Artigos
Recepção: 08 Julho 2019
Aprovação: 03 Outubro 2019
DOI: https://doi.org//10.31977/grirfi.v20i1.1336
Resumo: Como ocorre o progresso científico? Existem critérios para a escolha de teorias ou de paradigmas científicos? Qual o impacto de valores cognitivos e extracognitivos em tais escolhas? Para tratar de questões como estas, o filósofo da ciência Thomas Kuhn desenvolve uma perspectiva estruturalista com embasamento histórico. Neste artigo apresentamos a estrutura das revoluções científicas proposta por este pensador. Tratamos, inicialmente, da noção de paradigma, conceito chave da sua explicação do funcionamento da ciência e do progresso científico. Em seguida, expomos as fases pelas quais uma área de pesquisa comumente passa ao longo de sua trajetória: pré-ciência, ciência normal, crise e revolução. Finalizamos o artigo traçando alguns paralelos da posição deste pensador com outras perspectivas epistemológicas do século passado, tais como o Empirismo Lógico, o Falsificacionismo e o Estruturalismo de Lakatos.
Palavras-chave: Paradigma, Progresso científico, Revolução científica, Ciência Normal.
Abstract: How is scientific progress effected? Are there criteria for choosing scientific theories? What is the impact of cognitive and extracognitive values on such choices? To address issues like these, science philosopher Thomas Kuhn develops a structuralist perspective with a historical basis. In this paper, we expose the structure of scientific revolutions suggested by this thinker. Initially, we deal with the notion of paradigm, a key concept in its explanation of the functioning of science and scientific progress. Then we present the phases through which an area of research commonly goes through its trajectory: pre-science, normal science, crisis and revolution. We conclude the paper by drawing some parallels of this thinker's position with other epistemological perspectives of the last century, such as Logical Positivism, Falsificationism, and Lakatos Structuralism.
Keywords: Paradigm, Scientific progress, Scientific revolution, Normal science.
Introdução
O período entre a segunda metade do século XIX e o começo do XX testemunhou a proposta de diferentes abordagens explicativas de fenômenos do mundo consideradas revolucionárias. Dentre elas, citamos o evolucionismo de Darwin (1809 – 1882), o socialismo de Marx (1818 –1883), a psicanálise de Freud (1856 – 1939), a relatividade de Einstein (1879 – 1955).
Diante de tantas novas pretensas teorias e áreas de pesquisa, um dos propósitos centrais de epistemólogos, especialmente no começo do século XX, consistia em saber quais delas realmente produziam conhecimento, quais eram capazes de oferecer explicações e previsões aos fenômenos no mundo, quais poderiam ser consideradas científicas. A busca por um critério de demarcação científica, distinguindo a ciência da não-ciência, tornou-se uma das questões centrais da filosofia da ciência no século passado, mantendo-se ainda em certa evidencia atualmente. A fim de tratar da demarcação e de outras questões, como a do progresso e método científicos, por exemplo, surgiram perspectivas epistemológicas como o Empirismo Lógico, o Falsificacionismo e o Estruturalismo. Esta última, particularmente, possui diferentes versões, dentre elas a de Thomas Kuhn (1922 – 1996). Além de entender a ciência como um sistema composto de vários elementos, Kuhn também defende que uma explicação da atividade científica e caracterização da própria ciência não pode prescindir da sua história.
Neste trabalho expomos a proposta de Thomas Kuhn referente à estrutura das revoluções científicas, explicitando as diferentes fases pelas quais uma área de pesquisa pode passar ao longo de sua história: pré-ciência, ciência normal, crise e revolução científica. Tratamos do conceito de paradigma, essencial para a explicação da atividade e progresso científicos. Destacamos a importância dos valores cognitivos e extracognitivos na escolha e aceitação de paradigmas.
Para alcançar nossos objetivos, dividimos este artigo em cinco seções. Na primeira delas tratamos da concepção de paradigma, espécie de modelo que estabelece e norteia a atividade de uma comunidade científica. Ele também é fundamental para delimitar a fase em que uma área de pesquisa se encontra e para explicação das revoluções científicas. Na segunda seção apresentamos a noção de pré-ciência. Marcado pela competição entre paradigmas rivais, via de regra, é o momento inicial e fundamental para o estabelecimento e desenvolvimento de uma área de pesquisa.
Na terceira seção explicitamos a concepção de ciência normal, momento em que a prática científica se normaliza em torno de um paradigma dominante. O paradigma serve de guia para comunidade científica, empenhada em solucionar os quebra-cabeças elencados em sua agenda. Na quarta seção tratamos do período de crise, originada, dentre outros fatores, por fenômenos que fogem à explicação paradigmática vigente, denominados anomalias. Tal período é marcado pela desconfiança no paradigma dominante e fortalecido com surgimento de paradigmas rivais aparentemente mais promissores que o atual.
Na quinta seção apresentamos os impactos causados pelo surgimento e aceitação de novos paradigmas. A área de pesquisa, então, passa por um período de ciência extraordinária, de luta paradigmática. O abandono de um paradigma e a transição para um novo constituem uma revolução científica. Finalizamos o trabalho comparando a proposta de Kuhn com algumas outras bastante conhecidas: o Empirismo Lógico, do grupo de Viena, o Falsificacionismo, de Popper, e o Estruturalismo de Lakatos.
A concepção de paradigma e sua função na estrutura das revoluções científicas
A aquisição de um paradigma dominante é um dos sinais de maturidade de uma área de pesquisa. Os paradigmas correspondem a modelos ou padrões bem aceitos norteadores da atividade científica de uma comunidade. Conforme Kuhn (2011a, p. 13), “[são] realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.”
Um paradigma envolve, dentre outras coisas, uma visão de mundo, princípios metodológicos, regras, teorias, comunidade científica, agenda de problemas a serem tratados pela comunidade em um dado momento. De acordo com Kuhn (2011a, p. 220),
[...] o termo “paradigma” é usado em dois sentidos diferentes. De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal.
Nesse contexto, por exemplo, na física, podemos citar como paradigmas os sistemas aristotélico e newtoniano, este último tendo, na modernidade, substituído aquele. Contemporaneamente, o paradigma da relatividade tornou-se dominante nesta área, tendo como um rival, ainda não demasiado ameaçador, a física quântica. Na astronomia, são exemplos os sistemas geocêntrico e heliocêntrico, este tendo substituído aquele e que, apesar de algumas mudanças internas, se mantém dominante na área.
No posfácio dA Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn (2011a) menciona que o conceito de paradigma foi examinado por Margaret Masterman, que preparou um índice analítico no qual o termo havia sido utilizado, na primeira versão da referida obra, em pelo menos vinte e duas maneiras diferentes. Após uma revisão, o autor optou por dois usos distintos do termo, que poderiam englobar as demais maneiras: o emprego mais global do conceito relacionado à noção de “matriz disciplinar” e a abordagem do conceito de paradigma, em função de exemplos compartilhados. Kuhn (2011a, p.228) alinhava o seguinte conceito:
[...] o termo “teoria”, tal como é empregado presentemente na filosofia da ciência, conota uma estrutura bem mais limitada em natureza e alcance do que a exigida aqui. Até que o termo possa ser liberado de suas implicações atuais, evitaremos confusão adotando um outro. Para os nossos propósitos atuais, sugiro “matriz disciplinar”: “disciplinar” porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular; “matriz” porque é composta de elementos ordenados de várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada.
Dentro da matriz disciplinar estão as “generalizações simbólicas”, expressões utilizadas sem maiores problemas de compreensão pelos integrantes do grupo, como, por exemplo, fórmulas lógicas e matemáticas, ou termos como “os elementos combinam-se em uma proporção constante às suas massas”. Na visão de Kuhn (2011a), essas expressões geralmente são aceitas pela grande maioria da comunidade. Sem elas, o grupo não teria ponto de apoio para a aplicação de técnicas de manipulação lógica e matemática. Ademais, em geral, o poder de uma ciência parece aumentar com o número de generalizações lógicas ao seu dispor.
As generalizações simbólicas funcionam em parte como leis e em parte como definições dos símbolos que elas empregam. Por exemplo, na expressão correspondente à noção de trabalho na física, em que . expressa trabalho, . representa a força obtida a partir da multiplicação entre a massa e a aceleração e ∆. expressa o deslocamento, podemos obter a seguinte expressão: . = F . ∆.. As generalizações aparecem no contexto das definições que são tautológicas e no ambiente das leis que podem, com o tempo, ser desenvolvidas e gradualmente corrigidas. O abandono de generalizações incontestáveis na teoria ou teorias de um paradigma, frequentemente denominados postulados, são fatores que favorecem o agravamento de crises em uma área de pesquisa.
Outro componente da matriz disciplinar são os assim denominados “paradigmas metafísicos” ou “partes metafísicas dos paradigmas”. Na física e em outras áreas como a química, eles correspondem aos compromissos coletivos, por exemplo, como as crenças de que o calor corresponde à energia cinética das partes constituintes dos corpos e que todos os fenômenos perceptivos são decorrentes da interação dos átomos. Tais componentes representam modelos que incluem uma variedade de elementos ontológicos, no que tange à realidade. Eles ajudam a estabelecer os problemas e as soluções que norteiam a comunidade de um paradigma. Kuhn (2011a, p. 64) enfatiza:
Por exemplo, depois de 1630 e especialmente após o aparecimento dos trabalhos imensamente influentes de Descartes, a maioria dos físicos começou a partir do pressuposto de que o Universo era composto por corpúsculos microscópicos e que todos os fenômenos naturais poderiam ser explicados em termos da forma, do tamanho, do movimento e da interação corpusculares. Esse conjunto de compromissos revelou possuir tanto dimensões metafísicas como metodológicas. No plano metafísico, indicava aos cientistas que espécie de entidades o Universo continha ou não continha – não havia nada além da matéria dotada de forma e em movimento. No plano metodológico, indicava como deveriam ser as leis definitivas e as explicações fundamentais: leis devem especificar o movimento e as interações corpusculares; a explicação deve reduzir qualquer fenômeno natural a uma ação corpuscular regida por essas leis.
Outro elemento fundamental dos paradigmas são os exemplares. Com essa expressão, são indicadas as soluções concretas dos inúmeros problemas ou exercícios com o quais os neófitos se deparam, desde o início de sua formação profissional, seja nos laboratórios, seja nos manuais ou nos periódicos científicos. Essas soluções lhes indicam, através de exemplos, as maneiras como devem proceder com seus trabalhos. Assim, como exemplifica Kuhn (2011a, p. 234) “[...] todos os físicos começam aprendendo os mesmos exemplares: problemas como o do plano inclinado, do pêndulo cônico, das órbitas de Kepler; e o uso de instrumentos como o vernier, o calorímetro e a ponte de Wheatstone”. Os iniciantes de uma área de pesquisa aprendem a resolver problemas após terem tido contato com as teorias e algumas regras que indicam a sua aplicabilidade, inseridos em um paradigma.
Um paradigma se fortalece quando possui a capacidade de reunir em torno de si um grupo consistente e duradouro de partidários, afastando-os de outros paradigmas rivais. A matriz assegura a possibilidade de resolução dos problemas científicos pelos participantes do grupo, indicando-lhes os meios e caminhos para tanto, que se sentem desafiados a solucioná-los.
Os praticantes de uma mesma área de pesquisa associados a um paradigma estão comprometidos com as mesmas regras, padrões e pressupostos, constituindo uma comunidade. Seus integrantes são submetidos a uma educação com uma grande extensão de literatura técnica retirada de manuais e demais revistas científicas, que demarcam o limite do objeto de estudo da área, os pressupostos, métodos e metodologias científicas. Os membros da comunidade acreditam ser os responsáveis pela busca e estudo de um conjunto de objetivos em comum, que inclui o treino de seus sucessores.
Uma comunidade, em seu interior, apresenta uma ampla comunicação coesa entre seus praticantes e um julgamento profissional referente aos avanços internos, os quais tendem a ser relativamente unânimes. Kuhn (2011a, p. 223) sugere níveis de comunidades:
A comunidade mais global é composta por todos os cientistas ligados às ciências naturais. Em um nível imediatamente inferior, os principais grupos científicos profissionais são comunidade: físicos, químicos, astrônomos, zoólogos e outros similares. Para esses agrupamentos maiores, o pertencente a uma comunidade é rapidamente estabelecido, exceto nos casos limites. Possuir a mais alta titulação, participar de sociedades profissionais, ler periódicos especializados, são geralmente condições mais do que suficientes.
Seguindo o exemplo de Kuhn (2011a), ainda existem subgrupos dentro de uma comunidade, como os biólogos adeptos da cronobiologia, que estudam a relação entre os seres vivos e o tempo, os físicos que estudam os astros e os grandes corpos, os engenheiros que apoiam o conexionismo e assim por diante. Esses tipos de comunidades são as produtoras e legitimadoras do conhecimento científico. Claramente, tais subgrupos se dedicam ao estudo de fenômenos ou objetos específicos ou delimitados dentro da grande área, estando sujeitos ao paradigma ao qual estão associadas.
Os paradigmas funcionam como um mapa conceitual que permite maior profundidade e alcance explicativo da natureza. Nesse sentido, eles funcionam como um microscópio, possibilitando uma análise de um universo inacessível à visão comum. Sem a presença dos paradigmas, muitos fenômenos jamais poderiam ser explicados. Isso ocorre porque, muitas vezes, eles só são possíveis de serem formulados a partir do escopo de um paradigma. Como exemplo, mencionamos a relação entre as situações-problema comuns no tratamento contemporâneo de doenças e as concepções aceitas pela comunidade científica de organismos microscópicos, as concepções éticas e profissionais sobre as células e os organismos vivos.
Kuhn remete à presença de três diferentes enfoques que a atividade científica pode ter sobre os fatos. Em primeiro lugar, diz Kuhn (2011a, p. 46),
[...] temos aquela classe de fatos que o paradigma mostrou ser particularmente reveladora da natureza das coisas. Ao empregá-los na resolução de problemas, o paradigma tornou-os merecedores de uma determinação mais parecida, numa variedade maior de situações.
Parte dos exemplos atrelados a essa primeira análise dos fatos implica o aperfeiçoamento e a construção de aparelhos especiais para experimentação e comprovação de teorias. Esse primeiro foco não faz menção apenas à novidade da descoberta, mas também à precisão e segurança explicativa que o paradigma acaba por receber.
Kuhn (2011a, p. 46) alude igualmente a um segundo tipo comum de fatos a serem analisados, com base na ótica dos paradigmas:
Uma segunda classe usual, porém mais restrita, de fatos a serem determinados diz respeito àqueles fenômenos que, embora frequentemente sem muito interesse intrínseco, podem ser diretamente comparados com as predições da teoria do paradigma.
Essa segunda classe de fatos faz referência à relação intrínseca entre os problemas teóricos dos paradigmas e os fenômenos da natureza. A aproximação teórica com o natural requer um aperfeiçoamento técnico que coloca em desafio tanto a capacidade teórica do observador quanto o treinamento e a sua imaginação. Exemplos clássicos referem-se às primeiras observações dirigidas por Galileu com seu telescópio. À época, foi extremamente dificultoso convencer a comunidade de pensadores de sua confiabilidade e adequação de uso. Tais aparelhos representam um esforço engenhoso de estreitar a relação entre teoria e natureza. No entanto, sem o treinamento ou aprofundamento ideal, podem resultar apenas em informações desconexas, ruidosas. Esse segundo tipo de trabalho com os fatos existe de uma maneira tão fundamental como o primeiro, acarretando o desenvolvimento de tecnologias e aparelhagens capazes de resolver razoavelmente o problema de comunicação entre o mundo e as teorias.
Por fim, a última e terceira classe de fatos e observações sugeridas por Kuhn (2011a, p. 48)
Consiste no trabalho empírico empreendido para articular a teoria do paradigma, resolvendo algumas de suas ambiguidades residuais e permitindo a solução de problemas para os quais ela anteriormente só tinha chamado a atenção.
Os esforços para articular um paradigma implicam a busca de ferramentas e valores numéricos mais precisos e constantes, capazes de apresentar maior poder explicativo para elevada gama de fenômenos com maior simplicidade teórica. Esse terceiro tipo de fenômenos é causado e é causador do estreitamento entre teorias e explicações dentro de um mesmo paradigma ou, pelo efeito contrário, da desvinculação de constantes, que, embora muito semelhantes por se tratarem de problemas próximos, causam apenas ambiguidade. Um dos exemplos de Kuhn (2011a) a esse respeito concerne ao paradigma da teoria calorífica, o qual sugere o processo de aquecimento e resfriamento por meio de misturas e mudanças de estados da matéria. A temperatura também poderia sofrer alterações por meio de muitos outros métodos, como por combinações químicas, por fricção ou por compressão. Uma vez estabelecidos esses fenômenos sobre o aquecimento, foi necessário reformular as bases do paradigma e as suas experiências posteriores, com o intuito de elucidar os problemas até então não respondidos pelo paradigma.
Tais aspectos mostram o desenvolvimento técnico, imaginativo e interno de um paradigma. Embora esses aspectos sejam importantes, boa parte deles reflete a sofisticação do paradigma, o que Kuhn denomina de progresso interno da área de pesquisa, quando ela se caracteriza como ciência normal.
Cientistas que aderem a algum paradigma devem ter em mente a necessidade de buscar compreender certos fenômenos do mundo e ampliar o alcance explicativo do paradigma. Quando este não se encontra capaz de responder certas questões, seus adeptos tentam refinar suas teorias, métodos, procedimentos metodológicos, instrumentos e técnicas de observação a fim de mantê-lo sustentável.
Os paradigmas possuem um momento de origem atrelado à fundação de uma comunidade razoavelmente coesa. A fase inicial de boa parte das áreas de pesquisa é marcada por um momento carente de um paradigma dominante, anterior ao seu estabelecimento como ciência madura. Na próxima seção apresentamos esse período, denominado “pré-ciência”.
Pré-ciência
A pré-ciência é a fase na qual uma área de pesquisa, uma vez inicialmente instituída, possui vários paradigmas rivais em competição igualitária. Segundo Borradori (2003), um período pré-paradigmático é conotado pelo acúmulo caótico de dados, além da pouca consolidação de uma comunidade de pesquisa, a qual pense ter adquirido respostas seguras sobre as entidades fundamentais que compõem o universo, das possibilidades de sua interação, além das questões que podem ser legitimamente feitas a respeito delas e quais técnicas podem ser empregadas na busca da solução de problemas a seu respeito.
Nesse momento não há a aceitação generalizada de qualquer conjunto de regras, métodos ou padrões científicos. Qualquer cientista ou grupo de cientistas precisa dispender um bom tempo criando, explicando e justificando os seus conceitos, métodos, técnicas e pressupostos, visando se fazer entender pelos demais indivíduos ou grupos, especialmente aqueles que não aderiram à sua perspectiva.
Na ausência de um paradigma bem estabelecido ou de um candidato a paradigma assim, os fatos que se apresentam ao desenvolvimento de alguma área da atividade científica parecem ser igualmente relevantes. Somente em poucos casos, fatos com tão pouca orientação por parte de teorias preestabelecidas falam com tamanha clareza e simplicidade, para permitir o surgimento de paradigmas fundadores de uma área. Expõe Kuhn (2011a, p. 37):
As escolas características dos primeiros estágios do desenvolvimento de uma ciência criam essa situação. Nenhuma história natural pode ser interpretada na ausência de pelo menos algum corpo implícito de crenças metodológicas e teóricas interligadas que permita seleção, avaliação e crítica. Se esse corpo de crenças já não está implícito na coleção de fatos – quando então temos à disposição mais do que “meros fatos” – precisa ser suprido externamente, talvez por uma metafísica em voga, por outra ciência ou por um acidente pessoal e histórico. Não é de admirar que nos primeiros estágios do desenvolvimento de qualquer ciência, homens diferentes confrontados com a mesma gama de fenômenos – mas em geral não com os mesmos fenômenos particulares – os descrevem e interpretem de maneiras diversas.
Em sua atividade caracterizada de pré-ciência, uma área de pesquisa carece de amadurecimento. Ela começa a amadurecer quando um dos paradigmas rivais obtém força, sendo escolhido pela maioria dos pesquisadores da área, convergindo nas atividades e atenções. Um paradigma prevalece por parecer melhor que os seus rivais, prometendo, em tese, possuir maior poder explicativo e preditivo que os demais.
A aceitação de um paradigma envolve também a aceitação de suas teorias. Pode acontecer de teorias rivalizarem dentro de um mesmo paradigma na tentativa de explicar certos fenômenos. Neste caso, não é o paradigma o alvo de escolha, mas suas teorias rivais. No entanto, quando teorias estão associadas a paradigmas distintos, a escolha de uma delas também direciona a escolha de paradigma ao qual ela está atrelada.
Embora não exista um critério de qualidade rigoroso para aceitação de teorias, Kuhn (2011b, p. 341) explicita cinco características indicadoras de qualidade extraídas de suas investigações ao longo da história do desenvolvimento da ciência:
Primeiro, uma teoria deve se conformar com precisão à experiência: em seu domínio, as consequências dedutíveis da teoria devem estar em clara concordância com os resultados da experimentação e da observação existente. Segundo, uma teoria deve ser consistente, não apenas internamente ou auto consistente, mas também com outras teorias correntes aplicáveis a aspectos da natureza que são afins. Terceiro, ela deve ter uma extensa abrangência; em particular, as consequências da teoria devem ir muito além das observações, leis ou subteorias particulares cuja explicação motivou sua formulação. Quarto, e fortemente relacionado, ela deve ser simples, levando ordem a fenômenos que, em sua ausência, permaneceriam individualmente isolados e coletivamente confusos. Quinto - um item um pouco incomum, mas de importância crucial para as decisões científicas efetivas -, uma teoria deve ser fértil em novos achados de pesquisa, deve abrir portas para novos fenômenos ou a relações antes ignoradas entre fenômenos já conhecidos.
Kuhn (2011a) explicita dois tipos de valor que podem servir de base para a escolha e qualificação de teorias e paradigmas: cognitivos e extracognitivos. Segundo Laudan (1984, p. xii, tradução nossa): “[os valores cognitivos] representam uma propriedade de teorias que supomos serem constitutivas de uma ‘boa ciência’”. Para o caso das teorias, os principais valores cognitivos são a adequação empírica, consistência, poder explicativo, simplicidade, fecundidade.
A adequação empírica supõe que a teoria se ajuste aos dados disponíveis, mostrando-se capaz de poderes preditivos sobre os mesmos e de relatar algo a respeito de fenômenos. Visto que a ciência encontra suas justificativas no âmbito físico através da observação empírica, é essencial que uma teoria trate de problemas do mundo empírico.
A tese da consistência expressa que uma teoria não pode se firmar através de pressupostos que afirmem e neguem, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto, uma mesma característica sobre fenômenos. Teorias incapazes de corresponder a esse requisito são inconsistentes ou contraditórias. Elas nada informam a respeito do mundo. Uma teoria deste tipo, por exemplo, diria que o ferro conduz e não conduz eletricidade, preveria que o toque no fio desencapado dá e não dá choque. Ademais, uma boa teoria necessita da capacidade de inserir-se nos meandros da comunidade científica, tanto quanto na própria linguagem, facilitando que os demais membros da comunidade a compreendam; independentemente de suas propostas, as terminologias devem ser aceitas e compreendidas pela comunidade como um todo.
O poder explicativo expressa que as teorias sejam destinadas a analisar os principais fenômenos do mundo dentro de seu escopo. Elas precisam definir na mais ampla extensão e profundidade as leis que regem os processos e as estruturas da natureza. Nesse sentido, a teoria da relatividade possui um alcance mais amplo que a mecânica clássica, por exemplo, embora esta seja capaz de explicar adequadamente certa gama de fenômenos, de modo aparentemente mais simples do que aquela.
A simplicidade explicita que boas teorias são simples e claras, podendo ser conceitualmente capazes de serem formalizadas e inteligíveis. Nesse sentido, entende-se que um dos objetivos da ciência é transformar o confuso no claro, com simplicidade, ainda que seja complexa. A ciência, em tese, é capaz de desvelar leis que garantem e regem os aspectos mais gerais do mundo. Caso uma teoria não seja capaz de apresentar alguma previsibilidade a propósito do mundo, devido à aparição de inúmeras anomalias que a refutam, é necessário sua reformulação ou surgimento de uma nova teoria, capaz de explicar os eventos que as outras são incapazes de fazer.
Segundo Kuhn (2011a), a fecundidade é o mais importante dos valores cognitivos. É necessário à teoria ser capaz de exibir novos fenômenos ou novas implicações que garantam a possibilidade de se observar um mesmo fenômeno de maneira diferente, ampliando seu alcance explicativo. Uma teoria incapaz de apresentar contribuições às questões referentes ao mundo ou a questões que pretende tratar nada ou pouco oferece ao desenvolvimento da área de pesquisa. Ademais, pressupõe-se que toda boa teoria seja fecunda a novos problemas, fornecendo quebra-cabeças aos pesquisadores da área, motivando-os e desafiando-os a montá-los, seguindo as regras do paradigma em que estão inseridos.
Os valores cognitivos, conforme expressos, não se garantem axiomaticamente como critérios de qualidade de teorias. Apesar disso, são idealizações identificadas na grande maioria das teorias científicas consideradas de qualidade. Embora tais valores tenham certo rigor, eles não podem ser tomados como um critério objetivo e definitivo para a escolha de teorias ou paradigmas, dada certa imprecisão e conflito entre essas características. Há situações, por exemplo, nas quais a simplicidade pode priorizar uma escolha. Em outros casos, a relevância pode ser atribuída à consistência. Conforme Kuhn (2011b, p. 343):
A Astronomia heliocêntrica, que exigia o movimento da Terra, era inconsistente com as explicações científicas disponíveis desses e de outros fenômenos terrestres. Assim, tomado de maneira isolada, o critério da consistência fala de maneira inequívoca a favor da tradição geocêntrica. [...] A simplicidade, no entanto, favorecia Copérnico, mas somente quando avaliada de modo específico. [...] se examinássemos a quantidade de expediente matemático exigido para explicar não os movimentos quantitativos detalhados dos planetas, mas seus aspectos qualitativos gerais (elongação limitada, movimento retrógado e afins), veríamos, como bem sabe qualquer criança de escola, que Copérnico requer apenas uma circunferência por planeta e Ptolomeu, duas.
Assim, dois cientistas podem chegar a conclusões e escolhas diferentes sobre qual o melhor paradigma, pois esses critérios podem ser interpretados de maneira diversa: talvez os cientistas concordem nos critérios, mas discordem em suas valorações. Conforme exemplifica Kuhn (2011a), aquilo que, para Einstein, era considerado demasiado complexo ou incongruente, no que tange à teoria dos quanta, na qual se declara que a emissão e a absorção de energia eletromagnética dos corpos ocorrem através de “pacotes”, ao contrário do que é sustentado pela teoria ondulatória clássica, poderia ser, para Bohr, apenas uma dificuldade da época, a ser superada. Frisa Kuhn (2011b, p. 344):
[...] nenhuma lista de critérios já proposta é de fato útil. [...] devemos levar em conta características que variam de cientista a cientista, sem comprometer com isso sua adesão aos cânones que tornaram a ciência científica. Embora existam e possam ser descobertos (sem dúvida, os critérios de escolha com que comecei este artigo estão entre eles), esses cânones não são, por si só, suficientes para determinar as decisões de cada cientista. Para isso, os cânones compartilhados teriam de ser elaborados de modo que variem de um indivíduo a outro.
Os critérios de escolha levam em consideração os elementos resultantes das experiências anteriores de cada cientista até o momento em que foi necessário efetuar uma escolha. Dentro das experiências está o campo em que o indivíduo atuou, quão bem-sucedido ele foi, quanto tempo ele trabalhou na área, a quantidade de conceitos e técnicas contestados pelo novo paradigma.
Além dos valores cognitivos, para Kuhn (2011a), há os extracognitivos, que interferem no progresso e consolidação da ação científica. Tais valores são relevantes nos momentos de aceitação dos paradigmas e de escolha se suas regras metodológicas. Segundo Lacey (1998), os valores extracognitivos, valores sociais, na nomenclatura deste autor, dizem respeito às crenças, deliberações, fins, desejos e outros estados intencionais. Eles estão intrinsicamente relacionados com instituições, ecossistemas e situações sócio-históricas. Alves (2013, p. 196) observa:
Fatores psicológicos, como a crença, sentimento ou esperança no poder explicativo de uma teoria, a intuição de pesquisadores a respeito de uma matriz disciplinar, a possibilidade de adequação do paradigma com possíveis valores ou princípios morais, sociais, podem auxiliar na escolha de um determinado paradigma em detrimento de outro. No entanto, apesar da influência de valores extracognitivos como estes serem relevantes, a escolha de um paradigma está amparada em valores cognitivos, os desideratos das teorias científicas que o constituem.
A elaboração dos valores cognitivos ocorre, também, influenciada pelas valorações constituídas pela comunidade científica. Muitas vezes garantidas pela existência de valores pessoais e sociais, elas interferem para que a comunidade continue coesa. A forma como um paradigma é escolhido, ao invés de outro, depende não somente dos valores cognitivos, mas também da ação valorativa individual e coletiva. Visões de mundo, concepções religiosas, políticas, econômicas e sociais podem influenciar na composição e escolha de paradigmas, embora não sejam eles os sustentáculos da manutenção do paradigma.
Imaginemos um caso de duas teorias inconsistentes entre si, mas fundamentadas nos mesmos dados empíricos, de tal modo que os dados não forneceriam uma base satisfatória para decidir entre elas. A escolha ou a delimitação da prioridade de linhas de pesquisa, neste caso, poderia ser baseada em valores, além de epistemológicos, do tipo sociais, culturais, políticos, morais, em princípios metafísicos. De alguma forma, isso é o que ocorre atualmente com as teorias explicativas a respeito da matéria escura na física ou, mais especificamente, na cosmologia.
Tal maleabilidade permite a pensadores como Lakatos (1979, p. 178) asseverar que os elementos kuhnianos de escolha entre teorias e paradigmas são basicamente subjetivos e uma “[...] questão psicológica de massas”. Kuhn (2011b) rebate a crítica ao argumentar que a escolha de paradigma depende de uma mescla de fatores objetivos, como a precisão, e fatores subjetivos, ou critérios compartilhados e individuais.
Comumente, a luta entre paradigmas, embora possa levar um grande tempo e esforço, tende a chegar a um vencedor. É natural que um paradigma acabe sendo mais aceito pela maioria dos pesquisadores de uma área, constituindo uma comunidade científica. Nesse ponto, a área entra em um novo momento chamado de ciência normal.
Ciência Normal
A atividade de um grupo majoritário de uma área de pesquisa comprometida com um único paradigma é pré-requisito para o que Kuhn (2011a) denomina “ciência normal”. Enquanto ciência normal, diz Borradori (2003, p. 210),
[...] a prática científica se normaliza em torno da instituição de um “paradigma”, que representa uma mescla normativa de teoria e de método. Uma amálgama, no qual se juntam um espectro de postulados teóricos, uma determinada visão de mundo, dos modos de transmissão dos conteúdos da ciência, além de uma série de técnicas de pesquisa.
A predominância de um paradigma propicia a criação de publicações especializadas, a fundação de sociedades de especialistas e a reivindicação de valorização desses elementos nos currículos. Ressalta Kuhn (2011a, p. 40):
Quando um cientista pode considerar um paradigma como certo, não tem mais necessidade, nos seus trabalhos mais importantes, de tentar construir seu campo de estudos começando pelos primeiros princípios e justificando o uso de cada conceito introduzido.
Antes de se tornar dominante, um paradigma não passa de uma promessa de explicação para certos fenômenos do mundo. Na ciência normal, tem-se a atualização dessas promessas para a comunidade, aplicando-se as predições do paradigma aos conhecimentos e fatos julgados relevantes, aumentando a sua capacidade explicativa e refinando dele próprio, através do que Kuhn (2011a, p. 44) identifica como progresso interno:
A maioria dos cientistas, durante toda a sua carreira, ocupa-se com operações de acabamento. Elas constituem o que chamo de ciência normal. Examinado de perto, seja historicamente, seja no laboratório contemporâneo, esse empreendimento parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; frequentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outro.
Enquanto ciência normal, a comunidade atua com as teorias e fenômenos fornecidos e explicados pelo paradigma vigente. Essas características remetem ao conceito de especialização. Conforme Alves (2013, p. 199):
Os participantes de um paradigma costumam defendê-lo com todo vigor possível. Existe uma crença quase que incontestável no poder explicativo e preditivo das teorias que constituem um paradigma, na sua adequação e correção, ou na possibilidade de seu aprimoramento.
Há, ainda, um quadro típico de problemas e expectativas a serem resolvidos pelos praticantes e adeptos de um paradigma. Os chamados “quebra-cabeças” são problemas estipulados pelo poder explicativo do paradigma, embora, em geral, seus resultados não almejam novidades inesperadas. Quebra-cabeça, para Kuhn (2011a, p. 59), “[...] indica, no sentido corriqueiro em que empregamos o termo, aquela categoria particular de problemas que servem para testar nossa engenhosidade ou habilidade na resolução de problemas.”
Ao adotar um paradigma, uma comunidade científica também adquire uma série de quebra-cabeças a serem trabalhados. Em certa medida, a comunidade tende a aceitar basicamente tais problemas como genuínos a serem resolvidos pelos seus integrantes. É comum que muitos quebra-cabeças aceitos anteriormente por paradigmas abandonados passem a ser rejeitados pela nova comunidade. Eles podem ser considerados, pela perspectiva do paradigma vigente, como metafísicos, pertinentes às especialidades de outra área, carentes de sentido no novo arcabouço epistemológico. Eles também podem ser rejeitados por serem demasiadamente problemáticos ou por necessitarem de um gasto exagerado de energia em um dado momento. Kuhn (2011a) destaca que a ciência contemporânea tende a se desenvolver tão rapidamente devido à natureza de seus problemas, dado que seus praticantes, na concepção do paradigma, procuram se concentrar em questões que podem ser resolvidas apenas com os pressupostos fornecidos e graças à sua engenhosidade.
O empreendimento científico de uma área enquanto ciência normal, em seu conjunto, motiva e desafia seus adeptos a encaixar as peças de seus quebra-cabeças. Não obstante, um quebra-cabeças não consiste apenas em um problema solúvel no escopo do paradigma. É necessário que ele satisfaça certas regras que limitam tanto as possibilidades de sua solução aceitável quanto os possíveis métodos necessários e instrumentos preferíveis para encontrá-la. Tais regras valem para os problemas teóricos e para os problemas práticos. Elas criam uma relação de compromisso do pesquisador para com o paradigma, sendo preciso respeitar os seus pressupostos. Enquanto estes forem admitidos, subsidiam as resoluções dos quebra-cabeças e permitem que os demais membros da comunidade as aceitem e possam passar para outros problemas.
Após sua consolidação, um paradigma pode apresentar muitas limitações, quer naquilo que tange à sua precisão, quer no seu aprimoramento interno. Pode apresentar, ao longo do tempo, anomalias sérias, possibilitando ou favorecendo a emergência de uma crise científica. A aparente solidez do paradigma começa a desmantelar e o período de ciência normal se transforma em um momento de rupturas. A comunidade, em fase de desintegração, começa a questionar seus métodos, técnicas e fundamentos. A história da ciência é marcada por vários exemplos desse desmantelamento paradigmático. A passagem do sistema geocêntrico para o heliocêntrico, na astronomia, é um deles. Investigamos, na próxima seção, os elementos que levam um paradigma a entrar em crise e quais as possíveis soluções para tal situação.
Crise
A prática científica de uma área de pesquisa caracterizada como ciência normal consiste em um empreendimento coletivo voltado para a resolução de quebra-cabeças estabelecidos na agenda do paradigma dominante. Entretanto, é comum, nessa atividade, que fenômenos anômalos sejam apreendidos, exigindo, por vezes, uma capacidade explicativa para além do paradigma dominante para tais fenômenos.
Kuhn (2011a, p. 77) assinala que a “[...] ciência normal não se propõe descobrir novidades no terreno dos fatos ou teorias; quando é bem sucedida, não as encontra”. As chamadas “anomalias” são reconhecidas a partir do momento em que as expectativas do paradigma vigente são suplantadas por fenômenos que, ou são extremamente difíceis de serem explicados, ou são tão anômalos que são impossíveis de se explicar a partir das teorias do paradigma. No primeiro caso, é comum o ajuste da teoria, a fim de assimilar o novo fenômeno ao seu escopo explicativo, transformando o inesperado em esperado. O segundo caso é caracterizado pela necessidade da criação de novos conceitos e de um novo vocabulário para analisar o fenômeno, uma vez que a observação e a assimilação do novo fato a uma teoria estão muitas vezes associados à descoberta do fenômeno.
O surgimento de anomalias pode ser resultado da descoberta de alguma entidade natural nova, como, por exemplo, algum elemento químico ou o comportamento de alguma substância já conhecida. O enfrentamento de anomalias pode significar a reformulação conceitual em algum nível que, por sua vez, pode exigir alguma modificação no paradigma vigente. Para explicar a relação entre o surgimento de anomalias, a descoberta de novos elementos e a criação de paradigmas com maior poder explicativo, Kuhn (2011a, p. 82) alude ao seguinte exemplo:
O que Lavoisier anunciou em seus trabalhos posteriormente a 1777 não foi tanto a descoberta do oxigênio como a teoria da combustão pelo oxigênio. Essa teoria foi a pedra angular de uma reformulação tão ampla da química que veio a ser chamada de revolução química. [...] Muito antes de desempenhar qualquer papel na descoberta de um novo gás, Lavoisier convenceu-se de que havia algo errado com a teoria flogística. [...] O trabalho sobre o oxigênio deu forma e estrutura mais precisas à impressão anterior de Lavoisier de que havia algo errado na teoria química corrente.
A experiência prévia de se observar a dificuldade de analisar um fenômeno a partir de um paradigma é um indicativo importante da necessidade de sua revisão. Muitas vezes, a percepção de uma anomalia, ou seja, de um fenômeno que o paradigma não está preparado para explicar, desempenha um papel importante para o ambiente das descobertas científicas. Apesar das descobertas não serem os únicos indicativos da necessidade da criação de paradigmas, elas incluem uma série de elementos impactantes nessa mudança. Como exemplo disso, citamos a consciência prévia da existência de anomalias, o reconhecimento do plano conceitual e metodológico do fenômeno e, consequentemente, mudanças no paradigma que, com frequência, estão relacionados com uma forte resistência oriunda da comunidade de pesquisadores mais ortodoxos.
Habitualmente, as descobertas emergem com muita dificuldade, seguindo um caminho extremamente contraintuitivo ou aparadigmático. Em princípio, as observações de cientistas estão atreladas à previsibilidade do paradigma a que são adeptos, mesmo em situações que mais tarde podem ser entendidas como anomalias. Enfatiza Kuhn (2011a, p. 91):
Contudo, uma maior familiaridade dá origem à consciência de uma anomalia ou permite relacionar o fato a algo que anteriormente não ocorreu conforme o previsto. Essa consciência da anomalia inaugura um período no qual as categorias conceituais são adaptadas até que o que inicialmente era considerado anômalo se converta no previsto. Nesse momento completa-se a descoberta.
Em sua fase de construção, espera-se que um paradigma consiga, com alguma eficiência, explicar boa parte dos fenômenos e objetos pretendidos pela sua área de atuação. Com o passar do tempo, quando o paradigma se consolida e a área de pesquisa passa por uma atividade de ciência normal, pode ocorrer o desenvolvimento interno do paradigma, com refinamentos metodológicos e conceituais que, em geral, levam a comunidade científica à especialização de sua visão de mundo e a um aumento na precisão entre os fenômenos e as teorias, ou seja, no aumento de seu poder explicativo e preditivo.
Por maior que sejam a precisão e o alcance explicativo de um paradigma, sempre há possibilidade de haver anomalias sérias e algum indicativo da necessidade de mudança dele. A sua comunidade, no entanto, dificilmente o abandonará com facilidade. Para tanto, são esperadas e exigidas provas consistentes, em vários laboratórios, circunstâncias ou situações, de sua insuficiência e das impossibilidades de reformulações satisfatórias.
Quando a existência de anomalias atinge certo nível, seja em sua quantidade, seja em sua relevância, a comunidade científica se encontra em uma situação na qual é necessária a assimilação desses fenômenos. Isso pode ocorrer a partir da reformulação ou aprimoramento do paradigma ou através da criação de um novo paradigma, capaz de explicar os fenômenos novos e os já conhecidos. Ao longo dessa mudança, é preciso que algumas crenças aceitas no paradigma vigente sejam descartadas e substituídas por outras.
Em boa parte dos casos, a presença de anomalias persistentes ocasiona, na comunidade científica, um período de crise crescente. As chamadas “crises” são decorrentes da insegurança gerada em face do fracasso constante na atividade científica em produzir previsões e explicações adequadas aos fenômenos da natureza investigados pela área de pesquisa. Conforme Kuhn (2011a, p. 95), “O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras”.
Os cientistas, mesmo já com pouquíssima confiança nas previsões e explicações do paradigma dominante, com frequência não são capazes de se desvencilhar do veículo de sua crise, sem uma opção razoavelmente segura e com poder explicativo potencialmente superior ao seu anterior. Baseando-se em fatos históricos, como a Revolução Copernicana, por exemplo, uma crise é superada e um paradigma é abandonado apenas quando existir alguma alternativa disponível potencialmente capaz de substituir o vigente à altura.
Na visão de Kuhn (2011b), os motivos que levam cientistas a abandonar um paradigma engloba muito mais do que a comparação entre teorias, envolvendo a comparação mútua entre os paradigmas com a natureza, juntamente com a aceitação da comunidade científica. A resistência dos membros da comunidade, às vezes, é tamanha em tentar salvar o paradigma das crises que é comum observarmos uma constante tentativa de modificações na matriz e inserções desmedidas de hipóteses ad hoc. Enfatiza Kuhn (2011a, p.109):
Tal como os artistas, os cientistas criadores precisam, em determinadas ocasiões, ser capazes de viver em um mundo desordenado – descrevi em outro trabalho essa necessidade como “a tensão essencial” implícita na pesquisa científica.
A atividade científica, quando em crise, não se caracteriza pelo abandono absoluto de todo e qualquer paradigma. Consiste no declínio de um paradigma antes consolidado e a emergência de novos bons candidatos em busca da aceitação da comunidade científica. Diferentemente da pré-ciência, a crise é caracterizada pelo momento de perda de credibilidade do paradigma dominante e pelo surgimento de novos paradigmas rivais promissores, diferentes e contraditórios com o anterior.
Kuhn (2011b) aborda a relação tênue entre os quebra-cabeças da ciência normal e as anomalias constantes que acentuam a crise. Eles também podem ser vistos como anomalias e um indicativo de crise. Embora não exista uma linha divisória precisa entre a relação das anomalias e os quebra-cabeças, a crise tende a fomentar o enfraquecimento das suas resoluções. Nesse sentido, os paradigmas vigentes, através de suas teorias, podem ter duas estratégias de atuação, em relação às anomalias: ou elas partem de um constante confronto com as anomalias ou jamais as confrontam diretamente. Contudo, em ambos os casos, parece sempre existir algum indicativo de problema no paradigma.
As anomalias possuem forte impacto na geração de uma crise. Provavelmente não há uma resposta direta para os processos que levam anomalias a criar uma crise em uma área de pesquisa, dada a existência de muitos fatores externos e internos extremamente impactantes para tanto. Kuhn (2011a, p.113) descreve alguns exemplos de anomalias que resultaram no desenvolvimento de crises:
Algumas vezes uma anomalia colocará claramente em questão as generalizações explícitas e fundamentais do paradigma – tal como o problema da resistência do éter com relação aos que aceitaram a teoria de Maxwell. Ou, como no caso da revolução copernicana, uma anomalia sem importância fundamental aparente pode provocar uma crise, caso as aplicações que ela inibe possuam uma importância prática especial – neste exemplo para a elaboração do calendário e para a astrologia.
Anomalias surgem com certa frequência na atividade científica. Algumas parecem ser algo muito mais além do que um possível novo quebra-cabeça da área enquanto ciência normal. Embora cientistas e investigadores tentem resolver os problemas que são cada vez mais constantes, ao passo que mais adaptações são inseridas, para tais pesquisadores a disciplina jamais será a mesma. Na crise, mesmo com um paradigma dominante, a ação da comunidade se caracteriza pela desconfiança, em menor ou maior grau, na matriz. Mesmo as soluções anteriormente bem aceitas passam a ser alvo de questionamentos, de insegurança.
A atividade em crise é marcada pela confusão, pela ausência de coesão paradigmática. Uma crise se inicia com a falta de credibilidade no paradigma dominante e, consequentemente, com o esvaziamento das regras orientadoras da pesquisa até então. Mas, conforme ditado popular, depois da tempestade vem a bonança. Em geral, uma crise, mais cedo ou mais tarde, é seguida de uma revolução, da qual tratamos a seguir. Explicitamos seu impacto nas comunidades científicas, incluindo as mudanças das visões de mundo e o caráter necessário das revoluções para o progresso científico.
Revolução Científica
A atividade desconfiada, insegura, pode terminar de três maneiras. A primeira possibilidade consiste na revelação de que o próprio paradigma posto em xeque seja capaz de resolver os motivos da crise. A segunda opção decorre da resistência do problema. Nesse caso, tanto as abordagens novas quanto as clássicas se revelam insuficientes para superar as dificuldades. O problema é considerado insolúvel para o momento e é engavetado provisoriamente, para que possa ser resolvido por futuras gerações, as quais podem dispor de métodos e instrumentos mais sofisticados e adequados para o seu tratamento. A terceira opção acaba com o surgimento de um novo candidato a paradigma dominante e com o confronto entre ele e o vigente. Este último modo de resolução propicia a entrada da área de pesquisa num período denominado “ciência extraordinária”. Este termo faz referência a um momento de grandes transições, as quais são fundamentais para o desenvolvimento da atividade científica, gerando novos conhecimentos sobre a realidade.
Na transição de um paradigma para o outro, em períodos de crise, tem-se o surgimento de uma nova tradição de ciência normal: a despeito de ter que ser capaz de responder senão a todas, pelo menos a parte considerável das questões que o paradigma anterior era capaz de responder, que ainda se mantém significativas, e mais as novas questões postas, a nova matriz jamais será proveniente do acúmulo de dados obtidos através de seu antecessor. O novo paradigma é, antes de tudo, uma reformulação da área, a partir de novos princípios e pressupostos. Muitas vezes implica mudanças drásticas nos métodos e práticas anteriormente aceitas, que acarretam, frequentemente, elementos contraditórios à perspectiva anterior.
Completada a transição paradigmática, os cientistas modificam, dentre outras coisas, as suas concepções de mundo e tomam os mesmos dados e observações realizadas anteriormente, em função de um novo sistema de relações, averiguando-os a partir de um novo quadro de conceitos.
Em geral, os novos paradigmas surgem, ainda que em fases iniciais, antes da crise tenha encontrado o seu apogeu. Esclarece Kuhn (2011a, p. 118):
Confrontado com uma anomalia reconhecidamente fundamental, o primeiro esforço teórico do cientista será, com frequência, isolá-la com maior precisão e dar-lhe uma estrutura. Embora consciente de que as regras da ciência normal não podem estar totalmente certas, procurará aplicá-las mais vigorosamente do que nunca, buscando descobrir precisamente onde e até que ponto elas podem ser empregadas eficazmente na área de dificuldade, de torná-la mais nítida e talvez mais sugestiva do que era ao ser apresentada em experiências cujo resultado pensava-se conhecer de antemão. [...] dado que nenhuma experiência pode ser concebida sem o apoio de alguma espécie de teoria, o cientista em crise tentará constantemente gerar teorias especulativas que, se bem sucedidas, possam abrir o caminho para um novo paradigma e, se mal sucedidas, possam ser abandonadas com relativa facilidade.
O desenvolvimento desses procedimentos, os quais exigem uma força criativa extraordinária, ocorre, por vezes, ao concentrar o enfoque científico em determinada área para o reconhecimento de anomalias. Essas observações, em momentos de crise, são fundamentais para o desenvolvimento da atividade científica. Não raro, a forma do novo paradigma é decorrente desse movimento extraordinário, sendo necessário, após a superação da crise, migrar para um novo período de ciência normal, o qual exige um refinamento conceitual.
Em linhas gerais, quando um grupo de pesquisadores desenvolve um novo paradigma que atrai a maior parte dos praticantes da área de pesquisa contemporânea e as novas gerações, é comum que as escolas mais antigas comecem a desaparecer gradualmente. Kuhn (2011a) observa ser comum o desaparecimento dessas escolas, com o surgimento de novos paradigmas, mas sempre existem alguns indivíduos com forte elo com as concepções mais antigas. Eles são habitualmente excluídos ou forçados a unir-se a um novo grupo ou acabam se isolando da comunidade.
Desde um ponto de vista histórico, a transição para um novo paradigma caracteriza uma revolução científica. Revoluções científicas e transições da pré-ciência para a ciência normal constituem momentos de mudança paradigmática. Um paradigma que não mais apresenta um poder explicativo minimamente aceitável é substituído por outro, com maior poder explicativo e incompatível, em algum aspecto, com o anterior.
A mudança de paradigma é marcada pela subdivisão dos membros da comunidade científica e a crescente perda de credibilidade do paradigma vigente. O sentimento de funcionamento falho ou defeituoso é uma constante que permeia o ambiente dos pesquisadores, os quais deixam de acreditar na capacidade do paradigma existente de explorar adequadamente o funcionamento do universo dos fenômenos a que se propõe explicar. Kuhn (2011a, p.126) faz um paralelismo entre as revoluções políticas e as revoluções científicas:
As revoluções políticas visam realizar mudanças nas instituições políticas, mudanças essas proibidas por essas mesmas instituições que se quer mudar. Consequentemente, seu êxito requer o abandono parcial de um conjunto de instituições em favor de outro. E, nesse ínterim, a sociedade não é integralmente governada por nenhuma instituição. De início, é somente a crise que atenua o papel das instituições políticas, do mesmo modo que atenua o papel dos paradigmas. [...] A essa altura, a sociedade está dividida em campos ou partidos em competição, um deles procurando defender a velha constelação institucional, o outro tentando estabelecer uma nova. Quando ocorre essa polarização, os recursos de natureza política fracassam. Por discordarem quanto à matriz institucional a partir da qual a mudança política deverá ser atingida e avaliada, por não reconhecerem nenhuma estrutura supra-institucional competente para julgar diferenças revolucionárias, os partidos envolvidos em um conflito revolucionário devem recorrer finalmente às técnicas de persuasão em massa, que seguidamente incluem a força.
As mudanças paradigmáticas na ciência mostraram ter muitas semelhanças com as revoluções políticas ocorridas ao longo do tempo. Semelhantes aos estilos de governo, com frequência as posições políticas revelam a existência de modos de vida extremamente incompatíveis. Segundo essa comparação, os momentos de revolução não podem ser avaliados pelos processos comuns da ciência normal, porque eles dependem de um paradigma para a sua avaliação, e o mesmo se encontra sendo questionado a respeito da sua validade enquanto um paradigma coletivamente aceito. O mesmo pode ser indicado quando nos questionamos sobre a validade de documentos que apregoam a inocência de governos que passaram por períodos de barbárie.
A proposta de Kuhn trata tanto das grandes revoluções científicas quanto das pequenas. Kuhn (2011a) menciona que as características das revoluções científicas podem ser igualmente examinadas através do estudo de outros episódios que não foram tão obviamente revolucionários. As equações de Maxwell, por exemplo, afetaram um grupo bem mais reduzido do que as de Einstein, porém, não foram consideradas menos revolucionárias e, por esse motivo, encontraram resistência. Kuhn (2011a, p. 74) sugere haver “[...] revoluções grandes e pequenas, algumas afetando apenas os estudiosos de uma subdivisão de um campo de estudos. Para tais grupos, até mesmo a descoberta de um fenômeno novo e inesperado pode ser revolucionária”.
Revolucionar, no sentido amplo, significa trocar um paradigma por outro. A atividade de uma área de pesquisa marcada por dúvidas, incapacidades, insegurança, incertezas passa para um novo período de desenvolvimento, cuja atividade é amparada na confiança no paradigma, na sua capacidade de previsão, alcance explicativo e de sucesso na resolução de quebra-cabeças. A área de pesquisa se encontra em um novo período de ciência normal, assentando-se em momento de calmaria que, mais cedo ou mais tarde, em menor ou maior intensidade, voltará a ser de instabilidade. Assim gira a roda da estrutura das revoluções científicas.
Considerações finais
A busca por um critério de demarcação científica, estudos sobre o progresso e método científicos constituíram algumas das principais questões da filosofia da ciência no século passado. Como o Estruturalismo de Kuhn, outras perspectivas epistemológicas foram desenvolvidas a fim de tratar dessas e de outras questões. Dentre tais abordagens, encontramos o Empirismo Lógico, o Falsificacionismo e o Estruturalismo de Lakatos.
O Positivismo Lógico, também conhecido como Empirismo Lógico ou Indutivismo Lógico, ou ainda Círculo de Viena, foi instituído, oficialmente, na década de 1920, em Viena, à época, forte local de efervescência cultural, científica e filosófica. Pesquisadores de diferentes áreas se reuniam com o objetivo de discutir questões referentes à caracterização da ciência e da atividade científica. Dentre eles figuravam o físico Moritz Schlick, os matemáticos Hans Hahn e Rudolf Carnap e o sociólogo e economista Otto Neurath.
De modo geral, os integrantes do Círculo de Viena defendem, com algumas diferenças entre si, que a ciência começa com a observação, explicitada ou expressa através de enunciados elementares, também comumente denominados, com pequenas alterações de concepção, enunciados protocolares ou proposições de observação. De modo geral, tais entidades linguísticas se caracterizam por descrever experiências empíricas, aquelas passíveis de reprodução por outros indivíduos em condições adequadas, realizadas por um experimentador específico, em um tempo e espaço delimitados. Tais enunciados servem de base para a inferência de leis científicas, ou seja, enunciados universais irrestritos que tratam de uma gama delimitada de objetos ou fenômenos no mundo, através de um processo indutivo. Assim, por exemplo, ao observar, sob uma ampla variedade de condições, um grande número de cisnes, e averiguar que cada um deles, sem exceção, é branco, poderíamos estar justificados a inferir que “Todo cisne é branco”.
Nessa perspectiva, a ciência, cujo objetivo é a busca da verdade, do conhecimento objetivo do mundo, sobre fenômenos da natureza, se desenvolve com o acúmulo de dados. Quanto maior o número de observações basilares de uma lei científica, mais força ela possui. Assim, quanto mais cisnes forem observados e constatados a sua brancura, maior a garantia do enunciado referente à cor da totalidade de cisnes.
O critério de cientificidade do empirismo lógico traduz-se na seguinte regra: um enunciado é científico, se, e somente se, for verificável empiricamente (HEMPEL, 1965). Isso significa que, sendo verdadeiro, o enunciado pode ser verificado, pode-se averiguar, em princípio, a sua verdade através da observação empírica. Em outras palavras, pode-se confirmar, por meio dos sentidos, se o que o enunciado afirma realmente ocorre, se há correspondência com os fatos. Nesse sentido, seriam considerados científicos enunciados como “O universo é finito”, “A terra é plana”, “Um bóson de Higgs é uma partícula subatômica”, “A luz sofre ação gravitacional”, “Hoje é quarta-feira”. Não seriam considerados científicos enunciados como “O Real é Racional e o Racional é Real”, “A mente é substância pensante”, “O universo é infinito”. Como se pode perceber nestes exemplos, a cientificidade não garante a verificabilidade efetiva do enunciado, podendo, inclusive, ser científico e falso.
Muitas críticas foram dirigidas a essa perspectiva. Uma delas, feitas por Hanson (1975), dentre outros, refere-se à impossibilidade de a observação ser genuína, ou seja, objetiva, segura, confiável. A observação, argumenta Hanson (1975), geralmente é guiada por interpretações, valores, expectativas, preconceitos e crenças do observador. Assim, a base do Positivismo Lógico já não estaria firmemente alicerçada. Consequentemente, toda a sua prática e tentativa de encontrar leis capazes de explicar e prever fenômenos do mundo estaria comprometida. Há diferentes variações e aprofundamentos desse empirismo, buscando diminuir tais críticas, sofisticando a abordagem, recorrendo, por exemplo, à probabilidade.
Ademais, estranhamente, os enunciados que expressam as leis científicas, os universais irrestritos, não passam pelo crivo do critério de verificabilidade empírica. Não sendo científicos, impediriam a ciência de alcançar seus objetivos. Hempel (1965), dentre outros, procuram avaliar tais questões e propor alternativas para resolver o problema.
Um dos incisivos críticos ao Empirismo Lógico é o filósofo austríaco Karl Popper. Popper (1972) desenvolveu uma perspectiva, popularmente denominada Falsificacionismo ou Criticismo Popperiano, cujo fundamento e critério científico é a falseabilidade e não a verificabilidade de enunciados. Na visão popperiana, a ciência começa com problemas. Deparado com um problema, um/a cientista deve propor hipóteses para a sua resolução. Uma vez propostas, as hipóteses devem ser testadas. Caso passem nos testes empíricos, são corroboradas e provisoriamente mantidas. Sendo falseadas, devem ser abandonadas e substituídas.
Popper (1972) sugere como critério de demarcação científica a ideia de que um enunciado ou sistema de enunciados é científico se, e somente se, for falsificável empiricamente. Nesse sentido, seriam considerados científicos enunciados como “O universo é infinito”, “A terra é plana”, “Um bóson de Higgs é uma partícula subatômica”, “A luz sofre ação gravitacional”, “Hoje é quarta-feira”, “Todo cisne é branco”. Não seriam considerados científicos enunciados como “O Real é Racional e o Racional é Real”, “A mente é substância pensante”, “O universo é finito”.
Quanto mais falseável for um enunciado, mais arriscado e informativo ele será. Nesse sentido, o enunciado “chove hoje em Brasília” é mais falseável que “chove hoje em algum lugar do Brasil”, dada a sua maior precisão. Tais enunciados devem ser preferíveis, quando comparados aos considerados mais vagos. Nem sempre, no entanto, é simples mensurar enunciados, como alerta o próprio Popper (1972), ao tratar do problema da comensurabilidade.
A proposta de Popper (1972) se contrapõe, em grande medida, à perspectiva epistemológica dos pensadores do Círculo de Viena. Para Popper (1972), o progresso ocorre no processo de tentativa e erro, de conjecturas e refutações, não no acúmulo de dados. Abandonar hipóteses incapazes de serem corroboradas significa, em alguma medida, afastar-se do falso, embora não existam garantias lógicas de que a próxima hipótese seja verdadeira e que ela esteja mais próxima da verdade do que da falsidade.
Críticos à posição popperiana, como Kuhn, defendem não ser as hipóteses que estão na berlinda. A história mostra que os adeptos de uma corrente não costumam abandonar suas teorias diante do primeiro contraexemplo, nem sequer nos primeiros. De início, diante de um obstáculo à teoria, as desconfianças são sempre, por exemplo, em relação aos pesquisadores, à precisão dos instrumentos utilizados, aos cuidados dos experimentadores. Os experimentos com o acelerador de partículas LHC realizados recentemente podem depor a favor de Kuhn nesse sentido.
Tanto o Falsificacionismo quanto o Empirismo Lógico descartam os enunciados da metafísica como científicos. Para os integrantes do círculo de Viena, a Metafísica, em particular, o Idealismo Alemão, é o seu principal alvo de ataque. Conforme ilustra Ayer (1936), enunciados deste tipo são destituídos de sentido, não podendo ser verdadeiros ou falsos, não dizendo nada sobre o mundo, estando fora do corpo de conhecimento.
Apesar de considerar enunciados da metafísica não científicos, Popper não os desconsidera do mesmo modo que os empiristas lógicos. Enunciados metafísicos, com o passar do tempo, podem, inclusive, vir a fazer parte do escopo científico, não mais amparados em pressupostos meramente especulativos, mas na experiência empírica. Este é o caso do atomismo grego, proposto inicialmente por Leucipo ou Demócrito que, posteriormente, alcançou seu estatuto científico nas ciências naturais modernas. O alvo de Popper são as pseudociências, aquelas áreas que parecem produzir enunciados científicos, mas na verdade não o fazem. Tais enunciados, como os da astrologia, por exemplo, são infalsificáveis, dada a sua vagueza, superficialidade, imprecisão.
As duas vertentes em questão, Positivismo Lógico e Falsificacionismo, também se preocupam, de alguma forma, em avaliar e normatizar os parâmetros de demarcação entre a ciência e a não-ciência. Ademais, em ambas perspectivas, a análise do funcionamento científico centra-se, principalmente, na avaliação de enunciados ou sistemas de enunciados.
Assim como Kuhn, Lakatos entende que uma explicação adequada do funcionamento da ciência precisa adotar uma perspectiva historicista e estrutural, contrariando as duas abordagens acima citadas.
Para Lakatos, a atividade científica se desenvolve a partir de programas de pesquisa. Eles são diretrizes metodológicas que norteiam as decisões referentes à construção e modificação de teorias, que não são considerados elementos isolados, mas pertencentes a um dado programa. Os programas de pesquisa possuem um núcleo rígido composto por um conjunto de hipóteses e princípios convencionalmente aceitos sistematicamente. Eles são considerados “irrefutáveis” e necessários à atividade científica no programa. Assim, por exemplo, parte do núcleo rígido do programa de pesquisa de Copérnico, destaca Lakatos (1989, p. 234), é a “[...] proposição de que as estrelas constituem o sistema de referência fundamental para a física”. O grupo de cientistas que adota um programa de pesquisa não descarta o elemento que compõe o seu núcleo rígido, mesmo quando fatos problemáticos são constatados contra eles, como, por exemplo, refutações de teorias, através de fenômenos que os contrariem ou de previsões que não se cumprem.
A heurística negativa do programa estabelece que certos caminhos sejam evitados por uma teoria, proibindo que, frente a qualquer caso problemático, seja declarado falso o núcleo rígido. Desse modo, tal núcleo é preservado das refutações, em razão da existência de algumas hipóteses auxiliares, constituintes dos assim chamados cinturões protetores. Existem momentos em que os cientistas se deparam com anomalias e refutações que levam a modificações nos cinturões protetores; a denominada heurística positiva orienta, parcialmente, as modificações que devem ser feitas no cinturão protetor do programa a fim de mantê-lo funcionando adequadamente.
Como visto, Kuhn, assim como Lakatos, também adota uma postura estruturalista. Entretanto, a abordagem de Kuhn parece apresentar algumas vantagens em relação às outras propostas elencadas acima. Na visão de Kuhn, a atividade científica envolve muito mais do que teorias e conjuntos de enunciados passíveis de verificação ou de refutação empírica. O funcionamento e o desenvolvimento da ciência envolvem elementos psicológicos, pressupostos metafísicos e metodológicos. Na visão de Kuhn, as propostas dos positivistas lógicos e de Popper, assim, possuem uma concepção de progresso científico equivocado, dado o seu normativismo, no caso de Popper, e falta de um estruturalismo, tanto em Popper quanto nos empiristas. Entendemos que estes dois aspectos são elementos favoráveis a Kuhn quando comparado às duas perspectivas epistemológicas em voga.
No tocante à abordagem de Lakatos, cremos que uma de suas desvantagens em relação a Kuhn é a sua compreensão de que o processo de passagem de um programa de pesquisa para outro é um processo basicamente racional. Ademais, Lakatos parece não ser um historicista stricto senso, uma vez que prescreve uma forma ideal de se fazer ciência.
Aceitar a perspectiva revolucionária de Kuhn significa, de alguma forma, entender a falibilidade do conhecimento. Uma vez assegurado que nossas teorias, visão de mundo, métodos, metodologias estão ultrapassados, estamos dispostos a substituí-los por outros com maior e melhor poder de previsão, de alcance explicativo. Isso garante efetivamente o progresso científico, um conhecimento do mundo cada vez mais apurado, objetivo, neutro, imparcial ou verdadeiro? Tais questões controversas deixamos em aberto neste texto.
Referências
ALVES, M. A. Reflexões acerca da natureza da ciência: comparações entre Kuhn, Popper e Empirismo Lógico. Kínesis, Marília, v. 5, p. 193-211, 2013.
AYER, A. J. Language, truth and logic. London: V. Gollancz, 1936.
BORRADORI, G. A filosofia americana: Conversações com Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto, Rorty, Cavell, MacIntyre e Kuhn. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
HANSON, N. Observação e Interpretação. In: Filosofia da Ciência. Trad. Leonidas Hegenberg, Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1975.
HEMPEL, C. G. Problemas y cambios en el criterio empirista de significado. In: AYER, A. El positivismo lógico. México: Fondo de Cultura Económica, pp. 115-138, 1965.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2011a.
KUHN, T. A tensão essencial: estudos selecionados sobre tradição e mudanças científicas. Tradução de Marcelo Amaral Penna-Forte. São Paulo: Editora UNESP, 2011b.
LAUDAN, L. Science and values: the aims of science and their role in scientific debate.
Berkeley: University of California Press, 1984.
LACEY, H. Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial, 1998.
LAKATOS, I. O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A. (Org.). A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979.
LAKATOS, I. La metodología de los programas de investigación científica. Madrid: Alianza, 1989.
POPPER, K. R. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 1972.
________________________________________________________________________________
Contribuição dos(as) autores(as): Alan Rafael Valente e Marcos Antonio Alves participaram da discussão, redação e revisão do artigo. Os(As) autores(as) aceitaram e aprovaram a versão final do texto".
________________________________________________________________________________________________
Autor(a) para correspondência: Marcos Antonio Alves. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Av. Hygino Muzzi Filho, 737 – Mirante, 17.525-900, Marília – SP, Brasil. marcos.a.alves@unesp.br