Resumo: Em Aristóteles, o processo de constituição dos seres naturais envolve um conjunto de causas, delimitadas de acordo com a teoria da matéria e forma. A matéria é causa enquanto suporte composicional pelo qual os seres são gerados; e a forma é causa enquanto fator responsável pelas características essenciais do ente natural, bem como por originar uma série de movimentos coordenados, que irá resultar na composição substancial. Neste artigo, pretento, em um primeiro momento, argumenar no sentido de que entre os dois tipos de causalidades fundamentais, isto é, por um lado, (i) aquele associado à natureza material, e, por outro, (ii) à natureza formal, haveria uma primazia explanatória relativamente ao segundo, pois em uma explicação mais completa, envolvendo esses dois aspectos causais, a causalidade material seria subordinada e subsumida pela causalidade em termos formal-finais. Em um segundo momento, procurarei estabelecer um contraste entre as causas naturais e a causa espontânea, examinando aos casos nos quais as relações causais não ocorrem devido a uma determinação teleológica, mas por uma mera conjunção de fatores concomitantes. A geração espontânea é um exemplo de eventos como este, pois, neste caso, a constituição do organismo não seria presidida por uma causalidade de tipo formal-final, a qual administrasse um conjunto de séries causais, interdependentemente relacionadas entre si.
Palavras-chave:Causa naturalCausa natural,Causa espontâneaCausa espontânea,MatériaMatéria,FormaForma,TeleologiaTeleologia,AristótelesAristóteles.
Abstract: In Aristotle, the process of constitution of natural beings involves a set of causes, delimited according to the theory of matter and form. Matter is cause as a compositional support by which beings are generated; and form is cause as a factor responsible for the essential characteristics of the natural being, as well as for giving rise to a series of coordinated movements, which will result in substantial composition. In this article, I intend, at first, to argue that between the two types of fundamental causalities, that is, on the one hand, (i) that associated with material nature, and (ii) on the other, formal nature, there would be an explanatory primacy relative to the second, because in a fuller explanation involving these two causal aspects, material causality would be subordinated and subsumed by causality in formal-final terms. In a second moment, I’ll try to establish a contrast between natural causes and spontaneous cause, examining cases in which causal relationships do not occur due to a teleological determination, but by a mere conjunction of concomitant factors. Spontaneous generation is an example of events such as this, for in this case the constitution of the organism would not be presided over by a formal-final causality which administered a set of interdependently related causal series.
Keywords: Natural cause, Spontaneous Cause, Matter, Form, Teleology, Aristotle.
Artigos
Causalidade natural e espontaneidade em Aristóteles
Natural causality and spontaneity in Aristotle
Recepção: 13 Agosto 2019
Aprovação: 03 Outubro 2019
No início do Livro I da Física, Aristóteles determina as condições do conhecimento científico: “julgamos compreender cada coisa quando reconhecemos suas causas primeiras e seus princípios” (Física, II.1, 184a12-14). É condição para o conhecimento sabermos a respeito dos princípios e das causas. A definição de natureza enquanto princípio interno de movimento (Física, II.1, 192b20-23) apresenta dois sentidos: o primeiro é o princípio material, que consiste nas interações das propriedades elementares da matéria consoante uma necessidade absoluta, e o segundo é o princípio formal, que regula as interações elementares da matéria em vista de um acabamento.
Ao regular os movimentos necessários da matéria elementar, a fim de estabelecer a organização estrutural requisitada pelos organismos vivos – os quais são, para Aristóteles, os exemplos paradigmáticos de substâncias naturais - capacitando-os ao exercício de determinadas funções vitais, a forma, enquanto causa do ente natural, funciona como o princípio interno de movimento. Assim, o movimento que caracteriza o ente natural comportaria, portanto, uma inter-relação de causas, envolvendo os princípios material e formal.
A seguir, procurarei desenvolver uma investigação a respeito das causas naturais em Aristóteles, ou a respeito da teoria das quatro causas, enquanto condição do conhecimento científico para, logo em seguida, tratar das noções de acaso e de espontâneo, uma vez que elas nos permitem elaborar uma análise comparativa de caráter contrastante relativamente aos processos de contituição dos seres naturais, em torno do exame aristotélico acerca dos organismos vivos.
Aristóteles delimita quatro tipos ou classes de causas (aitiai) naturais: (i) o item imanente a partir de que algo vem a ser (to ex hou gignetai ti enyparchontos.Física, II.3, 194b26)) ou aquilo de que procede ou de que se constitui (to ex hou .Física, II.3, 195a19)); (ii) o logos .Física, II.3, 194b26) ou aquilo que o ser é (to ti ên einai .Física, II.3, 195a20)); (iii) aquilo de onde procede o início do movimento ou mudança (hothen hê arché tês kinêseôs .Física, II.3, 195a23-24)) ou aquilo que moveu (to kinêsan .Física, II.3, 198a24)); (iv) aquilo em vista de quê (to hou heneka .Física, II.3, 194b33)) ou o fim/acabamento (Física, II.3, to telos .Física, II.3, 195a23-24)). No início do capítulo 3 de Física II, Aristóteles faz menção às quatro causas da seguinte maneira:
De um modo, denomina-se “causa” o item imanente de que algo provém, por exemplo, o bronze da estátua e a prata da taça, bem como os gêneros dessas coisas; de outro modo, denomina-se “causa” a forma e o modelo, e isso é a definição do “aquilo que o ser é” e seus gêneros (por exemplo: da oitava, o “dois para um” e, em geral, a relação numérica), bem como as partes contidas na definição. Além disso, denomina-se “causa” aquilo de onde provém o começo primeiro da mudança ou do repouso, por exemplo, é causa aquele que deliberou, assim como o pai é causa da criança e, em geral, o produtor é causa do produzido e aquilo que efetua a mudança é causa daquilo que se muda. Além disso, denomina-se “causa” como o fim, ou seja, aquilo em vista de quê, por exemplo, do caminhar, a saúde; de fato, por que caminha? Dizemos “a fim de que tenha saúde” e, assim dizendo, julgamos ter dado a causa.. (Física, II.3, 194b23-35)
Estes quatro tipos ou classes de causas naturais receberam dos comentadores antigos uma nomenclatura que se estabeleceu no vocabulário filosófico. Respectivamente aos itens elencados acima, a terminologia que se consolidou é a seguinte: (i) causa material (hylikon aition); (ii) causa formal (eidikos aition); (iii) causa eficiente (poiêtikon aition); (iv) causa final (telikon aition). Para facilitar a exposição, adotaremos esta terminologia, embora Aristóteles nunca a tenha utilizado.
O caso exemplificador de causa material é a matéria dos artefatos. Aquilo a partir de que o serrote vem a ser é, por exemplo, o ferro. Assim, o ferro corresponde à causa material do serrote. Esta causa permite explicar porque o serrote é pesado. Se alguém pergunta: por que o serrote é pesado? Pode-se responder porque é constituído de ferro, de modo que a propriedade “ser pesado” é explicada pela causa material. Quanto aos organismos vivos, a causa material permite explicar, por exemplo, porque o esôfago tem a propriedade de se dilatar. O esôfago tem a propriedade de se dilatar por ser carnoso e, portanto, mole e flexível (Partes dos Animais, III.3, 664a32-35). O fato de o esôfago ser carnoso é a causa material da capacidade de dilatar-se.
A causa formal refere-se àquilo que permite dizer o que algo é. Trata-se daquilo que faz com que algo seja aquilo que é e não outra coisa, em outros termos, trata-se da essência de determinada entidade. Por exemplo, a causa formal do animal é certa disposição, ordem ou arranjo material (carne, ossos, coração, olhos, ouvidos etc.) de modo a proporcionar sensação.. A causa formal explica porque o animal possui a propriedade da sensação devido a certo arranjo complexo de propriedades requisitadas por aquilo que faz do organismo o que ele é, ou seja, a sua essência (ousia).
A causa eficiente diz respeito àquilo a partir do qual ocorre um movimento. Esta causa pode se aplicar a um movimento particular, mas a noção aristotélica “daquilo de onde provém o começo primeiro da mudança” geralmente abrange uma série de movimentos coordenados que se reporta a uma origem comum. O caso da geração do animal fornece um exemplo. O esperma do macho, ao fecundar a matéria menstrual da fêmea (katamenia), desencadeia uma série de movimentos, conduzindo o desenvolvimento de um novo indivíduo (Geração dos Animais II.1, 734b7-12; Geração dos Animais, II.3, 737a20-24). Neste sentido, a causa eficiente explica a propriedade de a prole vir a ser reproduzida através dos movimentos que o sêmen masculino imprime ao fluido menstrual no ato da concepção, provocando com isto, a formação do embrião.
Por último, a causa final reporta-se àquilo em vista de quê ou o fim para o qual algo vem a ser. Ela explica, por exemplo, porque a forma dos organismos determina as condições necessárias para que o animal adquira a faculdade que o torna apto à sensação: os animais possuem sensação a fim do proteger-se de predadores, de conseguir alimentos, de evitar a dor e procurar o prazer etc..
A noção de telos(fim) comporta ao menos dois sentidos: (i) o escopo de uma ação ou da constituição seja de um produto técnico, seja de um ente natural, por meio do qual se determinam condições necessárias a sua realização; (ii) o acabamento em função do qual algo é completamente determinado, de modo que nada mais é preciso ser acrescentado. (ANGIONI, L., 2009, p. 261). Considerando o exemplo anterior, o telos do animal refere-se (i) ao escopo pelo qual as partes orgânicas vêm a ser determinadas, e (ii) o organismo plenamente desenvolvido. Assim, o organismo como um todo pode ser considerado, sob aspectos distintos, como (i) escopo e (ii) acabamento. No caso da técnica, uma estátua, por exemplo, sob um aspecto, apresenta-se como algo a ser produzido e, sob outro aspecto, como acabamento, na medida em que é confeccionada. Estes dois aspectos referem-se, em um caso, a meta a ser atingida pelo escultor, isto é, a produção da estátua e, em outro, ao resultado final desta produção.
Neste sentido, o fim entendido como meta pareceria, então, atribuir certo tipo de psicologização à teleologia na natureza, pois é como se, de algum modo, a natureza concebesse o escopo a ser alcançado através do processo pelo qual o ente natural vem a ser gerado. Contudo, Aristóteles declara: “É absurdo julgar que não há vir a ser em vista de algo quando não se percebe que aquilo que move tenha deliberado” (Física, II.8, 199b26-27). Para Aristóteles, a caracterização dos processos naturais de tipo teleológico não supõe a idéia de uma psicologização da natureza ou de certo antropocentrismo, pois não é preciso supor que haja deliberação envolvida na natureza, mesmo nela estando presente o “em vista de quê”. Se há, entre os entes naturais, uma meta a ser atingida, ela não envolve qualquer tipo de conscientização ou discernimento, tal como ocorre na produção técnica..
No século XX, houve muitos esforços no sentido de compatibilizar explicações teleológicas e explicações material-reducionistas.. Por exemplo, segundo uma explicação teleológica, poder-se-ia dizer que a andorinha constrói o seu ninho em vista da proteção ou que a aranha tece a sua teia a fim de garantir o seu alimento. Mas, de acordo com uma visão compatibilista, que assume uma conciliação entre explicações teleológicas e materialistas, as explicações de caráter teleológicas poderiam ser reformuladas, levando-se em conta apenas os aspectos estritamente materiais. Desta forma, o comportamento e a atividade ordenada da andorinha ou da aranha poderiam se restringir a explicações em termos neurofisiológicos, de herança genética, ou seja, explicações que recorrem exclusivamente às propriedades materiais envolvidas no processo. No entanto, cumpre notar que Aristóteles não admitiria um compatibilismo. como este (ANGIONI, L., 2011, pp. 4-9). Aristóteles afirma que “há várias causas para uma mesma coisa” (Física, II.3, 195a4-5).. Por um lado, se Aristóteles diz que há várias causas para determinado sujeito X, o qual comporta certas características ou propriedades, ele pretende dizer que, para cada causa, atribui-se uma característica ou propriedade distinta em relação a um mesmo sujeito X.
Consideremos, por exemplo, o caso do esôfago, mencionado acima. Como mencionado, por meio da causa material, é possível explicar porque o esôfago apresenta a propriedade de se dilatar. No entanto, através da causa final, é possível explicar outra propriedade que o esôfago exibe, a saber, ser capaz de conduzir o alimento da boca até o estômago. Por ser carnoso (característica material) e, portanto, mole e flexível, o esôfago possui a propriedade de se dilatar. Agora, por funcionar como uma espécie de conduto envolvido no processo de nutrição (característica formal-final), nos animais que apresentam pescoço, o esôfago possui a propriedade de conduzir o alimento da boca até o estômago (Partes dos Animais, III.3, 664a21-23). Poderíamos reformular o argumento através de perguntas e respostas. (i) Causa material: por que o esôfago dilata-se? Porque é carnoso. (ii) Causa final: por que o esôfago conduz o alimento da boca até o estômago? Porque ele serve como uma espécie de conduto, envolvido no processo nutritivo de certos animais.
Por outro lado, se, com a afirmação: “há várias causas para uma mesma coisa”, Aristóteles se refere não a um mesmo sujeito, o qual comporta certas propriedades, mas a diversas causas pelas quais se atribui um mesmo efeito a determinado sujeito, ele, então, pretenderia dizer que uma única propriedade admite explicações distintas. Para esclarecer esta possível interpretação, voltemos ao exemplo do esôfago.
A causa material explica porque o esôfago apresenta a propriedade de se dilatar. O esôfago dilata-se por ser carnoso e, portanto, mole e flexível. No entanto, esta mesma propriedade pode ser explicada por outro tipo de causa, a saber, a causa final. Se indagarmos: por que, afinal, o esôfago é mole e flexível? Respondemos: é mole e flexível a fim de dilatar-se, permitindo o alimento ser conduzido da boca até o estômago. Deste modo, ambas, a causa material e a causa final, explicam a propriedade que o esôfago tem de dilatar-se. Enquanto a causa material explica esta propriedade pelo simples fato de o esôfago ser carnoso, sem mais especificações, a causa final, pelo fato de ser carnoso adicionado a uma cláusula: “a fim de que permita a passagem do alimento da boca até o estômago”.
Apesar de a causa material e a causa final serem capazes de explicar um mesmo efeito ou uma mesma propriedade atribuída a determinado sujeito, isso não significa que haja, em Aristóteles, uma espécie de compatibilismo entre as explicações causais, de modo que uma e outra causa, sob aspectos distintos, conduzisse, em última instância, a descrições igualmente satisfatórias do ponto de vista explanatório. A explicação pela causa material é de certo modo restrita. Numa descrição explanatória mais adequada, a explicação pela causa material subordina-se à explicação pela causa formal-final: o esôfago dilata-se por ser carnoso, mas é carnoso porque, ao dilatar-se, permite a passagem do alimento da boca até o estômago.
Ainda com relação às causas naturais, em Física II.7 (198a22-24), Aristóteles afirma que a causa formal, a causa eficiente e a causa final, muitas vezes, convergem para uma coisa só. Em certos contextos, é possível atribuir a uma mesma coisa estas três causas. No entanto, pensamos que Aristóteles não pretende, com isto, sustentar a idéia de que haja uma redução entre elas.
Por exemplo, em As Partes dos Animais, Aristóteles afirma que a alma (psuché), isto é, a forma do corpo natural que em potência possui vida (De Anima, II.1, 412a19-21), apresenta-se como causa formal, causa eficiente e causa final:
Compete ao estudioso da natureza afirmar e conhecer a respeito da alma [...], e também lhe compete conhecer o que é a alma [...] e os concomitantes que lhe sucedem segundo a sua essência deste tipo – principalmente por que a natureza se diz de dois modos, uma como matéria e a outra como essência. E esta natureza [a alma] é também como movente e como acabamento. (Partes dos Animais, I.1, 641a22-27)
A alma atua (i) como causa formal, na medida em que determina como necessária certa conformação material, capacitando o organismo vivo ao exercício de algumas funções, através das quais o definimos; (ii) como causa final, na medida em que administra o arranjo dos movimentos que engendram essa conformação material, permitindo ao organismo nutrir-se, reproduzir-se etc.; e, enfim, (iii) como causa eficiente, na medida em que promove os movimentos pelos quais o ser vivo vêm a ser gerado e vêm a se desenvolver. Assim, relativamente ao ser vivo, a alma funciona como causa formal, final e eficiente. Mas, não é, estritamente, a mesma coisa que recebe a designação destas três causas.
No que concerne à reprodução intra-específica, a forma do progenitor é idêntica à da prole10. Neste caso, a causa formal, correspondendo ao “aquilo que é” (to ti én einai. to ti esti) de determinada entidade, é a mesma tanto para aquele que gera, quanto para aquele que é gerado. No entanto, a causa eficiente é distinta: com relação ao progenitor, aquilo de que provém o movimento é a forma do indivíduo que o gerou; com relação à prole, a forma do progenitor, e assim sucessivamente. Por outro lado, a causa final, ou seja, aquilo em vista de quê é a forma do indivíduo gerado e não a forma do progenitor. Deste modo, quando Aristóteles diz que a causa formal, a causa eficiente e a causa final, muitas vezes, convergem para uma coisa só, trata-se de algo especificamente (eidei) único, porém não particularmente.
A definição de natureza como princípio interno de mudança estabelece uma inter-relação causal entre matéria e forma. Os processos naturais envolvem uma causalidade de tipo teleológica. A forma, assumida como telos, administra uma articulação entre causas, na qual é necessariamente requisitado certo arranjo estrutural de propriedades, a partir dos componentes materiais que constituem os entes naturais. No entanto, há casos nos quais a relação entre causas não acontece através de uma determinação teleológica, mas por uma mera conjunção de fatores concomitantes. Para Aristóteles, quando isto ocorre, é por que algo veio a ser por acaso ou por espontaneidade. Deste modo, o acaso (tychê) e o espontâneo (automaton) representam instâncias em relação às quais é possível estabelecer um contraste com os fatos que são conforme a natureza (kata physin).
A diferença entre o acaso e o espontâneo é a seguinte: o espontâneo é uma noção mais ampla, contendo os casos que se diz ocorrerem por acaso (Física, II.6, 197a36-7), isto é, os eventos que se restringem ao domínio da ação humana, praticados por aqueles que são capazes de deliberar e agir através de discernimento. Neste sentido, as séries de eventos nas quais estão envolvidos, exclusivamente, os seres inanimados, os animais incondicionalmente privados de raciocínio e as crianças ficam excluídos da categoria mais específica de coisas envolvidas em eventos casuais (Física, II.6, 197b6-7), pois a eles não compete a escolha de uma ação racional, a qual é previamente determinada pelo exame das condições possíveis a sua realização.
Por exemplo, um homem vai ao mercado com o objetivo de comprar alimento. Mas, ao chegar ao recinto, encontra um de seus devedores. Se soubesse, de antemão, que o devedor estaria no mercado, ele poderia ter ido com dois objetivos: o de comprar alimento e o de cobrar o ressarcimento da dívida. Acontece que o credor não foi até lá com vistas a encontrar o devedor (Física, II.5, 196b33-6). No entanto, se um observador ignorasse a intenção prévia do credor, ele poderia facilmente concluir que o indivíduo foi até ao mercado justamente para receber o que lhe é devido. Porém, esta conclusão seria falsa. A decisão do homem de ir ao mercado teve como causa interna a sua deliberação, a saber, o objetivo de comprar alimento, mas, ao encontrar, por acaso, o devedor, acrescentou-se uma causa externa, concomitante à primeira, a saber, obter a sua indenização. Deste modo, os eventos que sucedem por acaso apresentam as seguintes características: (i) poderiam ter ocorridos em vista de algo, mas, de fato, (ii) não ocorreram; (iii) procedem de causas externamente relacionadas entre si.
Estas mesmas características atribuem-se aos eventos espontâneos, mas com relação aos eventos nos quais estão envolvidos (i) ações praticadas por seres humanos através de escolha por um exame preliminar, e (ii) ações que poderiam ser produzidas por meio de ponderação ou discernimento prévio, mas não foram, são considerados como eventos mais adequados ao domínio específico dos processos denominados casuais. Como já fora indicado, a esfera da qual fazem parte os fatos que ocorrem por espontaneidade é abrangente, envolvendo os seres inanimados e os seres vivos de um modo geral. A título de exemplo, consideremos o caso da geração espontânea.
A geração espontânea corresponde a um processo no qual uma série de fatores meramente materiais, sem a intervenção prévia de uma forma “buscando” auto gerar-se, são responsáveis pela emergência de um ser vivo.
Todos os [sc. animais] que se formam deste modo [sc. por geração espontânea], tanto na terra como na água, geram-se aparentemente em meio a um processo de putrefação e mescla de água de chuva. [...] Não se gera nada da putrefação, mas da cocção. A putrefação e o podre são um resíduo da cocção. (Geração dos Animais, III.11, 762a10-12).
É possível inferir desta passagem da Geração dos Animais, que a ocorrência da geração espontânea depende, ao menos, da conjunção de três fatores: (i) matéria em putrefação, (ii) água de chuva, (iii) certa intensidade de calor capaz de desencadear o processo de cocção. Alguns dos fatores elencados acima não estão manifestos na passagem em questão, porém, estão subentendidos. Os textos de Aristóteles, por serem bastante sintéticos e lacunares, exigem do leitor um olhar analítico e criterioso. No trecho citado, Aristóteles diz que os animais formados por geração espontânea geram-se em meio a um processo de putrefação e mescla de água de chuva. Parece não haver dúvidas quanto ao item (ii), isto é, água de chuva. Já a condição (i), matéria em putrefação, pode ser inferida do simples fato de que o processo de putrefação não ocorre na ausência de matéria.Por outro lado, quando Aristóteles diz: “não se gera nada da putrefação, mas da cocção”, deduz-se o item (iii), isto é, certa concentração de calor capaz de desencadear o processo de cocção, visto que, para que haja cocção, é necessária certa intensidade de calor.
A matéria em putrefação, com determinadas propriedades, sob o efeito de uma causa externa, ou seja, do calor solar ou de certa concentração de calor ambiente, passa a adquirir uma propriedade ., por meio do processo de cocção. Por outro lado, a matéria em putrefação, sob a ação de outra causa externa, ou seja, da água da chuva, vem a contrair a propriedade ., através do sopro vital (pneuma) contido na água11. Uma vez que as propriedades . e . são mescladas na matéria putrefata, inicia-se a formação de um novo ser vivo, a partir de um processo espontâneo.
Caracteriza-se por um processo espontâneo porque a alteração da matéria putrefata, que resulta na propriedade ., representa uma série causal per se, independentemente da alteração que resulta na propriedade ., à qual corresponde uma outra série causal. É por concomitância (kata symbebekos) que se estabelece o entrecruzamento destas duas séries causais, culminando na geração de organismos mais ou menos complexos, que podem ser certos tipos de plantas ou de animais, seja estes terrestres ou aquáticos, sanguíneos (ex. uma espécie de tainha (kestreús), alguns pertencentes à família das enguias (énchelys) (Geração dos Animais, III.11, 762b24-3)) ou não sanguíneos12 (ex. pulgas (psýlla), moscas (myîa) etc. (Geração dos Animais, I.16, 721a8)). Sendo assim, no processo de geração espontânea, a constituição do organismo vivo não é teleologicamente determinada por uma forma, a qual preside as concatenações das séries causais sob uma relação de interdependência.
Ademais, a constituição de um organismo vivo através da geração espontânea não ocorre sempre, nem “no mais das vezes” (hôs epi to poly)13. O conjunto das circunstâncias sem as quais não há geração espontânea depende da combinação de certos fatores. Por exemplo, conforme sugere a passagem supracitada: (i) matéria em putrefação + (ii) água da chuva (contendo o pneuma) + (iii) determinada intensidade de calor. No entanto, a conjunção destes fatores se dá de um modo intermitente, pois, aqui, não está presente nenhum fator antecedente regulando esta conjunção como necessária a fim de realizar a geração de um organismo, como acontece nas gerações sexuadas, em que a forma do progenitor regula o processo14. Deste modo, o processo de geração por espontaneidade poderia ter sido uma causa em vista do reproduzir-se (os seres formados a partir de geração espontânea não se reproduzem, mas são - dadas as condições favoráveis - continuamente produzidos), como acontece nos casos de geração sexuada, mas não foi o caso, pois não havia um princípio anterior determinando as devidas concatenações das séries causais responsáveis pela formação do ser vivo.
A geração espontânea, então, reúne todos os requisitos pelos quais Aristóteles formula uma definição geral para o acaso e o espontâneo:
Ambos – o acaso e o espontâneo – são causas por concomitância, no domínio das coisas que não admitem vir a ser nem de maneira simples, nem no mais das vezes, e são causas daquilo que poderia vir a ser em vista de algo. (Física, II.5, 197a32-5)
As características gerais que definem o acaso e o espontâneo nos permitem estabelecer um contraste entre os eventos casuais e os eventos naturais.
O conjunto das séries causais que promovem a constituição de um ente natural, ao contrário de ocorrer por concomitância, determina-se “em si mesmo” (kath’ hauto). Isto quer dizer que, por exemplo, a forma do organismo, em si mesma, é responsável por uma articulação coordenada de causas a partir das quais o ser vivo vem a ser em efetividade, não dependendo, para tanto, do entrecruzamento concomitante de causas extrinsecamente relacionadas entre si. Além do mais, os processos naturais pertencem ao domínio das coisas que sucedem no mais das vezes, isto é, que sucedem de um modo regular, e não de modo intermitente. Por fim, os entes naturais vêm a ser autenticamente em vista de algo, distintamente daquilo que procede do acaso ou da espontaneidade, que poderia vir a ser em vista de algo, mas que, de fato, não resultou em algo teleologicamente determinado15.
Outra distinção estabelecida entre os eventos naturais e os eventos espontâneos ou casuais é que estes são posteriores àqueles (Física, II.6, 198a9-10). Esta conclusão é inferida de uma premissa geral, assumida por Aristóteles, a qual assevera que os fatos cujas causas são por concomitância (kata symbebekos) vêm a ser posteriormente àquilo que é em si mesmo (kath’ hauto) causa (Física, II.6, 198a8-9). Por conseguinte, dado que, por exemplo, a forma do ser vivo é em si mesma causa da compleição orgânica, os seres vivos gerados por natureza, segundo um processo teleológico, são anteriores àqueles gerados por espontaneidade, pois estes, como vimos, decorrem através de uma conjunção de causas concomitantes, não havendo um fator prévio pelo qual estas causas viessem a ser intrinsecamente coordenadas em vista de um fim. Assim, o organismo gerado por espontaneidade vem a se constituir de acordo com uma necessidade absoluta, ou sem mais .ananke haplos), isto é, pela simples confluência de causas concomitantes, de modo que, para Aristóteles, os processos teleológicos precedem aos processos nos quais está envolvido este tipo de necessidade.
No final do capítulo 6 do livro II da Física Aristóteles afirma: “ainda que o espontâneo fosse causa do céu, a inteligência16 e a natureza necessariamente seriam causas anteriores de diversas outras coisas e o Todo” (198a10-3)17. A tese a que Aristóteles se refere neste trecho teria sido sustentada pela tradição atomista, que tem como maior expoente Demócrito. Para os atomistas, a organização inicial do cosmos procede a partir de processos espontâneos, nos quais certos átomos agregam-se ou não a outros em função de sua configuração, de sua dimensão (PELLLEGRIN, P., 1993, p. 14, e pg. 37, nota 9). Contrariamente a esta concepção, Aristóteles sustenta que, por serem regulares, as causas per se devem ser anteriores às causas per accidens. Deste modo, mesmo que o céu (ouranos) fosse um resultado do espontâneo18, como defendem os atomistas, ainda assim os processos nos quais a necessidade - proveniente das propriedades materiais - subordina-se a uma causalidade teleológica antecedem aos processos regidos exclusivamente por uma necessidade absoluta.
É bem possível que, por estas razões, Aristóteles não tenha confirmado a hipótese segundo a qual haveria, a partir de geração espontânea, uma origem comum a todos os animais. Esta hipótese é mencionada na seguinte passagem da Geração dos Animais:
No que diz respeito à geração dos homens e dos quadrúpedes, poder-se-ia supor, se é que alguma vez nasceram da terra como alguns afirmam19, que nasciam de um destes dois modos: ou pela formação de uma larva, em um princípio, ou de ovos. [...] É evidente que se houvesse um princípio de geração para todos os animais, por lógica seria um destes dois [larva ou ovo]. (Geração dos Animais, III.1, 762b28-763a5)
De acordo com Aristóteles, se os animais fossem originados a partir de circunstâncias estritamente materiais, como alguns supõem20, então eles necessariamente teriam de ser engendrados ou por meio (i) de larvas, ou por meio (ii) de ovos. No caso de procederem de larvas, obteriam o alimento para seu crescimento no interior de si mesmos. Já no caso de procederem de ovos, obteriam o alimento de uma parte do embrião, como ocorre entre os ovíparos (oiotóka) (Geração dos Animais, II.1,732a29-32; Geração dos Animais, III.11, 762b31-4). Por outro lado, o caso da geração relativa à classe dos vivíparos (zootóka) poderia ser descartado, pois não é provável que o alimento flua em meio às condições materiais antecedentes à geração espontânea, de um modo semelhante àquele do alimento que flui da gestante até ao feto, através do cordão umbilical (Geração dos Animais, III.11, 762b35-763a1).
Dentre as duas alternativas plausíveis, é menos razoável aquela correspondente à formação germinal proveniente de ovos. Para Aristóteles, não se observa este tipo de reprodução no âmbito da geração espontânea, mas no que diz respeito à reprodução da qual se originam larvas sim (Geração dos Animais, III.11, 763a6-7). De fato, todos os animais não sanguíneos e certos sanguíneos gerados espontaneamente, nascem em forma de larvas (Geração dos Animais, III.11, 762b22-4). Assim, caso houvesse, por geração espontânea, uma origem comum a todos os animais, ela seria atribuída ao germe em estado larval.
Entretanto, Aristóteles não corrobora tal suposição. Sinal disto é que ele não discute a questão de saber se o germe em estado larval é de um único tipo, ou diverso para cada espécie animal. Mas, o fato é que, para Aristóteles, aquilo que resulta de processos espontâneos vem a ser posteriormente àquilo que resulta de processos teleologicamente determinados, de modo que não poderia haver uma origem comum a todos os animais a partir de geração espontânea. Se há um princípio comum aos animais, pensamos ser mais acertado dizer que é a forma do vivente, por meio da qual os diversos modos de constituição orgânica, de acordo com as várias disposições dos componentes materiais, vêm a ser estruturados em vista de um conjunto articulado de funções, ou atividades características.