sistema, Frege não argumentou em seu favor, nos deixando assim em condições de apenas indicar o papel que ela desempenha em suas ideias.
Inspirado pelo papel da tese da transparência no pensamento de Frege, Dummett reconstruiu o argumento do caráter informativo dos enunciados de identidade. Este, de modo muito mais claro que o primeiro, usa a tese da transparência para expurgar do significado de uma expressão a sua referência. A consequência é que todo conhecimento de re estaria apoiado em um fragmento maior ou menor de conhecimento proposicional. Naturalmente, essa consequência não é pobre em repercussões filosóficas. Mas não perseguimos e nem perseguiremos essas repercussões aqui, em outra oportunidade essa tarefa será levada a cabo.
Vimos que Dummett caracteriza o significado de uma expressão, e mais especificamente o sentido de uma expressão, como uma representação de um conhecimento que o falante possui e que essa é motivação última para que ele aceite a tese da transparência. Há muita pressão para não aproximar tanto o sentido de uma expressão do conhecimento possuído por um falante. À parte o fenômeno da divisão social do trabalho, que Dummett reconheceu como legítimo e compatível com suas ideias, a motivação para dissociar completamente a noção de sentido da de conhecimento surge, em parte, da característica definidora da noção de sentido, a saber, que o sentido é aquilo que determina a referência. Mas não somente dela. Há o concurso também da concepção da referência como algo completamente autônomo, que possui algumas – talvez todas, alguns dirão – características desconhecidas por nós e algumas outras que, por estarem sujeitas à mudança, se alteram com o passar do tempo. A característica central da noção de sentido e a concepção da referência como algo autônomo produzem uma imagem do sentido das expressões como algo que acompanha a natureza das coisas, à custa de nem sempre podermos apreender tais sentidos. Essa noção de sentido não é especialmente apta a explicar em que consiste o conhecimento de uma linguagem e, assim, alguma escolha deve ser feita sobre que característica devemos privilegiar na noção de sentido. Uma escolha deve ser feita, resta saber com base no quê.
Referências
BOGHOSSIAN, Paul. The Transparency of Mental Content. Philosophical Perspectives 8: 33-50. (1994)
DUMMETT, Michael. Truth and Other Enigmas. London: Duckworth. (1978)
DUMMETT, Michael. The Interpretation of Frege’s Philosophy. London: Duckworth. (1981).
DUMMETT, Michael. The Logical Basis of Metaphysics. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press.(1991)
DUMMETT, Michael. The Seas of Language. Oxford: Clarendon Press. (1996)
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FREGE, Gottlob. ‘Begriffsschrift, a formula language, modeled upon that of
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FREGE, Gottlob. Posthumous Writings (PW). Trad. Long e White. Oxford:
Basil Blackwell. (1979)
FREGE, Gottlob. The Basic Laws of Arithmetic, trans. Montgomery Furth. Berkeley and Los Angeles: University of California Press.(1983)
FREGE, Gottlob. O Pensamento: uma investigação lógica. Investigações lógicas. Tradução de Paulo Alcoforado. Porto Alegre: EDIPUCRS. (2002)
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. London, Routledge. (1961)
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Autor(a) para correspondência: Rafael Ribeiro Silva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Campus do Vale. Av. Bento Gonçalves, 9500 – Prédio 43311, 91509-900, Porto Alegre – RS, Brasil. rafaelribeiro.ct@gmail.com