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Recepção: 27 Agosto 2019
Aprovação: 25 Novembro 2019
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v20i1.1354
Resumo:
O presente artigo pretende evidenciar o valor atribuído à arte, em especial à música, por Arthur Schopenhauer. Será articulada a relação do autor com a filosofia de Fichte e Schelling, contextualizando o seu pensamento com o movimento romântico alemão. Ademais, por meio da apresentação da sua hierarquia estética, serão apontados alguns aspectos fundamentais do autor de O mundo como vontade e representação, na medida em que essa dualidade é apontada também ao referir-se aos diferentes estilos artísticos.
PALVRAS-CHAVE: Arte; Música; Schelling; Schopenhauer; Vontade.
THE PRIMACY OF MUSIC IN SCHOPENHAUER
Abstract: This article aims to highlight the value attributed to art, especially music, by Arthur Schopenhauer. The author's relationship with the philosophy of Fichte and Schelling will be articulated, contextualizing his thinking with the german romantic movement. Moreover, by presenting his aesthetic hierarchy, some fundamental aspects of the author of The world as will and representation will be pointed out, insofar as this duality is also pointed to when referring to the different artistic styles.
Keywords: Art, Music, Schelling, Schopenhauer, Will.
A filosofia moderna, segundo diversos autores, tem início com o cogito cartesiano. A concepção da necessidade de um sujeito para que haja conhecimento, ou antes, a certeza da existência proveniente de uma reflexão acerca do próprio ato pensante, caracteriza o século XVII. Dois séculos mais tarde, Schopenhauer inicia sua mais importante obra com a afirmação: “O mundo é minha representação” . (2005: 43). Para Schopenhauer, é a partir de uma relação entre sujeito e objeto, de acordo com as condições de possibilidade da manifestação de um fenômeno, ou seja, com o princípio de razão ., que se dá uma representação. Esta se refere sempre às particularidades oriundas da singularidade gerada pelo tempo e o espaço (que constituem o principium individuationis), sendo a manifestação das coisas “somente possível por uma limitação recíproca” (SIMMEL, 1915:34). A necessidade de uma dualidade está aqui fundada na concepção schopenhaueriana de que “a realidade imediatamente dada é uma ilusão” (idem). Por isso, o fundamento do mundo não pode estar na relação entre sujeito e objeto: e Schopenhauer o encontra na Vontade. A Vontade é indivisa, primordial e encontra-se igualmente manifesta em todos os fenômenos, já que é alheia à pluralidade.
A representação intuitiva tem necessariamente um objeto como fundamento, essencialmente diferente daquilo que é representado. Contudo, por jamais termos acesso ao objeto em si, que por sua vez também pertence “à forma mais geral da representação, justamente a divisão em sujeito e objeto” e na medida em que “não conseguimos diferenciar tal objeto em si da representação” (SCHOPENHAUER, 2005: 152), concebemos ambos como o mesmo. A tais representações intuitivas, Schopenhauer também se refere como imagens, e determina que sua significação seja investigada com o fim de que elas “nos falem diretamente, sejam entendidas e adquiram um interesse que absorva todo o nosso ser” (2005:151).
Na medida em que a representação é a exteriorização de uma força (Vontade), é por meio do espaço e do tempo que ela se manifesta (quantificada) enquanto fenômeno, sob o fio condutor da causalidade. No entanto, a sua essência ainda nos é desconhecida, pois ao investigarmos tais imagens meramente por intermédio de suas formas, bem como em relação a outras imagens, enquanto uma pluralidade coexistente e sucessiva, “a conexão causal dá apenas a regra e a ordem relativa de seu aparecimento no espaço e no tempo, sem nos permitir conhecer mais concretamente aquilo que aparece” (2005: 155). Se reunirmos aqui as formas do fenômeno (o tempo e o espaço) com as regras oferecidas pela conexão causal, iremos alcançar o que Schopenhauer compreende como a expressão do princípio de razão, cujas figuras consistem nas representações intuitivas.
O movimento do corpo é ato da vontade. A partir daí, algumas afecções do corpo não consistirão em representações, na medida em que a vontade se manifesta de modo não mediado. Schopenhauer se refere aqui às afecções de dor e prazer, por consistirem em afecções imediatas no corpo, enquanto “um querer ou não-querer impositivo e instantâneo sofrido por ele” (2005:158). Contudo, as afecções resultantes dos sentidos objetivos (visão, audição e tato), são tidas como representações que “apenas fornecem ao entendimento os primeiros dados de onde deriva a intuição” (idem). Este apenas revela o valor depreciativo das representações em relação à vontade. Pela vontade são gerados os afetos ligados imediatamente às funções vitais do corpo. Todavia, a vontade do corpo, ou seja, um tipo de vontade individual, não pode ser compreendida em sua unidade, “mas só em seus atos isolados, portanto no tempo, que é a forma do fenômeno de meu corpo e de qualquer objeto” (2005:159). Desse modo, as afecções imediatas serão concebidas como atos da Vontade, enquanto as mediatas serão representações do corpo, por meio dos sentidos objetivos. No entanto, ambas só podem ser conhecidas no tempo e terão como condição comum a existência de um corpo. .
Será através da analogia do próprio corpo que Schopenhauer irá refletir sobre todas as representações. Isso significa que agora será concebido haver, em toda representação, também uma vontade que lhe constituirá essencialmente, como o que lhe há de mais real, assim como, para ele, “seu corpo é o único indivíduo real no mundo, o único fenômeno da vontade, o único objeto imediato do sujeito” (2005:161):
Se quisermos atribuir ao mundo dos corpos, existente imediatamente apenas em nossa representação, a maior e a mais conhecida realidade, então lhe conferiremos aquela realidade que o próprio corpo possui para cada um de nós, pois ele é para nós o que há de mais real (2005:163).
Cabe-nos refletir sobre a analogia feita por Schopenhauer em relação a todas as representações, para que encontremos as evidências de tais representações em suas formas. Ora, não será por intermédio delas que deduzimos haver objetos? Não é primeiramente pelos sentidos intuitivos que nosso entendimento pode então projetar (nos objetos) qualidades concluídas exclusivamente a partir de uma experiência interna? Então deveremos nos ocupar antes de tudo, para que nos refiramos a objetos, de esclarecer o estatuto das representações intuitivas.
Afinal, será por meio da evidência dos sentidos objetivos, aliados ao intelecto, que concebemos a pluralidade? Quero dizer: é por percebermos um mundo composto por fenômenos, considerados individualmente como algo que compartilha um mesmo gênero, que concluímos a existência destes em sua diversidade? Em verdade, se cada um fosse concebido como algo absolutamente diverso do outro sequer poderíamos denominar a todos como fenômenos. Com isso, caso as respostas às nossas questões sejam positivas, cabe-nos agora investigar em que medida tais fenômenos podem ser diferenciados uns dos outros.
Todos os fenômenos são oriundos da Vontade, entendida em sua unidade e “a Vontade é una como aquilo que se encontra fora do tempo e do espaço” (2005:172). Tempo e espaço constituem o principium individuationis, princípio por meio do qual “aquilo que é uno e igual, conforme a essência e o conceito, aparece como pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem” (2005:171). O principium individuationis em conjunto com a causalidade ., como vimos, constitui o princípio de razão, isto é, a forma universal de todo fenômeno, a qual tudo que aparece está submetido necessariamente. Nesse sentido, Schopenhauer compreende que não pode haver liberdade para o que é determinado, onde se inclui toda e qualquer individualidade. A individuação decorre de uma causa que determina “o ponto de exteriorização de cada força no tempo e no espaço” (2005:175), além disso, a própria conjunção entre tempo e espaço, estas formas da representação, limitam a relação entre sujeito e objeto. A significação do que é individuado consiste em ser a expressão de uma coisa-em-si, a que Schopenhauer denomina como Vontade.
O fenômeno é, portanto, o modo como se apresenta a Vontade. As formas, que cabem exclusivamente ao fenômeno, são construídas a partir do próprio sujeito . e “têm de ser dadas já na mera oposição entre sujeito e objeto” (2005:180). É através das formas que se condiciona, delimita e individualiza o fenômeno. Espaço e tempo seriam as formas que propriamente viabilizariam a pluralidade, pela coexistência e sucessão, respectivamente.
A influência do pensamento kantiano é explícita em Schopenhauer, ainda que deste surjam diversas objeções àquele pensamento crítico. Assim como Kant pressupõe a dualidade entre coisa-em-si . fenômeno para estipular sua teoria do conhecimento, Schopenhauer chama de Vontade . e representação as duas possibilidades de pensar o mundo. Como vimos, a representação está subordinada ao princípio de razão, já a Vontade é a unidade essencial que se objetiva em inúmeros graus que, por sua vez, constituem as representações. Por diferenciarem-se justamente por estes graus, as representações permanecem em constante discórdia, pois “cada grau de objetivação da Vontade combate com outros por matéria, espaço e tempo” (2005:211), o que, para Schopenhauer, reflete um conflito interno da Vontade, posto que ela própria fomenta a multiplicidade:
[...] permanecia entre aqueles fenômenos, tomados como indivíduos, uma disputa insuperável e isso em todos os seus graus, pelo que o mundo se torna um contínuo campo de batalha entre todos os fenômenos de uma única e mesma Vontade, com o que precisamente se torna visível a sua discórdia interna consigo mesma (SCHOPENHAUER, 2005:348).
Por encontrar-se submetida a uma individuação e, por ser material, também a uma causalidade, a representação aqui pode ser concebida como integrante do mundo da necessidade, enquanto a Vontade mesma é desprovida de determinações, regras ou fundamento, uma vez que é ela que fundamenta o mundo, sendo-nos possível concebê-la a partir de sua mais fiel objetivação: a Ideia, neste caso por contraposição, a Ideia de liberdade.
A filosofia da arte de Schopenhauer dialoga, a partir da intersecção entre conterraneidade e contemporaneidade, com o pensamento romântico que borbulhava. Um exemplo importante é a concepção de Schelling de que a arte é um meio pelo qual o entendimento pode intuir, ou seja, a asunção de uma intuição intelectual, o que promove uma ruptura parcial com a Estética transcendental de Kant, por esta não admitir uma intuição que não seja fornecida pela sensibilidade. Contudo, Kant chega a estipular que “um entendimento no qual todo o múltiplo fosse ao mesmo tempo dado pela autoconsciência, intuiria” (KANT, 1974:84), o que, para ele, não acontece no entendimento humano.
O que parece haver de comum tanto em Schelling, quanto em Schopenhauer, na concepção de intuição intelectual, é que ambos parecem fundá-la não em uma autoconsciência, como estipulara Kant, mas justamente no poder inconsciente que a arte possui e promove. Schopenhauer concebe a intuição estética como uma intuição que se relaciona diretamente com a Ideia de um objeto, isto é, com aquilo que há de geral em uma manifestação singular. Sua característica fundamental é o conseqüente desaparecimento de qualquer vontade individual, pois “o eu tem que dissolver-se também na imagem, na representação” (SIMMEL, 1915:118). Se para Schelling a arte é uma atividade simultaneamente consciente e inconsciente, para Schopenhauer ela é “ao mesmo tempo o efeito e a causa da emancipação do puro intelecto, da vontade” (1915: 119). Se a intuição sensível (ainda que pura, isto é, não empírica) é aquela que está restrita ao mundo das representações, a intuição intelectual é a que, por suprimir o sujeito individual, o responsável pela síntese das representações, oferece imediatamente a Ideia de unidade, a máxima liberdade que, por meio da arte, possibilita dissolver qualquer vontade individual. Se a unidade sintética originária da apercepção de Kant está fundada na autoconsciência, para a concepção de intuição estética de Schopenhauer é por desconstituir qualquer individualidade, ao tornar um sujeito puro que, por meio de uma intuição, a Ideia de unidade pode ser apresentada. .
A intuição estética em Schopenhauer, portanto, fomenta a destituição da individualidade. Como isso ocorre? Procuremos, inicialmente, compreender como ele concebe o indivíduo:
Esta pluralidade de indivíduos só é inteligível em virtude do tempo e do espaço; o seu nascimento e a sua desaparição só são inteligíveis pela causalidade; ora, em todas estas formas reconhecemos apenas os diferentes pontos de vista do princípio de razão, que é o último princípio de toda limitação e de toda individuação. (SCHOPENHAUER, 2001:177).
O indivíduo é uma imagem que toma como modelo uma Ideia ., ou seja, é uma cópia da Ideia, que se apresenta com maior fidelidade a esta no caso do ser humano, como apresentação da Ideia de humanidade. O que lhe garante a individualidade é um encontro peculiar entre tempo e espaço, estas duas formas que fomentam a pluralidade, gerando o princípio delimitador das particularidades: o principium individuationis. 10 Para que as Ideias sejam um objeto de conhecimento a condição necessária é a destituição da individualidade, por onde surge o sujeito puro de conhecimento, aquele que intui uma Ideia, fora isso, enquanto indivíduo, ele reconhece a si mesmo como mais um fenômeno dentre outros, na medida em que está limitado por um corpo.
A intuição estética em Schopenhauer, portanto, promove a destituição da singularidade oriunda do tempo e do espaço, no sujeito, o conduzindo a um estado puro de contemplação da Ideia, onde “todas as relações, que se referem e poderiam se referir a uma relação mútua com outros indivíduos, desaparecem”. Assim, “a intuição estética está fora do tempo em sua essência mais íntima” (SIMMEL, 1915:119-120). Isso significa que pela arte pode ser proporcionado ao indivíduo um estado por meio do qual ele passa a ser considerado um mero correlato da obra artística, promovedora de tal estado pela apresentação da Ideia. Pode-se refletir, a partir daí, sobre como esse processo ocorre, no sentido de evidenciar o que, acima de tudo, caracteriza uma intuição estética, na medida em que não basta que um sujeito se direcione a uma obra de arte para que tal intuição se dê.
Assim, sem rodeios, Schopenhauer atribui à libertação da vontade a condição primordial para que surja uma intuição estética. O conhecimento das Ideias ocorre a partir da libertação da vontade individual, que traz à tona o sujeito puro de conhecimento, isento das regras impostas pelo princípio de razão, que “concebe em fixa contemplação o objeto que lhe é oferecido, exterior à conexão com outros objetos, repousando e absorvendo-se nessa contemplação” (SCHOPENHAUER, 2001:245).
Ao libertar-se da vontade individual, o sujeito agora trilha rumo à suprema objetividade, na medida em que sua contemplação o absorveu por completo no objeto contemplado, gerando uma unidade entre ambos por meio da Ideia que os conecta, pois é por seu intermédio que “a consciência é integralmente preenchida e assaltada por uma única imagem intuitiva” (2001:246), sendo justamente nisto que consiste uma intuição intelectual, por onde, através de uma Ideia, uma imagem se torna toda a objetividade de um sujeito puro de conhecimento e, como isso ocorre por intermédio da contemplação artística, a libertação da vontade é aqui, então, oriunda de uma intuição estética.
Para Thomas Mann, as Ideias, ao tornarem-se visíveis, como fenômenos, já o fazem por meio de um estado estético 11 e “o olhar direto que nelas incidisse seria a contemplação objetiva, pura” (1941:22). O sujeito puro de conhecimento é, portanto, o resultado de uma intuição estética, que, por sua vez, já lhe promoveu a libertação da vontade individual. Seria a arte, logo, a fomentadora de todo esse processo. Mas como poderia existir arte sem um sujeito puro de conhecimento? Isto é: uma vez que a arte é obviamente a precondição de uma intuição estética que, por libertar o sujeito de sua vontade individual o transforma em sujeito puro do conhecimento, como pode ter sido viabilizada a arte? De onde surge dentro deste esquema aquilo que proporciona a contemplação estética antes mesmo da arte? Somente se considerarmos a própria representação como manifestação artística da Vontade, o que significaria conceber o próprio corpo, esta precondição para toda individualidade, como obra de arte, poderemos então completar o esquema.
É a partir da contemplação do próprio mundo fenomenal, na medida em que pela intuição da Ideia segue a dissolução da própria representação, pois principium individuationis e causalidade não têm mais a quê se relacionarem, que o sujeito está então liberto das formas que lhe suscitam qualquer interesse neste mundo, e pode, assim, alcançar a máxima objetividade, a máxima liberdade, por não ser mais agora um mero fruto de sua vontade incessante, que outrora o deixara em estado de permanente insatisfação. Assim, a imagem parece ser a via pela qual uma Ideia pode ser intuída, a característica do fenômeno eminentemente estética (o que inclui o próprio corpo) que viabiliza a libertação do sujeito do princípio de razão.
Referindo-se à pintura histórica, Schopenhauer diz que o sentido real desta imagem é “o lado da Ideia de humanidade manifesto para a intuição pela imagem” (2001:308). Ora, o que então além da imagem pode ser considerado o ponto de partida para uma intuição estética? Ao que parece, no que concerne às artes visuais, toda Ideia que se objetiva o faz por meio de uma imagem que pode viabilizar um acesso imediato a ela (pela intuição), desde que o sujeito se liberte do princípio de razão, o que também significa libertar-se de sua vontade individual (pela intuição estética).
O caso de intuição estética que necessita de conceitos para criar uma imagem é a poesia. Enquanto as artes visuais possibilitam ao espectador uma intuição imediata da Ideia, a poesia, por utilizar alegorias, apresenta conceitos, que são mediadores de uma imagem que será gerada a partir da fantasia do sujeito, propiciando a intuição da Ideia. Para Schopenhauer, “pela alegoria sempre deve ser gerado um conceito” (2001:314) que conduz o espectador a uma representação abstrata, ao sentido nominal de algo. Contudo, quando esta alegoria estimula a fantasia do ser humano que, por sua vez, gera uma imagem mental, é disponibilizada ao sujeito uma intuição estética. A intuição, portanto, é sempre mediada por um conceito na poesia e cabe à alegoria o uso de tais conceitos, “que ela procura tornar intuível por uma imagem” (2001:319). Com isso, Schopenhauer nos leva a crer que uma imagem mental pode gerar uma intuição estética, o que nos conduz a refletir sobre um estado fisiológico que gera, por excelência, imagens mentais: nos referimos ao sono. Por meio dos sonhos, a fantasia humana viabiliza uma intuição ao sujeito. Ora, uma intuição será estética sempre que proporcionar ao sujeito uma fuga de sua vontade individual e, para Schopenhauer, o sono e o sonho nos oferecem essa fuga:
[...] no instante em que, libertos do querer, entregamo-nos ao puro conhecimento destituído de vontade, como que entramos num outro mundo, onde tudo o que excita a vontade e, assim, tão veementemente nos abala não mais existe. Tal liberação do conhecimento eleva-nos tão completamente sobre tudo isso quanto o sono e o sonho (2005:268-269).
Ao que tudo indica, o texto de Schopenhauer deixa margens para a interpretação sobre o fato de o sono, por meio dos sonhos, ser considerado um estado fisiológico artístico por natureza. Isto significa dizer que o sonho sempre nos oferece uma intuição estética, o que Nietzsche irá afirmar explicitamente em O nascimento da tragédia, sob influência direta de O mundo como vontade e representação, pois ao produzir um sonho, “cada ser humano é um artista consumado” (1992:28).
Schopenhauer destina apenas as últimas páginas de seu parágrafo sobre poesia à análise da tragédia, enaltecendo-a, contudo, ao colocá-la “no ápice da arte poética, tanto no que se refere à grandeza do seu efeito quanto à dificuldade da sua realização” (2005:333). O objetivo da tragédia é, por meio da apresentação do sofrimento humano, indicar o conflito interno da própria Vontade, em outros termos, a tragédia é a objetivação deste conflito, em seu grau mais elevado. Os meios para apresentação do sofrimento podem ser o acaso, pela Ideia de destino, ou por uma escolha, que condena o herói a partir da sua liberdade, revelando um aspecto do sofrimento intrínseco à humanidade mesma. O efeito esperado à apresentação de uma infelicidade é o sentimento de resignação, compreendido aqui como uma suspensão da vontade individual.
Por fim, pela hierarquia eleita por Schopenhauer na terceira parte de sua principal obra, trataremos agora da arte “que se encontra por inteiro separada de todas as demais artes” (2005:336), a arte dos sons: a música. Cabe ressaltar de imediato que a linguagem desta arte “ultrapassa até mesmo a do mundo intuitivo” (idem) e que, portanto, não viabiliza por si só uma intuição estética 12. Isso ocorre porque a intuição estética oferece um acesso à Ideia, esta mediadora da objetivação da Vontade; a música, por sua vez, é uma “imediata objetivação e cópia de toda vontade” (2005:338), como o é o próprio mundo.
Schopenhauer admite, desde o início, a impossibilidade de comprovação de sua teoria sobre a música, posto que a apresenta como “a cópia de um modelo que ele mesmo nunca pode ser trazido à representação” (idem). Esse modelo se refere ao mundo como Vontade, indiviso, impassível de representação, o que nos conduz a uma consideração analógica, por meio da música, com o fim de enaltecê-la como arte imponente, por objetivar imediatamente a Vontade. Esse percurso leva Schopenhauer a afirmar que a música “poderia em certa medida existir ainda que não houvesse mundo” (enquanto representação), visto que “o nosso mundo nada é senão o fenômeno das Ideias na pluralidade” (idem), podendo inclusive o mundo ser concebido como “música corporificada” 13, por onde a pluralidade se manifesta, sendo somente se corporificada que a música viabilizaria alguma intuição, por objetivar-se como matéria e forma 14. Mas nos parece que o objetivo aqui é enaltecer que, ao relacionar-se às representações, a música “realça de imediato em cada pintura, sim, em cada cena da vida real e do mundo o aparecimento de uma significação mais elevada” (2005:345), e, por isso, “música corporificada” deve ser uma expressão relacionada, antes de tudo, aos fenômenos estéticos, posto que “Vontade corporificada” é uma expressão que se refere já a todos os outros fenômenos. Nesse sentido, a música pode utilizar-se de todas as outras artes, nunca por necessidade, mas apenas por tais artes estarem para ela “apenas como um exemplo escolhido está para um conceito geral” (idem).
Assim, podemos dizer que a concepção de arte de Schopenhauer se aproxima da de Schelling no que concerne às artes representativas, posto que pela intuição estética pode-se partir do determinado para o indeterminado, pode-se sair das malhas impostas pelo princípio de razão para contemplar a Ideia. No entanto, há uma arte primordial, a música, que justamente por não necessitar de mediação alguma ultrapassa a intuição e manifesta por si mesma, sem qualquer relação com o mundo dos fenômenos, a objetivação imediata da Vontade, a partir da dissolução de toda e qualquer individualidade.
Referências
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SIMMEL, G. Schopenhauer y Nietzsche. Tradução de José R. Pérez Bances. Madrid: Francisco Beltran, 1915.
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Autor(a) para correspondência: André Luiz Bentes, Universidade Federal do Tocantins, Colegiado de Filosofia – Quadra 109 Norte Av. NS-15, ALCNO-14. Plano Diretor Norte, 77001-090. Palmas – TO, Brasil. andrebentes@gmail.com